Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2405/14.0T8FNC-B.L1-8
Relator: ANA PAULA NUNES DUARTE OLIVENÇA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
PROPRIEDADE
PROVA
PRESUNÇÃO REGISTRAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A presunção registral não pode valer para, em sede de fundamentação de facto, se dar como provada como data da aquisição do veículo a data da inscrição do direito de propriedade na Conservatória do Registo Automóvel;
2. O registo, não sendo constitutivo, apenas prova que o direito de propriedade foi inscrito na data aí constante, sendo essa a formulação a constar dos factos provados;
3. A presunção registral há-de ser valorada em sede de aplicação do direito aos factos;
4. Incumbe aos embargantes de terceiro a alegação e prova de que a aquisição do direito de propriedade do bem ocorreu em data anterior à constante do registo automóvel e, por conseguinte, em data anterior à da efectivação da penhora.»
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
A e mulher B,  casados sob o regime da comunhão de adquiridos, ambos residentes em …
 vêm deduzir:
Embargos de terceiro, por apenso aos autos de execução em que são exequentes  C, D e E  e executado F alegando, em síntese:
Os embargantes tomaram conhecimento no dia 02.09.2021, que o veículo automóvel com a matrícula xxx de que os embargantes são donos, encontra-se penhorado no âmbito dos presentes autos e que encontra-se à venda em leilão electrónico, podendo vir a ser objecto de entrega coerciva.
A penhora do veículo automóvel xxx ocorreu no ano de 2008 e o veículo, através da pessoa do embargante A., foi comprado no dia 06.12.2007.
O direito de propriedade dos embargantes, tendo sido adquirido em data anterior à da realização da penhora, mesmo tendo a aquisição sido registada posteriormente, prevalece sobre a penhora.
Concluem pela ilegalidade da penhora e pugnam pelo seu levantamento.
*
Apresentado a juízo o presente incidente, foi proferida decisão que admitiu liminarmente os embargos:
« Por, neste momento, não haver motivos para a sua rejeição, recebo os embargos de terceiro ora deduzidos.
Suspende-se a execução quanto ao veículo com a matrícula XXX. »
*
Nesta sequência vieram os exequentes apresentar contestação.
Alegam a intempestividade dos embargos, defendendo que a penhora foi efectuada a 25 de Março de 2008 e registada na Conservatória em 30 de Setembro de 2008, estando àquela data já registada sobre o mesmo veículo uma penhora a favor da Sociedade “L…… Unipessoal, Lda”;
Os ora embargantes registaram a propriedade em 09-06-2009, tendo nessa data sido confrontados no acto de apresentação do pretendido registo de propriedade, da existência dum acto de penhora (senão duas contando com a penhora da ….) e correspectivo registo anterior de que o Registo Automóvel dava publicidade.
A 15/06/2020, pela referência CITUS 48614514, a Solicitadora de Execução titular do processo, emite e envia a certidão de penhora requerida. (doc 3), certidão de que A, o embargante, foi notificado;
Os presentes embargos foram apresentados em juízo a 04-10-2021, quando o direito processual já não podia ser exercido por ter caducado.
Pedem a condenação dos embargantes como litigantes de má fé.
No mais, impugnam a factualidade alegada, defendendo a nulidade do negócio por venda de coisa alheia ou, assim não se entendendo, a anulabilidade do negócio por simulação ou, não procedendo, a ineficácia face aos embargantes do pretenso negócio.
Deduzem reconvenção que não foi admitida.
*
Foi dispensada a audiência prévia.
Fixou-se o valor da causa em €15.000,00.
Foi julgada improcedente a excepção da «invalidade da alegada venda do veículo»;
Relativamente à alegação dos embargantes de que a alegada venda lhes é inoponível nos termos do disposto no artigo 612.º do Código Civil, também foi julgada improcedente tal matéria em sede de decisão de excepção.
Foi fixado o objecto do litígio e os temas da prova.
Procedeu-se a julgamento e, foi prolatada sentença de cujo segmento decisório consta:
« VI — DECISÃO
Em face de tudo quanto ficou exposto, julgo:
a) IMPROCEDENTES, por não provados. os presentes embargos de terceiro e, por conseguinte, ordena-se o prosseguimento da execução quanto ao veículo penhorado com a matrícula XXX;
b) parcialmente procedente o incidente de condenação dos embargantes como litigantes de má-fé e, consequentemente, condena-se o embargante A a pagar uma multa no valor de 2 UCs por ter litigado de má-fé, absolvendo-se os embargantes do demais peticionado nesse incidente. »
*
É desta decisão que vem interposto o presente recurso de apelação pelos embargantes.
Vêm alinhadas as seguintes conclusões:
« DAS NULIDADES DA SENTENÇA
I
A douta sentença recorrida deu como provado que:
4.º O embargante A adquiriu o referido veículo a 9 de junho de 2009.
II
A douta sentença recorrida referiu não ter-se logrado provar que:
“b) os embargantes tenham adquirido o veículo com a matrícula XXX em data anterior a 9 de junho de 2009.”
III
A douta sentença recorrida decidiu julgar:
a) IMPROCEDENTES, por não provados. os presentes embargos de terceiro e, por conseguinte, ordena-se o prosseguimento da execução quanto ao veículo penhorado com a matrícula XXX;
IV
Mas, por outro lado, a douta sentença recorrida refere que:
“Já quanto à venda, a prova documental junta aos autos é insuficiente para a demonstrar.”
V
E refere ainda a douta sentença que:
“Todavia, da prova produzida somente resultou provado que a aquisição teve lugar a 9 de junho de 2009, ou seja, em data posterior ao do registo da penhora.”
(…) Primeiro, o pedido de registo da aquisição, sem vir acompanhado de qualquer outra prova é insuficiente para comprovar a veracidade de que a compra e venda, efetivamente, ocorreu.”
VI
Pelo que existe na douta sentença recorrida manifesta oposição entre factos dados como provados (4.º O embargante A adquiriu o referido veículo a 9 de junho de 2009.) e os factos julgados como não provados (“b) os embargantes tenham adquirido o veículo com a matrícula XXX em data anterior a 9 de junho de 2009.”) e entre estes e os fundamentos da douta sentença (“Já quanto à venda, a prova documental junta aos autos é insuficiente para a demonstrar.” E “Todavia, da prova produzida somente resultou provado que a aquisição teve lugar a 9 de junho de 2009, ou seja, em data posterior ao do registo da penhora.” E “Primeiro, o pedido de registo da aquisição, sem vir acompanhado de qualquer outra prova é insuficiente para comprovar a veracidade de que a compra e venda, efetivamente, ocorreu.”) e a decisão final de julgar “IMPROCEDENTES, por não provados. os presentes embargos de terceiro e, por conseguinte, ordena-se o prosseguimento da execução quanto ao veículo penhorado com a matrícula XXX;”, pelo que a douta sentença recorrida é nula, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do C.P.C., nulidade que aqui se argui e de que ora se reclama para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
VII
Por outro lado, a exigência de prova documental – “Já quanto à venda, a prova documental junta aos autos é insuficiente para a demonstrar.
Na verdade, nenhum documento de quitação, comprovativo da entrega do preço ao vendedor, foi junto aos autos.” - quanto à compra verbal realizada pelo embargante marido a 06.12.2007 do carro ora em causa nos autos consubstancia, por outro lado, manifesto erro de julgamento que aqui se invoca para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
VIII
A douta sentença refere que:
Já quanto à venda, a prova documental junta aos autos é insuficiente para a demonstrar.
Na verdade, nenhum documento de quitação, comprovativo da entrega do preço ao vendedor, foi junto aos autos.
O único documento pertinente para essa matéria consiste no pedido de registo da aquisição – documento n.º 14 junto com a contestação.
Desse documento consta que a aquisição teve lugar a 4 de maio de 2009, ou seja, após a penhora.
Primeiro, o pedido de registo da aquisição, sem vir acompanhado de qualquer outra prova é insuficiente para comprovar a veracidade de que a compra e venda, efetivamente, ocorreu.
Segundo, a data constante nesse pedido como a da compra e venda é posterior à da penhora. É certo que a testemunha Z explicou que essa data correspondeu à da apresentação desse pedido para não pagar uma coima.
E, por outro lado, a douta sentença recorrida julgou que:
“4.º O embargante A adquiriu o referido veículo a 9 de junho de 2009.”
IX
Pelo que existe uma contradição insanável entre os próprios fundamentos ( …a aquisição teve lugar a 4 de maio de 2009 …) da sentença e a decisão da douta sentença recorrida (O embargante A adquiriu o referido veículo a 9 de junho de 2009.”), pelo que a douta sentença recorrida é nula, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do C.P.C., nulidade que aqui se argui e de que ora se reclama para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
X
Pelo exposto, é inconstitucional e constitui uma forma intolerável de compressão dos direitos de defesa dos embargantes, por violação do artigo 20.º, n.º 4, do artigo 204.º e do artigo 205.º, todos da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 819.º do Código Civil segundo a qual a alienação pelo executado de um carro em data anterior à data da penhora desse carro é inoponível ao exequente, inconstitucionalidade que aqui se invoca para todos os efeitos legais.
DOS CONCRETOS PONTOS DE FACTO INCORRECTAMENTE JULGADOS
XI
O Tribunal “ad quo” julgou incorrectamente como provado que: “4.º O embargante A adquiriu o referido veículo a 9 de junho de 2009.”
XII
O Tribunal “ad quo” julgou incorrectamente que não se logrou provar que:
“b) os embargantes tenham adquirido o veículo com a matrícula XXX em data anterior a 9 de junho de 2009.”
XIII
Para o efeito transcreve-se, na parte que aqui importa, o depoimento da testemunha Z que foi gravado através do sistema integrado de gravação digital H@bilus Media Studio, disponível no Tribunal Recorrido.
XIV
Ora, a testemunha Z referiu no respectivo depoimento em Tribunal que:
“O carro foi adquirido na data do aniversario do pai a 06 de Dezembro de 2007”.
“Foi a 06.12.2007 que foi entregue pelo vendedor a requisição de registo automóvel para a transferência da propriedade do carro para o meu pai” “e a requisição estava preenchida na parte do vendedor e estava assinada pelo vendedor e ficou por preencher só na parte respeitante ao comprador”
“O preço foi pago no dia 06.12.2007 em numerário” “em notas de 500 euros, de 200 euros, de 100 euros e de 50 euros, não tinha notas de 20 euros, nem 10 euros e nem de 5 euros.” “e o dinheiro foi entregue dentro de um envelope almofadado de cor castanha de tamanho A4. “e que foi eu que entreguei o dinheiro ao vendedor enquanto o meu pai estava a descarregar o carro do reboque com uma empilhadora” “e que desde 06.12.2007 o carro ficou na empresa do meu pai”.
“O meu pai, depois no ano seguinte, em 2008, com os contactos fornecidos pelo próprio vendedor, fez uma viagem à França, e eu acompanhei o meu pai nessa viagem, e encomendou as peças que eram necessárias para o carro poder ficar todo acabado e poder circular”
“O registo do carro em Maio de 2009 foi para não ter de pagar seguros e IUC enquanto o carro não estivesse em condições de circular.”
“Eu fui pessoalmente tratar do registo da propriedade do carro, entregar a requisição de registo à conservatória do registo automóvel da Calheta e a questão porque consta da requisição de registo a data de 4 de Maio de 2009 foi porque quando disse ao funcionário que a compra foi feita em 06.12.2007 o funcionário falou que havia um valor acrescido para pagar se colocasse 06 Dezembro de 2007 na requisição de registo e foi por esta razão para não pagar esse valor acrescido que então o próprio funcionário colocou na requisição de registo a data de 4 de maio de 2009 que foi a data em que fui à Conservatória da Calheta.”
“que até essa data 4 de Maio de 2009, o meu pai nunca teve conhecimento de qualquer penhora, muito menos a minha mãe que só teve conhecimento desta situação da penhora do carro em setembro de 2021.”
“Este é o único carro clássico que o meu pai comprou.”
XV
A lei permite que a compra do carro ora em causa pudesse ter sido realizada, pelo embargante marido, de forma verbal em 06.12.2007 e que pudesse ter sido pago o respectivo preço em numerário, pelo que o modo de aquisição do carro ora em causa nos autos consiste numa compra e venda verbal em que o preço foi pago em numerário e em que no dia e no acto da compra verbal ocorrido em 06.12.2007 foi entregue pelo vendedor ao comprador a requisição de registo automóvel assinada e preenchida na parte respeitante ao vendedor e tendo ficado por preencher e por assinar na parte respeitante ao comprador.
XVI
Por outro lado, não houve no processo a produção de qualquer outro meio de prova que tivesse a virtualidade de infirmar a prova resultante do depoimento da testemunha Z, facto que aqui se invoca para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências, pelo que deve ser dado como provado que o carro ora em questão nos autos foi adquirido pelo embargante marido por compra verbal realizada no dia 06.12.2007, tudo para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
XVII
O Tribunal recorrido cometeu na douta sentença um erro de julgamento porquanto confunde o conceito de aquisição por compra verbal a 06.12.2007 do carro ora em causa com o conceito do acto de registo da propriedade com a apresentação, na Conservatória do Registo Automóvel da Calheta, da requisição de registo no dia 04.05.2009 e com o registo da propriedade do carro realizado no dia 09.06.2009, erro de julgamento que aqui se invoca para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
XVIII
Tanto assim é que a sentença recorrida refere que:
“O ponto 4 resultou da presunção do registo do qual consta que o embargante adquiriu o veículo por inscrição registada a 9 de junho de 2009.”
XIX
Ora, a presunção do registo do qual consta que o embargante adquiriu o veículo por inscrição registada a 09.06.2009 é elidível e ficou ilidida pela prova resultante do sobredito depoimento da testemunha Z.
XX
Aliás, conforme decidiu o Tribunal da Relação do Porto através da prolação de douto acórdão em 21.09.2006, no processo 0634313, in www.dgsi.pt:
I – A presunção decorrente das disposições conjugadas dos arts. 1.º, n.º 1, e 29.º, do Dec. Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro e do art. 7.º do C. Registo Predial, é uma presunção juris tantum.
II – É ilidida aquela presunção quando o adquirente, após a celebração do contrato de compra e venda, passou a assumir um comportamento, relativamente ao veículo, que é normal no titular do direito de propriedade.
III – A compra e venda de veículos automóveis não está sujeita a forma especial (cfr. Arts. 217.º a 219.º do CC) e como o respectivo registo tem apenas efeito declarativo, e não constitutivo (cfr. Art. 1.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro), a comummente designada declaração de venda é apenas o requerimento formulado pelo comprador e confirmado pelo vendedor, em impresso próprio, da aquisição do veículo por contrato verbal de compra e venda, a fim de promover o respectivo registo (cfr. Art. 25.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro).
XXI
E como bem decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra através da prolação de douto acórdão em 26.04.2017, no processo 128/15.2T9CDN.C1, in www.dgsi.pt:
I - O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade especial, produzindo-se a transferência da propriedade por mero efeito do contrato. Assim, tal contrato é válido mesmo quando celebrado verbalmente.
II - Havendo colisão entre a presunção fundada no registo de um direito (artº 7º do CRP) e a presunção decorrente da posse (artº 1268º CC) com início à data do registo ou anterior a ele, prevalece esta última.
III - Mesmo que a posse e o registo tenham a mesma antiguidade (v.g., prova-se que à data do registo havia posse, mas não se prova a posse anterior), ainda assim—em obediência à prevalência, na nossa ordem jurídica, da situação real, uma vez provada, sobre a situação inscrita— prevalece a presunção possessória.
XXII
Pelo exposto, a propriedade do veículo automóvel com a matrícula XXX transferiu-se por contrato verbal de compra e venda realizado no dia 06.12.2007 para a esfera jurídica dos embargantes e o registo dessa propriedade foi efectuado tão-somente pela inscrição registada a 9 de junho de 2009.
XXIII
Pelo que deve julgar-se como provado que:
O embargante A adquiriu para si e para a sua esposa o veículo automóvel com a matrícula XXX no dia 06.12.2007 por compra efectuada de modo verbal.
XXIV
O conjunto dos embargantes não sabia da existência da penhora em data anterior a 02.09.2021 e quanto a este facto não se verificam os requisitos legais da litigância de má-fé.
XXV
Tanto assim é que a douta sentença recorrida refere não se logrou provar que:
“a) a embargante B tenha tido conhecimento da penhora antes da data de 2 de setembro de 2021;”
XXVI
Pelo que corresponde à verdade o conjunto dos embargantes (ou os embargantes) não sabia da existência da penhora em data anterior a 02.09.2021 e quanto a este facto não se verificam os requisitos legais da litigância de má-fé.
XXVII
Pelo que a condenação do embargante marido como litigante de má-fé e a consequente condenação no pagamento de uma multa no montante de 2 UC’s constitui um manifesto erro de julgamento que aqui se invoca, tudo para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
DAS CUSTAS
XXVIII
Apesar da verificação das sobreditas nulidades e dos sobreditos erros de julgamento da douta sentença recorrida e das sobreditas inconstitucionalidades, o Tribunal recorrido decidiu condenar os embargantes no pagamento das custas do incidente de embargos de terceiro e na condenação do embargante A no pagamento das custas do incidente de condenação em litigância de má-fé em 1 UC, o que consubstancia manifesta ilegalidade porquanto tendo os embargados de ficar completamente vencidos são os próprios embargados que, nesta parte, deram causa às custas do processo (artigo 527.º, n.º 2, do CPC), pelo que a douta sentença mostra-se ferida de erro de julgamento que aqui se invoca e que aqui se argui, tudo para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
XXIX
Pelo exposto, é inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4,, do artigo 204.º e do artigo 205.º, todos da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 527.º, n.º 2, do CPC segundo a qual deverá ser condenar determinada parte ao pagamento das custas processuais quando a respectiva contraparte deve ficar totalmente vencida na acção judicial.
Nestes termos e nos mais e melhores de direito que V.as Ex.as Senhores Juízes Desembargadores do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa doutamente suprirão, deve o presente recurso de Apelação interposto pelos embargantes e recorrentes ser totalmente procedente, tudo com todas as legais consequências, designadamente com:
1) Reconhecer e declarar por douto Acórdão como verificadas as nulidades, os erros de julgamento e as inconstitucionalidades supra discriminadas, tudo para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
2) Reconhecer e declarar por douto Acórdão o presente recurso totalmente procedente e, em consequência, revogar a douta sentença recorrida, tudo para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências, com o que assim decidindo farão V.as Ex.as Senhores Juízes Desembargadores a costumada Justiça.»
*
Foram apresentadas contra-alegações, com as seguintes conclusões:
«Nestes termos e em CONCLUSÃO:
1 – A sentença proferida não merece qualquer censura. É enorme experiência técnica, bagagem jurídica e sentido de justiça do Mto. Juiz “a quo” que se encontra há muitos anos ao serviço do único juízo de competência especializada de execução da Comarca da Madeira.
2 – Os apelantes na sua apelação desenquadram expressões do seu contexto para nelas encontram contradições, invocar nulidades e insconstitucionalidades com normas e entendimentos que a sentença nem chamou à colação na aplicação que fez do Direito tornando a usar o processo e agora o direito a recurso de forma a entorpecer a acção da justiça, devendo por isso ser condenados agora nesta sede em igual litigância de má fé, pela requantificação da multa de forma a que se mostre teleologicamente eficaz.
3 – Junto aos autos pelos embargados como documento nº 14 da contestação encontra-se uma certidão autentica emitida pela Conservatória do Registo Automóvel do Funchal, onde consta o teor integral por fotocopia do pedido de registo da compra do veiculo com a força probatória que lhe confere o 371º e 376º do Codigo Civil onde os embargantes declaram, assinando-o com o seu próprio punho que a venda do veiculo ocorreu a 9 de Junho de 2009 inexistindo qualquer incidente de falsidade que a ponha em causa e consignando a dita declaração uma confissão nos termos do nº 2 do 383 CC.
4 – Os apelantes invocam simulação conscientes de que nos termos do artigo 242º CC essa só pode ser arguida entre simuladores e no prazo de um ano sob pena de caducidade, esta que é de conhecimento oficioso pelo Tribunal.
5 – As declarações feitas pelos embargantes no registo não foram ilididas nem, de resto, o podiam ter sido feito por via testemunha, atendendo a força probatória plena que é inerente à certidão autentica.
6 – Os embargantes trazem ao julgamento uma única testemunha que é o seu filho, ao ouvir um filho a depor na causa dos pais contra terceiros e ao proceder à valoração da prova assim produzida o Mtmo Juiz considerará certamente os laços de afectividade e identidade de interesses materiais que sempre envolvem as relações paterno-filiais.
7 – Para o Venerando Tribunal “ad quem” que tem de rever o julgado na base de uma gravação audio e nestas circunstâncias especiais falta irremediavelmente a imediatividade que a presença física fornece, nomeadamente a sua a postura, a forma como coloca os braços, a forma de olhar e confrontar o juiz, os sinais de transpiração e rubor de faces, o mais ou menos nervosismo perante esta ou aquela resposta, que permitem ao julgador aferir da concreta imparcialidade da resposta ao que lhe foi perguntado.
8 – O depoimento do filho dos embargantes encontra-se cheio de contradições demonstrando uma credibilidade diminuída perceptível quando declara ao M. Juiz, no início do depoimento, que não conhece o vendedor do veículo e pouco depois vir declarar que lhe pagou o preço e esteve com ele numa obra onde o veículo foi negociado;
9 – Demostra que além de filho dos embargados é parte materialmente interessada na causa, tanto porque o negócio foi feito tinha ele 19 anos, estando a trabalhar há 3 meses no negócio e vivendo na casa dos pais, e na sua sequência além do alegado pagamento ao comprador faz uma viagem com o pai a França para comprar material e entrega o conserto do carro a colega que percebia de carros ocupando-se do registo na conservatória. Trata-se efectivamente dum depoimento parcial e interessado que em bom rigor, nem deverá entender-se como testemunhal antes como depoimento de parte – considerando-se o que nele e tão só possa constituir confissão.
10 - Num negócio que se prolonga no tempo alegadamente (no afirmar dos embargantes) distanciado do registo por um ano e meio, com diferentes intervenientes e concretizado pela entrega do veiculo nas instalações da empresa com cinco trabalhadores, com reparação a cargo de JSC e registo com intervenção de oficial da Conservatória e com comprador interessado no carro que o inspeccionou e ofereceu um preço, os embargantes não só não exigem quitação do pagamento ao vendedor - exigível dada as circunstancias nos termos do o nº 1 do artigo 787.º do Código Civil e normal no entendimento de um “bónus pater família” - (sendo que os embargantes são donos de uma industria e nas suas negociações “normalmente não se deixam enganar”), como não arrolam qualquer testemunha de entre os múltiplos intervenientes, a não ser o seu filho.
11 – À pouca credibilidade do depoente juntam-se as contradições no depoimento e confusão de declarações quando diz que o formulário do registo estava todo preenchido e depois momentos mais tarde diz que foi o funcionário que preencheu os dados do adquirente, ou quando dizem que não fizeram o registo na data da aquisição que apontam anterior à penhora para não pagar seguro e imposto do selo, quando sabem e muito bem não haver IC ou IS para veículos anteriores a 1982 e o seguro em nada contende como o registo nem é dele requisito, ou quando dizem que puseram um filho aos 19 anos, recém contratado para a empresa de granitos a lidar com negócios de compra de carros e de fazer pagamento em numerário de 5100 €.
12 – Deve ser mantida a condenação em litigância de má fé porquanto os embargantes em litisconsórcio necessário activo actuaram abertamente em contradição com declarações que fizeram em dois mil e nove, que ambos conheciam e entenderam, em embargos, contradizer de forma a entorpecer a justiça.
13 – Não se vislumbra na sentença, qualquer referência ao artigo 819º CC na interpretação que os apelantes apontam, senão a lide teria sido resolvida no saneador sem necessidade de mais prova nem se compreende, outrossim, por ininteligibilidade a invocação da inconstitucionalidade do 527 nº 2 do CPC
14 - Deve, por isso ser mantida a decisão recorrida.
Assim decidindo, mais uma vez será feita, Venerandos Desembargadores, a costumada e verdadeira
JUSTIÇA»
*
O recurso foi admitido em 1ª instância e foi proferido despacho ao abrigo do disposto no art.617º do CPCivil, do seguinte teor:
«Os recorrentes invocam a nulidade da sentença por contradição.
Primeiro por haver contradição entre factos provados e não provados.
Referem que o facto n.º 4 está em contradição com o facto não provado da alínea b).
O facto provado tem a seguinte redação:
«4.º O embargante A adquiriu o referido veículo a 9 de junho de 2009.».
O facto não provado tem a seguinte redação:
«b) os embargantes tenham adquirido o veículo com a matrícula XXX em data anterior a 9 de junho de 2009».
Daqui resulta que estamos perante duas realidades temporais distintas. Nos factos provados temos como data de aquisição o dia 9 de junho de 2009.
Nos factos não provados temos uma data de aquisição anterior a essa data.
Logo, salvo melhor opinião, não há contradição pois os factos em causa reportam—se a marcos temporais diversos.
Os recorrentes invocam igualmente que existe contradição na fundamentação desses factos.
O facto provado n.º 4 foi considerado provado com a seguinte fundamentação:
«O ponto 4 resultou da presunção do registo do qual consta que o embargante adquiriu o veículo por inscrição registada a 9 de junho de 2009.».
Já a referida factualidade não provada mereceu a seguinte fundamentação:
«Já quanto à venda, a prova documental junta aos autos é insuficiente para a demonstrar. Na verdade, nenhum documento de quitação, comprovativo da entrega do preço ao vendedor, foi junto aos autos.
O único documento pertinente para essa matéria consiste no pedido de registo da aquisição – documento n.º 14 junto com a contestação.
Desse documento consta que a aquisição teve lugar a 4 de maio de 2009, ou seja, após a penhora.
Primeiro, o pedido de registo da aquisição, sem vir acompanhado de qualquer outra prova é insuficiente para comprovar a veracidade de que a compra e venda, efetivamente, ocorreu.
Segundo, a data constante nesse pedido como a da compra e venda é posterior à da penhora. É certo que a testemunha Z explicou que essa data correspondeu à da apresentação desse pedido para não pagar uma coima. Versão que não aparece contraditada pela data de carimbo aposta nesse documento, porquanto tal data equivale à do registo, como decorre do documento n.º 1 junto com a contestação. Todavia, o seu depoimento mostrou-se insuficiente para demonstrar que a venda efetivamente ocorreu.
A justificação dada pela testemunha para o atraso na apresentação da aquisição a registo consistiu em se ter aguardado por o veículo se encontrar em condições de circular para não ter de pagar IUC e seguro. Ora, dada a data da matrícula ser anterior a 1981, encontrava-se isento de IUC.
A testemunha referiu que o preço foi pago no ato da entrega do veículo, que consistiu em 5.100€ em notas. Contudo, mais nenhuma testemunha foi arrolada que tivesse assistido a tal pagamento. Nem parece curial que sendo o pai a adquirir o veículo tenha sido o filho a entregar o dinheiro ao vendedor. Mais, dada a importância em causa, a mera assinatura do requerimento de apresentação a registo pelo executado parece ser um comprovativo da venda pouco seguro. Isto é, tratando-se duma compra e venda a dinheiro, o razoável seria que o executado, enquanto vendedor, tivesse emitido um documento de quitação.
Mais, a testemunha Z refere que para que o veículo circulasse o pai teve de adquirir, em França, peças. Contudo, nenhum recibo respeitante a tais peças foi junto aos autos. Nem nenhuma testemunha veio asseverar ter visto o embargante a circular ao volante do veículo.
Em suma, a palavra da testemunha Z, filho dos embargantes, na falta de qualquer outra prova para além do mencionado pedido de registo, é insuficiente para demonstrar a aquisição do veículo e respetiva, como cabia aos embargantes nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, valendo, pois, a presunção do registo por reporte à data da inscrição.».
Como se referiu os dois factos em confronto distinguem-se por se reportem a um marco temporal diverso.
A data considerada como provada para a aquisição foi retirada do registo, data que não foi infirmada quer por prova documental quer por prova testemunhal. Isto é, os embargantes pretendiam provar que a aquisição do bem se deu antes da penhora. Todavia, não conseguiram, pois indicaram uma data de aquisição na documentação que serviu de suporte ao registo, não conseguindo, de forma convincente, abalar tal data, ou seja, demonstrar que a aquisição se deu em data anterior a 9.6.2009. Tendo inclusive se afastado a credibilidade do testemunho de Z. Tal é o que resulta explicado na fundamentação. Não havendo, pois, salvo melhor opinião, qualquer contradição.
No entanto, V.Ex.as com maior e acurado critério melhor decidirão.»
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Foram colhidos os vistos legais.
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2. Objecto do Recurso
Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente, abrangendo apenas as questões aí contidas (artºs 684º nº 3 e 685º-A nº 1 do CPC).
No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objecto do presente recurso.
Constituem questões decidendas:
-Apreciar se sentença deverá ser considerada nula por haver contradição entre os fundamentos e a decisão;
-Apreciar a modificação da matéria de facto nos moldes requeridos pelos apelantes e, nessa sequência,
-Apreciar se deverá ser realizada outra interpretação e aplicação do Direito à nova factualidade apurada, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida.
-Apreciar a condenação como litigantes de má fé.
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3. Fundamentação
3.1. Fundamentação de Facto em 1ª instância:
São os seguintes os factos que o tribunal considerou na decisão recorrida:
« 1.º Nos autos principais de execução para pagamento de quantia certa foi penhorado o veículo com a matrícula XXX, a 25 de março de 2008, e registada a 30 de setembro de 2008 – cf. documentos n.os 1 e 7, juntos com a contestação, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
2.º O embargante A, a 2 de junho de 2020, sabia da existência da mencionada penhora.
3.º Os presentes embargos de terceiro foram deduzidos a 4 de outubro de 2021.
4.º O embargante A adquiriu o referido veículo a 9 de junho de 2009.
5.º Os embargantes, na petição inicial, invocam que somente tiveram conhecimento da penhora a 2 de setembro de 2021.
6.º No artigo 14.º do articulado denominado réplica, os embargantes invocam que «O documento junto como doc 5. com a douta contestação é um email escrito pela testemunha Z fazendo-se passar pelo embargante marido, mas com desconhecimento do embargante marido».
7.º Contudo, tal e-mail foi enviado com conhecimento, na altura, pelo embargante A.
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Da discussão da causa não se logrou provar quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente:
a) a embargante B tenha tido conhecimento da penhora antes da data de 2 de setembro de 2021;
b) os embargantes tenham adquirido o veículo com a matrícula XXX em data anterior a 9 de junho de 2009. »
3.2. Da nulidade da sentença
Defende o embargante haver manifesta oposição entre factos dados como provados («4.º O embargante A adquiriu o referido veículo a 9 de Junho de 2009») e os factos julgados como não provados («b) os embargantes tenham adquirido o veículo com a matrícula XXX em data anterior a 9 de Junho de 2009.») e entre estes e os fundamentos da douta sentença (“Já quanto à venda, a prova documental junta aos autos é insuficiente para a demonstrar.”).
Resulta do disposto no art. 607º, n.º 3, do C. P. Civil que, na elaboração da sentença, e após a identificação das partes e do tema do litígio, deve o juiz deduzir a fundamentação do julgado, explicitando «os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.»
Já o art. 615º, nº1, al. c) do mesmo diploma legal,  determina como causa de nulidade da sentença a contradição entre os fundamentos e a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A fundamentação da decisão deve ser clara e lógica para que o destinatário perceba as razões de facto e de direito que estiveram na sua origem, em função de critérios lógicos, objectivos e racionais.
Os fundamentos de facto e de direito, que fundamentam ou justificam a decisão, deverão constar de forma bem estruturada e seguir a forma do chamado silogismo judiciário: a decisão há-de decorrer logicamente das premissas argumentativas.
Quando fundamentos conduzam logicamente a conclusão oposta ou diferente da adoptada estaremos perante um caso a enquadrar na citada disposição legal.
Antunes Varela escrevia a propósito (anterior art. 668º, n.º 1, al. c) a que corresponde o art. 615º, n.º 1, al. c) do NCPCivil) que o que está em causa é a  «contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão.» Trata-se, pois, de «um vício real no raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente.». Cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 689/690.
Trata-se, pois, de um vício lógico, de uma contradição lógica entre a fundamentação convocada e o sentido decisório: A fundamentação aponta, de forma inequívoca, num sentido e a decisão é contrária.
Alberto dos Reis defendeu que «quando os fundamentos estão em oposição com a decisão, a sentença enferma de vício lógico que a compromete. A lei quer que o juiz justifique a sua decisão. Como pode considerar-se justificada uma decisão que colide com os fundamentos em que ostensivamente se apoia?». E acrescenta ainda o mesmo autor que há contradição entre os fundamentos e a decisão «quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto». Cfr. J.Alberto dos Reis, CPC Anot. pág.141.
A sentença será obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e será ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes: «Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz.» Cfr. Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 151.
Apreciemos a esta luz a sentença recorrida.
Na sentença recorrida julgaram-se improcedentes os embargos e determinou-se o prosseguimento da execução quanto ao veículo penhorado e objecto dos presentes embargos. Porém, refere-se na mesma que «Já quanto à venda, a prova documental junta aos autos é insuficiente para a demonstrar» e mais à frente «todavia da prova produzida resultou provado que a aquisição teve lugar a 9 de Junho de 2009, ou seja em data posterior ao registo da penhora» e ainda, «Primeiro o pedido de registo da aquisição sem vir acompanhado de qualquer outra prova é insuficiente para comprovar a veracidade de que a compra e venda efectivamente ocorreu».
Referem deste modo os apelantes, haver contradição entre o facto que deu como provado que o veículo foi adquirido no dia 9 de Junho de 2009 e aquele que deu como não provado que o veículo foi adquirido em data anterior a 9 de Junho de 2009 e entre estes factos e o fundamento da sentença que julgou os embargos improcedentes.
Feitas estas considerações e compulsada a sentença recorrida resulta, a nosso ver, que não ocorre a alegada contradição.
Na verdade, o facto de ter sido dado como provado a aquisição no dia 9 de Junho de 2009, não colide ou contradiz a afirmação de que não se considerou provado que a aquisição tivesse ocorrido em data anterior àquela. Aliás resulta lógico que se foi considerado provado que a aquisição ocorreu a 9 de Junho, é certo que não ocorreu em data anterior.
A decisão mostra-se claramente perceptível e num só sentido, acrescendo que vem explicado porque se entendeu fixar aquela data como a da aquisição do veículo- Questão diferente é apreciar se assim podia ter julgado a matéria de facto. Tal questão porém, terá de ser decidida em sede de apreciação do recurso sobre a matéria de facto.
Os apelantes podem discordar como discordam, da matéria de facto dada como provada, todavia tal argumentação não consubstancia uma qualquer contradição lógica entre os fundamentos de facto e de direito considerados pelo tribunal a quo e, igualmente, qualquer ambiguidade ou obscuridade da sentença recorrida, mas, quando muito, um erro de julgamento («error in iudicando»), que interfere, não com a conformidade lógico-formal da decisão em crise, mas com o seu mérito.
Assim, a questão suscitada pelos apelante não contende, com a validade da sentença por não procedência da nulidade da sentença aventada, enquanto vício ou erro formal ou de procedimento. O que está em causa isso sim, é a sua fundamentação fáctico-jurídica a apreciar em sede de recurso da matéria de facto que, procedendo, enformará apreciação do direito à nova matéria de facto.
Com os factos assim enformados e provando-se a aquisição posterior à penhora, não há contradição entre os fundamentos de facto e de Direito.
Assim, nesta parte, julga-se a apelação improcedente.
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Cumpre ainda apreciar a alegação de que «é inconstitucional e constitui uma forma intolerável de compressão dos direitos de defesa dos embargantes, por violação do artigo 20.º, n.º 4, do artigo 204.º e do artigo 205.º, todos da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 819.º do Código Civil segundo a qual a alienação pelo executado de um carro em data anterior à data da penhora desse carro é inoponível ao exequente, inconstitucionalidade que aqui se invoca para todos os efeitos legais.»
Ora, em lado algum se recorreu ao normativo legal cuja inconstitucionalidade os apelantes suscitam, razão pela qual improcede qualquer argumentação a respeito.
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3.3. Da modificabilidade da decisão de facto
A questão que urge agora resolver é a da impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida.
Defendem os apelantes que o tribunal de 1ª instância «julgou incorrectamente como provado que: “4.º O embargante A adquiriu o referido veículo a 9 de junho de 2009.» e, «julgou incorrectamente que não se logrou provar que:“b) os embargantes tenham adquirido o veículo com a matrícula XXX em data anterior a 9 de junho de 2009.”»
Pretende que da matéria de facto passe a constar:
«O embargante A adquiriu para si e para a sua esposa o veículo automóvel com a matrícula XXX.no dia 06.12.2007 por compra efectuada de modo verbal.»
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo art.º 662º, nº 1, do CPCivil, segundo o qual «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.».
Por sua vez, estatui o art.º 640º, nº 1 do CPCivil que o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
No caso vertente, a recorrente cumpriu o ónus de impugnação da matéria de facto, indicando expressamente os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões, e os concretos meios de prova que o justificam e em que fundamentam a sua pretensão.
Conforme decorre do disposto no art.º 607º, nº 5 do CPC a prova é apreciada livremente; prevê este preceito que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto»; tal resulta também do disposto nos arts. 389º, 391º e 396º do CCivil, respectivamente para a prova pericial, para a prova por inspecção e para a prova testemunhal, sendo que desta livre apreciação do juiz o legislador exclui os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (2ª parte do referido nº 5 do art.º 607º).
A prova há-de ser apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, com recurso às regras da experiência e critérios de lógica. Conforme o ensinamento de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 384) «segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas.».
A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza; a prova «não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Actualizada, p. 435 a 436). Está por isso em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
É claro que a «livre apreciação da prova» não se traduz numa «arbitrária apreciação da prova», pelo que se impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a «menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, obra cit., p.  655); o «juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (P. J. Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).
É, por isso, comumente aceite que o juiz da 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, e, designadamente, surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.
Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este conclua, com a necessária segurança, que a prova produzida aponta em sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida em 1ª instância, quando tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto; neste sentido salienta Ana Luísa Geraldes (in, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, p. 609) que «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.».
O julgador procede ao exame crítico das provas e afere as mesmas recorrendo a critérios de razoabilidade.
É fundamental explicar o processo de decisão de modo a que se possa avaliar o processo lógico-formal que serviu de suporte ao seu conteúdo.
A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, pois como ensinava o Prof. Alberto do Reis, citando Chiovenda: «ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar.» – CPC. Anotado. vol. IV, págs. 566 e ss..
A questão que se coloca relativamente à prova, quer na 1ª Instância quer na Relação, é sempre a da valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação, pois que, em ambos os casos, vigoram para o julgador as mesmas normas e os mesmos princípios.
Consigna-se que se procedeu à audição de toda a prova produzida.
Insurgem-se os embargantes contra a consideração como provada da matéria que tomou forma sob o ponto 4. Recorde-se: «O embargante A adquiriu o referido veículo a 9 de Junho de 2009»
Atente-se que para a prova deste facto considerou o 1ª instância «O ponto 4 resultou da presunção do registo do qual consta que o embargante adquiriu o veículo por inscrição registada a 9 de junho de 2009.»
Vejamos, então, se o tribunal, em face da prova produzida poderia ter considerado como provada tal matéria.
Foi junto com a contestação o documento nº14, que consiste no modelo oficial de «Requerimento de Registo Automóvel». Desse documento resulta que foi apresentado na Conservatória de Registos da Calheta em 4 de Maio de 2009. No mesmo documento consta um carimbo da Conservatória do Registo Automóvel do Funchal, com a data de 9 de Junho de 2009.
O contrato de compra e venda trata-se de um contrato consensual, não estando sujeito a forma especial (cf. art.º 219.º do CCivil) pelo que a prova do contrato de compra e venda de veículos automóveis pode fazer-se por qualquer meio admitido em direito. Fundou-se a 1ª instância no teor do Requerimento de Registo Automóvel junto com a contestação como doc. nº14, para considerar como provada a data da celebração do contrato de compra e venda do automóvel objecto dos presentes embargos em data coincidente com a do registo.
O Requerimento de Registo Automóvel trata-se de impresso oficial, de formato tipificado e consiste numa declaração formulada pelo comprador e confirmada pelo vendedor destinando-se  a promover o registo da transmissão da propriedade (cf. art. 25.º do Regulamento do Registo de Automóveis, aprovado pelo Decreto n.º 55/75, de 12 de Fevereiro já por várias vezes alterado).
Nos termos do disposto no art.º 42.º do mesmo Regulamento o requerimento de registo automóvel deve ser preenchido no prazo de 60 dias a contar da «data do facto.»
Ora o preenchimento deste requerimento obviamente indicia a celebração de um contrato de compra e venda porém, por si só, não faz prova quer da celebração efectiva do contrato de compra e venda e muito menos, da data da celebração do contrato.
E, afinal, o registo tem apenas efeito declarativo, com finalidade de dar publicidade aos actos. Relativamente ao Registo Automóvel, o art.º 1.º do Decreto-lei n.º 54/75, de 12/02, dispõe que «O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.» Daqui resulta claramente o efeito meramente declarativo do registo. Constitui, pois, uma mera presunção iuris tantum da respectiva propriedade e, consequentemente, por maioria de razão, da data do negócio translativo da propriedade.
A única testemunha ouvida, filho dos embargantes, explicou que a data de 4 de Maio foi aposta na Conservatória da Calheta porquanto a aposição de data anterior correspondente à data da alegada aquisição que a testemunha remonta a 2007, implicaria o pagamento de uma coima. Daí o ter aposto no requerimento o preciso dia em que se apresentou na conservatória com o aludido requerimento.
Assim, e ouvida a prova testemunhal e analisada a prova documental, não vemos que possa ser dada como provada a data 9 de junho de 2009 como a data de aquisição do veículo. O que apenas resulta da prova apurada é que a propriedade da viatura encontra-se registada a favor do embargante marido na Conservatória do Registo Comercial e Automóvel do …, pela Ap.5813, de 9 de Junho de 2009.
Tal data constitui tão só a data do registo do direito de propriedade e nada mais que isso -constituindo a data de 5 de Maio a data em que foi apresentado o requerimento na Conservatória de Registo da …..
Se conforme se assinalou na motivação da decisão de facto a prova documental junta aos autos é insuficiente para demonstrar a venda e a sua data, porquanto nenhum documento de quitação, comprovativo da entrega do preço ao vendedor, foi junto aos autos, tal não implica que se dê como provados factos resultantes de presunções judiciais. O momento da apreciação do efeito de uma tal presunção será posterior, na aplicação das regras gerais do ónus da prova e será precisamente na apreciação de direito que as presunções vão ter o seu enquadramento.
Conforme escreve Abrantes Geraldes por referência à admissibilidade da modificação da matéria de facto « …nos caso em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg presunção judicial ou depoimento testemunhal, nos termos dos arts.351º e 393º do CCivil) situação em que a modificação da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (art.364º, nº1, CCivil)
Em qualquer destes casos, a Relação limitando-se a aplicar regas vinculativas extraídas do direito probatório material, deve integrar na decisão o facto que a 1ª instância considerou não provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (sem prejuízo, neste caso, da sua sustentação noutros meios de prova) alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte»
Dispõe o art.607º, nº4, do CPCivil, sob a epígrafe «Sentença»:
« 4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.»
Quando a lei se refere «compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei» refere-se ao momento posterior ao da fixação dos factos ou seja, refere-se ao momento da aplicação do Direito aos factos.
Daqui se retira que nenhuma prova foi feita no sentido de considerar que a data da aquisição corresponde à data do registo. Na verdade, provado por documento está apenas a apresentação do requerimento para registo da propriedade do veículo a favor do embargante marido e o seu efectivo registo a ser favor.
Apelam os embargantes ao depoimento da única testemunha ouvida, filho de ambos, para se dar como provado que o veículo foi adquirido por contrato de compra e venda verbal, no dia 6.12.2007.
Regista tal data como a data de aniversário do seu pai por isso se lembra bem, tendo assistido à entrega do veículo tendo sido mesmo ele quem entregou o dinheiro em mão ao vendedor. Porém, refere que em data anterior o pai negociou o veículo com o vendedor, tendo decorrido conversa entre ambos à qual não assistiu porquanto se encontrava a tirar medidas numa obra, tendo o seu pai que o acompanhava, saído para ir falar com o vendedor.
Por outro lado, não deixa de ser estranho à luz da realidade da vida comum que nenhuma outra testemunha haja sido arrolada, mormente quando o veículo terá sido alegadamente entregue na empresa do embargante que à data tinha cinco empregados. No acto dessa entrega esclarece que foi ele quem entregou o dinheiro em notas ao vendedor, que afirma não conhecer, não tendo nem ele nem o seu pai exigido qualquer quitação o que não é um modus operandi usual e razoável principalmente para quem tem uma empresa como é o caso do embargante. Outrossim, tendo o veículo sido arranjado por “um rapaz” que lá trabalhava, o mesmo não foi indicado como testemunha.
Por esta testemunha também é afirmado que juntamente com o pai fez uma deslocação a França para comprar peças para o mesmo. Estranhamente, não há qualquer prova da viagem ou, da aquisição das peças. Veja-se, aliás, que estando o veículo alegadamente na posse dos embargantes desde 2007, não foi arrolada uma única testemunha para corroborar tal facto. Também o depoimento prestado revela contradições insanáveis no que se refere ao preenchimento do requerimento para registo quando refere num primeiro momento que estava completamente preenchido para depois esclarecer que foi o funcionário que preencheu os dados do adquirente.
