Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2882/17.8T8VFX-D.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
SUPRIMENTOS
CESSÃO DE CRÉDITOS
PREJUÍZO PARA A MASSA INSOLVENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I- A resolução em benefício da massa insolvente, regulada nos artigos 120.º a 126.º do CIRE, consubstancia um mecanismo legal que se destina a prevenir os atos que prejudiquem a integridade da massa insolvente, e tem natureza extintiva, operando a dissolução do vínculo contratual.
II- A resolução não está condicionada à verificação ou concreta demonstração da prejudicialidade do ato nem da má fé da outra parte no negócio celebrado pelo devedor, que o legislador presumiu iuris et de iure, quando estamos perante qualquer dos casos previstos no artigo 121.º do CIRE.
III- Decretada a insolvência, o credor por suprimentos tem direito a ser reembolsado devendo, contudo, esse pagamento respeitar as regras do processo de insolvência, com a tutela dos interesses dos demais credores sociais, tutela essa que é conseguida pelo conjunto de medidas previstas no artigo 245.º, n.ºs 2 a 6, do CSC, e 48.º al. g) e 177.º do CIRE, que implicam que o reembolso por suprimentos, como crédito subordinado que é, apenas possa ocorrer depois de estarem inteiramente satisfeitas as dívidas da sociedade para com os demais credores.
IV- O contrato realizado entre o impugnante e a devedora, através do qual o primeiro declarou ceder à segunda a sua quota no respetivo capital social e o seu crédito por suprimentos, ambos por preço igual ao do respetivo valor nominal, está parcialmente afetado, pois que a obrigação decorrente da cessão não é viável, dado que, no que concerne à declarada venda do crédito, o obrigado à prestação e o seu beneficiário são a sociedade devedora, não podendo o crédito e a dívida estar reunidos na mesma pessoa e serem assumidos pelo mesmo património.
V- Ainda que o crédito por suprimentos seja transmissível, o negócio realizado contraria os termos gerais do artigo 577.º do CC, e permite, dessa forma, sob a capa de pagamentos feitos em cumprimento do contratado, a devolução, em diferentes momentos temporais, dos suprimentos feitos pelo recorrente à sociedade, o que pode assim ser resolvido pelo AI, de forma incondicional, à luz do artigo 121.º n.º 1 al. i-) do CIRE, no caso em que os reembolsos ocorreram dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência.
VI- No caso em que a devolução dos suprimentos ocorreu para além do momento temporal legalmente previsto para a resolução incondicional, o ato de reembolso é abstratamente resolúvel por ter sido praticado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, mas exige-se agora, nos termos do artigo 120.º do CIRE, a prejudicialidade do ato em relação à massa insolvente e a má-fé do terceiro.
VII- A prejudicialidade presume-se, sem admissão de prova em contrário, naqueles mesmos atos ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados (artigo 120.º n.ºs 2 e 3 do CIRE).
VIII- A má fé presume-se quanto a atos em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente (artigos 120.º n.º 4 e 49.º do CIRE).
IX- Tendo em atenção a noção de responsáveis legais estabelecida no n.º 2.º do artigo 6.º do CIRE, e a taxatividade do artigo 49.º n.º 2 al. a), do mesmo código, e estando provado que o impugnante foi sócio da devedora, mas nunca responsável pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas da insolvente, não opera a aludida presunção da má fé.
X- Para que o ato fosse então resolúvel era necessário que resultasse dos autos que à data da devolução daqueles suprimentos o impugnante tinha conhecimento de que o devedor se encontrava já em situação de insolvência, ou que tivesse conhecimento do carácter prejudicial daquele ato e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente ou do início do processo de insolvência.
XI- Não resultando tal factualidade da matéria de facto dada por provada nos autos, que não foi impugnada, impõe-se revogar a sentença recorrida na parte em que considerou estar abrangida pela resolução condicional do reembolso de suprimentos os ocorridos entre novembro de 2015 e julho de 2016, quando o início do processo de insolvência data de agosto de 2017, ficando assim sem efeito a referida resolução nessa parte.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório:
V.. (….), residente na Rua (….), em Lisboa, veio intentar a presente ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente contra a Massa Insolvente de (…) pedindo sejam revogadas ou declaradas inválidas e de nenhum efeito as declarações de resolução efetuadas pelo administrador da insolvência de alegados reembolsos de suprimentos.
Para tanto, alegou, em síntese, que as quantias pagas ao autor pela PIN não o foram a título de reembolsos de suprimentos, mas sim a título de pagamento do preço de contrato de compra e venda de quota e de crédito por suprimentos outorgado entre o autor e a sociedade insolvente em 18/11/2015; que à data dos pagamentos efetuados, o autor não era pessoa especialmente relacionada com a ré; que aqueles pagamentos, no contexto em que tiveram lugar, não diminuíram, frustraram, dificultaram, puseram em perigo ou retardaram a satisfação de quaisquer credores da insolvência; que os sobreditos pagamentos não podem, sequer presumivelmente, ser considerados como prejudiciais para a massa insolvente e, muito menos, que o autor, com o seu recebimento, tivesse agido de má-fé, não se podendo esta igualmente presumir.

Citada, veio a ré contestar, dizendo que estão preenchidos todos os fundamentos de resolução dos atos de devolução de suprimentos ao autor, ex-sócio da Insolvente.

Foi proferido despacho saneador e realizou-se audiência.
Foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente, e, em consequência, absolveu a ré do pedido formulado, mantendo os atos de resolução em causa.

