Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
277/20.5T8RGR-A.L2-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA DO PROMITENTE VENDEDOR
SUSPENSÃO DO CUMPRIMENTO DO CONTRATO-PROMESSA
OPÇÃO PELA EXECUÇÃO OU RECUSA DE CUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO POR INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
PRAZO RAZOÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–O nº 1 do artigo 102º do CIRE, estabelece, como regra geral (ressalvando-se os casos de declaração de insolvência do promitente-vendedor quando se trate de contrato-promessa com eficácia real em que tenha sido feita a entrega da coisa), o princípio da suspensão do cumprimento, isto é, o cumprimento dos negócios em curso suspende-se até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou pela recusa de cumprimento.

II– A resolução do contrato-promessa apenas se pode fundar no incumprimento definitivo, resultante da não realização da prestação, dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, e da perda do interesse que o credor tinha na prestação, a ser apreciado objectivamente.

III– Por isso, somente a declaração, expressa ou tácita, do administrador de não celebrar o contrato definitivo conduzirá à extinção do contrato-promessa.

IV– Proferida a declaração de recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência fica o credor em condições de exigir o crédito e de exercer o ónus de reclamação.

V– Não é de ordenar a notificação do administrador da insolvência para proferir a declaração a que se refere o nº 1 do artigo 102º do CIRE, uma vez que assiste à “outra parte” o direito de lhe fixar um “prazo razoável”, cominatório, para ele exercer a sua opção.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,


1.Por apenso aos autos de declaração de insolvência da sociedade “J. & F., LIMITADA”, vieram os respectivos credores reclamar os seus créditos.
Findo o prazo das reclamações, o administrador da insolvência juntou aos autos a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos.
Notificados da referida lista, vieram os credores, LM e mulher, ML, ao abrigo do disposto no artigo 130.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), impugná-la, alegando, em síntese, que no dia 30 de Setembro de 2017, celebraram com a ora Insolvente, um contrato, por meio do qual a Insolvente prometeu vender e os Reclamantes prometeram comprar uma moradia a edificar no referido lote, livre de ónus e encargos, mediante o preço acordado de € 245.000,00; a título de sinal e por conta do preço acordado, os Reclamantes entregaram à Reclamada a quantia de € 122.500,00, tendo ficado acordado que o remanescente seria pago na data da escritura; na mesma data, os Reclamantes celebraram com a Reclamada um contrato de execução de empreitada, através do qual a insolvente prometeu executar no prazo de seis meses a referida moradia; em 8 de Novembro de 2017, os reclamantes e a insolvente celebraram um aditamento ao supra referido contrato de promessa de compra e venda e de execução de empreitada, nos termos do qual ficou convencionado que seria efetuado o registo provisório de aquisição do lote a favor do Reclamante, o qual só foi registado em 2019/02/27, através da apresentação 3534, que ainda se mantém, mas que já caducou, por não ter sido convertido em definitivo, no prazo legal; naquele, foram aditados à cláusula quarta os n.ºs 2, 3 e 4, através dos quais a Insolvente se obrigou a constituir uma hipoteca, sobre outro imóvel (prédio rústico com a área de 10.080 m2, situado no Morro ... – Outeiro ... – freguesia de R... S..., concelho da R_____G_____, descrito na respetiva conservatória sobre o n.º 1… e inscrito na respetiva freguesia sobre o artigo …, Secção D) para garantia dos valores entregues pelo Reclamante, a título de sinal acrescido de 4% ao ano, contados desde a data do pagamento e até ao efetivo reembolso, depois de abatido do valor da compra e venda do lote; a insolvente, de igual modo, obrigou-se a efetuar o registo provisório da hipoteca sobre o referido prédio, na data da assinatura do aditamento e ainda a celebrar com os Reclamantes a escritura de compra e venda do lote e de constituição de referida hipoteca sobre o prédio rústico, com registos prediais definitivos antes dos provisórios caducarem; em 14 de maio de 2019, os reclamantes entregaram o valor de € 5000,00 à insolvente, por conta do preço do contrato referido supra, tendo a insolvente declarado que a moradia já se encontrava na fase final de acabamentos; em 11 de julho de 2019, os reclamantes entregaram o valor de €5000,00 à insolvente, por conta do preço do contrato referido; entretanto, os reclamantes pagaram os trabalhos a mais que no imóvel foram executados no valor de €1167,04 e no valor de €2574,89, num total de €3741,93; por conta das suas obrigações, impostas pelo contrato promessa e execução de empreitada, os reclamantes pagaram, assim, o montante total de €136.241,93; com a execução da empreitada, o insolvente entregou ao Reclamante posse sobre referido lote e moradia, de cuja utilização passou a dispor desde então; passa a descrever os actos de posse exercidos sobre a referida moradia; considera que o reclamante goza do direito à devolução do preço pago, bem como de um direito de retenção sobre o lote/moradia, nos termos do disposto no artº 755 n.º 1, al. f) do Cód. Civil.
