Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
514/21.9T8SNT.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
PERÍODO EXPERIMENTAL
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I. Se o recorrente não observa os ónus do art.º 640 do CPC, o recurso da decisão da matéria de facto não é admissível e tem de ser rejeitado.
II. E mesmo que cumpra não é possível conhecer essa impugnação se for irrelevante para a decisão final, por a tal se opor o princípio da limitação dos atos (art.º 130 do CPC).
III. O empregador não pode promover validamente a alteração da data de início do contrato de trabalho, de modo a considerar excluído do contrato o tempo de formação e a beneficiar da prorrogação do período experimental para a denúncia do contrato.
(Elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Autora (A.): AAA
Ré (R.) e recorrente:  Cluster – Outsourcing Services, Lda.
A A. demanda a Ré, pedindo que:
1. seja declarada a ilicitude do seu despedimento, promovido pela Ré;
2. a Ré seja condenada a pagar-lhe as seguintes quantias:
a) relativamente ao mês de dezembro, o valor total de €1.229,77 (que corresponde a €1.038,70 de vencimento, €76,32 de subsídio de alimentação e €114,75 de subsídio de transporte);
b) relativamente ao mês de janeiro, o valor total de €1.630,4 (que corresponde a €1.400,00 de vencimento, € 95,4 de subsídio de alimentação e € 35,00 de subsídio de transporte);
c) relativamente ao mês de fevereiro, o valor total de €1.630,4 (que corresponde a €1.400,00 de vencimento, €95,4 de subsídio de alimentação e €135,00 de subsídio de transporte);
d) relativamente ao mês de março, o valor total de €1.644,71 (que corresponde a €1.400,00 de vencimento, €109,71 de subsídio de alimentação e €135.00 de subsídio de transporte);
e) relativamente ao mês de abril, o valor total de €1.416,02 (que corresponde a €1.213,16 de vencimento, €85,86 de subsídio de alimentação e €117,00 de subsídio de transporte);
f) relativamente ao subsídio de férias, o valor total de €562,73;
g) relativamente ao subsídio de Natal, o valor total de €576,23;
h) relativamente a férias não gozadas, o valor total de  553,92;
i) os juros de mora, contados à taxa legal de 4%, desde o vencimento de cada prestação até efetivo e integral pagamento.
Para tal alega, em síntese, que celebrou com a Ré um contrato de trabalho a termo certo, datado de 16 de outubro de 2020, pelo período de seis meses, sendo que entre o dia 26 de outubro e o dia 06.11.2020 esteve em formação, tendo as partes celebrado também um contrato de formação para esse período. Após a formação iniciou o desempenho das funções contratadas em 09.11.2020. Nesse mesmo dia 09 de novembro, a Ré apresentou-lhe uma adenda ao contrato de trabalho, que assinou sem compreender o seu alcance e sem que lhe tenham sido explicadas as razões subjacentes à sua celebração. Por carta datada de 08 de dezembro de 2020, a Ré comunicou-lhe a denúncia do contrato de trabalho, ao abrigo do disposto no artigo 114º, nº 1 do Código do Trabalho, o que na ótica da Autora não podia fazer, uma vez que já haviam decorridos os 30 dias do período experimental iniciado no dia 26 de outubro, assim a despedindo ilicitamente.
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Não havendo acordo em audiência de partes a ré contestou, defendendo que celebrou com a Autora um contrato de trabalho a termo, cujo início seria, previsivelmente, o dia 26 de outubro de 2020. Contudo, por acordo entre as partes, o início do contrato de trabalho foi deferido para 09 de novembro de 2020, sendo ministrada formação “on the job” à Autora entre 26.10.2020 e 09.11.2020, por forma a permitir que a Ré aferisse das suas capacidades para o exercício das funções. A Ré explicou-lhe os motivos da adenda. O período experimental do contrato de trabalho apenas se iniciou em 09.11.2020, pelo que a denúncia realizada no dia 08.12.2020 foi lícita. Concluiu pela improcedência total da ação.