Inconformado, o autor interpôs o presente recurso, que finalizou com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
«1º. Por via da presente acção, o A., ora recorrente, impugnou judicialmente a declaração do administrador da insolvência, em representação da massa insolvente da PIN, de:
(i) resolução incondicional do reembolso de suprimentos no montante de 28.750,00€ efectuado através do cheque n.º 61… datado de 23 de Fevereiro de 2017;
(ii) resolução incondicional do reembolso de suprimentos no montante total de 6.250,00€ entre Agosto de 2016 e Dezembro de 2016; e ainda de
(iii) resolução condicional do reembolso de suprimentos no montante total de 13.750,00€ entre Novembro de 2015 e Julho de 2016.
2ª. Resoluções essas não aceites pelo ora recorrente, por, conforme sumariamente alegado e depois desenvolvido e documentado na petição inicial da impugnação, assentarem em pressupostos errados, uma vez que:
(1) as quantias pagas pela PIN nas datas indicadas pelo administrador da recorrida, não o foram a título de reembolsos de suprimentos, mas, sim, - a título de pagamento do preço da venda em 18 de Novembro de 2015, pelo ora recorrente à PIN, da totalidade dos créditos que sobre a mesma então detinha, venda essa feita em conjunto com a venda, também pelo ora recorrente à própria PIN, da quota de 1.250,00€ representativa do respectivo capital social de que o recorrente foi titular entre 14 de Fevereiro de 2014 e 18 de Novembro de 2015.
 (2) o ora recorrente, à data dos pagamentos efectuados, não era pessoa especialmente relacionada com a PIN;
(3) nem, no contexto em que tiveram lugar, os pagamentos dos montantes recebidos pelo ora recorrente diminuíram, frustraram, dificultaram, puseram em perigo ou retardaram a satisfação de quaisquer credores da insolvência.
(4) Nem, ainda, os mesmos pagamentos podem ser, sequer presumivelmente, considerados como prejudiciais para a massa insolvente e, muito menos, que o recorrente com o seu recebimento, tivesse agido de má-fé, nem esta se pode igualmente presumir.
(5) Não podendo, assim, os referidos pagamentos ser integrados em qualquer das disposições legais invocadas na referida carta de resolução.
3ª. Petição que o ora recorrente concluiu com o pedido de serem revogadas ou declaradas inválidas e de nenhum efeito pelo tribunal a quo as declarações de resolução efectuadas pelo administrador da insolvência.
4ª. No Relatório da Sentença recorrida, o Tribunal a quo declarou que a questão que lhe cumpria apreciar consistia na verificação da licitude da resolução de atos pelo Administrador da Insolvência, aferindo-se se houve devolução de suprimentos a sócio (ou ex-sócio) ou pagamento de preço de contrato de compra e venda de quota e de compra e venda de crédito por suprimentos entre o A. e sociedade Insolvente, em termos acordados.
5ª. Não obstante considerar resultante da matéria factual provada que, em concretização do acordo referido no ponto 8d) dos factos provados, o A. (ora recorrente) exerceu o seu direito de venda da participação social na PIN até 26 de Novembro de 2015 e que, assim, por acordo entre a PIN e o A., datado de 18 de novembro de 2015, com a epígrafe CESSÃO DE QUOTA, o A. declarou ceder a sua quota à PIN por valor igual ao do respetivo valor nominal de 1.250,00€, já recebido, o que a PIN aceitou. Mais declararam que a PIN adquire, por preço igual ao seu valor nominal, o crédito por suprimentos sobre a Sociedade no valor de 50.000,00€ (cfr. Doc. 2 Anexo à Carta de resolução e ponto 24 dos factos provados; destaques do recorrente).
6ª. O tribunal a quo, sem concretizar um só dos factos julgados provados que o suportasse, qualificou o referido acordo denominado de CESSÃO DE QUOTA, como consistindo num contrato misto, contrato híbrido de compra e venda de participação social (quota do A.) e devolução de suprimentos (empréstimos do sócio à sociedade).
7ª. E conclui, mais uma vez sem qualquer suporte factual, que em substância, este negócio jurídico consiste num mero acordo de extinção do crédito por suprimentos e devolução de suprimentos pela sociedade ao sócio (ou ex-sócio), independentemente da qualificação jurídica dada pelas partes e que em nada vincula o Tribunal.
8ª. Conclusão esta que, tal como enunciada, não pode deixar de ser julgada contraditória, pois se extinto, como se extinguiu pelo referido acordo, o crédito por suprimentos, por via do mesmo, nenhuma devolução de suprimentos poderia ou teria de ser acordada.
9ª. Antes, nenhuma dúvida existe que a vontade real das partes foi a concretização do direito do ora recorrente vender a sua participação social na PIN (quota e suprimentos), venda essa efectuada em conjunto, na sequência da opção por ele tomada (cfr. ponto 23 da matéria de facto) relativamente às alternativas (exercício do direito de compra ou de venda) que lhe foram atribuídas pelo acordo julgado provado no ponto 8 d) da matéria de facto.
10ª. São, assim, desprovidas de qualquer fundamento objectivo as afirmações do tribunal a quo de que a opção prevista em tal acordo [cfr. ponto 8 d) (i) da matéria de facto] consistia em o ora recorrente ” ...manter a sua participação ou vendê-la pelo valor nominal, sendo reembolsado da totalidade do investimento (suprimentos e outras prestações suplementares de capital) deduzido dos ganhos havidos (dividendos). “ e que “ ... o que sempre o A. pretendeu foi a devolução dos suprimentos, ainda que deduzidos dos dividendos, de modo a que o seu risco no negócio fosse nulo.”
11ª. Tal como ficou provado no ponto 23 da matéria de facto, as vendas da quota e dos créditos foram efectuadas a favor da própria PIN por exigência de P… ficando este como fiador e principal pagador das obrigação a assumir pela PIN.
12ª. Tendo, na sequência, em 18 de Novembro de 2015, sido celebrado o acordo (contrato) entre o ora recorrente e a PIN, pelo qual o primeiro transmitiu à segunda a sua quota no respectivo capital social e o seu crédito por suprimentos sobre a mesma, acordo esse celebrado por escrito autenticado por Notário, que verificou a qualidade de gerente e os poderes do representante da PIN no contrato (P……) pelo acesso à certidão permanente da sociedade e balanço individual em 30 de Setembro da mesma, do qual constava que a sociedade detinha “reservas livres superior ao dobro do contravalor do presente contrato” (Cfr. ponto 24 da matéria de facto e termos de autenticação incorporados no Doc. 2 anexo à carta de resolução).
13ª. Nos termos expressamente acordados o ora recorrente cedeu à PIN, que aceitou, a sua quota por preço igual ao respectivo valor nominal (€1.250,00) e a PIN adquiriu ao ora recorrente e por preço igual ao do respectivo valor nominal (€50.000,00), o crédito por suprimentos sobre a Sociedade contabilizados a favor deste na respectiva conta de suprimentos
14ª. Pelo mesmo acordo (contrato) - (cfr. ponto 25 da matéria de facto) - tendo em atenção que a PIN o não poderia pagar de uma só vez, o A. ora recorrente aceitou receber o referido preço de 50.000,00€ em 3 (três) anos, prorrogáveis por acordo das partes por mais 2 (dois) anos, mediante a entrega imediata de 5.000,00€ e o remanescente, no valor de 45.000,00€, em 36 prestações mensais, iguais e sucessivas de 1.250,00€, com início em Dezembro de 2015 e termo em Novembro de 2018, conforme Anexo I – Acordo de Pagamento e Constituição de Fiança - do contrato CESSÃO DE QUOTA junto como Doc. 2 à carta de resolução.
15ª No mesmo, para garantia do pagamento ao A. ora recorrente do referido preço de € 50.000, o sócio P…. constituiu-se fiador e principal pagador, garantindo com o seu património pessoal a satisfação pontual e integral do crédito do A. e renunciando, para todos os efeitos, ao benefício da excussão prévia (cfr. referido Anexo I – Acordo de Pagamento e Constituição de Fiança - do Doc. 2 junto à carta de resolução e ponto 26 da matéria da facto).
16ª E, tal como ficou escrito no Considerando E) do referido Anexo I – Acordo de Pagamento e Constituição de Fiança - ao acordo (contrato) CESSÃO DE QUOTA, com a celebração do contrato de cessão de quotas, o montante referido no Considerando anterior [o preço então ainda não recebido pelo ora recorrente pela concomitante transmissão à PIN, que adquiriu, do crédito por suprimentos que aquele detivera sobre esta - Cfr. Considerando D) ibid.] passou a constituir “crédito a terceiros” (Cfr. ponto 27 da matéria de facto) .
17ª. Decorre, pois, inequivocamente da matéria de facto julgada provada e antes referida, que o acordo (contrato) celebrado entre o ora recorrente e a PIN visou unicamente dar execução à alternativa julgada provada por que o recorrente optou, a venda da sua participação social na PIN, por virtude da qual, em 18 de Novembro de 2015 os créditos e a quota objecto da venda ingressaram de facto e de direito na titularidade da própria sociedade, extinguindo-se tais créditos por confusão, deixando o ora recorrente de ser sócio da mesma e passando tão só e apenas a ser seu credor pela parte (45.000,00€) do preço da venda dos créditos que a sociedade se obrigou a pagar-lhe nas prestações então acordadas.
18ª. É, assim, desprovida de qualquer fundamento na matéria de facto julgada provada, a invocação pelo Tribunal a quo das regras decorrentes do disposto nos artigos 47º, 48º e 49º do CIRE, de, em caso de insolvência, os créditos dos sócios serem classificados como subordinados e pagos em último lugar, em sede de graduação de créditos e, com base nelas e no disposto nos artigos 280º, nº1, 286º e 289º, nº 1, do Código Civil, concluir que:
“Qualquer previsão contratual que vise afastar este regime de protecção aos credores é sempre nula, não podendo produzir qualquer efeito ab initio, por contrariar disposições legais imperativas, as quais são legalmente afastadas da livre disposição das partes contratantes ...”
“ ..... o considerando E do contrato de cessão de quota, referido no ponto 27 dos factos provados, deve ser considerado nulo e sem qualquer efeito, pois que os créditos por suprimentos não podem assumir diferente natureza (crédito de terceiro) por vontade das partes, em prejuízo dos credores, afastando o regime de graduação de créditos resultante do CIRE.”
19ª. Acresce que o referido acordo (contrato), para além de não violar qualquer norma legal de carácter imperativo (nem o tribunal a quo uma só invoca), foi celebrado em 18 de Novembro de 2015 (data em que se produziram os efeitos jurídicos das transmissões por ele operadas) e o processo de insolvência da PIN iniciou-se em 18 de Agosto de 2017, ou seja, bem mais de um ano depois.
