Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
359/22.9T8MFR.L1-7
Relator: EDGAR TABORDA LOPES
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL
ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
AUDIÇÃO DO BENEFICIÁRIO
OBRIGATORIEDADE
DISPENSA
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Uma acção especial de acompanhamento de maior, cujo regime começa por decorrer dos artigos 546.º, n.ºs 1 e 2 e 891.º a 904.º do Código de Processo Civil, é complementada pelas disposições gerais e comuns que, com as necessárias adaptações, lhe sejam aplicáveis, uma vez que se não se tratando de um processo de jurisdição voluntária (artigos 891.º, n.º 1 e 986.º e seguintes), estas podem ser-lhe aplicadas.
II – Dos artigos 139.º do Código Civil, 897.º e 898.º do Código de Processo Civil resulta a concretização dos princípios ordenadores que decorrem da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
III - A reintrodução do interrogatório, neste tipo de processo, foi feita e de uma forma que procurou ser tão clara, ostensiva e de molde a que não se suscitassem quaisquer dúvidas sobre a sua obrigatoriedade, que pareceria ter a questão ficado resolvida no sentido de neste processo de acompanhamento de maior haver sempre lugar à audição do/a visado/a e aí chamado de beneficiário/a.
IV – A audição de beneficiário/a não pode nunca ser dispensada, servindo – como mínimo – para fazer a constatação directa pelo Tribunal (ou, se se preferir, a comprovação judicial) da situação de impossibilidade de comunicar/entender em que se encontra o/a beneficiário/a e, nesse caso, tal far-se-á constar em acta, seguindo-se a perícia e o Relatório e aplicando-se as medidas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento apurada.
V – A história que subjaz ao artigo 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (conjugado com o artigo 139.º, n.º 1, do Código Civil) e os termos que são utilizados, não deixam margem a dúvidas razoáveis, quanto ao objectivo do legislador, perfeitamente expresso (“audição pessoal e directa”, “Em qualquer caso” e “sempre”, colocadas na mesma frase e no mesmo artigo estão lá para dizer que o objectivo é de essa diligência nunca possa ser dispensada, ficando vedada ao Tribunal essa possibilidade): o legislador quer, exige, manda, sem excepções, que haja um contacto directo entre o juiz/a e o/a visado/a pela medida restritiva da sua capacidade civil que o processo de acompanhamento de menor visa aplicar-lhe. Sempre.
VI – Não constitui um acto inútil a constatação (que traduz a concretização do princípio da imediação) pelo/a Juiz/a de que a pessoa em causa está impossibilitada de estabelecer uma comunicação, de lhe responder e de corresponder às perguntas que lhe seriam formuladas).
VII - Esta constatação, este contacto directo, tem de estabelecer-se, porque essa é – no caso – a relevante função que cabe ao Tribunal na putativa defesa dos interesses de um/a cidadão/ã que está em vias de ser objecto de uma restrição aos seus direitos.
VIII - A falta de audição do/a beneficiário/a constitui uma irregularidade que influi no exame e decisão da causa, uma vez que um contacto directo e pessoal do/a juiz/a e a sua percepção sobre ele (tidos como essenciais pelo legislador), sendo omitido, não é susceptível de ser substituído ou sanado, pelo que fica configurada uma nulidade processual nos termos do disposto no artigo 195.° conjugado com o artigo 897.º, n.º 2.
IX – O despacho a dispensar a audição de um/a beneficiário/a deve ser revogado e substituído por outro que determine a referida audição pessoal e directa da beneficiária, nos termos que forem julgados adequados pelo Tribunal a quo (ficando anulado o processado subsequente, incluindo a sentença final).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decide-se na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
O Ministério Público intentou acção especial para acompanhamento de maior de M…, peticionando que seja decretado o seu acompanhamento, instituindo-se a medida de representação ao abrigo do artigo 145.º do Código Civil, alegando - em síntese - padecer de síndroma demencial, razão pela qual se encontra dependente de terceiros para as actividades da vida diária, encontrando-se desorientada no tempo e no espaço, não conseguindo ler nem escrever, não reconhecendo o dinheiro, nem memorizar factos novos ou evocar factos do passado recente.
Ordenada a citação da beneficiária nos termos do artigo 895.º do Código do Processo Civil, não se logrou realizar tal diligência em virtude de aquela revelar indícios de sofrer de anomalia psíquica.
Nos termos dos artigos 895.º, n.º 2 e 21.º do Código de Processo Civil foi nomeado defensor à beneficiária.
Não foi apresentada Contestação.
Foi realizada a Perícia a que se reporta o artigo 899.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Previamente à elaboração da Sentença foi proferido o seguinte Despacho:
“Por virtude de tal e bem assim da situação excepcional de saúde pública que vivemos, foi dispensada a audição da beneficiária, nos termos melhor explanados no despacho que antecede”.
Foi prolatada Sentença, que conclui pela seguinte Dispositivo:
a) Declaro a necessidade de representação geral de M…, por razões de saúde, desde de 2022;
b) Nomeio como seu acompanhante o filho J…;
c) Constituo Conselho de Família, nomeando como vogais do Conselho de Família R…, filha, e a pessoa que em cada momento exerça as funções de direcção da instituição em que se encontre institucionalizada;
d) Designo como Protutora R…;
e) Declaro que se desconhece a existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde.
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Comunique à competente Conservatória do Registo Civil [cfr. artigo 69.º, n.º 1, alínea g) e 78.º, ambos do Cód. Registo Civil, e ainda artigos 1920.º-B do Cód. Civil, por via do artigo 902.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil].
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Será publicitada a presente mediante afixação de Editais neste Tribunal – cfr. artigo 893.º, n.º 1, parte final do Cód. Proc. Civil.
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Nos termos do artigo 17.º, n.ºs 2 e 4 do Reg. Custas Processuais, da Tabela IV e ainda da Tabela anexa à Portaria 175/2011 de 28.04, fixo os honorários devidos pela realização da perícia médica nos valores solicitados.
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Sem custas – cfr. artigo 4.º, n.º 2, alínea h) do Reg. Custas Processuais”.
O Ministério Público veio apresentar Recurso, juntando Alegações, que culminou com as seguintes Conclusões:
“1. Por decisão proferida a 27.04.2023, em momento anterior à prolação da sentença, a Mm.ª Juiz do tribunal a quo decidiu dispensar a realização da audição da beneficiária “considerando o conteúdo do relatório pericial e a vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03”.
2. Conforme amplamente defendido na nossa jurisprudência nos processos de maior acompanhado, não pode dispensar-se a audição do beneficiário, exceto se estiver cabalmente demonstrada situação que impeça, ou torne gravemente inconveniente, a sua audição.