Terminam, pedindo a verificação e graduação de créditos no valor global de € 151.325,84, devendo o mesmo ser garantido e graduado de acordo com a proteção conferida pelo direito de retenção sobre a moradia edificada no lote 4, com a área de 160,50 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana …-P, prevalecendo sobre a hipoteca registada.
Tanto o credor NOVO BANCO DOS AÇORES, S.A. como o Administrador da Insolvência apresentaram contestação.
O primeiro alegou que o credor reclamante não logrou provar que tivesse havido incumprimento do contrato-promessa, muito menos que tal incumprimento fosse imputável à insolvente, designadamente, por não ter feito prova do incumprimento definitivo; por força da declaração de insolvência da promitente vendedora o cumprimento do alegado contrato-promessa de compra e venda ficou suspenso, estando condicionados à opção que o Sr. Administrador de Insolvência venha a tomar quanto ao cumprimento, ou não, do aludido contrato-promessa; mais considera que da documentação junta não resulta demonstrado que a Insolvente, efectivamente, tenha recebido a quantia de €132.500,00, nem tão pouco as despesas no valor de €3741,93; impugna ainda o preenchimento dos pressupostos para a constituição do direito de retenção; termina peticionando a improcedência da impugnação apresentada (refª 3991028 de 28/01/2021).
O segundo apenas reconheceu o valor de €47.500,00, correspondente ao pagamento que o credor logrou provar, não tendo o remanescente no valor de € 103.825,84 sido reconhecido, por falta de comprovativos dos pagamentos e por falta de fundamento para os montantes de despesas.
Cumpridos os trâmites legais, foi proferida sentença em 25/09/2022 (refª 53807581) que, julgando totalmente procedente a impugnação, reconheceu aos reclamantes “um crédito no valor global de € 151.325,84, sendo € 136.241,93 a título de capital, acrescido de juros vencidos no valor de € 15.083.91 e vincendos, à taxa legal, o qual beneficia de direito de retenção, ao abrigo do disposto no art. 755º, n.º 1, al. f) do Cód. Civil sobre a moradia edificada no lote 4, com a área de 160,50 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana …-P, prevalecendo sobre a hipoteca registada.”
Inconformado com esta decisão, veio o credor reclamante, NOVO BANCO DOS AÇORES, S.A. interpor recurso, cujas alegações termina com as conclusões que se transcrevem:
I.–Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls…na parte que julgou a impugnação totalmente procedente reconhecendo aos reclamantes LM e ML um crédito no valor global de €151.325,84, sendo €136.241,93 a título de capital, acrescido de juros vencidos no valor de €15.083.91 e vincendos, à taxa legal, de natureza garantida.
II.–Com o que o ora Recorrente, não se conforma.
III.–Com efeito, da factualidade dada por provada não resulta demonstrado o incumprimento definitivo do contrato-promessa em referência, nem a opção do Sr. Administrador de Insolvência pelo não cumprimento.
IV.–Logo, afigura-se que, a conclusão deveria, ao invés, ser o não reconhecimento (imediato) do respectivo crédito e a notificação do Sr. Administrador de Insolvência para esclarecer da opção que pretende então tomar.
V.–A questão fundamental de direito que aqui se discute tem a ver, como se referiu, com a circunstância de os credores reclamantes LM e ML, não terem alegado, logo não terem logrado provar que houve incumprimento definitivo do contrato-promessa, muito menos que tal (a ter havido, que não houve) incumprimento definitivo seja imputável à insolvente – designadamente, não fizeram prova do incumprimento definitivo; cfr. a factualidade dada como provada.