20ª. Pelo que, para além de tal acordo (contrato) ser totalmente válido e eficaz, da sua celebração nenhuma relação de prejudicialidade para com a massa falida da PIN resultou, nem, na carta de resolução, o Administrador da Insolvência a declara ou, contrariamente ao referido pelo tribunal a quo, declara a resolução (ainda que parcial) do mesmo, mas tão só a resolução do ali alegado “reembolso de suprimentos”.
21ª. “Reembolso de suprimentos” que, de facto e de direito inexistiu, porquanto os mesmos, como antes alegado, tendo o A. deixado de ser sócio da PIN em 18 de Novembro de 2015 e vendido a esta a totalidade do seu crédito por suprimentos sobre a mesma, não pode deixar de ser julgado que nessa data tal crédito se extinguiu, passando o A. ora recorrente a ser credor da sociedade tão só e apenas pelo montante do preço da venda, nos termos acordados.
22ª. Bem como deve ser julgado que nenhum dos pagamentos feitos pela PIN ao ora recorrente pretendidos resolver pelo Administrador da Insolvência teve, de facto ou de direito, a natureza de “reembolso de suprimentos” ou de “devolução de suprimentos a sócio (ou ex-sócio)”, como erradamente julgou o tribunal a quo, mas, sim, de “pagamento de preço de contrato de compra e venda de quota e de compra e venda de crédito por suprimentos entre o A. e a sociedade Insolvente, em termos acordados”.
23ª. O Tribunal a quo, com base no simples facto de o A. ora recorrente ter sido sócio da insolvente entre 14/2/2014 e 18/11/15 e o processo de insolvência se iniciou em 18/8/2017, declarou que o A. é considerado pessoa especialmente relacionada com a insolvente, pois foi sócio nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência nos termos enunciados no artigo 49º, nº 2, al. a) do CIRE, considerando ser irrelevante que o A. não responda legalmente pelas dívidas da PIN, sociedade de responsabilidade limitada, “ .... pois a referência no art.º 49.º, n.º 2, al. a), do CIRE a pessoas que “... membros que respondam legalmente pelas suas dívidas...” refere-se a “membros” e não a “sócios”, qualidade referida no início do preceito sem qualquer outro requisito”.
24ª. Ora, quer a doutrina, quer a jurisprudência, ao longo dos anos tomaram posição, nem sempre coincidente, na determinação se a verificação das circunstâncias estabelecidas pelo art.º 49º, nº 2, al. a), do CIRE tinha natureza taxativa ou se podiam ainda ser consideradas outras.
25ª. O que forçou o legislador a tomar posição sobre a interpretação a dar à referida norma.
26ª. Assim, o Governo, através da Proposta de Lei nº 115/XIV/3ª, no sentido da clarificação pontual de aspectos processuais ou substantivos sobre os quais há imprecisão na lei e dissenso na doutrina ou jurisprudência, do CIRE, destacando o esclarecimento da natureza taxativa do elenco das pessoas especialmente relacionadas, propôs e a Assembleia da República aprovou a alteração, entre outros, do nº 2 artigo 49º do CIRE.
27ª. Disposição esta que, pela Lei nº 9/2022 de 11 de Janeiro, passou a ter a seguinte redacção: 2 - São exclusivamente considerados especialmente relacionados com o devedor pessoa coletiva: (…)
28ª. E que nos termos do artigo 10º (Regime transitório) da Lei 9/2022, passou a ser imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor”, ou seja, 90 dias após a sua publicação (cfr. Artº 12º ibid.)
29ª. Tendo o ora recorrente sido sócio minoritário da PIN entre 14/2/2014 e 18/11/15, nela jamais desempenhou funções de gerência, ainda que de facto e nunca foi responsável pessoal e ilimitadamente pela generalidade das suas dívidas nem por elas responde legalmente, inexiste fundamento legal para que o tribunal a quo o tenha qualificado na sentença ora recorrida pessoa especialmente relacionada com a insolvente.
30ª. Acresce ser inequívoco, pelos próprios termos da carta resolutiva, que a resolução (condicional e incondicional) declarada pelo Administrador da Insolvência incidiu sobre os ali alegados “reembolsos de suprimentos” entre Novembro de 2015 e Julho de 2016 (resolução condicional), entre Agosto de 2016 e Dezembro de 2016 (resolução incondicional) e em 23 de Fevereiro de 2017 (resolução incondicional).
31ª. Mas, repete-se, resulta inequivocamente da matéria de facto julgada provada e do acordo (contrato) CESSÃO DE QUOTA e seu Anexo I – Acordo de Pagamento e Constituição de Fiança - junto como Doc. 2 à carta de resolução que nenhum dos pagamentos feitos pela PIN ao ora recorrente pretendidos resolver pelo Administrador da Insolvência teve, de facto ou de direito, a natureza de “reembolso de suprimentos” mas, sim, de “pagamento de preço de contrato de compra e venda de quota e de compra e venda de crédito por suprimentos entre o A. e sociedade Insolvente, em termos acordados”.
32ª. E, igualmente se repete, o referido acordo (contrato), para além de não violar qualquer norma legal de carácter imperativo e ser totalmente válido e eficaz, foi celebrado em 18 de Novembro de 2015 (data em que se produziram os efeitos jurídicos das transmissões por ele operadas) e da sua celebração nenhuma relação de prejudicialidade para com a massa falida da PIN resultou.
33ª. Assim, devendo ser julgada verificada a contraprova feita pelo ora recorrente, impugnante, de que a PIN (sociedade insolvente) não praticou relativamente àquele qualquer acto de “reembolso de suprimentos”, esta contraprova, só por si, justificava que o tribunal a quo declarasse a ilicitude e ineficácia da declaração de resolução, como se espera venha a ser declarada por esse tribunal de recurso.
34ª. Por outro lado, o tribunal a quo deu como provado que os pagamentos efectuados pela PIN ao ora recorrente entre Novembro de 2015 e Julho de 2016, tiveram lugar por conta do preço pelo qual a PIN adquiriu ao ora recorrente os créditos deste sobre ela (cfr. pontos - 2 9 - 25 e 28 dos factos provados).
35ª.Também, relativamente aos pagamentos efectuados pela PIN ao ora recorrente entre Agosto de 2016 e Dezembro de 2016, o tribunal a quo deu como provado que esses pagamentos tiveram lugar por conta do preço pelo qual a PIN adquiriu ao ora recorrente os créditos deste sobre ela (cfr. pontos 28 e 29 dos factos provados).
36ª. Igualmente, relativamente ao pagamento efectuado pela PIN ao ora recorrente em 23 de Fevereiro de 2017, o tribunal a quo deu como provado que o mesmo teve lugar para pagamento do valor então em dívida do preço pelo qual adquiriu ao ora recorrente os créditos deste sobre ela, tendo recebido deste, em troca, a declaração de quitação integral que se encontra junta como Doc. 7 à carta de resolução, passada, como dela própria consta, no interesse da sociedade, de P…., da sociedade transmissária do estabelecimento e dos sócios desta última. (cfr. ponto 34 dos factos provados e a sobredita declaração de quitação).
37ª. E, relativamente ao contexto em que teve lugar este último pagamento, o tribunal a quo mais julgou provados os factos que constituem os pontos 29 a 35 da Matéria de facto, que se dão por reproduzidos:
38ª. Estando provado que todos os referidos pagamentos entre Novembro de 2015 e Fevereiro de 2017 foram efectuados pela PIN ao ora recorrente em cumprimento da obrigação contratual por aquela assumida em 18 de Novembro de 2015 de pagamento do preço pelo qual nessa data adquiriu ao ora recorrente os créditos deste sobre ela e, sendo indiscutível a validade e eficácia do contrato pelo qual o recorrente vendeu à PIN aqueles mesmos créditos;
39ª. E não sendo o A. pessoa especialmente relacionada com a insolvente, é forçoso concluir que os pagamentos efectuados entre Novembro de 2015 e Dezembro de 2016 são insusceptíveis de resolução, com fundamento no disposto no artigo 120º, nºs 3 e 4, com referencia ao artigo 121º, nº 1, als. f) e i) do CIRE.
40ª. Já quanto ao pagamento do remanescente do preço, no montante de 28.750,00€ em 23 de Fevereiro de 2017, sendo o mesmo insusceptível de resolução, com fundamento no disposto no artigo 121º, nº 1, al. i) do CIRE, há que distinguir, nos termos da alínea f) do n.º 1 da mesma disposição legal, as prestações do preço vencidas e não pagas até àquela data, as que se venceriam entre a mesma e a data do início do processo da insolvência e as que se venceriam após este início.
41ª. Quanto às primeiras, em 23 de Fevereiro de 2017 estavam em dívida as prestações do preço vencidas em 1 de Dezembro de 2016, 1 de Janeiro e 1 de Fevereiro de 2017, no valor total de 3.750,00€.
42ª. Quanto às segundas, vencer-se-iam até 18 de Agosto de 2017 as prestações do preço devidas em cada primeiro dia dos meses de Março, Abril, Maio, Junho, Julho e Agosto de 2017, no total de 7.500,00€.
43ª. E, quanto às últimas, vencer-se-iam após o início do processo de Insolvência as prestações do preço devidas em cada primeiro dia dos meses de Setembro de 2017 a Novembro de 2018, no valor total de 18.750,00€ das quais a insolvente só pagou ao A., contra a quitação de todas elas, a quantia de 17.500,00€.
44ª. Assim, e quanto muito, só seria susceptível de resolução, com fundamento no disposto no artigo 121º, nº 1, al. f) do CIRE, este último pagamento efectuado pela insolvente ao A. em 23 de Fevereiro de 2017 na parte relativa às referidas últimas prestações que se venceriam posteriormente ao início do processo de insolvência, ou seja, o referido valor de 17.500,00€.
45ª. Mas, atento o circunstancialismo julgado provado que rodeou o respectivo pagamento (cfr. pontos 29 a 35 da matéria de facto) e o facto de a sociedade transmissária do estabelecimento da recorrida ter integralmente cumprido as obrigações que para ela decorreram do acordo denominado “Contrato Particular de Cedência de Posição para Exploração de Espaço Comercial”, junto aos presentes autos, incluindo a obrigação de pagamento das responsabilidades da sociedade no contrato de locação financeira mobiliária junto da Caixa de Crédito Agrícola (ex-BANIF), não pode deixar de ser julgado que aquele referido último pagamento nenhum prejuízo causou à massa falida.
46ª. Os factos julgados provados, todos eles evidenciam a boa fé do A. ora recorrente nos actos, acordos e recebimentos praticados, não lhe sendo exigível, como parece pretender o tribunal a quo, a alegação e prova de quaisquer outros de diferente natureza, incluindo factos negativos, destinados à prova da sua boa fé
47ª. Consequentemente, o tribunal a quo ao julgar improcedente a acção, fê-lo sem tomar a devida consideração pela matéria de facto adquirida, extrair subjectivamente dos factos julgados provados presunções que nem a lei nem as regras de experiência permitem extrair e viola, por erro de interpretação e de aplicação o disposto nos artigos 49ª, nº 2, 120º, nºs 2, 3 e 4º e 121º, nº 1, alíneas f), g) e i) do CIRE, bem com as demais disposições substantivas em que se louva.
Nestes termos e nos que doutamente forem supridos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e a acção ser julgada procedente e com as legais consequências».

