Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6044/20.9T8SNT-F.L1-1
Relator: MANUELA ESPADANEIRA LOPES
Descritores: VENDA EM PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
MODALIDADE DE VENDA
SELECÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FALTA DE AUDIÇÃO DO CREDOR
NULIDADE
SANAÇÃO DA NULIDADE
DIREITO DE REMIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- No processo de insolvência, a decisão quanto à escolha da modalidade da venda e condições da mesma é cometida, em exclusivo, ao administrador da insolvência.
II- Por força do disposto no artº 164º, nº2, do CIRE, o mesmo apenas tem que ouvir o credor com garantia real sobre o bem a alienar acerca da modalidade da alienação, não tendo o devedor insolvente que ser notificado das condições em que a venda se irá realizar.
III- Assim sendo, não se verifica qualquer nulidade decorrente da omissão da audição do insolvente relativamente à venda de bem apreendido para a massa.
IV- Mas ainda que tal falta de notificação consubstanciasse nulidade, estaria em causa uma nulidade secundária que, não tendo sido arguida no prazo de 10 dias a contar da data em que se tem que presumir que o insolvente tomou conhecimento da mesma, se teria que considerar sanada.  
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
AA … e BB … apresentaram-se à insolvência, tendo, por sentença proferida em 29/04/2020, sido declarada a insolvência dos mesmos.
 Em 24/06/2020 foi junto auto de apreensão de bens, tendo em 07/03/2022 sido apresentado pelo Administrador da Insolvência requerimento através do qual, invocando a existência de lapso no referido auto, requereu que o mesmo fosse “anulado”, bem como a junção de auto de apreensão rectificado com o seguinte teor:
«CC…, Administrador da Insolvência de “AA … e BB …”, procede, ao quarto dia do mês de Março do ano de dois mil e vinte e um, ao novo arrolamento e apreensão para a Massa Insolvente dos seguintes bens imóveis:
VERBA UM
Direito aos quinhões hereditários, por óbito de DD… e F…, composto por parcela de vinha demarcada, pela região do Douro de segunda classe, com três oliveiras de primeira classe, a confrontar a norte e nascente com caminho público, e Sul e poente com A… P…, com uma área de 375m2, sita em M…, concelho de …, inscrito na matriz predial rústico sob o artigo … Secção C, concelho de … e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, da freguesia de …, com o valor patrimonial de € 15,46.------
VERBA DOIS
Direito aos quinhões hereditários, por óbito de DD…, e F…, composto por parcela de vinha, sita em S…, da região demarcada do Douro, de segunda classe, uma oliveira de segunda classe e oliveiras de terceira classe, a confrontar a norte J… e outro, a sul com A… C…, nascente A… P… e poente, Herdeiros de Dr. F… e outros, com uma área de 875m2, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 231 Secção C, concelho de … e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, da freguesia de …, com o valor patrimonial de € 31,55. --------
VERBA TRÊS
Direito aos quinhões hereditários, por óbito de DD… e F…, composto por uma vinha da região demarcada do Douro, sita em P…, de segunda classe, a confrontar a norte herdeiros de A… P…, e caminho público, a sul com Rio …, nascente R… e poente, R… M…, com uma área de 1687m2, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … Secção …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 1831, da freguesia de …, com o valor patrimonial de € 58,70. ---------
VERBA QUATRO
Direito aos quinhões hereditários, por óbito de DD… e F…, composto por metade do prédio Urbano, de dois pisos, sito em …, andar e loja, com uma área total de 45m2 e área bruta de construção de 90m2, confrontado a Norte e Nascente com J…, a Sul com Caminho Público e Poente com J… A…, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, da freguesia de …, com o valor patrimonial de € 11.408,60. --------
(…)»
Em 29/06/2022, o Administrador da Insolvência juntou ao apenso de liquidação cópia da escritura de compra e venda relativa à verba nº 2 do auto de apreensão, constando do referido requerimento o seguinte: «CC…, Administrador da Insolvência de AA … e BB …, vem juntar aos Autos cópia da escritura de Compra e Venda, da Verba n.º 2, do “Auto de Apreensão”, em cumprimento do Contracto promessa de Compra e Venda celebrado, em 15/03/2019, tendo sido pago, como sinal, o valor de € 1.000,00, pelo que a Massa Insolvente recebeu cheque de € 500,00, o qual foi depositado na Conta da Massa, conforme comprovativo que se anexa».