Saneado o processo e efetuado o julgamento, o Tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente e:
a) Declarou ilícito o despedimento da Autora;
b) Condenou a Ré a pagar à Autora:
- €562,73, a título de subsídio de férias;
- €576,23 a título de subsídio de Natal;
- €553,92 a título de férias não gozadas;
- os juros de mora vencidos e vincendos sobre as referidas quantias, à taxa legal supletiva em vigor, desde a data do respetivo vencimento até efetivo e integral pagamento.
c) Condenou a Ré a entregar à Segurança Social os valores que este organismo liquidou à Autora entre dezembro de 2020 e abril de 2021;
d) No mais absolveu a Ré do pedido.
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Inconformada, a R. recorreu, concluindo:
(…)
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Contra-alegou a A., pedindo a improcedência da ação e concluindo:
(…)
O MºPº teve vista, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
A A. respondeu ao parecer.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
(…)
Pelo que não se admite o recurso da decisão da matéria de facto.
*
Seja como for, veremos abaixo que, mesmo que tivesse cumprido esses ónus e a impugnação fosse admissível, o princípio da limitação dos atos processuais (art.º 130, CPC) obstaria o conhecimento da matéria em causa por inútil.
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É esta a factualidade provada nos autos:
1) A Ré e a Autora celebraram um contrato de trabalho a termo certo, datado de 16 de outubro de 2020, nos termos dos docs. nºs 1 e 2 juntos com a petição inicial, que se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos – cfr. resposta ao artigo 1º da p.i. (facto expressamente aceite pela Ré).
2) O contrato foi celebrado por um período de 6 (seis) meses, com início a 26 de outubro de 2020 e terminus a 26 de abril de 2021 – cfr. resposta ao artigo 2º da p.i. (facto expressamente aceite pela Ré).
3) A Autora esteve em formação desde o dia 26 de outubro de 2020 e até ao dia 6 de novembro de 2020, conforme instruções recebidas da Ré – cfr. resposta ao artigo 4º da p.i..
4) No dia 9 de novembro de 2020, a Autora apresentou-se no seu local de trabalho e iniciou o desempenho das suas funções, previstas na cláusula 3ª do contrato de trabalho datado de 16 de Outubro de 2020 – cfr. resposta ao artigo 6º da p.i. (facto expressamente aceite pela Ré).
5) Nesse mesmo dia, a Ré propôs à Autora a outorga de uma adenda ao contrato de trabalho, conforme teor do doc. nº 4 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos – cfr. resposta ao artigo 7º da p.i..
6) A Autora assinou a adenda, sem compreender o alcance da cláusula 2ª e sem que a Ré lhe tenha explicado os motivos subjacentes à mesma – cfr. resposta ao artigo 8º da p.i..
7) A adenda ao contrato de trabalho previa o seguinte:
Cláusula 1
Validade
Com o acordo das partes, foi celebrado no dia 16 de Outubro de 2020, um contrato de trabalho do qual esta Adenda passa a fazer parte.
Cláusula 2
Duração do Contrato
É feita uma atualização da primeira cláusula do contrato de trabalho, em relação às datas de início de fim do contrato e passará a estar em vigor o seguinte:
1-A Primeira Contraente contrata a Segunda e esta última aceita, por um período de seis meses a começar a 9 de Novembro de 2020 e a acabar em 9 de Maio de 2021.
2-Este contrato pode ser renovado para um máximo de dois anos, desde que a Primeira Contraente não notifique a Segunda Contraente por escrito, com a antecedência máxima de 15 (quinze) dias da decisão de não renovar, ou a Segunda Contraente não notifique a Primeira Contraente da mesma intenção, com a antecedência máxima de 8 (oito) dias.
3-O aviso de rescisão mencionado no parágrafo anterior não necessita de conter qualquer fundamento para o término do contrato.
4-As regras gerais de cessação do contrato de trabalho, estabelecidas no Código do Trabalho, deverão ser aplicadas a este contrato.
Cláusula 3
Retribuição
A oitava cláusula do referido contrato é também atualizada e abaixo vêm descritos os valores que devem ser pagos à Segunda Contraente:
A Primeira Contraente compromete-se a pagar à Segunda Contraente:
a) A retribuição base no valor de €1510,00 (mil quinhentos e dez euros) o qual deverá ser pago no último dia de trabalho de cada mês;
b) Subsídio de férias e de natal, pagos nos termos da legislação em vigor;
c) Subsídio de transporte, no valor de €135,00 (cento e trinta e cinco euros) por mês;
d) Subsídio de alimentação, no valor de €4,77 (quatro euros e setenta e sete cêntimos) por dia.” – cfr. resposta ao artigo 9º da p.i..