Apenas ao depoimento do filho dos embargantes se reconduz a prova testemunhal produzida e o depoimento deste não logrou convencer o tribunal da data de aquisição do veículo. Conforme se referiu em 1ª instância «A justificação dada pela testemunha para o atraso na apresentação da aquisição a registo consistiu em se ter aguardado por o veículo se encontrar em condições de circular para não ter de pagar IUC e seguro. Ora, dada a data da matrícula ser anterior a 1981, encontrava-se isento de IUC.»
Assim, concordamos com a 1ª instância quando considera que a palavra da única testemunha ouvida, filho dos embargantes, na falta de qualquer outra prova para além do mencionado pedido de registo, é insuficiente para demonstrar a aquisição do veículo e respectiva data.
Porém, se se concorda com a motivação expendida quanto ao valor do depoimento já não pode concordar-se quando se refere que vale como data da compra e venda a data do registo por força da presunção registral.
Tal presunção não pode valer para a prova da data da aquisição do veículo em sede de matéria de facto. O registo, não sendo constitutivo, apenas nos diz que o direito foi inscrito em tal data.
Assim, e nesta concordância ser decide eliminar o ponto 4 da fundamentação de facto e aditar à matéria provada:
«7. Com vista ao registo da propriedade do veículo a favor do embargante marido, foi apresentado na Conservatória do Registo da Calheta, com data de 4 de Maio de 2008, o impresso intitulado «Requerimento de Registo Automóvel»;
8. A propriedade do veículo com a matrícula XXX, encontra-se inscrita a favor do embargante marido na Conservatória do Registo Comercial e Automóvel do Funchal, pela Ap.5813/09/06/2008.»
Insurge-se, de igual modo o embargante pelo facto de não ter sido considerado provado que:
« os embargantes tenham adquirido o veículo com a matrícula XXX em data anterior a 9 de junho de 2009. »
Ora, conforme já se deixou suficientemente explicado, não logrou apurar-se, da prova testemunhal produzida ou da prova documental apresentada, qualquer prova da data da aquisição do veículo. Apenas se tem como provado os pontos 7 e 8 ora aditados na sequência da procedência parcial da impugnação da matéria de facto.
Assim se mantém como não provada a factualidade apontada.
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3.4. Fundamentação de Facto em 2ª Instância
Feitas as alterações que se impunham, na parcial procedência da impugnação da matéria de facto, passa-se a elencar a sua versão definitiva:
1. Nos autos principais de execução para pagamento de quantia certa foi penhorado o veículo com a matrícula XXX, a 25 de Março de 2008, e registada a 30 de Setembro de 2008 – cf. documentos nº 1 e 7, juntos com a contestação, que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
2. O embargante A, a 2 de Junho de 2020, sabia da existência da mencionada penhora.
3. Os presentes embargos de terceiro foram deduzidos a 4 de Outubro de 2021.
4. Os embargantes, na petição inicial, invocam que somente tiveram conhecimento da penhora a 2 de Setembro de 2021.
5. No artigo 14.º do articulado denominado réplica, os embargantes invocam que «O documento junto como doc 5. com a douta contestação é um email escrito pela testemunha Z fazendo-se passar pelo embargante marido, mas com desconhecimento do embargante marido».
6. Contudo, tal e-mail foi enviado com conhecimento, na altura, pelo embargante A;
7. Com vista ao registo da propriedade do veículo a favor do embargante marido, foi apresentado na Conservatória do Registo da …, com data de 4 de Maio de 2008, o impresso intitulado «Requerimento de Registo Automóvel»;
8. A propriedade do veículo com a matrícula XXX, encontra-se inscrita a favor do embargante marido na Conservatória do Registo Comercial e Automóvel do …, pela Ap.5813/09/06/2008.
*
Da discussão da causa não se logrou provar quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente:
a) a embargante B tenha tido conhecimento da penhora antes da data de 2 de Setembro de 2021;
b) os embargantes tenham adquirido o veículo com a matrícula XXX em data anterior a 9 de junho de 2009.
*
3.5. Fundamentação de Direito vista a alteração à matéria de facto:
Cumpre após a fixação da matéria de facto decidir de direito.
Dispõe o nº 1 do artº 342º do CPC que «Se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro».
Constituem, pois, requisitos da atendibilidade dos embargos de terceiro que o embargante:
1. Tenha a posição de terceiro, isto é, que não haja intervindo no processo ou no acto jurídico de que emana a diligência judicial, nem represente quem foi condenado no processo ou quem no acto se obrigue;
2. Tenha a posse sobre a coisa ou seja titular de qualquer direito sobre ela incompatível com a realização ou o âmbito da diligência.
Na formulação inicial do Código de Processo Civil, os embargos de terceiro era um processo especial limitado à defesa da posse ofendida por diligência ordenada judicialmente, designadamente a penhora, o arrolamento, o arresto, a posse judicial avulsa e o despejo. Vinha previsto no artigo 1037.º do CPCivil e destinava-se a permitir que o terceiro ofendido (por não ter tido intervenção no processo) pudesse, como lesado, fazer-se restituir à posse.
O Prof. Alberto dos Reis (in “Processos Especiais”, I – reimpressão, 1982, 410) esclarecia que era «função dos embargos de terceiro», ou «restituir o embargante à posse de que foi privado por determinada diligência judicial»; ou «obstar a que o embargante seja esbulhado da sua posse em consequência de diligência judicial já ordenada.». No primeiro caso entendia que tinha a fisionomia de verdadeira acção de restituição de posse, e no segundo, apresentava-se «com o aspecto de acção possessória de prevenção».
Em termos estruturais o que caracteriza os embargos de terceiro é a circunstância de a pretensão do embargante se enxertar num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão patrimonial, judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes da causa e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro. Cfr. neste sent. Acórdão do STJ de 6 de Novembro de 2012; Proc.786/07. ITJVNF-B.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
De acordo com o preceituado no art.344º, nº1, os embargos são processados por apenso à causa em que haja sido ordenado o acto ofensivo do direito do embargante.
O artº 345º do C.P.Civil, com a epígrafe "Fase introdutória dos embargos", dispõe que «Sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante».
O incidente de embargos de terceiro comporta, pois, duas fases, revestindo a primeira uma feição introdutória em que se prolata despacho de recebimento ou de rejeição dos embargos e a segunda, de natureza contraditória que se inicia após o despacho de recebimento e segue a feição de uma acção declarativa a seguir os termos do processo comum, conforme o disposto nos arts. 347º e 348º do CPCivil.
Daqui se conclui que o tribunal receberá os embargos de terceiro desde que, perante os termos do requerimento inicial e da prova apresentada que entenda seja necessário produzir, ainda que nesta fase cumpra fazer apenas um mero juízo de probabilidade, resulte a probabilidade séria da existência do direito do embargante. O art. 345º do CPCivil prevê pois que os embargos sejam recebidos ou rejeitados conforme haja ou não a probabilidade séria da existência do direito do embargante.
Os embargos de terceiro caracterizam-se, como analisa Salvador da Costa, « não tanto pela particularidade de se consubstanciarem numa acção declarativa que segue por apenso à acção ou ao procedimento de tipo executivo, com a especificidade de inserirem uma subfase introdutória de apreciação sumária da sua viabilidade, mas , sobretudo, por a pretensão do embargante se inserir num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de algum acto judicial de afectação ilegal de um direito patrimonial do embargante». Cfr. Salvador da Costa, in Os incidentes da instância, 5ª edição, Almedina, pág. 202.
Assim o conceito de direito incompatível previsto no art.342º, nº1, há-de apurar-se «no confronto da finalidade da diligência em causa , e é de considerar como tal, no confronto com qualquer das referidas diligências judiciais, o direito de terceiro idóneo a impedir a realização daquela função». Cfr. José Lebre de Freitas in “ A Acção Executiva, Depois da reforma da reforma” , 5.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 286.
No caso dos autos, a penhora dos autos atingiu o veículo cuja propriedade foi registada a favor do embargante marido tendo a essa data pendente uma penhora.