VI.–Tanto assim é que não alegaram, muito menos lograram demonstrar terem alguma vez formalmente interpelado a Insolvente fixando-lhe, designadamente, um prazo suplementar e peremptório, para o cumprimento da promessa de compra e venda do imóvel, findo o qual, daria o contrato por definitivamente incumprido; idem.
VII.–Não tendo sequer, eles próprios, diligenciado pela marcação da escritura pública de compra; idem.
VIII.–Nem declarado, peremptoriamente, à insolvente terem perdido o interesse no negócio; idem.
IX.–Nesse sentido, artigos n.ºs 18º a 21º e 29º da reclamação de créditos dos credores LM e ML e pedido a final.
X.–Ora, não foi alegado, logo não está provado que alguma vez, por algum modo, os credores reclamantes tenham interpelado a insolvente nos termos que vêm expostos.
XI.–Está, por seu turno, estabilizado nos autos que o CPCV dos credores reclamantes era um negócio ainda em curso ao tempo da declaração da insolvência.
XII.–Tanto assim é que, o Sr. Administrador de Insolvência reconheceu o crédito dos credores reclamantes sob condição, dependente do cumprimento do contrato-promessa; cfr. o item 26 da lista do artº 129.º do CIRE e a notificação do Sr. Administrador de Insolvência, nos termos do referido art.º 129.º, n.º 4, 1.ª parte.
XIII.–Estando, por sua vez, a opção a tomar por este, dependente do valor que se viesse a demonstrar como efetivamente por aqueles pago, por conta do preço da prometida compra e venda.
XIV.–Pelo que, por força da declaração de insolvência da promitente vendedora o cumprimento do contrato-promessa de compra e venda ficou suspenso - cfr. artigo n.º 102.º do CIRE.
XV.–Por seu lado, quanto à insolvente, estar o cumprimento do CPCV eventualmente impossibilitado, não se confunde nem com o saber/apurar se assistia, à data da declaração de insolvência, o direito à resolução contratual por parte dos credores reclamantes, nem com o saber/apura se, à data da declaração de insolvência, havia incumprimento definitivo por parte da devedora/insolvente.
XVI.–Ora, é certo, em face do que vem exposto, que, os credores reclamantes não transformaram a mora em incumprimento definitivo.
XVII.–Aliás, através do pedido formulado na sua reclamação de créditos pedem aqueles, ao invés, que o seu crédito seja reconhecido como sob condição.
XVIII.–Desta forma, o juiz a quo incumpriu inclusivamente os limites da condenação, nos termos conjugados dos art.ºs 608.º e 609.º do CPC, ao assentar a sua decisão de direito no incumprimento definitivo; o que se invoca para todos os efeitos legais.
XIX.–Mais: não foi alegado, e não está, por conseguinte, provado que alguma vez, por algum modo, a promitente vendedora (a aqui insolvente) haja declarado aos credores reclamantes que não iria cumprir.
XX.–O que equivale a dizer que os créditos reclamados pelos aqui credores reclamantes LM e ML, estão, efectivamente, condicionados à opção que o Sr. Administrador de Insolvência venha a tomar quanto ao cumprimento, ou não, do aludido contrato-promessa.
XXI.–Assim, apenas se o Sr. Administrador da Insolvência vier a optar pelo não cumprimento do contrato – porque mais desvantajosa para a massa –  é que poderá existir algum crédito a reconhecer aos credores aqui em apreço, o qual se limitará sempre à devolução do valor, prestado a título de sinal, em singelo, aliás, como pedido pelos credores reclamantes LM e mulher.
XXII.–Porquanto, mantendo-se o contrato-promessa em vigor à data da declaração da insolvência, os direitos do credor promitente comprador perante a recusa (lícita) por parte do Sr. Administrador de Insolvência em não cumprir o contrato são, então, encontrados, no âmbito do CIRE, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 106º, n.º 2, 104º, n.º 5 e 102, n.º 3, alínea c).
XXIII.–Deverá, pois, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, por ora, fixado o valor efectivamente pago por conta do preço, ordene a notificação do Sr. Administrador de Insolvência para que declare optar pela execução ou recusar o cumprimento do contrato-promessa.