8) Por carta datada de 08 de dezembro de 2020, a Ré comunicou à Autora, a intenção de fazer cessar o contrato de trabalho celebrado em 9 de novembro de 2020, nos termos do artigo 114º, nº1 do Código de Trabalho, com efeitos imediatos – cfr. respostas aos artigos 10º e 11º da p.i..
9) A Autora, ao serviço da Ré, auferia:
a) a retribuição base de € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros);
b) subsídios de Natal e de férias, pagos nos termos da legislação em vigor;
c) subsídio de transporte, no valor de € 135,00 (cento e trinta e cinco euros) por mês;
d) subsídio de alimentação, no valor de € 4,77 (quatro euros e setenta e sete cêntimos) por dia – cfr. resposta ao artigo 23º da p.i..
10) Entre dezembro de 2020 e abril de 2021, a Autora auferiu prestações pagas pela Segurança Social, a título de prestação por doença e equivalência por prestação de desemprego total, conforme discriminado no Extrato constante a fls. 80 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
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Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.
Não se provou, designadamente:
- que a Autora tenha aceitado deferir para o dia 09 de novembro de 2020 o início do contrato de trabalho celebrado com a Ré no dia 16 de outubro de 2020 (cfr. artigo 6º da contestação);
- que a Ré tenha explicado à Autora que entre o dia 26.10.2020 e o dia 06.11.2020 estaria em período de formação “on the job”, período durante o qual a Ré iria aferir das suas capacidades para integrar o seu projeto (cfr. artigo 7º da contestação);
- que a Ré tenha explicado à Autora a sua dinâmica de funcionamento, conforme descrito nos artigos 10º, 11º e 12º da contestação;
- que a Autora tenha assinado a adenda esclarecida quanto ao seu conteúdo (cfr. artigos 13º e 14º da contestação);
- que a Autora tenha entendido que, por via da adenda, o início do contrato seria deferido para o dia 09 de novembro de 2020, após o período de formação (cfr. artigo 15º da contestação).
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Esgrime a recorrente que a cessação do contrato de trabalho ocorreu dentro do prazo de 30 dias previsto no art.º 112/2/a e 114 do Código do Trabalho, e consequentemente a cessação é lícita.
Considerou a sentença recorrida que:
“(…) Quando a Ré comunicou a denúncia do contrato o período experimental ainda estava em curso ou já se tinha esgotado (?) Salvo melhor entendimento, tal período já tinha decorrido. Em 16.10.2020, para ter início no dia 26.10.2020, as partes celebraram um contrato de trabalho. E entre 26 de outubro e 06 de novembro (sexta-feira), a A. esteve em formação. No dia 09 de novembro (segunda-feira) apresentou-se no local de trabalho e iniciou o desempenho das suas funções. Ou seja, para todos os efeitos o período experimental iniciou-se no dia 26.10.2020, data em que se iniciou o contrato e a fase de formação.
A Ré veio dar uma justificação um pouco atabalhoada e contraditória com a tese que defenda (com o devido respeito), segundo a qual no período entre 26.10.2020 e 06.11.2020, a Autora estaria em período de formação “on the job”, pretendendo a empregadora aferir das suas capacidades para integrar o projeto da Ré. Ora, essa é a finalidade do período experimental. Cada uma das partes aprecia do interesse na manutenção do contrato de trabalho em função, designadamente e quanto ao empregador, das capacidades/aptidões demonstradas pelo trabalhador (cfr. artigo 111º, nº 1 do CT).
O que a Ré não podia fazer – ao menos sem o consentimento da A. – e fez, era celebrar um contrato de trabalho com início no dia 26.10.2020 e depois pretender deferir para mais tarde a data do seu início com o argumento de que as duas primeiras semanas foram um “treino intensivo” e só depois do “treino” a Ré decidiria da contratação da A. (cfr. art.º 10º e 11º da contestação). Se o que a Ré pretendia era sujeitar a A. a um processo de seleção para eventual contratação posterior então não tinha celebrado com a mesma um contrato de trabalho. E muito menos tinha dado à trabalhadora a assinar uma adenda alterando a data de início do contrato, para 09.11.2020, sem lhe explicar o seu conteúdo e consequências. (…) Tendo-se esgotado o período experimental em 24.11.2020, a denúncia do contrato em 08.12.2020 configura um despedimento ilícito, porque não foi precedida de qualquer formalismo legal para o efeito”.