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foi admitido o recurso interposto, e, colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

*

II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, conforme decorre dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, as questões que cumprem decidir neste recurso prendem-se em aferir da invocada ilicitude da resolução operada pelo Administrador da Insolvência, aferindo-se se houve reembolso de suprimentos a sócio (ou ex-sócio), como o entendeu a decisão recorrida, ou pagamento de preço de contrato de compra e venda de quota e de compra e venda de crédito por suprimentos entre o autor e sociedade Insolvente, nos termos acordados, como defende o apelante.

***
III-/ Fundamentação de facto:
Na decisão da 1ª instância foram considerados os seguintes factos:
1- A R. Massa Insolvente, representada pelo seu Administrador, enviou ao ora A. carta registada com aviso de receção datada de 2 de fevereiro de 2018 e recebida no dia 12 subsequente, pela qual veio declarar:
a) “a resolução incondicional do reembolso de suprimentos no montante de 28.750,00€ efetuado através do cheque n.º 61… datado de 23 de fevereiro de 2017”;
b) “a resolução incondicional do reembolso de suprimentos no montante total de 6.250,00€ entre agosto de 2016 e dezembro de 2016”; e ainda
c) “a resolução condicional do reembolso de suprimentos no montante total de 13.750,00€ entre novembro de 2015 e julho de 2016”.
(cfr. Doc. 1 junto com a petição)
2- Nos termos da mesma carta, “a resolução sobredita é efetuada ao abrigo das alíneas f) e i) do n.º 1 do artigo 121º do CIRE, bem como ao abrigo dos n.ºs 3 e 4 do artigo 120º do CIRE, em respeito pela forma e prazo previstos no artigo 123º do CIRE”.
3- Com a alegação de que “... no estrito cumprimento da lei, deverão produzir-se os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 126º do CIRE”, concluiu que o ora A. deve “transferir para a conta da Massa Insolvente com o IBAN PT… 3 o montante total de 48.750,00€ que indevidamente recebeu”.
I – A AQUISIÇÃO PELO A. DE UMA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA PIN E O FINANCIAMENTO POR ESTE DA ATIVIDADE DA SOCIEDADE
4- A insolvente foi constituída em maio de 2012, sob a forma de sociedade unipessoal, por P…, tendo como objeto social “atividades hoteleiras” (cfr. certidão do registo comercial).
5- Para a realização do seu objeto, a insolvente veio a abrir no dia 26 de novembro de 2013, na Av. (…), em Lisboa, um restaurante/pastelaria/padaria denominado “…”, estabelecimento aquele para o qual a insolvente realizou importantes obras na loja onde o instalou, obras essas pelas quais o A. foi o arquiteto responsável.
6- No decurso das referidas obras, no verão de 2013, o sócio único da PIN, P…, fez saber ao A. ser-lhe necessário abrir uma parte menor do capital da sociedade a um investidor que se dispusesse a facultar a esta os meios de que então necessitava para a conclusão da obra em curso e abertura ao público do estabelecimento e bem assim para suportar os custos dos financiamentos já obtidos.
7- E, na mesma ocasião, convidou o A. para ser ele a pessoa do investidor de que carecia, convite que o A. aceitou.
8- Foi então acordado entre o A. e P…:
a) a aquisição pelo A. de uma quota no valor nominal de 1.250,00€ correspondente a 25% do capital social, deixando a PIN de ser sociedade unipessoal;
b) a participação do A. igualmente em 25% no investimento de 200.000,00€ efetuado e a efetuar no estabelecimento “…”, ou seja, 50.000,00€, sendo o restante da responsabilidade de P…;
c) a entrega a P…, e a título devolutivo, da quantia de 10.000,00€ correspondente a 25% de um empréstimo feito por aquele à sociedade para a constituição de um depósito a prazo no valor de 40.000,00€ junto do BANIF como garantia do cumprimento do leasing mobiliário ali contraído;
d) a atribuição ao A. do direito de compra ou de venda a exercer, sob pena de caducidade, até ao final do segundo ano de funcionamento do estabelecimento “….”, ou seja, até 26 de Novembro de 2015, sendo que, (i) exercida a primeira opção, o A. reforçaria a sua participação social bem como, em igual proporção, o valor do seu investimento na sociedade até 50% do capital social e do valor de referência acordado de 200.000,00€, e, (ii) exercida a segunda opção, o A. apartar-se-ia da sociedade recebendo, para além do valor nominal da sua quota, o valor do seu investimento inicial correspondente aos referidos 50.000,00€ acrescido de eventuais reforços de tesouraria efetuados e deduzido de eventuais dividendos recebidos.
9- Em concretização do acordado, em 22 de novembro de 2013, o A. sacou e entregou a P…. um cheque à ordem deste no valor de 10.000,00€ (cfr. Doc. 2 junto com a petição).
10- Valor esse que P…., na qualidade de gerente da PIN, declarou haver recebido e ir depositar na conta da PIN “com vista a habilitar a referida sociedade com meios financeiros para a satisfação de necessidades imediatas de tesouraria, e por conta da participação social e investimento financeiro que o primeiro está em vias de adquirir e efetuar na referida sociedade, aquisição cuja formalização está neste momento em curso.” (cfr. Doc. 3 junto com a petição).
11- E mais declarou que, naquela data, o A. já havia efetuado pagamento de faturas emitidas à sociedade no montante total de 6.144,84€ (cfr. Doc. 3 junto com a petição).
12- Posteriormente, em 10 de dezembro de 2013, o A. voltou a sacar e entregar a P…. (…) um segundo cheque à ordem deste no valor de 10.000,00€ (cfr. Doc. 4 junto com a petição).
13- Quantia essa que o mesmo, na qualidade de gerente da sociedade, declarou haver recebido e ir depositar na conta da PIN “destinado a habilitar a referida sociedade com um reforço de meios financeiros para a satisfação de necessidades imediatas de tesouraria, e por conta da participação social e investimento financeiro que o primeiro irá adquirir e efetuar na referida sociedade, aquisição cuja formalização está ainda na presente data em curso.” (cfr. Doc. 5 junto com a petição).
14- Tendo na mesma data e documento declarado que à data o A. já havia efetuado pagamentos de faturas emitidas à sociedade no montante total de 6.500,00€ (cfr. Doc. 5 junto com a petição).
15- Finalmente, com a formalização da entrada do A. na sociedade, mediante a assinatura, em 14 de fevereiro de 2014, do contrato de divisão, cessão de quota e alteração integral do contrato adiante junto como Doc. 6, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o A. sacou e entregou à PIN dois cheques passados à ordem desta:
a) Um (cheque n.º 92…), no valor de 1.250,00€, correspondente ao valor nominal da quota adquirida por igual valor;
b) e o outro (cheque n.º 92...), no valor de 23.850,00€, correspondente ao remanescente do montante do investimento inicial acordado nos termos supra descritos, considerando as entregas já efetuadas e mencionadas supra.
(cfr. Doc 7 junto com a petição)
16- Além dos referidos cheques, o A. sacou e entregou a P…., na mesma data, um cheque (n.º 92…) passado à ordem deste no valor de 10.000,00€ em cumprimento do acordo referido na al.) c) do art.º 11º supra (cfr. Doc 7).
17- Os montantes entregues pelo A. para o financiamento da sociedade referidos supra, e que totalizavam, à data de 28 de Fevereiro de 2014, mais de 50.350,00€, foram lançados integralmente na conta de suprimentos do A., conforme resulta do Extrato da Conta de Suprimentos do A. datado de 31.12.2014 junto como Doc. 3 à carta de resolução.
18- Certo é que, ainda durante o ano de 2014, a sociedade restituiu ao A. as importâncias de 4.469,84€, 1.051,97€ e 1.249,49€, a título de “reembolso de suprimentos”, mediante cheques emitidos por esta respetivamente em 1 de abril, em 10 de julho e em 11 de Setembro de 2014 (cfr. Docs. 8, 9, 10 juntos com a petição).
19- E, nesta última data, 11 de setembro de 2014, a sociedade emitiu e entregou ao A. um cheque, por conta de P…., no montante de 10.000,00€ para liquidação do montante, de igual valor, que o A. havia entregue em 14 de fevereiro de 2014 a este último como comparticipação no depósito a prazo supra mencionado, depósito este que havia sido resgatado pela sociedade.
(cfr.Docs.10 e Doc. 11 juntos com a petição).
20-Valor este que a contabilidade da PIN levou a débito da conta de suprimentos do A. (cfr. Doc. 3 Anexo à Carta de Resolução).
21- Enquanto foi sócio da PIN, quer em 2014 quer em 2015, o A. efetuou, por conta da sociedade o pagamento de outras faturas, de valor superior a 2.000,00€, a esta emitidas pelos seus fornecedores e que se encontram na posse da mesma.
22- E, em 6 de maio de 2015, emprestou ainda à sociedade, a título de suprimentos, a quantia de 3.000,00€ (cfr. Docs. 12 e 13 juntos com a petição).
II – A VENDA DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL E O CRÉDITO POR SUPRIMENTOS DETIDOS PELO A. NA PIN
23- Antes de decorridos os dois primeiros anos após a abertura do estabelecimento comercial da PIN (“…”), o A. exerceu a opção de se apartar da sociedade, mediante a venda da sua quota bem como do seu crédito por suprimentos sobre a mesma.
23- Por exigência de P…, as vendas foram efetuadas a favor da própria sociedade, ficando, porém, aquele como fiador e principal pagador das obrigações por esta a assumir para com o A.
24- Assim, por acordo entre a PIN e o A., datado de 18 de novembro de 2015, com a epígrafe CESSÃO DE QUOTA, o A. declarou ceder a sua quota à PIN por valor igual ao do respetivo valor nominal de 1.250,00€, já recebido. Mais declararam que a PIN adquire, por preço igual ao seu valor nominal, o crédito por suprimentos sobre a Sociedade no valor de 50.000,00€ (cfr. Doc. 2 Anexo à Carta de resolução).
25- Preço este de 50.000,00€ que, tendo em atenção que a PIN não poderia pagar de uma só vez, o A. aceitou receber em 3 (três) anos, prorrogáveis por acordo das partes por mais 2 (dois) anos, mediante a entrega imediata de 5.000,00€ e o remanescente, no valor de 45.000,00€, em 36 prestações mensais, iguais e sucessivas de 1.250,00€, com início em Dezembro de 2015 e termo em Novembro de 2018, conforme Anexo I do contrato de cessão de quota junto como Doc. 2 à carta de resolução.
26- E, para garantia do pagamento ao A. do referido preço, o sócio P…. constituiu-se fiador e principal pagador, garantindo com o seu património pessoal a satisfação pontual e integral do crédito do A. e renunciando, para todos os efeitos, ao benefício da excussão prévia (cfr. referido Anexo I – Acordo de Pagamento e Constituição de Fiança - do Doc. 2 junto à carta de resolução).
27- Resulta do Considerando E no referido contrato que com a celebração do contrato de cessão de quotas, o crédito por suprimentos passou a constituir “crédito a terceiros”.
28- As prestações do pagamento do preço da venda à sociedade dos créditos do A. relativas aos meses de dezembro de 2015 a novembro de 2016 foram sendo cumpridas por aquela, nem sempre nos meses dos respetivos vencimentos.
29- Em janeiro de 2017, estando em dívida a prestação de Dezembro de 2016, P….  informou o A. que tinha iniciado processo de venda do estabelecimento comercial da sociedade (“…”) o qual ficaria concluído o mais tardar até final do mês de março seguinte.
30- Mais fez saber ao A. que os compradores iriam assumir a generalidade das obrigações da PIN e, em concreto, as responsabilidades da sociedade no contrato de locação financeira mobiliária junto da Caixa de Crédito Agrícola (ex-BANIF).
31- Mas excluíam daquelas obrigações a dívida da sociedade para com o A., que pretendiam ficasse integralmente paga, pois não quereriam correr o risco de o A. vir pôr em causa a transmissão do estabelecimento a favor deles, compradores.
32- E, sendo interesse da sociedade e dele, P…., proceder à projetada transmissão, propunha ao A. o pagamento do referido montante então em dívida pela sociedade para com este de uma só vez, o que, naturalmente, o A. declarou aceitar.
33- Assim, em 22 de fevereiro de 2017, a PIN recebeu da transmissária do estabelecimento, a “Pastelaria (….), Lda.”, a título de sinal do preço acordado para a transmissão, igual importância de 28.750,00€.
34- Sinal esse que, em 23 de fevereiro de 2017, a PIN utilizou para pagar o valor em dívida ao A., tendo recebido deste, em troca, a declaração de quitação integral que se encontra junta como Doc. 7 à carta de resolução, passada, como dela própria consta, no interesse da sociedade, de P…, da sociedade transmissária do estabelecimento e dos sócios desta última.
35- Tendo no dia seguinte, 24 de fevereiro de 2017 - e não no dia 20 desse mesmo mês conforme consta do Doc. 2 junto à pi do processo de insolvência -, sido assinado o contrato definitivo por via do qual a PIN transmitiu à referida cessionária o estabelecimento e seus elementos integrantes e dela recebeu o remanescente do preço para o efeito acordado, i.e., deduzido do sinal já pago.
III – A CONTABILIZAÇÃO PELA SOCIEDADE DOS CRÉDITOS POR SUPRIMENTOS DO A.
36- O A. jamais desempenhou funções de gerência, ainda que de facto, da PIN, cabendo a mesma, bem como a gestão administrativa, financeira e comercial da sociedade, desde sempre e sem solução de continuidade, ao sócio, titular de 75% do capital social, P… (…).
37- Assim, o A. é – sempre foi - em absoluto estranho às decisões e opções que terão estado na origem da abertura em seu nome da conta …533 (prestações suplementares) e dos movimentos contabilísticos nesta e na conta …202 (suprimentos) levados a cabo pela contabilidade da sociedade.
38- Decisões e opções aquelas da exclusiva responsabilidade do gerente e do contabilista da sociedade.
39- O A. não autorizou nem foi deliberado em Assembleia Geral a conversão contabilística de parte (23.850,00€) dos seus referidos créditos em prestações suplementares de capital.
40- O A. foi sócio minoritário da insolvente entre 14/2/2014 e 18/11/15, mas nunca foi responsável pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas da insolvente nem por elas responde legalmente.
41- O processo de insolvência da PIN iniciou-se em 18/8/2017.