XXIV.–Ao assim não decidir o tribunal a quo violou os art.ºs 102.º do CIRE 608.º e 609.º do CPC.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foi proferido despacho que admitiu correctamente o recurso interposto como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2.–Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, atendendo ao teor das alegações apresentadas pelo Recorrente, cumpre verificar apenas se ocorreu ou não incumprimento definitivo do contrato-promessa celebrado entre os ora Reclamantes e a Insolvente, imputável a esta, que justifique o reconhecimento dos créditos que aqueles pediram.

3.–Na sentença deram-se por assentes os factos, que ora se transcrevem:
1.– Os Reclamantes celebraram com a insolvente, no dia 30 de Setembro de 2017, um acordo escrito designado «contrato promessa de compra e venda», por meio do qual:
a.-a Insolvente prometeu vender e os Reclamantes prometeram comprar, livre de ónus e de encargos, uma moradia a edificar no lote n.º 4 do empreendimento sito na Rua …, Ponta Delgada, a que se refere o alvará de loteamento emitido pela Câmara Municipal de Ponta Delgada em 15/10/2015 com o n.º …/15, descrito na CRP sob o n.º … e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo …-P.
b.-o preço acordado para o contrato referido no ponto anterior foi de €245.000,00;
c.-ficaram acordadas as seguintes condições de pagamento:
i.-a título de sinal, os reclamantes entregavam à insolvente a quantia de €122.500,00 na data de assinatura do contrato;
ii.-a parte remanescente, no valor de €122.500,00, seria entregue no momento da celebração da escritura pública de execução do contrato prometido;
d.-a insolvente obrigou-se a ter a moradia pronta no prazo de seis meses a contar da assinatura do contrato;
e.-em caso de incumprimento do contrato promessa:
i.- se o mesmo for imputável à insolvente, a mesma obrigava-se a devolver a quantia recebida a título de sinal, acrescida de juros à taxa de 4% ao ano, calculados entre a data do recebimento do sinal e a data da sua devolução;
ii.- se o mesmo for imputável aos reclamantes, implicará a perda a favor da insolvente do sinal entregue;
2.–Em 8 de Novembro de 2017, o reclamante e a insolvente celebraram um aditamento ao supra-referido contrato de promessa de compra e venda e de execução de empreitada, nos termos do qual ficou convencionado:
a.-que seria efetuado o registo provisório de aquisição do lote a favor do Reclamante, o qual só foi registado em 2019/02/27, através da apresentação 3534;
b.-foram aditados à cláusula quarta os n.ºs 2, 3 e 4, através dos quais a Insolvente obrigou-se a constituir uma hipoteca sobre outro imóvel, em concreto o prédio rústico com a área de 10.080 m2, situado no Morro ... – Outeiro ... – freguesia de R... S..., concelho da R_____ G_____, descrito na respetiva Conservatória sobre o n.º … e inscrito na respetiva freguesia sobre o artigo …, Secção D, para garantia dos valores entregues pelo Reclamante, a título de sinal acrescido de 4% ao ano, contados desde a data do pagamento e até ao efetivo reembolso, depois de abatido do valor da compra e venda do lote;
c.-a insolvente obrigou-se, de igual modo, a efetuar o registo provisório da hipoteca sobre o referido prédio em b), na data da assinatura do aditamento;
d.-a insolvente obrigou-se a celebrar com o Reclamante a escritura de compra e venda do lote e de constituição de referida hipoteca sobre o prédio rústico, com registos prediais definitivos antes do fim da vigência dos registos provisórios;
3.–Em 14 de Maio de 2019, o reclamante entregou o valor de €5.000,00 à insolvente, por conta do preço do contrato referido em 1), tendo a insolvente declarado que a moradia já se encontrava na fase final de acabamentos.
4.–Em 11 de Julho de 2019, o reclamante entregou o valor de €5.000,00 à insolvente, por conta do preço do contrato referido em 1).
5.–Os Reclamantes pagaram os trabalhos a mais que foram executados no imóvel, no valor de €1.167,04 e de €2.574,89, num total de €3.741,93.
6.–A insolvente entregou aos reclamantes a chave do respectivo imóvel, tendo estes passado a dispor do mesmo desde então, utilizando-a à vista de todos e sem oposição de ninguém.
7.–insolvente não procedeu à marcação da escritura pública de compra e venda.