3. Consideramos que a invocação da vigência da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03 (diploma que, na altura da sua entrada em vigor, veio estabelecer medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19) não é fundamento suficiente para dispensar a diligência de audição pessoal da beneficiária (até porque no momento da decisão proferida a situação pandémica originada por tal vírus Covid 19 se encontrava devidamente controlada), a qual, diga-se, sempre poderia ser realizada através de meio de comunicação à distância adequado (nesse mesmo sentido vide o art. 6.º-E/n.º 2 al. b), n.º 4 al. a) e n.º 5 da primeira citada lei).
4. Nos processos de maior acompanhado a diligência de audição pessoal e direta do beneficiário é obrigatória e em caso algum pode ser dispensada, sendo que qualquer eventual impossibilidade de proceder àquela audição deve ser pessoalmente verificada pelo juiz, aquando a realização da diligência – arts. 897.º e 898.º ambos do Código Processo Civil.
5. Com efeito, esta audição pessoal deve sempre ocorrer, mesmo que o juiz se tenha que deslocar ao local onde o beneficiário se encontre, pois que um dos princípios orientadores do processo especial de acompanhamento de maiores é o da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, não só para se poder conhecer a real situação daquele, mas também para se poder ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas a essa situação e, a nosso ver, da pessoa que melhor desempenhará as funções de acompanhante.
6. Prescindir da audição pessoal do beneficiário implicaria reduzir, de modo desproporcionado e sem motivo bastante, o seu direito a ser consultado, contrariando assim um dos mais relevantes princípios norteadores do regime do maior acompanhado, não resultando do conteúdo do relatório pericial a evidência de situação que impeça, ou torne gravemente inconveniente, a sua audição.
7. Cremos, pois, que o despacho da Mm.ª Juiz do tribunal a quo, que dispensou a realização da audição pessoal e direta da beneficiária, violou a norma legal prevista no art.º 897º, nº 2 do CPC, o que, por ter manifesta influência no exame e decisão da causa, configura uma nulidade processual, nos termos previstos no art.º 195º, nº 1, 2ª parte, do CPC, e que tem como consequência a anulação do processado subsequente, maxime da sentença final, proferida posteriormente.
8. Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, revogar-se a decisão que dispensou a realização da audição da beneficiária, anular o processado subsequente à decisão recorrida, incluindo a sentença final, e determinar-se a audição pessoal e direta de M…, nos termos do artigo 139º, nº 1 do Código Civil e nos artigos 897º, nº 2 e 898º ambos do Código de Processo Civil”.
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Questões a Decidir
São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do Tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes[1]), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente, importará verificar da obrigatoriedade de realizar a audição do beneficiário - prevista no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil (na redação introduzida pela Lei n.º 48/2018 de 14 de Agosto) - sem possibilidade de dispensa, bem como das consequências de ela não ter tido lugar.
Cumpre decidir.
Os Factos
A factualidade a considerar é a que resulta do Relatório.
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O Direito
Iniciando o enquadramento do presente recurso, importa dizer que ele surge no âmbito de uma acção especial de acompanhamento de maior, cujo regime começa por decorrer dos artigos 546.º, n.ºs 1 e 2 e 891.º a 904.º do Código de Processo Civil, sendo ainda complementado e pelas disposições gerais e comuns que, com as necessárias adaptações, lhe sejam aplicáveis, uma vez que se não se tratando de um processo de jurisdição voluntária (artigos 891.º, n.º 1 e 986.º e seguintes), estas podem ser-lhe aplicadas.
Trata-se de um processo novo que traz consigo um passado ligado aos processos de interdição e de inabilitação, mas que traduz uma nova abordagem, a qual acaba por ter reflexos em momentos como aquele que deu origem à situação processual originadora do presente recurso.
O enquadramento que deste regime faz Maria Inês Costa, num estudo exaustivo e essencial sobre a temática, ajuda a compreender o porquê da relevância dos interesses em jogo:
“Numa altura em que, em virtude da evolução social e demográfica, a população tem vindo a envelhecer e a esperança média de vida a aumentar, a sociedade moderna enfrenta a complexa problemática da “desarmonia entre gerações[2].
Neste desequilíbrio geracional surgem, com particular relevo, os cidadãos adultos especialmente vulneráveis, seja em razão da idade ou de outra situação de maior vulnerabilidade (diagnóstico psiquiátrico, deficiência…).
É precisamente em virtude destas condições que se torna problemática a manutenção da autonomia em relação a estes adultos especialmente vulneráveis, uma vez que a certa altura das suas vidas se vêem “desapossados” das suas decisões, conduzidos a uma espécie de alienação social (sem retorno), em resultado da construção de cruéis papéis sociais que caracterizam a sociedade – nas palavras de BAUMAN[3] –, “líquida” em que vivemos e que leva ao gradual e silencioso afastamento do indivíduo da vida em sociedade
Essa tomada de consciência da necessidade de cuidado acrescido com as pessoas carecidas de maior protecção deu lugar a um movimento jurídico internacional de peso – onde se destaca a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência[4] – e o Direito Civil, como não podia deixar de ser, não foi excepção, não obstante tradicionalmente virado para a actividade do cidadão na plena posse de todas as faculdades[5].
Seguindo as exigências dos tempos, Portugal[6] implementou o novo regime jurídico do maior acompanhado, aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto – e abandonou o sistema dualista e rígido dos institutos da interdição/inabilitação que provinha do Código Civil de 1966[7] – introduzindo um regime monista, flexível, norteado pelos princípios da “primazia da autonomia da pessoa”, construindo assim um modelo de acompanhamento – e não já de substituição – da pessoa carecida de protecção[8].
As alterações incidiram sobretudo nos artigos 138.º a 156.º do Código Civil (interdição e inabilitação), sobre as regras do processo correspondente (artigos 891.º a 905.º do Código de Processo Civil – transformado em processo urgente e ao qual se aplicam as regras da jurisdição voluntária) e em disposições dispersas do Código Civil que estabelecem restrições à capacidade, mas sempre na perspectiva da menor limitação possível à capacidade do maior que necessita de acompanhamento.
Tal como também já sucedia anteriormente com a interdição e a inabilitação[9] é ao tribunal que compete a decisão de aferir se há ou não lugar ao regime do acompanhamento; mas agora manda a lei que o tribunal deva ouvir primeiro, pessoal e directamente, o beneficiário, só assim ficando em condições de adoptar as “soluções à medida” das necessidades de cada caso, que deverão ser sempre orientadas à socialização do maior numa perspectiva de cidadania inclusiva.
 Uma das principais novidades do novo regime do maior acompanhado respeita, precisamente, à audição do beneficiário (artigos 139.º do Código Civil e 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), onde se prevê a reintrodução da audição pessoal e directa do beneficiário, apelidada de “interrogatório” na redacção do Código de Processo Civil de 2013, com longa tradição jurídico-processual no nosso ordenamento jurídico.