Factos não provados relevantes: Inexistem.

***

IV-/ Do mérito do recurso:
Como resulta dos autos, por via da presente acção, o A., ora recorrente, impugnou judicialmente a declaração do administrador da insolvência, em representação da massa insolvente da PIN, efetuadas ao abrigo das alíneas f) e i) do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE, bem como ao abrigo dos n.ºs 3 e 4 do artigo 120.º do CIRE, de:
(i) resolução incondicional do reembolso de suprimentos no montante de 28.750,00€ efetuado através do cheque n.º 6160317153 datado de 23 de fevereiro de 2017;
(ii) resolução incondicional do reembolso de suprimentos no montante total de 6.250,00€ entre agosto de 2016 e dezembro de 2016; e ainda de
(iii) resolução condicional do reembolso de suprimentos no montante total de 13.750,00€ entre novembro de 2015 e julho de 2016.

Vejamos então.
A resolução em benefício da massa insolvente, regulada nos artigos 120.º a 126.º do CIRE, consubstancia um mecanismo legal que se destina a prevenir os atos que prejudiquem a integridade da massa insolvente, sendo o ato resolutivo da competência do administrador da insolvência, que, levado a cabo, pode ser impugnado judicialmente pelas pessoas por ele afetadas.
Por ser assim, resulta com clareza da lei, que com aquela resolução se obtém a reconstituição do património do devedor, destruindo-se os atos que lhe são prejudiciais, ainda que limitados ao período de dois anos anteriores à data de início do processo de insolvência, permitindo-se, desta forma, a recuperação dos bens que dele saíram.

É indiscutível que o direito de resolução é um direito potestativo de natureza extintiva, que implica que as partes regressem à situação em que se encontrariam se não tivessem celebrado o negócio, assim se operando a extinção do vínculo contratual, sendo que, quanto aos seus efeitos, em termos gerais, o artigo 433.º do CC equipara a resolução à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com eficácia retroativa, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 434.º n.º 1 e 289.º n.º 1 do mesmo código.
Neste enquadramento legal, e em termos genéricos, dissolvido o vínculo contratual, por resolução, cada uma das partes terá então de restituir à contraparte tudo o que indevidamente mantenha em consequência de tal cessação.

No caso concreto, o AI apelou, para fundamentar a resolução levada a cabo, aos n.ºs 3 e 4 do artigo 120.º do CIRE, que determinam que «(…) 3 - Presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os atos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados. 4 - Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.(…) e nas alíneas f-) e i-) do artigo 121.º do CIRE, que assim dispõem: «São resolúveis em benefício da massa insolvente os atos seguidamente indicados, sem dependência de quaisquer outros requisitos: (…) f) Pagamento ou outros actos de extinção de obrigações cujo vencimento fosse posterior à data do início do processo de insolvência, ocorridos nos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência, ou depois desta mas anteriormente ao vencimento; (….) i) Reembolso de suprimentos, quando tenha lugar dentro do mesmo período referido na alínea anterior (…)».
Como se verifica, o n.º 3 do artigo 120.º tem a particularidade de considerar sempre prejudiciais os atos previstos pelo artigo 121.º, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados, estabelecendo assim presunção inilidível da prejudicialidade de tais atos.
A resolução não está assim condicionada - e por isso não exige - a verificação ou concreta demonstração da prejudicialidade do ato nem da má fé da outra parte no negócio prejudicial celebrado pelo devedor, que o legislador presumiu iuris et de iure prejudicial à massa insolvente, prescindindo da prova - e da alegação - da prejudicialidade do ato e da má fé do terceiro.

No mais, a má fé, enquanto pressuposto da resolução dos negócios da insolvente, diz-nos o n.º 5 do artigo 120.º, tem como requisitos o conhecimento, pelo terceiro e à data do ato, de qualquer das seguintes circunstâncias: a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência; b) Do carácter prejudicial do ato e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente; c) Do início do processo de insolvência. Também quanto à má fé o legislador estabeleceu uma presunção, agora ilidível, quanto a atos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com a insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.

Revertendo aos autos verificamos que o recorrente não aceita as resoluções operadas, argumentando, agora em sede de recurso, e em suma, que:
(1) as quantias pagas pela PIN nas datas indicadas pelo administrador da recorrida, não o foram a título de reembolsos de suprimentos, mas sim a título de pagamento do preço da venda efetuada em 18/11/2015, pelo ora recorrente à PIN, da totalidade dos créditos que sobre a mesma então detinha, em conjunto com a venda da quota de 1.250,00€ representativa do respetivo capital social de que o recorrente foi titular entre 14/02/2014 e 18/11/2015;
 (2) o ora recorrente, à data dos pagamentos efetuados, não era pessoa especialmente relacionada com a PIN, nem os pagamentos recebidos, no contexto em que ocorreram, diminuíram, frustraram, dificultaram, puseram em perigo ou retardaram a satisfação de quaisquer credores da insolvência, não podendo, sequer presumivelmente, serem considerados como prejudiciais para a massa insolvente e, muito menos, que o recorrente com o seu recebimento, tivesse agido de má-fé, nem esta se possa igualmente presumir.

Vejamos então, conscientes de que tudo se resume, pois, a configurar juridicamente o acordo realizado em 18/11/2015, através do qual o ora recorrente declarou ceder à PIN a sua quota no respetivo capital social, por preço igual ao respetivo valor nominal (€1.250,00) e o seu crédito por suprimentos sobre a mesma por preço igual ao do respetivo valor nominal (€50.000,00).
No entender do recorrente, como vimos, o acordo (contrato) celebrado em 18/11/2015 visou unicamente dar execução à alternativa por que o recorrente optou, de venda da sua participação social na PIN, assim ingressando naquela data a quota objeto da venda e os aludidos créditos na titularidade da própria sociedade, extinguindo-se tais créditos por confusão, deixando o ora recorrente de ser sócio da mesma e passando tão só e apenas a ser seu credor pela parte (45.000,00€) do preço da venda dos créditos que a sociedade se obrigou a pagar-lhe nas prestações então acordadas.

Assim não o entendeu a decisão recorrida, o que acompanhamos.
Vejamos porquê.
Da leitura do contrato outorgado entre as partes resulta que, pelo mesmo contrato, o recorrente cedeu a sua quota e cedeu também o «crédito por suprimentos» que detinha sobre a PIN.
É esta cessão que nos interessa agora – de créditos por suprimentos – pois foi nessa parte que o AI procedeu à resolução do dito negócio.
Ora, uma cessão de créditos, como é sabido, constituindo uma forma de transmissão de obrigações pode definir-se, como decorre do artigo 577.º do Código Civil, como o contrato pelo qual o credor, designado por cedente, transmite a terceiro, a que se dá o nome de cessionário, independentemente do consentimento do devedor cedido, a totalidade ou uma parte do seu crédito.
A aludida forma de transmissão das obrigações pressupõe a existência de um negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou de parte de um crédito, podendo esse negócio consistir numa compra e venda (artigo 874º do CC).
Antunes Varela (na obra “Das Obrigações em Geral, Vol. II, 3ª ed., Almedina, 266-281), diz-nos que a validade da cessão depende, contudo, da verificação de requisitos comuns e outros especiais, sendo requisitos específicos da transmissão do crédito: a) Cedibilidade do crédito, sendo certo que a incedibilidade do crédito pode resultar da lei, de convenção ou da própria natureza da prestação; b) Carácter não litigioso do direito cedido, quanto a determinadas pessoas; c) Notificação ou aceitação da cessão, ou conhecimento dela por parte do debitor cessus; d) A efectiva constituição ou aquisição do crédito na cessão de créditos futuros.
Dispõe, ainda, o artigo 582.º do CC no seu n.º 1 que “na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”. A cessão, tal como resulta do artigo 583.º n.º 1 do CC, produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite.
Em suma, ocorre a cessão de um crédito quando o credor, mediante negócio jurídico, o transmite a terceiro, operando-se assim a substituição de credor originário por outra pessoa – modificação subjetiva da obrigação –, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional (Mário Júlio de Almeida Costa, Noções Fundamentais de Direito Civil, 4ª Edição, págs. 179 e segs).
No entender de Assunção Cristas (Transmissão Contratual do Direito de Crédito, págs. 77 e 78, com citação de diversos autores) a cessão de créditos não é em si um contrato, antes um efeito de um negócio jurídico causal de contornos e de âmbito variável.

Aqui chegados, e lendo com cuidado o contrato celebrado entre as partes, independentemente da qualificação jurídica e dos termos que as mesmas nele possam ter consignado, uma conclusão se impõe retirar: a obrigação decorrente da cessão do crédito por suprimentos não é viável, pois que, nos autos, o obrigado à prestação (PIN) e o beneficiário dela (PIN) são a mesma pessoa jurídica, sendo evidente que o crédito e a dívida não podem estar reunidos num mesmo património. E a tanto é indiferente que se tenha consignado no contrato que com a sua celebração o crédito por suprimentos passou a “constituir um crédito a terceiros”. Então a sociedade que era responsável pelo pagamento desse crédito – pelo reembolso dos suprimentos – com o contrato passa a ser a credora desse crédito, e vai exigir o seu pagamento a quem? A si própria? E o que vai a sociedade pagar ao autor? O que é que o impugnante lhe vendeu para a sociedade ser devedora de um preço?
Se o contrato valesse por si teria que operar-se a extinção do crédito e da dívida pela forma natural de extinção das obrigações prevista no artigo 868.º CC, em face da confusão ocorrida entre a pessoa do credor e do devedor.
Veja-se, a este propósito e neste sentido, a acórdão do STJ, de 11/03/2004, relatado por Lucas Coelho, que aqui seguimos, assim sumariado «I - Elemento típico da cessão de créditos na configuração do artigo 577.º do Código Civil é que o cessionário seja um «terceiro», diferente, por conseguinte, do próprio devedor; II - É consequentemente nulo, à luz do artigo 280.º, n.º 1, por contraditoriedade do seu objecto com o n.º 1 do artigo 577.º, o negócio de cessão pelo qual o credor transmite o crédito ao devedor em contrapartida de certo preço; III - Aliás, a transmissão do crédito nestas condições implicaria a cumulação das qualidades de devedor e de credor da mesma obrigação na esfera do pretenso cessionário, com a consequente extinção do crédito e da dívida por confusão (artigo 868.º); IV - Pelas razões subsidiariamente indicadas em II e III, o crédito objecto da virtual cessão não pode ser oposto em compensação a outro credor do pretenso cessionário, por inexistência em qualquer caso de crédito algum susceptível de compensação nos termos do artigo 847.º, n.º 1, alínea a); V - Maxime, quando a posição do credor ao qual é oposta a compensação deriva de exercício do direito de regresso por cumprimento acessório, como fiador, de obrigações contratuais do pretenso cessionário, e a sua posição de devedor do crédito virtualmente cedido emerge de condenação acessória em precedente acção, como fiador do alegado cessionário no mesmo contrato, a satisfazê-lo ao pretenso cedente», e ainda o Acórdão de 20/10/2005, também do STJ, relatado por Oliveira Barros, e assim, em parte, sumariado «I- Enquanto vínculo inter-subjectivo que é, a obrigação pressupõe a alteridade dos sujeitos que estão na posição de credor e devedor. II - Por isso, desde que o adstrito à prestação e o beneficiário dela são os mesmos, isto é, quando o crédito e a dívida se reúnem na mesma pessoa, a obrigação deixa de poder subsistir. III - Impossível a conciliação, em tais condições, das qualidades de credor e devedor, a coincidência dessas qualidades na mesma pessoa, como sucederia nos autos, operaria a extinção do crédito e da dívida pela forma natural de extinção das obrigações prevista no artigo 868.º C.Civ., plenamente justificada pela evidência de que ninguém pode ser credor de si mesmo, nem dever a si mesmo (…) ».

Na vontade das partes, o autor iria receber 50.000,00 euros, valor nominal do seu crédito por suprimentos, donde resulta que aquela cessão não tinha como objetivo a extinção da obrigação da PIN perante o autor na devolução das quantias por estes entregues à sociedade a título de suprimentos.
Conforme decorre dos atos que anteciparam e prepararam a celebração do contrato de 18/11/2015, caso o autor optasse por sair da sociedade – como veio a acontecer – o mesmo teria de ser reembolsado pela totalidade do seu investimento, valor nominal da sua quota, investimento inicial e quaisquer reforços de tesouraria.
Donde, daqui resulta que o que sempre o autor pretendeu foi a devolução dos suprimentos, sendo indiferente a qualificação jurídica utilizada pelas partes no contrato, onde aludem a «venda de crédito por suprimentos do A. à sociedade e recebimento do preço da venda pelo A», pois que, sob a capa de pagamento do preço acordado ao autor, a sociedade procedeu ao reembolso dos suprimentos que aquele lhe fez.
Acompanhamos, pois, o raciocínio espelhado na sentença recorrida, ao consignar que «Destarte, não se pode aceitar a argumentação do A. de que tendo deixado de ser sócio da sociedade em 18 de novembro de 2015 e vendido a esta a totalidade do seu crédito por suprimentos sobre a mesma, a partir dessa data se extinguiu o crédito por suprimentos do A. sobre a sociedade, o qual passou para a titularidade desta, restando ao A. o direito ao recebimento do respetivo preço. Tal entendimento abriria porta a simples atos de fraude à lei, em detrimento das normas imperativas de proteção dos credores sociais».
Ora, nos termos do artigo 243.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais (CSC), «Considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência».
Decretada a insolvência, o credor por suprimentos continua a ter direito a ser reembolsado e não perde tal direito por não ter sido fixado prazo para o reembolso. Porém, o seu pagamento deve respeita as regras do processo de insolvência, com a tutela dos interesses dos demais credores sociais, tutela essa que é conseguida pelo conjunto de medidas previstas no artigo 245.º, n.ºs 2 a 6, do CSC, e 48.º al. g) e 177.º do CIRE, que implicam que o reembolso por suprimentos, como crédito subordinado que é, apenas pode ocorrer depois de estarem inteiramente satisfeitas as dívidas da sociedade para com os demais credores.
Como é consabido, o processo de insolvência liquidatário traduz-se em processo de execução universal e concursal, que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação do património para afetação do respetivo produto na satisfação dos direitos dos credores.

Por ser assim, acompanhamos também a decisão recorrida quando afirma que «Qualquer previsão contratual que vise afastar este regime de proteção aos credores é sempre nula, não podendo produzir qualquer efeito ab initio, por contrariar disposições legais imperativas, as quais são legalmente afastadas da livre disposição das partes contratantes (cfr. art.ºs 280.º, n.º 1, 286.º e 289.º, n.º 1, do Código Civil). Assim, por exemplo, o considerando E do contrato de cessão de quota, referido no ponto 27 dos factos provados, deve ser considerado nulo e sem qualquer efeito, pois que os créditos por suprimentos não podem assumir diferente natureza (crédito de terceiro) por vontade das partes, em prejuízo dos credores, afastando o regime de graduação de créditos resultante do CIRE».

Donde, concluímos, encerrando em si mesmo o aludido “pagamento do preço” um verdadeiro ato de reembolso de suprimentos, é esse ato resolúvel e podia ter sido objeto de resolução parcial do negócio, como foi.