4.–Face à factualidade descrita cumpre agora conhecer da questão deste recurso, qual seja a de saber se existem fundamentos (factuais e legais) para se concluir – como faz a sentença impugnada – pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda que teve por objecto a construção e venda de uma moradia a edificar num lote de terreno pertencente à promitente vendedora, ora insolvente.
Do que se deduz da sentença, esse incumprimento definitivo do contrato-promessa celebrado adviria de dois factores: do facto de a insolvente se ter comprometido a construir a casa e a proceder à transmissão da sua propriedade no prazo de seis meses e de não ter cumprido tal prazo; e, de o administrador da insolvência da promitente-vendedora ter optado pela recusa do cumprimento desse contrato.

Vejamos, pois, se assim é, uma vez que a factualidade que alicerçou a sentença se manteve inalterada.
4.1.–Perante o não cumprimento de um contrato-promessa, o contraente não faltoso poderá, em princípio optar pela execução específica ou pela resolução.
Assim, se estiver interessado na celebração do contrato prometido é-lhe reconhecida a faculdade de obter sentença que substitua a declaração negocial do faltoso em caso de não cumprimento ou recusa de cumprimento (artigo 830º, nº 1 do Código Civil). Com efeito, pese embora a execução específica possa ser desencadeada em caso de recusa categórica de cumprimento  ou na hipótese de resolução infundada do contrato, a mora é o seu pressuposto privilegiado, na medida em que “a delimitação da situação de incumprimento definitivo assenta na perda do interesse do credor”[1].  Por outras palavras, na situação de um dos promitentes (quando se trate de promessa bilateral), não cumprir pontualmente, nos termos devidos, o contrato-promessa, a outra parte pode intentar a acção de execução específica, manifestando, deste modo, a sua vontade de ainda obter a prestação devida.
Já no caso de ocorrer uma situação de incumprimento culposo, mas temporário, em lugar de requerer a execução específica da promessa (sendo esta possível), o promitente cumpridor poderá, nos termos do artigo 808º do Código Civil, “determinar a convolação da mora em incumprimento definitivo, em consequência da perda de interesse no cumprimento da prestação ou através da fixação ao promitente faltoso de um prazo razoável para o cumprimento da prestação, findo o qual, não se verificando o cumprimento, a obrigação se considera definitivamente não cumprida (é a chamada interpelação admonitória), podendo o promitente in bonis resolver o contrato, nos termos do art. 432º do CC.”[2]
A perda do interesse do credor como causa geradora do incumprimento definitivo é apreciada objectivamente, não podendo operar de forma imediata e automática. Por isso, é necessário uma declaração resolutiva do credor dirigida ao devedor, “em que aquele declare a resolução do negócio e exija ao mesmo tempo a indemnização dos danos já sofridos, ou a indemnização integral pelo não cumprimento e se prontifique a fazer a sua prestação (se ainda a não fez, e se for caso disso)”.[3]
Pode ainda a mora converter-se em incumprimento definitivo em resultado do decurso do prazo estabelecido na interpelação admonitória (artigo 808º, nº 1 do Código Civil). No entanto, para se alcançar tal resultado, é necessário a verificação de três requisitos, a saber: a existência de uma intimação para o cumprimento; a consagração de um prazo peremptório, suplementar, razoável e exacto para cumprir; a declaração (cominatória) de que findo o prazo fixado sem que ocorra a execução do contrato se considera este definitivamente incumprido.[4]
Ora, da factualidade dada por assente não resulta que a insolvente não tivesse cumprido definitivamente o contrato-promessa. Na verdade, pese embora esta se tivesse obrigado a ter a moradia pronta no prazo de seis meses a contar da assinatura do contrato-promessa (cfr. alínea d) do nº 1 dos factos provados), o certo é que ficou a constar da cláusula quinta do contrato-promessa que “o contrato prometido será celebrado por instrumento público, a realizar-se na ilha de São Miguel, em local, dia e hora a marcar pela primeira outorgante, que, para o efeito, notificará os segundos outorgantes com pelo menos cinco dias de antecedência em relação à data da assinatura”. E, apesar de o aditamento celebrado em 08/11/2017 ter aditado uma cláusula única ao contrato-promessa, manteve intocadas as demais cláusulas dele constantes, designadamente a citada cláusula quinta.