Desaparece a regra introduzida pela redacção do Código de Processo Civil 2013 e que permitia o decretamento da interdição/inabilitação sem o interrogatório do requerido, na ausência de contestação, prevendo-se agora a audição do beneficiário por parte do juiz enquanto meio de prova obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (cf. n.º 2 e 3 do artigo 897.º do Código de Processo Civil).
A pessoa carecida de protecção é assim chamada ao palco da vida judiciária, sendo não só convidada a participar como também a “conversar” no processo decisório que lhe respeita.
Esta novidade corresponde, conforme se discutirá infra, à inflexão da opção que o legislador tomou por altura da reforma do Código Processo Civil em 2013, colocando, contudo, problemas ao nível da sua efectivação, aqui se destacando as situações de mudança de domicílio por parte do beneficiário na pendência da acção, bem como, em última análise, da eventual (des)conformidade com os princípios ordenadores da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de uma audição feita por deprecada ou realizada através de meios de comunicação à distância”[10].
Partindo daqui, importa ter presente em especial três normativos legais[11]:
 - o artigo 139.º do Código Civil (Decisão judicial):
“1 - O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e directa[12] do beneficiário, e ponderadas as provas.
2 - Em qualquer altura do processo, podem ser determinadas as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido”;
 - o artigo 897.º do Código de Processo Civil (Poderes instrutórios):
“1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.
2 - Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre[13], à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre”;
 - o artigo 898.º (Audição pessoal):
“1 - A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.
2 - As questões são colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas.
3 - O juiz pode determinar que parte da audição decorra apenas na presença do beneficiário”.
Destes preceitos resulta a acima referida concretização dos princípios ordenadores que decorrem da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o que nos permite concluir, com Margarida Paz, que a “audição pessoal e direta do beneficiário, na concretização dos princípios constantes do artigo 3.º da Convenção, constitui o respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazer as suas próprias escolhas, e independência da pessoa com deficiência [alínea a)], bem como a sua participação e inclusão plena e efetiva na sociedade [alínea c)]. Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal. Na verdade, o acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito”[14].
Perante o texto da lei e os princípios de que está imbuída, em conjugação com as diferenças relativamente ao regime anterior[15], pareceria que a situação fora clarificada e estaria assente que esta diligência sempre teria de ser feita.
A reintrodução do interrogatório (que, apesar de tudo, sempre poderia ter lugar no regime imediatamente anterior, caso o juiz utilizasse os poderes de gestão processual que artigo 6.º lhe permitiam) foi feita[16] e de uma forma que procurou ser tão clara, ostensiva e de molde a que não se suscitassem quaisquer dúvidas sobre a sua obrigatoriedade, que pareceria ter a questão ficado resolvida no sentido de neste processo de acompanhamento de maior haver sempre lugar à audição do visado e aí chamado de beneficiário.
Como bem discorre Maria Inês Costa, a “obrigatoriedade da audição é especialmente vincada no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, pela utilização pelo legislador das expressões “em qualquer caso” e “sempre”, não deixando dúvida sobre a intenção daquele no sentido de que a decisão final a proferir neste tipo de processos especiais seja invariavelmente precedida da audição do beneficiário pelo juiz (alterando, como já mencionado, o regime anterior, que só a exigia se fosse deduzida contestação – cf. n.º 2 do artigo 896.º do Código de Processo Civil, na sua versão anterior).
Note-se, aliás, que no decurso do processo legislativo o legislador aceitou a sugestão apresentada pelo Conselho Superior da Magistratura de aditamento da expressão «pessoal e directa» após «audição», afastando a hipótese de redução dessa audição ao simples chamamento aos autos e ulterior resposta do requerido. (…)
Assim, a prossecução da sobredita finalidade aconselha que se proceda a uma observação da situação real em que se encontra o beneficiário de modo a que o juiz decida as medidas de acompanhamento após adquirir uma imagem dessa situação que coincida com a realidade, sem o crivo da narrativa inserta nos articulados.
Apenas através da audição do beneficiário poderá o juiz compreender efectivamente o contexto vivencial daquele, nomeadamente no que concerne à densidade da sua (in)capacidade para a prática de actos e, por conseguinte, apenas dessa forma poderá aproveitar na plenitude a maleabilidade que a lei lhe confere no que tange a fixar as medidas de acompanhamento, personalizando-as à medida da situação do destinatário, afastando a aplicação de medidas estanques, pré-concebidas e, afinal, potencialmente desajustadas em relação às efectivas e concretas necessidades da pessoa que delas beneficiará. (…)
Entre nós, tem sido entendimento dominante na Jurisprudência dos Tribunais superiores que a audição directa do beneficiário por parte do juiz deve ocorrer sempre, sem excepção e ainda que o relatório pericial deixe antever que o estado mental do requerido a inviabiliza na prática, não podendo ser dispensada sem que se comprove essa impossibilidade por parte do juiz”[17].
Miguel Teixeira de Sousa, com a autoridade de ter feito parte da Comissão que elaborou o diploma relativo ao regime do maior acompanhado, assinala – por seu turno – que um “dos princípios orientadores do processo especial de acompanhamento de maiores é o da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, não só para se poder conhecer a real situação deste beneficiário, mas também para se poder ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas a essa situação (art.º 898.º, n.º 1). Para este efeito, há sempre uma audição pessoal e directa do beneficiário, mesmo que, para isso, o juiz tenha de se deslocar onde se encontre esse beneficiário (art.º 897.º, n.º 2; cf. art.º 139.º, n.º 1, CC)”[18].
E, acrescenta, esta audição pessoal e directa constitui-se como “um meio de prova que é obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (art.º 139.º, n.º 1, CC; art.º 897.º, n.º 2), dado que, por razões facilmente compreensíveis, se pretende assegurar que o juiz tem conhecimento efectivo da real situação em que se encontra o beneficiário. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e directa não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1) e de adequação formal (art.º 547.º), não deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição”[19].

Também Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa adiantam a conclusão de que se trata de uma “diligência obrigatória, em qualquer caso”[20].
Sucede, todavia, que a jurisprudência dos Tribunais superiores tem apresentado soluções nem sempre coincidentes, em face da prática simplificadora que em muitos Tribunais de 1.ª Instância se instalou (em especial no Centro e Sul do país), no sentido da dispensa da audição do beneficiário em certas circunstâncias.
Sem prejuízo de poder não constituir uma recolha completa, encontramos:
 - do Tribunal da Relação de Coimbra:
 1- Acórdão da Relação de Coimbra de 04 de Junho de 2019 (Processo n.º 647/18.9T8ACB.C1-Alberto Ruço): “A audição direita do beneficiário pelo juiz, no âmbito do processo especial de acompanhamento de maiores, determinada no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, na redação da Lei n.º 49/2018 de 14 de agosto, deve ocorrer em todos os processos, sem exceção”;
 2- Acórdão da Relação de Coimbra de 03 de Março de 2020 (Processo n.º858/18.7T8CNT-A.C1-Isaías Pádua): “I- Entre os vários princípios que orientam/norteiam o processo especial de acompanhamento de maiores encontra-se o da imediação (pelo tribunal/juiz) na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário.
II- Princípio esse que impõe obrigatoriamente ao juiz que, em qualquer caso e circunstância, proceda (direta e pessoalmente) à audição do beneficiário, sem que a possa dispensar.
III- A omissão dessa audição é geradora de nulidade processual”;
3- Acórdão da Relação de Coimbra de 18 de Maio de 2020 (Processo n.º 771/18.8T8CNT-A.C1-Maria João Areias): “1. Um dos princípios orientadores do processo especial de acompanhamento de maiores é o da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, não só para se poder conhecer a real situação deste beneficiário, mas também para se poder ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas a essa situação.
2. Face a tais finalidades e princípios a audição direta e pessoal do beneficiário surge como obrigatória, pelo que a sua dispensa, a considerar-se admissível, só poderá ocorrer em casos limite como o seja o beneficiário encontrar-se em estado de coma ou vegetativo”.
 4- Acórdão da Relação de Coimbra de 19 de Maio de 2020 (Processo n.º 312/19.0T8CNT-A.C1-Fonte Ramos): “1. As palavras da lei são às vezes tão explícitas e categóricas que não podem exprimir mais do que um pensamento - sem prejuízo do eventual contributo de outros elementos interpretativos (v. g., o racional-teleológico e o histórico-evolutivo), em tais situações, o significado linguístico absolutamente nítido e preciso do texto da lei apenas consente uma única interpretação.
2. A interpretação literal/elemento linguístico ou gramatical do art.º 897º, n.º 2 do CPC (poderes instrutórios no processo especial de acompanhamento de maiores) mostra que o legislador pretende que o beneficiário seja sempre ouvido pelo juiz, no sentido de verificar a situação real e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas (art.º 898º, n.º 1 do CPC), o que apenas pode ser feito na sua presença - o juiz procede à audição “pessoal e direta” e fá-lo “sempre”, “em qualquer caso”.
3. Mostrando-se impossível a audição pessoal do beneficiário em virtude da sua incapacidade de entendimento, far-se-á constar em acta, realizando-se o relatório pericial e aplicando-se as medidas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento apurada.
4. A audição do beneficiário pelo juiz só não ocorrerá (não sendo marcada) se se revelar totalmente impossível (por exemplo, beneficiário que permanece em coma)”;
5- Acórdão da Relação de Coimbra de 08 de Setembro de 2020 (Processo n.º 635/19.8T8CNT-A.C1-Luís Cravo): “I – Em processo de Maior Acompanhado [cf. Lei nº 49/2018, de 14/02], a diligência de audição pessoal e direta do requerido/beneficiário (art. 898° do n.C.P.Civil) é obrigatória e em caso algum pode ser dispensada, isto é, deve ocorrer em todos os processos, sem exceção.
II – Isto porque entre os vários princípios que orientam/norteiam o processo especial de Acompanhamento de Maiores encontra-se o da imediação (pelo tribunal/juiz) na avaliação da situação física e/ou psíquica do requerido/beneficiário.
III – Qualquer eventual impossibilidade de proceder àquela audição deve ser pessoalmente verificada pelo juiz, aquando da diligência.
IV – A falta de audição do requerido/beneficiário, nos termos vindos de referir, constitui uma irregularidade que influi no exame e decisão da causa, pelo que configura nulidade processual nos termos do disposto no art.º 195º do n.C.P.Civil”;
6- Acórdão da Relação de Coimbra de 26 de Abril de 2022 (Processo n.º 144/21.5T8PMS.C1-Domingos Pires Robalo): “No processo especial de acompanhamento de maiores, a decisão sobre o pedido de suprimento da autorização do maior a acompanhar deve ser precedida da audição pessoal e directa do beneficiário. Só assim não sucederá quando que essa audição for impossível”;
7- Acórdão da Relação de Coimbra de 14 de Junho de 2022 (Processo n.º 10/22.7T8SPS-A.C1-Falcão de Magalhães): “No processo de acompanhamento de maiores está vedado ao juiz dispensar, ao abrigo do artigo 6.º, n.º 1 do CPC, a audição pessoal e directa do beneficiário”;
- do Tribunal da Relação de Évora:
- Acórdão da Relação de Évora de 10 de Outubro de 2019 (Processo n.º 1110/18.3T8ABF.E1-Ana Margarida Leite): “I – No âmbito do processo especial de acompanhamento de maior, deve o juiz proceder sempre à audição pessoal e direta do beneficiário, ato que lhe é imposto pelos artigos 139.º, n.º 1, do CC, e 897.º, n.º 2, do CPC;
II - Se a omissão da audição da beneficiária só se manifesta com a prolação da sentença que decretou o acompanhamento, é de considerar tempestiva a arguição da nulidade nas alegações do recurso interposto desta decisão”;
- do Tribunal da Relação de Guimarães:
1- Acórdão da Relação de Guimarães de 10 de Fevereiro de 2022 (Processo n.º 188/11.5TBCMN-B.G1-Alcides Rodrigues): “I - O maior acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito, incluindo o decretamento de medidas provisórias e/ou cautelares.
II - A não audição deve ser excecional e justificada, nomeadamente em casos de urgência manifesta.
III - Numa situação de urgência e visando-se assegurar, cautelarmente, o bem estar e a segurança do maior acompanhado, o Tribunal pode decretar a remoção provisória do acompanhante sem prévio cumprimento do contraditório”;
2- Acórdão da Relação de Guimarães de 28 de Maio de 2020 (Processo n.º 891/18.9T8FAF.G1-Eva Almeida): “No novo regime jurídico do maior acompanhado, introduzido pela Lei n.º 49/2018 de 14 de Agosto, a audição pelo juiz do beneficiário da medida de acompanhamento, determinada pelo n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, tendo por objectivo “averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”, é uma diligência de importância estrutural, que não comporta excepções nem possibilidade de dispensa”;
- do Tribunal da Relação de Lisboa:
 1- Acórdão da Relação de Lisboa de 10 de Setembro de 2019 (Processo n.º 14219/18.4T8LSB-A.L1-7-Ana Rodrigues da Silva): “1. O objectivo da audição pessoal prevista no art. 898º do CPC é apurar a situação concreta do beneficiário, nomeadamente a sua capacidade de entendimento e de reacção às perguntas que lhe sejam efectuadas por forma a que as medidas de acompanhamento aplicadas sejam as mais adequadas ao caso concreto.
2. Em situação de impossibilidade de se efectuar a audição pessoal do Requerido, em virtude da sua incapacidade de entendimento, far-se-á constar tal situação em acta, sendo efectuado o respectivo relatório pericial em conformidade com essa situação, sendo as medidas aplicadas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento apurada e demais conclusões constantes do relatório pericial.”.
2- Acórdão da Relação de Lisboa de 16 de Setembro de 2019 (Processo n.º 12596/17.3T8LSB-A.L1.L1-2-LaurindaGemas): I - Com a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, que criou o Regime Jurídico do Maior Acompanhado, o juiz, nos processos de interdição/inabilitação pendentes, deverá, lançando mãos dos princípios da gestão processual e adequação formal, adequar o processado às novas regras e princípios orientadores.
II - Uma dessas regras é a da obrigatoriedade da audição pessoal e direta do beneficiário (cf. artigos 897.º, n.º 2, e 898.º, ambos do CPC). Logo, nos processos que ainda se encontrem na fase de instrução, essa adequação formal implicará a realização de audição pessoal e direta do Beneficiário.
III - Apenas será de equacionar não o fazer numa situação em que comprovadamente tal diligência se não possa realizar (v.g. beneficiário em coma), pois não deixará de ter aqui aplicação o princípio da limitação dos atos, não sendo lícito realizar no processo atos inúteis (cf. art.º 130.º do CPC).
3- Acórdão da Relação de Lisboa de 08 de Outubro de 2019[21] (Processo n.º 9922/18.1T8LSB-A.L1-Diogo Ravara): “Em processo de maior acompanhado a diligência de audição pessoal e direta do beneficiário (art. 898° do CPC) é obrigatória e em caso algum pode ser dispensada.
Qualquer eventual impossibilidade de proceder àquela audição deve ser pessoalmente verificada pelo juiz, aquando da diligência.
A falta de audição do beneficiário, nos termos referidos em I- e II- constitui uma irregularidade que influi no exame e decisão da causa, pelo que configura nulidade processual nos termos do disposto no art.º 195° do CPC.
Tal nulidade tem como consequência a revogação do despacho que dispensou a audição do requerido, e a anulação de toda a tramitação subsequente, incluindo uma eventual decisão final do processo”;
4- Acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Janeiro de 2022 (Processo n.º 2625/21.1T8CSC-A.L1-2-Pedro Martins): “I– Para suprir a falta de autorização do requerido para que seja intentado um processo de acompanhamento, o juiz, previamente, tem de o ouvir pessoal e directamente, sempre que tal não se mostre impossível.
II– O exercício do contraditório realizado através da citação para os pedidos, não é o mesmo que a audição prévia, pessoal e directa do requerido.
III– A falta dessa prévia audição acarreta uma nulidade processual, porque a falta dela implica a falta de um acto que a lei prescreve para que seja proferida decisão sobre o suprimento, pressupondo a importância da audição do requerido para o efeito, e por isso é presumido poder influir na decisão da causa (art.º 195/1 do CPC).
IV– Essa nulidade processual tem de ser arguida dentro do prazo de 10 dias a contar do seu conhecimento (artigos 199 e 149 do CPC), embora se tenha vindo a admitir, com assumida falta de rigor, que as nulidades processuais, de que a parte só teve conhecimento com a notificação da decisão judicial que a consome, possam ser arguidas no prazo de recurso dessa decisão e com o recurso da mesma”;
5- Acórdão da Relação de Lisboa de 06 de Dezembro de 2022 (Processo n.º 139/22.1T8MFR.L1-8-Teresa Sandiães): “I - Decorre dos art.ºs 139º, nº 1 do CC e 897º, nº 2 do CPC que a diligência de audição do beneficiário no processo de maior acompanhado é obrigatória, não se contemplando qualquer exceção.
II - A situação física e psíquica do beneficiário (incluindo eventuais dificuldades de comunicação) deve ser verificada pelo juiz na diligência (princípio da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, com reflexo na opção pelas medidas de acompanhamento mais adequadas à situação), ainda que para tal o juiz se desloque onde se encontre o beneficiário.
III - A omissão da audição do beneficiário constitui a nulidade prevista no art.º 195º, nº 1, 2ª parte, do CPC (cfr. art.º 897º, nº 2 do CPC), por ter influência no exame e decisão da causa”.
6- Acórdão da Relação de Lisboa de 09 de Fevereiro de 2023 (Processo n.º 247/22.9T8MFR.L1-2-Orlando Nascimento): “1) Atenta a atribuição cometida ao Ministério Público pela segunda parte, da al. al. j), do n.º 1, do art.º 4.º da Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, que aprova o Estatuto do Ministério Público, de “…velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis”, esta Magistratura tem competência para, através de recurso, pugnar pela declaração de obrigatoriedade de audição pessoal da beneficiária, prevista no n.º 2, do art.º 897.º, do C. P. Civil, sem interpor recurso da sentença proferida na ação após a dispensa dessa audição.
2) A dispensa ou mera omissão de audição pessoal da beneficiária, prevista no n.º 2, do art.º 897.º, do C. P. Civil constitui nulidade processual se, nos termos da segunda parte do n.º 1, do art.º 195.º, do C. P. Civil, for suscetível de influir no exame ou decisão da causa.
3) Não incorre nessa nulidade o despacho que dispensa a audição da beneficiária, invocando o exame médico forense realizado nos autos e o contexto do vírus “Covid 19”, quando a sentença que se segue a esse despacho julgou procedente a ação intentada pelo Ministério Público - (a) declarando a necessidade de representação geral da beneficiária por razões de saúde desde 2022, (b) nomeando como sua acompanhante a filha, (c) dispensando a constituição de Conselho de Família e (e) declarando que se desconhece a existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde - e nem o Ministério Público, nem qualquer outro interveniente processual impugnam essa sentença, com ela se conformando”.

Pede embora o Tribunal da Relação do Porto se não tenha ainda pronunciado sobre a matéria, a uniformidade é total no sentido da obrigatoriedade da realização da audiência do beneficiário.
As divergências surgem quanto:
 1.º- à admissibilidade de, em certos casos excepcionais, poder não ter lugar;
2.º- à circunstância de, originando a falta de audição do beneficiário uma nulidade ela poder considerar-se que não afecta o exame e decisão da causa.
Quanto à primeira questão, a história que subjaz ao artigo 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (conjugado com o artigo 139.º, n.º 1, do Código Civil) e os termos que são utilizados, não deixam margem a dúvidas razoáveis, quanto ao objectivo do legislador, perfeitamente expresso: palavras e expressões como “audição pessoal e directa”, “Em qualquer caso” e “sempre”[22], colocadas na mesma frase e no mesmo artigo estão lá para dizer que o que se pretendeu foi que essa diligência nunca pudesse ser dispensada[23], foi que ficasse vedada ao Tribunal a possibilidade, por via das adaptações que os processos de jurisdição voluntária permitem (ex vi do n.º 1 do artigo 891.º), ou através da gestão processual e da adequação formal que os artigos 6.º e 547.º admitem, de dispensar esta diligência[24].
O legislador quer, exige, manda, sem excepções, que haja um contacto directo[25] entre o juiz/a e o/a visado/a pela medida restritiva da sua capacidade civil que o processo de acompanhamento de menor visa aplicar-lhe. Sempre.
Certo que resta por saber o que fazer nas situações de impossibilidade completa de comunicação por parte do beneficiário (afasia ou coma profundo, por exemplo). Mas essas situações estão colocadas noutro plano: uma coisa é a diligência de audição do beneficiário, que tem sempre de ser realizada pelo/a juiz/a, outra é o seu conteúdo e, esse sim, pode ser influenciado pela ideia de evitar a prática de actos inúteis (artigo 130.º do Código de Processo Civil)[26].
Ou seja, e dito de outra forma, nunca será um acto inútil a constatação pelo/a Juiz/a de que a pessoa em causa está impossibilitada de estabelecer uma comunicação, de lhe responder e de corresponder às perguntas que lhe seriam formuladas (isto é a concretização do princípio da imediação). E esta constatação[27], este contacto directo, tem de estabelecer-se[28], porque essa é – no caso – a relevante função que cabe ao Tribunal na putativa defesa dos interesses de um/a cidadão/ã que está em vias de ser objecto de uma restrição aos seus direitos.
Já será um acto inútil fazer perguntas a alguém que esteja em coma profundo, ou não tenha forma ou capacidade para estabelecer comunicação.
Para esses casos, o Tribunal tem apenas de, em acta, constatar a situação (de impossibilidade) e determinar o prosseguimento dos autos com a realização do Relatório Pericial e a aplicação das medidas adequadas: é nesta linha que decidiram os Acórdãos da Relação de Lisboa de 10 de Setembro de 2019[29] (Processo n.º14219/18.4T8LSB-A.L1-7-Ana Rodrigues da Silva) e de 08 de Outubro de 2019 (Processo n.º 9922/18.1T8LSB-A.L1-Diogo Ravara).
Quanto à segunda questão, tem-se como pressuposto que foi dispensada a audição do beneficiário e, como tal, cometida uma nulidade, havendo – nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – que verificar se essa irregularidade pode influir no exame ou na decisão da causa.
O entendimento generalizado da jurisprudência vai no sentido de que, necessariamente, essa ausência é susceptível de influir na decisão da causa (dada a ausência de qualquer contacto directo do/a juiz/a com o/a visado/a pelo processo[30]), mas o entendimento assumido pelo recente Acórdão da Relação de Lisboa de 09 de Fevereiro de 2023 (Processo n.º 247/22.9T8MFR.L1-2-Orlando Nascimento), abre outra via de abordagem, considerando que “Não incorre nessa nulidade o despacho que dispensa a audição da beneficiária, invocando o exame médico forense realizado nos autos e o contexto do vírus “Covid 19”, quando a sentença que se segue a esse despacho julgou procedente a ação intentada pelo Ministério Público - (a) declarando a necessidade de representação geral da beneficiária por razões de saúde desde 2022, (b) nomeando como sua acompanhante a filha, (c) dispensando a constituição de Conselho de Família e (e) declarando que se desconhece a existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde - e nem o Ministério Público, nem qualquer outro interveniente processual impugnam essa sentença, com ela se conformando”.
Não cremos que este constitua um caminho a percorrer, uma vez que parece confundir dois planos.
Num plano, reconhece a presença da nulidade, acabando por resolvê-la com o critério da influência na decisão, na perspectiva do evitar da prática de um acto inútil.
Mas o outro plano surge desvalorizado e não pode – pela sua relevância substancial – ser escamoteado: só poderia haver inutilidade (entendida, necessariamente como impossibilidade) se a constatação por parte do juiz do processo tivesse lugar. Sem ela, sem essa constatação, sem esse contacto directo e pessoal que a Lei exige, não é possível saber se há ou não influência no processo.
Assim, necessariamente, a omissão desta diligência essencial tem influência no processo, porque nada é susceptível de substituir ou sanar um contacto directo e pessoal do/a juiz/a e a sua percepção sobre ele, tidos como essenciais pelo legislador.
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Em concreto, nos presentes autos, o Tribunal a quo, em duas linhas dispensou a audição da beneficiária.
A falta de audição de um/a beneficiário/a constitui-se como uma nulidade prevenida pelo artigo 195.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código de Processo Civil (em confronto com o n.º 2 do artigo 897.º, n.º 2) e tem uma notória influência no exame e decisão da causa.
Seguindo aqui as considerações expostas no Acórdão da Relação de Lisboa de 06 de Fevereiro de 2022 (Processo n.º 139/22.1T8MFR.L1-8-Teresa Sandiães), numa situação a todos os títulos similar, dir-se-á que em regra, a arguição de nulidade processual segue o regime geral previsto no art.º 149º do C.P.C., de acordo com o qual o prazo é de 10 dias, perante o Tribunal onde foi cometida, por meio de reclamação, e apenas da decisão que sobre a mesma recair se pode interpor recurso.
Constitui desvio a esta regra, o caso de a nulidade se revelar por efeito de uma decisão recorrível, em que o meio próprio para a impugnar é o recurso.
Neste sentido, v. entre outros, Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 393: “se, entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”.
Anselmo de Castro, Direto Processual Civil Declaratório, vol. III, pág. 134 refere “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora o meio idóneo para atacar impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (art.º 677º, nº 1), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz (art.º 666.º)”.
A nulidade invocada surge coberta pela sentença proferida na mesma data”.
Por tudo o exposto, o despacho que decidiu pela dispensa de audição da beneficiária, é nulo nos termos do artigo 195.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código de Processo Civil e, tendo sido seguido de imediato pela Sentença, acarreta também a nulidade desta, uma vez que lhe deu cobertura, assumindo o desvio ao que a Lei de forma impreterível impunha, assim ficando também inquinada (nos termos do n.º 2 do artigo 195.º).
O Recurso será, pois, julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido (e ordenando-se a sua substituição por outro que determine a audição pessoal e directa da beneficiária, nos termos que forem julgados adequados), ficando anulado o processado subsequente, incluindo a sentença final.
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No que à matéria da responsabilidade tributária respeita, não haverá condenação em custas, tendo em conta o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, uma vez que não se pode considerar que a Requerida/Beneficiária tenha ficado vencida ou dele tenha retirado proveito, sendo certo - em todo o caso - que beneficia de isenção nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea l) e n.º 2, alínea h), do Regulamento das Custas Processuais.
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DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos dos artigos 663.º e 656.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida às disposições legais citadas, julgar procedente o recurso e, em conformidade:
a) revogar o despacho recorrido, ordenando-se a sua substituição por outro que determine a audição pessoal e directa da beneficiária, nos termos que o Tribunal a quo considere adequados:
b) anular o processado subsequente à decisão recorrida, incluindo a sentença final.
Sem custas.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 14 de Março de 2023
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
José Capacete
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[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2]  NEVES, Alexandra Chícharo das, O estatuto jurídico dos “Cidadãos Invisíveis”, O longo caminho para a plena cidadania das pessoas com deficiência, Tese para obtenção do grau de Doutor em Direito, UAL, Lisboa, Setembro de 2011, disponível em https://repositorio.ual.pt.
[3] BAUMAN, Zygmunt, Amor Líquido, Relógio d’água, 2003.
[4] Portugal ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) no ano de 2009 (em simultâneo com o Protocolo Facultativo), pelas Resoluções da Assembleia da República n.º 56/2009 e 57/2009, ambas de 30 de Julho. E ratificou-os pelas Decisões do Presidente da República n.º 71/2009 e 72/2009, ambas de 30 de Julho.
[5] MONTEIRO, Menezes Cordeiro e António Pinto, Da situação jurídica do maior acompanhado, Estudo de política legislativa relativo a um novo regime das denominadas incapacidades dos maiores, Revista de Direito Civil, n.º 3, Almedina, 2018, pág. 473.
[6] Quanto à evolução económico-social e demográfica, vd. ALVAREZ M., SOUSA. T., SÁ R. E TEIXEIRA Z., A longevidade e o Envelhecimento: Escritos de Direito da Saúde – Envelhecimento, edição FAF, Fevereiro de 2018 e ainda COSTA, Marta, A desejável flexibilidade da incapacidade das pessoas maiores de idade, Lusíada, Direito, Lisboa, n.º 7 (2010).
[7] COSTA, Américo de Campos, Incapacidades e formas do seu suprimento – anteprojecto do Código Civil, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 111, 1961.
[8] O legislador português subscreveu assim as novas tendências mundiais e europeias, perfilhando a “doutrina da alternativa menos restritiva” situando a pessoa carecida de protecção numa posição de igualdade de direitos em relação aos demais. Neste sentido, vd. na doutrina, MOREIRA, Sónia, A reforma do regime das incapacidades: o maior acompanhado, Temas de Direito e Bioética – Vol. I, Novas questões do Direito da Saúde, dezembro de 2018.
[9] Cf. nomeadamente, CORDEIRO, Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, Coimbra, Almedina, 2004, págs. 409-427; VASCONCELOS, Pais de, Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª Ed., Coimbra, Almedina, 2015, págs. 110-116.
[10] Maria Inês Costa, A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas, Julgar-on line, Julho de 2020, disponível em
http://julgar.pt/a-audicao-do-beneficiario-no-regime-juridico-do-maior-acompanhado-notas-e-perspectivas/.
[11] Para além do elemento interpretativo em que se traduz o que consta da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 110/XIII, que deu origem à Lei n.º 49/2018, de 28 de Agosto: “Os fundamentos finais da alteração das denominadas incapacidades dos maiores (…) são, em síntese, os seguintes: a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível; a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar; a flexibilização da interdição/inabilitação, dentro da ideia de singularidade da situação; a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; o primado dos seus interesses pessoais e patrimoniais; a agilização dos procedimentos, no respeito pelos pontos anteriores; a intervenção do Ministério Público em defesa e, quando necessário, em representação do visado.
Para prosseguir estes objetivos, opta-se, por um lado, por um modelo monista – em claro detrimento de um modelo de dupla via ou múltiplo – por se considerar ser o dotado de maior flexibilidade e de amplitude suficiente, por compreender todas as situações possíveis, e por outro, por um modelo de acompanhamento e não de substituição, em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada, e não substituída, na formação e exteriorização da sua vontade. Por comparação com o regime atual, é radical a mudança de paradigma. Este modelo é o que melhor traduz o respeito pela dignidade da pessoa visada, que é tratada não como mero objeto das decisões de outrem, mas como pessoa inteira, com direito à solidariedade, ao apoio e proteção especial reclamadas pela sua situação de vulnerabilidade”
(acessível, junto com todos os pareceres produzidos no decurso do processo legislativo, no e-book do CEJ, O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Colecção Formação Contínua, Fevereiro de 2019, páginas 139 e seguintes, disponível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=_nsidISl_rE%3D&portalid=30).
[12] Sublinhado nosso.
[13] Sublinhado e carregado nossos.
[14] Margarida Paz, O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais, in O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, cit., páginas 130-131.
[15] O Código de Processo Civil de 1876, no artigo 419.º, §3.º, previa a obrigatoriedade do interrogatório, o que se manteve no artigo 949.º da reforma produzida com o Decreto-Lei n.º DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro (“Quando se trate de acção de interdição, ou de inabilitação não fundada em mera prodigalidade, haja ou não contestação, proceder-se-á, findos os articulados, ao interrogatório do requerido e à realização do exame pericial”).
O Código de Processo Civil aprovado em 2013 (Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) passou a ter o interrogatório como obrigatório apenas quando existisse Contestação (artigo 896.º: “Quando se trate de ação de interdição, ou de inabilitação não fundada em mera prodigalidade, procede-se, findos os articulados, à realização do exame pericial ao requerido e, tendo havido contestação, ao seu interrogatório”.
[16] Muito por força dos alertas que decorriam do trabalho apresentado por Margarida Paz e Fernando Vieira: A supressão do interrogatório no processo de interdição: novos e diferentes incapazes? A complexidade da simplificação, Revista do Ministério Público, n.º 139, Julho-Setembro 2014, páginas 61 a 109 (matéria esta bem desenvolvida no Acórdão da Relação de Guimarães de 28 de Maio de 2020, Processo n.º 891/18.9T8FAF.G1-Eva Almeida).
De facto, no comum das situações podia suceder que o/a juiz/a não tivesse qualquer contacto pessoal e directo com aquele/a Pessoa visada pelo processo e que corria o risco de ver coarctados e limitados os seus direitos e a sua capacidade civil, tornando o Tribunal um mero chancelador de Relatórios Periciais e contrariando os princípios constantes da já referida Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (desde logo o de se ser ouvido pessoalmente nos procedimentos susceptíveis de vir a afectar a sua capacidade jurídica) e, no mínimo por essa via, a própria Constituição da República (a que acresce o artigo 5.º, n.º 4, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que tem sido aplicado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos à situação de adultos incapazes, exigindo e tornando como essencial que tenham a possibilidade de ser ouvidos em juízo – assim, com referências, Maria Inês Costa, A audição…, cit., página 11).
[17] Maria Inês Costa, A Audição…, cit., páginas 9-10.
Também Ana Luísa Santos Pinho (O regime processual do acompanhamento de maior, Julgar, n.º 41, Maio-Agosto 2020, página 156) escreve que “em casos excecionais, em que haja prova segura nos autos (mormente, declaração do médico assistente do beneficiário ou relatório pericial) que o beneficiário está totalmente incapaz de comunicar (por exemplo, por se encontrar em coma), penso que pode dispensar-se essa diligência por ser inútil, através de despacho justificado, com fundamento no n.º 1 do artigo 6.º, no artigo 130.º e no artigo 547.º do CPC”.
[18] Miguel Teixeira de Sousa, O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais, in O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, cit., páginas 44-45.
[19] Miguel Teixeira de Sousa, O regime…, cit., página 50.
Vânia Filipe Magalhães (Questões processuais da medida de acompanhamento, Lex Familiae-Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 19 — n.º 37 — Janeiro a Junho 2022, Centro de Direito da Família, página 74), conclui também que “É imprescindível que o tribunal verifique directamente a situação em que se encontra o beneficiário, mesmo que constem do processo elementos clínicos dos quais decorra que se encontra incapaz de estabelecer qualquer contacto”.
Francisca Santos Coutinho-Valter Pinto Ferreira (Audição do beneficiário: entre a dificuldade real e a obrigatoriedade legal, Julgar-on line, Maio 2021, página 19), assinala que “o juiz não deve dispensar a audição do beneficiário seja em que circunstância for, mesmo que a condição de saúde deste esteja pericialmente documentada e tal perícia possa ser sustentada pela inquirição do(s) médico(s) que a realizaram, e ainda que quaisquer testemunhas assegurem a veracidade daquela condição, até porque, se o fizer comete uma nulidade processual, pese embora secundária e dependente de arguição”.
Também Ana Luísa Santos Pinho (O regime processual do acompanhamento de maior, Julgar, n.º 41, Maio-Agosto 2020, página 156) escreve que “em casos excecionais, em que haja prova segura nos autos (mormente, declaração do médico assistente do beneficiário ou relatório pericial) que o beneficiário está totalmente incapaz de comunicar (por exemplo, por se encontrar em coma), penso que pode dispensar-se essa diligência por ser inútil, através de despacho justificado, com fundamento no n.º 1 do artigo 6.º, no artigo 130.º e no artigo 547.º do CPC”.
[20] Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2.ª edição, Almedina, 2022, página 351.
[21] Não disponível na base de dados do IGFEJ, mas sim em https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?nid=5679&codarea=58.
[22] Colocado entre vírgulas para reforçar mais.
[23] Tendo a opção em termos de legística sido feita pela colocação da frase na positiva e não na negativa.
[24] Repare-se, aliás - como reforço argumentativo - na distinta formulação do n.º 1 (“analisa”, “pronuncia-se”, “ordena as diligências que considere convenientes”, “podendo”) e do n.º 2 (“Em qualquer caso”, “sempre”, “pessoal e directa”) do artigo 897.º.
[25] Sendo certo que, para a sua concretização, já todos os poderes do/a juiz/a estão activos, nomeadamente para a escolha e definição desse contacto: por presença física ou (eventualmente e dependendo da concreta situação) por meio de comunicação à distância (contra, em tese, Francisca Santos Coutinho-Valter Pinto Ferreira, Audição do beneficiário…, cit., páginas 13-14), por exemplo.
[26] Com pertinência, Francisca Santos Coutinho-Valter Pinto Ferreira (Audição do beneficiário…, cit., páginas 9-10), lançam mão do conceito de audição de beneficiário em sentido amplo e em sentido estrito, que tem aqui plena aplicabilidade (“entendemos que mesmo colmatando as fragilidades de uma decisão sustentada unicamente no teor de um relatório pericial, com a inquirição de testemunhas e do(s) médico(s) que elaboraram aquele relatório, se mostra inultrapassável, quer à luz da actual redacção do artigo 897.ᵒ, n.ᵒ 2, do Código de Processo Civil, quer em função das finalidades da audição do beneficiário a que se refere o artigo 898.ᵒ, n.ᵒ 1, do mesmo diploma, proceder à realização desta diligência, tanto mais se entendermos, como cremos ser de entender, que tal audição deve ser encarada não em sentido estrito, mas em sentido amplo, desde logo pelas consequências que as medidas de acompanhamento comprovadamente têm na vida dos acompanhados”).
[27] Que corresponde à “a comprovação judicial do estado de saúde” do beneficiário e consagra aquilo que se pode apelidar “de conceito amplo de «audição», sendo assim obrigatória em qualquer caso” - Francisca Santos Coutinho-Valter Pinto Ferreira (Audição do beneficiário…, cit., página 20).
[28] Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 04 de Junho de 2019 (Processo n.º 647/18.9T8ACB.C1-Alberto Ruço) – e reforçado pelo Acórdão da mesma Relação de 18 de Maio de 2020 (Processo n.º 771/18.8T8CNT-A.C1-Maria João Areias) – “se o juiz não observar a situação real em que vive o beneficiário, deslocando-se ao meio onde vive, não conseguirá através da faculdade, digamos, da imaginação, elaborar uma imagem ou representação mental dessa situação que coincida com a realidade.
A mesma visará evitar que, interposições indiretas ou a atitude menos altruísta de algum familiar pretendendo aceder ao património do beneficiário, venham a influenciar o juízo do tribunal, assegurando-se que este veja pelos seus próprios olhos como se concretiza o estado clínico relatado no exame médico, habilitando-o a aferir da oportunidade, necessidade e suficiência, das medidas cuja aplicação se encontra em discussão.
Ou seja, a admitir a possibilidade legal de prescindir da audição do beneficiário (e temos muitas dúvidas de que a mesma estivesse na mente do legislador), em nosso entender, ela só deverá ocorrer em situações limite, em que não haja qualquer gradação relevante do nível de incapacidade a aperceber por parte do juiz, como é caso de um estado vegetativo ou de coma”.
[29] Em “situação de impossibilidade de se efetuar a audição pessoal do Requerido, em virtude da sua capacidade de entendimento, far-se-á constar tal situação em ata, sendo efetuado o respetivo relatório pericial em conformidade com essa situação e as medidas aplicadas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento”.
[30] Refere o Acórdão da Relação de Lisboa de 08 de Outubro de 2019 (Processo n.º 9922/18.1T8LSB-A.L1-Diogo Ravara) que “bastaria a ponderação das consequências do processo de maior acompanhado podem advir para a pessoa do beneficiário para concluir que a audição pessoal e direta deste configura a mais importante garantia de defesa do mesmo contra eventuais abusos ou erros de julgamento.
Prescindir da mesma implicaria reduzir, de modo desproporcionado e sem motivo bastante, o direito do beneficiário a ser consultado, contrariando assim um dos mais relevantes princípios norteadores do regime do maior acompanhado, e cuja relevância é sobejamente enfatizada na já referida Convenção”.