Assim sendo, e no caso da resolução incondicional, a que se refere o artigo 121.º do CIRE, sendo resolúveis os atos aí considerado, independentemente de quaisquer outros requisitos, para além dos previstos nessa mesma disposição legal, impõe-se a conclusão de que, à luz dos artigos 120.º e 121.º do CIRE, estão preenchidos os pressupostos aí elencados, para a resolução incondicional do reembolso de suprimentos no montante de 28.750,00€, efetuado através do cheque n.º 6160317153 datado de 23 de fevereiro de 2017, e no montante total de 6.250,00€ entre agosto de 2016 e dezembro de 2016.
Dispensando-se em tal “resolução incondicional” o requisito da má fé e estabelecendo-se uma presunção inilidível de prejudicialidade para a massa insolvente dos atos indicados nas várias alíneas do artigo 121.º, dúvidas não há do preenchimento de tais requisitos, considerando que o processo de insolvência da PIN teve o seu inicio em 18/08/2017, tendo os reembolsos sido feitos no ano anterior (cfr. artigos 121.º, n.º 1, al. i), do CIRE).
Improcede, pois, nesta parte, o recurso intentado, sendo irrelevante, como se disse na decisão recorrida, que o autor tivesse deixasse de ser sócio com o contrato de cessão de quota pois «independentemente da data da entrega das quantias, no presente ou futuro, o ato jurídico continua a assumir natureza jurídica de devolução de suprimentos a pessoa que foi sócio nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, seja no momento da prestação sócio ou ex-sócio».

Resta agora apreciar a resolução condicional do reembolso de suprimentos no montante total de 13.750,00€ entre novembro de 2015 e julho de 2016.

Com efeito, como segunda linha de argumentação, diz o recorrente que nunca desempenhou funções de gerência na PIN, tendo apenas sido sócio minoritário entre 14/02/2014 e 18/11/15, nunca sendo responsável pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas da insolvente nem por elas responde legalmente.
Donde, afirma, não pode ser considerado pessoa especialmente relacionado com a PIN, nos termos da al. a) do n.º 2 do artigo 49.º do CIRE.
Assim não o entendeu o Tribunal a quo, que considerou que nos termos enunciados no artigo 49.º, n.º 2, al. a) do CIRE, é irrelevante que o autor não responda legalmente pelas dívidas da PIN, pois a referência naquele preceito legal “respondam legalmente pelas suas dividas” refere-se a “membros” e não a “sócios”.

Vejamos então.
No caso dos autos, tendo os reembolsos em causa ocorrido entre novembro de 2015 e julho de 2016, datando de 18/08/2017 o início do processo de insolvência da PIN, verificamos que, ainda que o pressuposto temporal legalmente previsto para que a resolução incondicional possa operar não esteja preenchido, do ponto de vista geral, o ato é abstratamente resolúvel dado que foi praticado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
No caso da resolução condicional, os requisitos gerais são, como vimos, os previstos no artigo 120.º do CIRE: a) Realização pelo devedor de atos ou omissões; b) Prejudicialidade do ato ou omissão em relação à massa insolvente; c) Verificação desse ato ou omissão nos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência; d) Existência de má-fé do terceiro.
Quanto à prejudicialidade, a mesma presume-se, sem admissão de prova em contrário, naqueles mesmos atos ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados (artigo 120.º n.ºs 2 e 3 do CIRE).
Quanto à má fé, o n.º 4 daquele preceito, estabeleceu uma presunção, juris tantum, da má-fé do terceiro, quanto a atos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data (artigo 49.º do CIRE).
A noção de responsáveis legais é estabelecida no n.º 2.º do artigo 6.º do CIRE, que nos diz que «Para efeitos deste Código, são considerados responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário».
Por sua vez, o artigo 49.º do CIRE, diz-nos, no seu 2 al. a), que «São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa coletiva: a) Os sócios, associados ou membros que respondam legalmente pelas suas dívidas, e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência».
É certo que a doutrina e jurisprudência foram, ao longo dos anos, tomado posição, nem sempre coincidente, sobre a questão que aqui se trata.
Na doutrina, entre outros, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (na obra Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição, Quid Juris? - Sociedade Editora, Pág. 303), dizem-nos que «Assim, quanto à al. a) cabe dizer que os sócios, associados ou membros abrangidos são apenas aqueles cuja responsabilidade, sendo pessoal e ilimitada, respeite à generalidade das dívidas da pessoa colectiva insolvente e tenha por fonte a própria lei .... É isto que resulta do cotejo com o nº 2 do art.º 6º que faculta a noção legal de responsável pelas dívidas do insolvente para os efeitos do Código.”
Ou seja, é exigível que o sócio responda ilimitadamente pelas dívidas da sociedade em função dessa qualidade para que o seu crédito seja subordinado por força desta alínea.
Na jurisprudência, a título de exemplo, o acórdão de 11/19/2013, do Tribunal da Relação do Porto, relatado por Vieira e Cunha, disponível na dgsi, também nesse sentido tomou posição, ao afirmar «Salientámos já a clareza do elenco das pessoas especialmente relacionadas com o devedor, para o disposto no art.º 49º nº2 CIRE: - os sócios da insolvente cuja responsabilidade seja pessoal e ilimitada, por força da lei – art.º 6º nº2 CIRE (…), tendo também o Acórdão da Relação de Guimarães, em 07/02/2019, relatado por Sandra Melo, e disponível na dgsi, assim sumariado em parte que «(…) 4. A interpretação das alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 49º do CIRE tem que ser efeituada à luz do seu artigo 6º: é exigível que o sócio responda ilimitadamente pelas dívidas da sociedade em função dessa qualidade para que o seu crédito seja subordinado por força da alínea a) e é necessário que seja administrador para preencher a alínea b)».

Assim sendo, ainda que se presuma nos autos, sem admissão de prova em contrário, a prejudicialidade do reembolso ocorrido (artigo 120.º n.ºs 2 e 3 do CIRE), não sendo o autor pessoa especialmente relacionada com a insolvente, como se entende, não poderá presumir-se a exigida má fé (artigos 120.º n.º 4 e 49.º do CIRE).
Com efeito, tendo em atenção a noção de responsáveis legais estabelecida no n.º 2.º do artigo 6.º do CIRE, e a taxatividade do artigo 49.º n.º 2 al. a), do mesmo código, e estando provado que o impugnante foi sócio da devedora, mas nunca responsável pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas da insolvente, não pode operar a aludida presunção da má fé.
Donde, e a ser assim, para que o ato fosse então resolúvel era necessário que resultasse dos autos que à data da devolução daqueles suprimentos o impugnante tinha conhecimento de que o devedor se encontrava já em situação de insolvência, ou que tivesse conhecimento do carácter prejudicial daquele ato e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente ou do início do processo de insolvência (artigo 120.º n.º 5 do CIRE).
Não resultando tal factualidade da matéria de facto dada por provada nos autos, que não foi impugnada, uma vez que o AI centrou a resolução, no que concerne ao reembolso aqui em causa, apenas nas presunções de prejudicialidade de má fé que decorrem dos nºs. 3 e 4 do artigo 120.º do CIRE, terá a apelação que proceder nesta parte.
Com efeito, na inexistência da presunção, teria que ter sido invocado pelo AI na carta de resolução, e não foi, que o autor agiu convencido que nas datas dos reembolsos aqui em causa a PIN estava já em situação de insolvência iminente, não havendo liquidez ou património suficiente para satisfazer a generalidade das suas obrigações, não permitindo a situação financeira e patrimonial da PIN suportar as suas obrigações para com terceiros e devolver os suprimentos ao autor.
Deste modo, e sem mais, mais, não estando verificado o requisito estatuído no artigo 120.º, n.º 5.º do CIRE, ou seja, a má fé do apelante, à data daquele reembolso, não existia fundamento para a resolução condicional levada a cabo pelo AI.

Impõe-se, pois, revogar a sentença recorrida na parte em que considerou estar abrangida pela resolução condicional do reembolso de suprimentos os ocorridos entre novembro de 2015 e julho de 2016, quando o início do processo de insolvência data de agosto de 2017, ficando assim sem efeito a referida resolução nessa parte.

*

V-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação parcialmente procedente por provada e, consequentemente, em revogar a sentença recorrida na parte que considerou estar abrangida pela resolução condicional do reembolso de suprimentos os ocorridos entre novembro de 2015 e julho de 2016, no valor de 13.750,00€, ficando assim sem efeito a referida resolução nessa parte.
No mais, mantém-se a sentença proferida.
As custas serão suportadas pelo autor e pela massa insolvente, na proporção de 2/3 para o primeiro e 1/3 para a segunda.

Lisboa, 02/05/2023
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro
Nuno Teixeira