Também não resulta dos autos que os credores, ora Recorridos, tivessem sequer alegado factos que levassem a concluir que haviam perdido o interesse que tinham na prestação por parte da promitente-vendedora, a ora insolvente. E, muito menos resultou provado que alguma vez tivessem interpelado formalmente a insolvente para cumprimento do contrato-promessa de compra e venda do imóvel, fixando-lhe  um prazo peremptório, suplementar, razoável e exacto para cumprir. Aliás, nem sequer os próprios Recorridos diligenciaram pela marcação da escritura pública de compra e venda.
Desta feita, não se pode concluir, como se diz, na sentença, que “resulta dos factos provados que a insolvente não cumpriu definitivamente com o contrato-promessa”.
Conforme tem sido decidido, unanimemente, pela jurisprudência, “a resolução do contrato-promessa apenas se pode fundar no incumprimento definitivo, que não na simples mora, sendo que o incumprimento definitivo resulta da não realização da prestação, dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, e da perda do interesse que o credor tinha na prestação – interesse esse que tem de ser apreciado objectivamente.”[5]
Esta lacuna probatória bastaria para a improcedência da acção.
4.2.-De todo o modo, a eventual acção por resolução do contrato-promessa de compra e venda seria sempre improcedente no caso de ter sido declarada a insolvência de um dos promitentes.
Com efeito, no que respeita à disciplina sobre os negócios em curso, determina o nº 1 do artigo 102º do CIRE, como regra geral, o princípio da suspensão do cumprimento, isto é, o cumprimento dos negócios em curso suspende-se até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou pela recusa de cumprimento[6].  Fica, porém, ressalvada a hipótese de declaração de insolvência do promitente-vendedor quando se trate de contrato-promessa com eficácia real em que tenha sido feita a entrega da coisa; nestas situações o administrador de insolvência não tem o poder de recusar o cumprimento do contrato (artigo 106º, nº 1 do CIRE).
Este direito de opção do administrador judicial “é um direito perfeitamente enquadrado no conjunto de funções típicas do administrador da insolvência – enquanto representante da massa insolvente e defensor dos seus interesses e enquanto “órgão funcional” da insolvência, ou seja, enquanto órgão dotado de funções adequadas à realização prática dos valores tutelado pelo Direito da Insolvência.”[7]  Trata-se de um direito potestativo de opção do administrador pelo cumprimento do contrato e que tem como fim a satisfação dos direitos e interesses dos credores do insolvente.
Ora, como não resulta do documento junto com a petição inicial que as partes tivessem atribuído eficácia real à promessa de compra e venda, “mediante declaração expressa e inscrição no registo” (artigo 413º, nº 1 do Código Civil), incumbe ao administrador da insolvência e somente a ele, como defensor dos interesses dos credores da promitente-vendedora insolvente, optar pela execução ou pela recusa do cumprimento do contrato. Com efeito, nos casos em que o contrato-promessa não tem eficácia real  (tenha ou não havido tradição da coisa e seja o insolvente o promitente-vendedor ou o promitente-comprador), ao contrário do estabelecido no nº 1 do artigo 106º do CIRE, o administrador da insolvência pode recusar o seu cumprimento, “aplicando-se, então, por remissão do nº 2 do artigo 106º, o nº 5 do artigo 104º e, finalmente, por remissão deste último, o nº 3 do artigo 102.”[8]
Cremos, assim, que, na situação dos autos, nunca se poderia concluir pela procedência da eventual acção indemnizatória, porque, desde logo, não resulta dos autos que o administrador da insolvência nomeado tivesse, por imposição do nº 1 do artigo 102º do CIRE, emitido qualquer declaração optativa, quer no sentido da execução do contrato-promessa celebrado, quer no sentido da recusa do respectivo cumprimento. Também não resulta dos autos, que os Recorridos tivessem fixado um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, como permite o nº 2 do artigo 102º do CIRE.