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Pretende a recorrente que com o dito aditamento a relação só se iniciou em 9/11/2020, já que antes apenas esteve em formação, o que no seu entender teria a virtualidade fazer com que o contrato de trabalho não vigorasse entre 26 de outubro e 8/11/2020.
Em douto parecer defende o DM do MP junto desta Relação que “iniciada a relação contratual laboral, a trabalhadora participou na formação inicial que o empregador lhe ministrou para exercer as suas funções, pelo que a relação laboral esteve em vigor e em execução desde o dia 26/10/2020. Concluída a formação, não podia o empregador alterar a data de início do contrato de trabalho a termo para uma data posterior ao fim do período de formação inicial. Se assim fosse, o tempo de formação seria um período sem qualquer enquadramento legal, como se ficasse num limbo sem lei. Iniciada a execução do contrato em 26/10/2020, a formação teve lugar no contexto desse contrato e por força do mesmo, o que justifica, desde logo, que a trabalhadora não a pudesse recusar e que esse período de tempo fosse remunerado, como não podia deixar de ser. No decurso da execução do contrato não podem as partes acordar na alteração da data de início do contrato, dado que isso traduz uma falsidade relativamente ao elemento essencial da relação laboral que é a data do seu início. Tal alteração é assim uma manipulação da data de início de vigência do contrato que não está na disponibilidade das partes e configura uma fraude à lei”.
Ora, isto é assim necessariamente, como resulta do disposto no art.º 106, n.º 3, al. d) (no que toca à data da celebração do contrato e do início dos seus efeitos, que a lei impõe que conste do contrato), art.º 127, n.º 1, al. d) (dever do empregador de prover formação ao trabalhador) e 128, n.º 1, al. d) e f) (dever do trabalhador de participar nas ações de formação ministradas pelo empregador, e ao mesmo tempo de não revelar segredos do mesmo, nomeadamente métodos de produção, cujo conhecimento possa adquirir nestas ações). O trabalhador durante essas ações está sujeito ao poder de direção do empregador, e a ele subordinado juridicamente.
Tal decorre outrossim do disposto no art.º 113, n.º 1, do Código do Trabalho: “o período experimental conta a partir do início da execução da prestação do trabalhador, compreendendo ação de formação determinada pelo empregador, na parte em que não exceda metade da duração daquele período” (neste sentido cfr. os acórdãos desta Relação de Lisboa de 3/05/2006, no processo 1962/2006-4, 7.3.2007, e do Supremo Tribunal de Justiça de 16/11/2010; e Luís Miguel Monteiro, in Código do Trabalho Anotado, 13ª edição, Romano Martinez e outros: “para este efeito, a formação profissional já constitui execução da prestação devida pelo trabalhador, não sendo legítimo iniciar a contagem daquele período apenas após o termo da formação”).  Ora, é esse precisamente o caso.
Daqui se retiram duas conclusões finais:
1) como deixámos acima suspenso concluímos agora, face ao que se disse, que a impugnação de facto sempre seria inútil, visto que, explique a ré o que quiser, não está na sua disponibilidade e não pode alterar mais adiante a data do início do contrato a termo previamente celebrado;
2) o recurso improcede necessariamente de direito, porquanto, face à data em que efetivamente o contrato começou (26/10/2020) e aquela em que a ré quis pôr termo ao contrato, já decorrera o período experimental, considerando o período de formação inicial que teve lugar até 6.11.2020, e consequentemente a sua cessação por iniciativa da empregadora redundou num despedimento sem justa causa.
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DECISÃO
Pelo exposto, este Tribunal julga a apelação improcedente e confirma a sentença recorrida.
Custas do recurso pela R.

Lisboa, 17 de maio de 2023
Sérgio Almeida
Francisca Mendes
Celina Nóbrega
Decisão Texto Integral: