Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3310/22.2T9SNT.L1-3
Relator: ANA PARAMÉS
Descritores: REGIME GERAL DO RUÍDO
RUÍDO DE VIZINHANÇA
PREENCHIMENTO DO TIPO CONTRAORDENACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: É suficiente para se afirmar a existência de “ruído de vizinhança” o facto de agentes policiais referirem que ouviram, às 02h15m., a partir da rua, ruído proveniente de uma habitação;
Ruído de música vinda de um apartamento, às 02h.15m da madrugada, audível na rua, é susceptível pela sua natureza e intensidade de afectar o sossego e tranquilidade da vizinhança.


Decisão Texto Parcial:Acordam, em conferência, os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1.RB, impugnou judicialmente a decisão da Câmara Municipal de Sintra de 15.11.2021 que o condenou pela prática de uma contraordenação, prevista e punida, nos termos do disposto nos artigos 24.º, n.ºs 1 e 2 e 28, n.º 1, alínea h), ambos do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de janeiro e 22.º, n.º 2, alínea a) da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, na coima no valor de €600,00 (seiscentos euros).
2.Enviados o auto ao Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste Sintra veio a realizar-se no Juízo Local de Pequena Criminalidade- Juiz 1
daquele tribunal Audiência de Discussão e Julgamento, após o que por sentença proferida em  
 27-01-2023, foi decidida a manutenção da decisão administrativa da Câmara Municipal de Sintra de 15.11.2021 que julgou improcedente aquele recurso de impugnação judicial, mantendo a decisão administrativa recorrida.
3.Inconformado o arguido veio recorrer daquela sentença, requerendo a absolvição pela  contraordenação por que foi condenado nos autos, em síntese, por entender que  não se encontra demonstrado o preenchimento do tipo contraordenacional.

Da motivação do seu recurso extraiu as conclusões que de seguida se transcrevem:
«CONCLUSÕES
A.–
A arguida foi condenado pela prática de uma contraordenação, prevista e punível, nos termos do disposto nos artigos 24.º, n.ºs 1 e 2 e 28, n.º 1, alínea h), ambos do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17/011 e 22.º, n.º 2, alínea a) da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais, no pagamento de uma coima no valor de €600,00, acrescidos de €102,00 respeitantes a custas.
B.–
O que falta em descrição de factos consubstanciadores da infracção, sobra em considerações valorativas, que para além de impróprias para o agente autuante – e próprias para a autoridade administrativa, a quem compete a valoração da ilicitude – despertam a ideia de obstinação na autuação do arguido, o que fere o auto de parcialidade.
C.–
No caso em concreto, não há qualquer descrição dos factos nem das circunstâncias, mas a mera alusão a normas que alegadamente foram infringidas, e que saem reforçadas pelas declarações dos agentes autuantes.
D.–
Para além disso, seriam absolutamente relevantes e necessárias no sentido de concluir-se pela alegada produção de ruído, e em consequência, pelo preenchimento dos factos que integram o tipo do ilícito contraordenacional de que o arguido vem sendo acusado.
E.–
O que falta, em descrição de factos e circunstâncias, sobeja em considerações paralelas, marginais e que em nada auxiliam para a descoberta da verdade material.
F.–
A título de exemplo, na identificada infracção “, refere-se que “… o cidadão é bastante conflituoso e tem por hábito confrontar as autoridades”.
G.–
A acusação, e correspondente sentença condenatória, sustenta-se no teor dos autos de notícia maquinalmente elaborados pela PSP e que não indicam elementos que consubstanciem a prática do ilícito imputado, complementadas pelas declarações quer do Arguido quer dos agentes autuantes.
H.–
Resulta da matéria de facto provado que o arguido foi abordado pelos agentes autuantes que lhe ordenaram que baixasse o volume da música.
I.–
No entanto, não foi trazido aos autos qual o volume do barulho, e que tipo de barulho era.
J.–
Mais, se era tanto o barulho, e se o arguido não acatou a ordem, os agentes autuantes voltaram ao local com a mesma queixa?
K.–
Não voltaram, e nem houve a prática de qualquer crime de desobediência a uma ordem emanada pela autoridade de forma legitima.
L.–
E não houve, porque o barulho não era tão incomodativo que fosse digno daquela tutela.
M.–
Aliás, dir-se-á até que o auto só foi levantado, por ter sido este arguido em concreto, face às considerações que são tecidas e cuja relevância nem se alcança nem ficou demonstrada em Tribunal.
N.–
De acordo com aquele normativo As autoridades policiais podem ordenar ao produtor de ruído de vizinhança, produzido entre as 23 e as 7 horas, a adopção das medidas adequadas para fazer cessar imediatamente a incomodidade.
O.–
O normativo estabelece que as autoridades policiais podem ordenar a adopção de determinadas.
P.–
Os agentes autuantes puderam e ordenaram ao alegado produtor de ruído da vizinhança a adopção de medidas destinadas a fazer cessar a incomodidade.
Q.–
Pelo que, e smo, entendemos não estarem preenchidos os pressupostos objetivos do tipo contra-ordenacional
R.–
Parece, face ao explanado na convicção do tribunal e apreciação crítica das provas (III-3 da sentença condenatória), que nada obstou à faculdade que os agentes autuantes puderam exercer.
S.–
Aliás o ponto 5 da matéria de facto dado como provado confirma a actuação dos agentes Os agentes da PSP informaram o Arguido que, devido à hora, teria de cessar imediatamente o ruído.
T.–
Resulta de sentença condenatória que os agentes autuantes puderam e ordenaram ao alegado produtor de ruído da vizinhança a adopção de medidas destinadas a fazer cessar a incomodidade.
U.–
Pelo que, e smo, entendemos não estarem preenchidos os pressupostos objectivos do tipo contra-ordenacional.
V.–
Não resultando das declarações dos agentes autuantes qualquer impedimento à possibilidade de ordenarem a adopção de determinado comportamento.
W.–
Não havendo indicação de nenhuma destas situações, não há suficiência de matéria de facto para dar como provado que os agentes de autoridade não tenham tido a possibilidade de ordenar a cessação do ruído – normativo porque vem o arguido condenado».

4.O Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª Instância pronunciou-se pela improcedência do presente recurso e a consequente confirmação da decisão judicial recorrida por entender, em síntese que foram devidamente ponderados e criticamente apreciados os elementos de relevo para o enquadramento jurídico-penal dos factos, não merecendo qualquer censura a douta decisão do Tribunal a quo no sentido da confirmação da decisão administrativa.

5.–Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso e da manutenção da sentença recorrida nos termos e pelos fundamentos da resposta do seu Exmº Colega de 1 ª instância.

6.–Cumprido o disposto no n.º 2 do art.º 417.º do Código de Processo Penal, o arguido não apresentou resposta.

7.Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.
*

II.–Fundamentação

1.–Delimitação do objeto do recurso.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
Nos termos do art.º 75º do R.G.C.O. o Tribunal da Relação conhece apenas matéria de direito nos recursos de sentenças condenatórias proferidas no âmbito de processos de recurso de contraordenação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente, os vícios indicados no art.º 410º nº 2 do CPP, (art.º 412º, nº 1 do C.P.Penal, “ex vi”, do disposto no art.º 74º nº 4 do Regime-Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27-10 e sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis nº 356/89, de 17-10 e 244/95, de 14.9)


Perante as conclusões do recurso, as questões  que o recorrente coloca são as seguintes:
a)-Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410º, nº2 al.a) do CPP);
b)-Errada  valoração da prova por parte do tribunal;
c)-Enquadramento jurídico dos factos provados.
2.Nos termos do art.º 75º do R.G.C.O. o Tribunal da Relação conhece apenas matéria de direito nos recursos de sentenças condenatórias proferidas no âmbito de processos de recurso de contraordenação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente, os vícios indicados no art.º 410º nº 2 do CPP, (art.º 412º, nº 1 do C.P.Penal, “ex vi”, do disposto no art.º 74º nº 4 do Regime-Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27-10 e sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis nº 356/89, de 17-10 e 244/95, de 14.9). Nos termos do art.º 75º do R.G.C.O. o Tribunal da Relação conhece apenas matéria de direito nos recursos de sentenças condenatórias proferidas no âmbito de processos de recurso de contraordenação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente, os vícios indicados no art.º 410º nº 2 do CPP, (art.º 412º, nº 1 do C.P.Penal, “ex vi”, do disposto no art.º 74º nº 4 do Regime-Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27-10 e sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis nº 356/89, de 17-10 e 244/95, de 14.9)

2.O tribunal “a quo” deu como assente a seguinte matéria fáctica:

«III.1.- Matéria de facto provada
1.-O Arguido RB, (…)  reside na Avenida (…), Agualva-Cacém.
2.-No dia 14 de fevereiro de 2021, pelas 02.15, no seguimento de reclamação que dava conta de ruído de música, os agentes da PSP RH e AS deslocaram-se à residência identificada em 1.
3.-Aí chegados constataram a existência de ruído de música, que provinha da habitação do Arguido.
4.-Os agentes da PSP tocaram à campainha, tendo a porta sido aberta pelo Arguido.
5.-Os agentes da PSP informaram o Arguido que, devido à hora, teria de cessar imediatamente o ruído.
6.-O Arguido não acatou a ordem.
7.-O Arguido afirmou que não iria desligar a música e que não queria saber, estando só a beber um copo com um amigo.
8.-Face a esta recusa, os agentes da PSP informaram o Arguido que, mantendo o comportamento, iria ser autuado.
9.-Os agentes da PSP notificaram o Arguido do Regulamento Geral do Ruído, tendo o Arguido negado a assinar.
10.-O Arguido não cessou o ruído.
11.-O Arguido agiu de forma livre e voluntária, consciente da ilicitude da sua conduta, tendo aceitado o respetivo resultado antijurídico dai resultante, indiferente ao prejuízo causado à vizinhança.

2.E deu como não provados os seguintes factos:

«III.2.- Matéria de facto não provada

Com interesse para a decisão da causa ficaram por provar os seguintes factos:
1.-Na circunstância descrita em 6. da matéria de facto provada, o Arguido, referiu que “isto é uma merda”, “os meus vizinhos são todos uns otários” e “esta merda não vai ficar assim, caralho”.

3.-E fundamentou a  matéria de facto provada e não provada nos seguintes termos:

«III.3.- Convicção do tribunal e apreciação crítica das provas

O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade apurada com base na prova documental junta aos autos, nomeadamente:
- Expediente elaborado pela Polícia Municipal, nomeadamente o auto de contraordenação constante de fls. 3 dos presentes autos, conjugada com as declarações do Arguido, dos agentes da PSP RH e AP e AS, RS (Amigo do Arguido) e nos moldes infra especificados.
- Decisão da Câmara Municipal de Sintra, junta aos presentes autos a fls. 10 e seguintes.
No que respeita à matéria de facto contante dos pontos 1. a 11. da matéria de facto provada, atendeu o Tribunal às declarações do Arguido, conjugadas com as declarações dos agentes da PSP que, em grande parte, foram coincidentes.
Vejamos, o Agente da PSP RP explicou que, chegados a casa do Arguido, foi solicitado para baixar o volume da música, sendo que o mesmo não o fez, replicando que não “desligava porque a casa era dele”.
Também a testemunha AS explicou que o Arguido afirmou que “tinha o direito de dizer o que quisesse porque a casa era dele…»
Já o Arguido afirmou, de forma coincidente, que os agentes da PSP determinaram que baixasse o volume e que respondeu que não o faria, uma vez que estava em casa e podia estar sossegado.
Deste modo, entende o Tribunal que resultou provado que, no dia e horas supra mencionadas, o Arguido estava em casa com um amigo, sendo que tinha o volume alto. Solicitado pelos agentes da PSP que fizesse cessar o ruído, este não obedeceu.
Resultou, assim, que o Arguido, ciente da ordem dada pelos agentes, decidiu não baixar o volume, por entender não ser devido por estar em sua casa.
A testemunha RS, apesar de se considerar o seu depoimento honesto e credível, demonstrou não ter qualquer conhecimento direto da situação, uma vez que não era o amigo do Arguido presente no local.
No que concerne ao ponto 1. da matéria de facto não provada, entendeu-o dessa forma o tribunal por não terem tais expressões sido referidas, quer pelos agentes da PSP, quer pelo Arguido.
Por todo o exposto, formou o Tribunal a sua convicção».

3.Apreciando  e decidindo do presente recurso.

a)- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Afirma o recorrente que na sentença recorrida não há «qualquer  descrição dos factos nem das circunstâncias, mas a mera alusão a normas que alegadamente foram infringidas», que a  descrição dos factos «seriam absolutamente relevantes e necessárias no sentido de concluir-se pela alegada produção de ruído e, em consequência, pelo preenchimento dos factos que integram o tipo do ilícito contra-ordenacional de que o arguido vem sendo acusado.  
Mais afirma que a sentença condenatória, se sustenta no teor dos autos de notícia maquinalmente elaborados pela PSP e que não indicam elementos que consubstanciem a prática do ilícito imputado,
Deste modo, invoca o arguido o vicio de insuficiência  para a decisão da matéria de facto provada,  a que alude o art.º 410º, nº2 al.a) ) do C.P.P. 
Nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2 do CPP, aplicável ao processo de contraordenações, por força  do disposto no art.º 74º nº 4 do Regime-Geral das Contraordenações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27-10, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c)-Erro notório na apreciação da prova.
Como resulta da própria letra da lei, em conformidade com o decidido no Ac. do STJ. nº. 07/95, em interpretação obrigatória, o conhecimento dos vícios enumerados no art.º 410º, nº 2, do CPP, só é possível, quando os mesmos resultarem, exclusivamente, do texto da decisão recorrida, por si só, ou, conjugada com as regras de experiência comum, sem recurso a elementos externos à decisão, designadamente, depoimentos e declarações prestados, quer durante o inquérito, instrução, quer até na audiência de julgamento ou documentos do processo, enquanto que no controle do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, quando o recorrente impugna a matéria de facto, nos termos do art.º 412°, nº3, do CPP, o Tribunal de recurso procede ao reexame de facto, nos pontos especificados pelo recorrente que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, especificadas pelo recorrente, e com base nas quais assenta a sua discordância (art.º 412°, nº3, als. a) e b), do CPP).
Deste modo a  invocação destes vícios do art.º 410º, nº2, do CPP.  não se deve confundir com o  recurso da matéria de facto, que se funda na existência de um erro de julgamento detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência de 1ª instância e implica que o tribunal “ad quem” reaprecie essa prova.
Vejamos, então, se na decisão recorrida se verifica o  vício previsto na al. a), do nº 2 do citado art.410º, do C.P.P., invocado pelo recorrente, isto é, insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, no “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pag.325/326 para que se verifique este vicio «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.”
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.
Uma decisão incorre em tal vício, quando o tribunal recorrido podendo fazê-lo deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal.
Tal insuficiência determina a formulação incorrecta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas, ou seja, quando os factos provados forem insuficientes para fundamentar a solução de direito encontrada.
Por outras palavras, verifica-se o vicio de  insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito quando os factos colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na sua objetividade quer na sua subjetividade, o ilícito dado como provado.
Ora, analisando a sentença recorrida, nomeadamente, os factos provados e não provados e respectiva fundamentação não decorre que a sentença não contenha toda a matéria de facto essencial à decisão de direito ou que o tribunal não tenha apurado todos os factos  necessário à decisão da causa .
A partir do texto da decisão recorrida, por si só e conjugada com as regras da experiência comum, o Tribunal da Relação não vislumbra, um qualquer facto que ficou por averiguar em julgamento, relevante para a boa decisão da causa, quer para o preenchimento da contraordenação por que este foi condenado que para infirmar a mesma, conforme defende o recorrente.
Os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento, com o preenchimento pelo arguido/recorrente dos elementos constitutivos da contraordenação de cuja prática foi condenado nos autos, e como, com maior fundamentação nos debruçaremos, de seguida, a propósito do enquadramento jurídico dos factos.
Consequentemente, não temos por verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a alínea a), n.º2 do art.410.º do Código de Processo Penal.

Errada valoração da Prova

O que decorre do recurso é que o recorrente discorda da valoração da matéria de facto provada,  entendendo que deveriam ter sido dados como não provados  factos que em seu entender, teriam levado à sua absolvição, se bem que, em bom rigor, também, não especifique concretamente quais  são esses factos.
Certo, porém , é que as  questões supra referidas suscitadas pelo recorrente no presente recurso respeitam quer à matéria de facto, quer ao juízo probatório formulado pelo Tribunal «a quo« quanto à mesma, cuja impugnação não tem lugar em sede de recurso contraordenacional e que não podem ser conhecidas por este tribunal da relação (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-01-2015, Processo n.º 2090/10.9TBLLE.E2, Relatora Filomena Soares).
Ora, de acordo com o já supra mencionado, sobre o objecto do recurso  de sentenças condenatórias proferidas no âmbito de processos de recurso de contraordenação, a 2.ª instância apenas conhece da matéria de direito e não da matéria de facto, pelo que, não pode este tribunal atender a impugnação da matéria de facto suscitada no recurso.

Enquadramento jurídico:

O Regulamento Geral do Ruído (doravante denominado de R.G.R.), aprovado pelo DL 9/2007 de 17/1, estabelece o regime de prevenção e controlo de poluição sonora, visando a salvaguarda da saúde humana e o bem-estar das populações (art.º 1º do R.G.R.).
O Regulamento aplica-se, para além do mais, ao ruído de vizinhança (artº 2º nº 2) do R.G.R. ).
Nos termos da al. r), do art.3, do RGR, entende-se por ruído de vizinhança «o ruído associado ao uso habitacional e às actividades que lhe são inerentes, produzido directamente por alguém ou por intermédio de outrem, por coisa à sua guarda ou animal colocado sob a sua responsabilidade, que, pela sua duração, repetição ou intensidade, seja susceptível de afectar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança»

Estabelece o artigo 24.º do mencionado Regulamento Geral do Ruído que:
1As autoridades policiais podem ordenar ao produtor de ruído de vizinhança, produzido entre as 23 e as 7 horas, a adoção das medidas adequadas para fazer cessar imediatamente a incomodidade.
2As autoridades policiais podem fixar ao produtor de ruído de vizinhança produzido entre as 7 e as 23 horas um prazo para fazer cessar a incomodidade”.
Finalmente, o art.º 28º, n.º 1, al.h), refere constituir contraordenação ambiental leve punível com coima “h) O não cumprimento da ordem de cessação da incomodidade emitida pela autoridade policial nos termos do n.º 1 do artigo 24.º.
São, assim, elementos constitutivos do tipo (i)- a produção de “ruído de vizinhança” (ii)- e o não acatamento da ordem policial destinada a fazê-lo cessar imediatamente, quando ocorrer no período nocturno.
Como ficou provado,  no dia 14 de Fevereiro de 2021, pelas 02.15, houve uma reclamação para a esquadra da Polícia de Segurança Pública que dava conta de ruído de música que provinha da residência do arguido, sita na Avenida (…) Agualva-Cacém.
Mais se provou que, na sequência de tal reclamação, dois  agentes da PSP dirigiram-se para o local e aí chegados constataram, efectivamente, a existência de  ruído de música, que  provinha da residência do arguido (facto provado em 3).
Dirigiram-se, então, os referidos agentes policiais à residência do arguido e tocaram à campainha, tendo a porta sido aberta pelo arguido (facto provado em 4).
De seguida, os agentes policiais disseram ao arguido  que, devido à hora tardia, teria de cessar imediatamente o ruído, sob pena de o terem de autuar , tendo o arguido, deliberada e voluntariamente, se negado a fazer cessar a música, afirmando aos Srs. Agentes policiais  que não iria desligar a música, como efectivamente não desligou e que não queria saber, pois estava só a beber um copo com um amigo.
Ora, atenta a matéria de facto provada  há que concluir  que o arguido ao não acatar a ordem dos agentes da autoridade de fazer  cessar o ruído de vizinhança, ruído de  música alta que se fazia ouvir, àquela hora da madrugada, e suscetível de perturbar o sossego e a tranquilidade da vizinhança, praticou a contraordenação por que foi condenado.
Na verdade, no caso dos autos, temos por assente que ao agir da forma descrita o arguido  provocou ruído de vizinhança porquanto,  tinha no interior da sua residência ruído de música alta, pois esta era  audível na rua, como o comprovaram os agentes policiais que se deslocaram ao local,  às 02h.15m. do dia 14 de Fevereiro de 2021,  portanto, no período de sossego e descanso da vizinhança que levou  a que um vizinho incomodado na sua tranquilidade telefonasse, aquela hora, tardia para a polícia reclamando do ruído que o perturbava.
E que esse ruído de música que provinha da casa do arguido era, pela sua natureza e intensidade, suscetível de afectar a tranquilidade da vizinhança, comprova-o o facto de o mesmo ser ouvido na rua pelos próprios  agentes policiais, sendo certo que, a igual conclusão teríamos de chegar, pela regras da livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127º, do Código de Processo Penal, atenta a prova produzida e a sua avaliação de acordo com critérios  da   experiência comum e da normalidade dos acontecimentos  que nos permitem  concluir que ruído de música vinda de um apartamento, às 02h.15m da madrugada,  audível na rua, é suscetível pela sua natureza e intensidade de afectar o sossego e tranquilidade  da vizinhança   
Em face do exposto, atenta a matéria de facto provada resultam claramente verificados todos os elementos constitutivos da contraordenação pela qual foi condenado o arguido, improcedendo, assim, o recurso interposto.