Sendo assim, no momento em que foi deduzida a presente impugnação ainda os ora Recorridos não eram credores para efeitos do disposto no artigo 128º do CIRE, uma vez que o cumprimento do contrato-promessa celebrado continuava suspenso, de acordo com o disposto no artigo 102º, nº 1 do CIRE. Somente a declaração, expressa ou tácita, do administrador de não celebrar o contrato definitivo conduziria à extinção do contrato-promessa. Nessa altura, haveria a certeza de o contrato não ser cumprido e só aí se tornaria efectivo o direito do credor à indemnização. E, mesmo que se admita que os direitos de crédito previstos no artigo 102º, nº 3, alíneas c) e d) do CIRE se constituem no momento da declaração da insolvência, “só com a declaração (tácita) de recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência, ou seja, com a verificação da condição, fica o credor plenamente em condições de exigir o crédito e de exercer o ónus de reclamação”.[9]
Acresce que não é de ordenar a notificação do administrador da insolvência para proferir a declaração a que se refere o nº 1 do artigo 102º do CIRE, uma vez que assiste à “outra parte” o direito de lhe fixar um “prazo razoável”, cominatório, para ele exercer a sua opção. Essa fixação de prazo, sendo da iniciativa do outro contraente, não depende de decisão do tribunal.[10]
Por tudo o exposto, procedem as conclusões da apelação, no sentido de ser revogada a sentença, ficando, assim, prejudicada a questão da fixação do valor efectivamente pago por conta do preço.[11]

5.Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente, e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, julgando a impugnação totalmente improcedente.
Custas da impugnação a cargo dos impugnantes (artigo 527º, nº 1 do CPC).
Sem custas nesta instância.


Lisboa, 16/05/2023


Nuno Teixeira- (Relator)
Rosário Gonçalves- (1ª Adjunta)
Manuel Marques- (2º Adjunto)


[1]Cfr. ANA AFONSO, “Anotação ao artigo 830º”, [coord. BRANDÃO PROENÇA] Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 1241.
[2]Cfr. GISELA CÉSAR, Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-Promessa em Curso: em particular o contrato-promessa sinalizado no caso de insolvência do promitente-vendedor, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 123.
[3]BAPTISTA MACHADO, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, II, Iuridica, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Número Especial), Coimbra, 1979, pág. 379.
[4] Cfr. GRAVATO MORAIS, Manual do Contrato-Promessa, Editora d’Ideias, Coimbra, 2022, pág. 169, que cita BAPTISTA MACHADO, Ob. Cit., pág. 382/383. Segundo este autor, “a interpelação admonitória (…) é uma intimação formal dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo”. Acrescenta ainda que se trata, de uma declaração receptícia, tornando-se definitiva e irrevogável a partir do momento em que chega ao poder do devedor ou é dele conhecida (artigo 224º do Código Civil). 
[5]Cfr. STJ, Ac. de 18/06/2019 (proc. 88/14.7T8OVR.P1.S1), publicado em www.direitoemdia.pt. Ver ainda no mesmo sentido, TRL, Ac. de 26/01/2023 (proc. 547/20.2T8ALM.L1-8), TRE, Ac. de 19/11/2020 (proc. 5383/19.6T8STB.E1) e TRG, Ac. de 15/10/2020 (proc. 2094/18.3T8VRL.G1), todos publicados em www.direitoemdia.pt.
[6]Segundo MENESES LEITÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 11ª Edição, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 174, nota 6, “a suspensão do cumprimento do contrato bilateral ainda não executado por nenhuma das partes e a concessão ao administrador da insolvência da faculdade de optar pela execução ou recusa do cumprimento explica-se em função da primazia conferida ao interesse dos credores após a declaração de insolvência, que prevalece sobre o interesse de terceiros que contratam com o devedor.”
[7]CATARINA SERRA, Lições de Direito da Insolvência, 2ª Edição, Coimbra, Almedina, 2021, pág. 220.
[8]CATARINA SERRA, Ob. Cit., pág. 227.
[9]Cfr. declaração de voto da Conselheira CATARINA SERRA proferida no Acórdão do STJ de 12/02/2019 (proc. 5685/15.0T8GMR-G.P1.S1), publicado em www.direitoemdia.pt.
[10]Cfr. neste sentido, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa, 2008, pág. 389.
[11]Diga-se, no entanto, que, dos factos dados por provados, resulta que, por conta do preço, apenas foi pago o montante de 10.000,00 €, em duas prestações de 5.000,00 € cada, uma em 14/05/2019 e outra em 11/07/2019, pese embora o administrador da insolvência tenha feito constar na lista de créditos reconhecidos o valor de 47.000,00 €, embora dependente do cumprimento do contrato-promessa.