Nos termos do disposto no art. 408, n.º 1, do CC, a transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, ressalvadas as excepções que a lei preveja.
Assim, e no que à compra e venda respeita, o art. 879 do CC diz-nos que ela tem por efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa, além das obrigações de a entregar (para o vendedor) e de pagar o preço (para o comprador).
Por seu turno, a validade das declarações negociais não depende da observância de especial forma, a menos que a lei assim o preveja (art. 219 do CCivil). Ora, a para a transmissão do direito de propriedade sobre veículos automóveis, a lei não prevê a exigência de qualquer forma pelo que nada obsta a que o negócio se efective por meras declarações verbais.
Assim, a compra e venda de veículos automóveis constitui um contrato consensual que não carece de forma especial nem de entrega, operando-se a transferência do direito de propriedade por mero efeito do contrato, mesmo que este se determine por meras declarações verbais.
No caso sub judice está provado que a propriedade do veículo foi registada a favor do embargante marido a 9 de Junho de 2009, data em que sobre o mesmo impendia uma penhora que se realizou em 25 de Março de 2008
Não logrou o embargante provar a data da aquisição do veículo (aquisição que, em si, não foi contestada) e, por tal, vale a presunção do art.7º do C.R.Predial (aqui aplicável ex vi art. 29 do DL 54/75, de 12 de Fevereiro), de que a propriedade pertence aos embargantes. O registo definitivo faz presumir a pertença do direito ao titular inscrito, nos termos em que o registo o define. A presunção do direito de propriedade não resultou ilidida, sequer contestada, porém, por força do mesmo registo, apenas podemos considerar que, o direito de propriedade do veículo passou a existir na esfera jurídica dos embargantes na data constante do registo. Nos termos do disposto no art. 5.º, n.º 1, do CRPredial (aplicável subsidiariamente ao registo automóvel, como já referido), os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo. O direito de propriedade sobre veículos a motor é facto sujeito a registo, por via do disposto no art. 5.º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro). Perante estas normas, poderia questionar-se se a propriedade não registada da embargante é oponível à exequente embargada, que registou a sua penhora quando o bem ainda estava registado a favor do executado.
A resposta a esta questão passa pela definição de «terceiro» para efeitos do citado art. 5.º do CRPredial. O n.º 4 do mesmo artigo, introduzido pelo DL 533/99, de 11 de Dezembro, define terceiros, para efeitos de registo, como os que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Esta definição abraçou a doutrina do Acórdão Unificador de Jurisprudência n.º 3/99, publicado no DR, I S-A, de 10/07/1999, colocando termo a velha contenda.
A situação dos autos é análoga à que esteve na base do AUJ 3/99: «Os recorrentes compraram uma fração autónoma e não a registaram; O recorrido, credor do vendedor da fração, obteve a penhora desta e registou-a; A referida compra só depois foi registada.». Com tais factos decidiu-se em acórdão unificador de jurisprudência: «Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.».
Defendeu-se pois, a noção restrita de terceiro para efeitos de registo, adoptada por Manuel de Andrade.
Considerando a doutrina do AUJ 3/99, logo consagrada no n.º 4 do art. 5.º do CRPredial, embargantes e exequentes-embargados não são terceiros entre si para efeitos do disposto no art. 5.º do CRP. Assim, bastaria aos embargantes provar que a aquisição teria ocorrido em data anterior à da penhora para desde logo procederem os embargos. Porém, tal prova não lograram fazer.
Assim, terá de confirmar-se a decisão recorrida.
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3.6. Da condenação como litigantes de má fé.
Os apelantes foram condenados como litigantes de má fé em 1ª instância no pagamento de uma multa no valor de 2 UCs.
Para fundamentar tal condenação escreve-se em 1ª instância:
«Os exequentes deduziram incidente de condenação dos embargantes como litigantes de má-fé por terem apresentado versão dos factos nos presentes embargos que sabiam não corresponder à realidade.
O exequente notificado do teor da contestação e desse incidente, vieram reiterar que ambos não sabiam da existência da penhora em data anterior a 2 de setembro de 2021.
Ora, resultou provado que, desde 2 de junho de 2020, o embargante A sabia da penhora e que, ao contrário do que alega na réplica, sabia que o filho tinha enviado o e-mail dessa data.
Daqui resulta que o embargante alterou e reiterou a verdade dos factos.»
Mais à frente e para justificar a não condenação em indemnização a favor da parte contrária escreve-se: «Os exequentes pedem o pagamento duma indemnização face à litigância de má-fé. Ora, apesar de ser sancionável – e daí haver lugar ao pagamento da multa – o desvirtuar da realidade, o certo é que os factos que se comprovaram teriam sido adulterados não conduziram à intempestividade dos embargos. Isto é, os factos adulterados pretendiam obstar à caducidade dos embargos. Os factos provados, não obstante se ter demonstrado a adulteração, foram insuficientes para que os embargos fossem julgados caducos. Donde, não houve qualquer prejuízo aos exequentes, não havendo, por conseguinte, lugar à aplicação de qualquer indemnização.»
Apreciando e decidindo.
As partes têm o dever de não formular pedidos ilegais, não articular factos contrários à verdade, nem requerer diligências meramente dilatórias.
Nos termos do Art.542º, nº2 do C.P.Civil, litiga com má fé quem tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava ou não devesse ignorar, como também quem tiver convenientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais, quem tenha praticado omissão grave do dever de cooperação e quem tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de alcançar um objectivo ilegal ou de coartar a acção da justiça ou impedir a descoberta da verdade.
Do preceito citado resulta claramente que as diferentes formas de manifestação da má fé, são conscientes ou dolosas, devendo a parte ter a noção exacta de que o seu objectivo é ilícito para que adopte uma das condutas aí previstas. E quando actua no plano dos factos, há-de saber que faz alegações falsas ou omite factos essenciais ao bom julgamento da causa.      
A litigância de má fé pressupõe a violação da obrigação de confessar os factos que a parte sabe serem verdadeiros. A doutrina tem entendido a má fé a que alude o Art.542º do C.P.C. sob dois aspectos: a má fé material e a má fé instrumental. Abrange-se na primeira os casos de dedução de pedido ou de oposição que a parte sabe carecer de fundamento, e a alteração consciente da verdade dos factos ou a omissão de factos essenciais; a segunda tem a ver com o uso reprovável do processo, ou dos meios processuais para prosseguir um fim ilegal, para entorpecer a acção da justiça ou para impedir a descoberta da verdade. Cfr. Ac. do S.T.J., de 5/12/1975; B.M.J., 252-105.
Como refere Alberto dos Reis, in C.P.C., Anot., Vol.II, pág.261, «ao princípio da licitude do exercício dos meios processuais a mesma ordem jurídica põe uma limitação: a de que o seu exercício seja sincero, que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão. Quando falta este requisito, o acto passa a ter carácter de ilícito: Estamos, então, perante um ilícito processual, a que corresponde uma sanção meramente civil (responsabilidade pelas perdas e danos causados à parte contrária) ou uma sanção civil e uma sanção penal (multa).»
À luz dos ensinamentos que atrás se deixaram e em face dos factos dados como provados, verifica-se, com efeito, que o embargante marido sabia da penhora em data anterior a de  a 2 de Setembro de 2021. Prova disso são os factos dados como provados sob os nº5 e 6 da matéria de facto provada que não mereceram qualquer impugnação.
É manifesta a alteração da verdade dos factos pelo que se mantém a condenação como litigantes de má fé como decidido em 1ª instância.
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Decaindo no recurso, as custas ficarão a cargo dos apelantes.
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4. Decisão:
Em face do exposto, acordam os juízes que compõem a 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar o presente recurso de apelação improcedente por não provado e, consequentemente, decidem manter a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
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Registe e Notifique.

Lisboa, 11-05-2023
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Rui Pinheiro de Oliveira
Teresa Prazeres Pais