III.Dispositivo:

Em face do exposto, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa
em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido RB mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.  

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. - cfr arts.92º do RGCO, 513º e 514º nº 1, do CPP



Lisboa, 24 de Maio  de 2023.



(Processado e revisto pelo relator)

Ana Costa Paramés- (relatora)
Maria Leonor Silveira Botelho- (1ª adjunta)
                                                         
***


Voto vencido a decisão proferida pelas razões que passo a explicitar.

Tem razão a decisão proferida quando refere que se verifica o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito quando os factos colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, o ilícito dado como provado.
Ora, nos termos da al. r), do art.3, do RGR, entende-se por ruído de vizinhança «o ruído associado ao uso habitacional e às actividades que lhe são inerentes, produzido directamente por alguém ou por intermédio de outrem, por coisa à sua guarda ou animal colocado sob a sua responsabilidade, que, pela sua duração, repetição ou intensidade, seja susceptível de afectar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança»:
O ruído de vizinhança tem, pois, as seguintes características:
- está associado ao uso habitacional e às actividades que lhe são inerentes;
- é susceptível de afectar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança pela sua duração, repetição ou intensidade; e
- é  produzido directamente por alguém ou por intermédio de outrem, por coisa à sua guarda ou animal colocado sob a sua responsabilidade.
A comissão da contraordenação aqui em causa pressupõe:
a)-A produção de ruído de vizinhança;
b)-A não obediência à ordem para cessar o dito ruído.
Assim sendo, é mister que a comissão da contraordenação tenha na sua base a existência do ruído tal como o mesmo é desenhado na Lei.
No caso concreto temos por certo que a ter existido ruído o mesmo ocorreu entre as 22  horas e as 7 horas e que a ordem de cessação de ruído foi dada por quem tinha legitimidade para o fazer.
O que não temos como afirmado –e teríamos de ter e teria o Tribunal de ter averiguado- é que o ruído em causa e que feriu a susceptibilidade dos agentes policiais a ponto destes terem dado ordem de cessação e, posteriormente, levantado um auto tenha, pela sua duração, repetição ou intensidade, afectar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança.
Na verdade, em momento algum do processo se refere que o ruído haja, v.g., incomodado o sono a alguém, haja contribuído para o mal estar físico ou psicológico de terceiros ou lhes afectado a saúde e que esse alguém fosse vizinho.
De igual sorte não se diz qual a intensidade do ruído.
Não se menciona qual a sua duração.
Ou até se houve repetição da conduta.
Nada disto consta da factualidade limitando-se a decisão recorrida a referir “a existência de ruído de música, que provinha da habitação do Arguido”, desconhecendo-se se o ruído provinha da intensidade do mesmo (vulgo por ser alto) ou do simples facto de quem o ouvia não gostar da música por não ser o seu género. Nem se sabe se durou muito tempo (horas ou minutos).
É certo que a Lei fala em “susceptibilidade” de afectar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança, o que inculca a ideia que não é necessário o dano efectivo bastando a mera probabilidade ou perigo de dano. Contudo, neste caso a existência de perigo teria de ser afirmada e demonstrada em factos sendo que neste particular apenas a medição concreta do ruído permitiria concluir por essa “susceptibilidade”.
Assim sendo, em minha opinião, a decisão recorrida carece de densificação fáctica de molde a possibilitar a condenação não bastando a sensibilidade auditiva de dois polícias para justificar a aplicação de uma coima.
Entendo, pois, que não é correcto afirmar-se, como a decisão o faz, que “o Tribunal da Relação não vislumbra, um qualquer facto que ficou por averiguar em julgamento, relevante para a boa decisão da causa, quer para o preenchimento da contraordenação por que este foi condenado que para infirmar a mesma (…) Os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento, com o preenchimento pelo arguido/recorrente dos elementos constitutivos da contraordenação de cuja prática foi condenado nos autos (…)”.
Entendo, pois, que a decisão recorrida padece do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito e determinaria, porque insuprível nesta instância, a remessa dos autos à primeira instância para apuramento da factualidade em falta e produção de nova decisão conforme os dados que se conseguissem apurar.

Rui Teixeira- (2º adjunto)


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