Nessa escritura tiveram intervenção o Administrador da Insolvência em representação da massa insolvente e ainda EE…, também como vendedora.
Nessa mesma data, o Administrador da Insolvência juntou ao apenso de liquidação cópia da escritura de compra e venda relativa às verbas nºs 1, 3 e 4 do auto de apreensão, constando do referido requerimento o seguinte:
«CC..., Administrador da Insolvência de DD… e BB … vem, juntar aos Autos, cópia da escritura de Compra e Venda do quinhão hereditário, conforme Auto de Apreensão de Direitos - já junto aos Autos -, pelo montante global de €.4.500,00, correspondente às Verbas nºs 1, 3 e 4, pelos valores correspondentes a €.300,00, €.1,200,00 e €.3.000,00, respectivamente, conforme Declaração para efeitos fiscais, que se anexa, bem como documento comprovativo do depósito na Conta da Massa da importância recebida.
Mais se informa que a Liquidação do Activo se encontra concluída.»
Consta desta escritura:
ALIENAÇÃO DE QUINHÃO HEREDITÁRIO
No dia vinte e oito de junho de dois mil e vinte e dois, no Cartório Notarial de …,  sito na …, perante mim, respetiva Notária, em substituição nos termos do artigo 48.° do Estatuto do Notariado, compareceram como outorgantes:
PRIMEIRO    
CC…, divorciado, natural de …, concelho de …, que outorga na qualidade de Administrador de Insolvência, designado no âmbito do processo número 6044/20.9T8SNT, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste ­Juizo de Comércio de Sintra - Juiz 5, em que é insolvente, conjuntamente com sua mulher
AA …, casado com BB …, sob o regime da comunhão de adquiridos, …, doravante também designada abreviadamente por INSOLVENTE, qualidade e suficiência de poderes que verifiquei por informação certificada, consultada e obtida via intemet na plataforma Citius, e por certidão da sentença de declaração de insolvência, proferida em vinte e nove de abril de dois mil e vinte, transitada em julgado em vinte de maio de dois mil e vinte, que consultei, na presente data em httosiircertidaajudicial.tribunais.orchpticonsulta com a código de acesso R2VM-2MDD-602TT-ONYO, documentos cuja impressão se encontra arquivada neste cartório, a instruir a escritura lavrada em ato imediatamente anterior a este
SEGUNDO
EE…, casada com …, sob o regime da comunhão de adquiridos, …,
Verifiquei a identidade dos outorgantes pela exibição dos referidos documentos de identificação.
PELO PRIMEIRO OUTORGANTE, NA INVOCADA QUALIDADE, FOI DITO:
- Que o INSOLVENTE é herdeiro interessado nas heranças 'liquidas e indivisas abertas por óbito de seus pais, DD…, natural da freguesia de …, concelho de …, que faleceu, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, no dia treze de julho de mil novecentos e noventa e sete, no estado de casado com F…, sob o regime da comunhão geral, com última residência habitual no …, freguesia de …, concelho de …, conforme verifiquei pela escritura de habilitação lavrada em treze de julho de mil novecentos e noventa e oito no extinto Cartório Notarial de …, a folhas cento e catorze, do Livro de Notas para Escrituras Diversas número Doze-D, e F…, natural da freguesia de …, concelho de …, que faleceu no dia onze de janeiro de dois mil e vinte e um, no estado de viúva de DD…, com última residência habitual na …, na freguesia de …, concelho de …, tendo deixado testamento mediante o qual institui herdeira da sua quota disponível a sua filhe EE…, ora Segunda Outorgante, conforme verifiquei pela escritura de habilitação de herdeiros lavrada em oito de fevereiro de dois mil e vinte e um no cartório notarial de …, sito na …, a folhas oitenta e seis, do Livro de Notas para Escrituras Diversas número Cento e Trinta e Oito-A
-Que destas heranças fazem parte bens imóveis,
- Que nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2126.° do Código Civil, pela presente escritura e pelo preço de quatro mil e quinhentos ouros, que declara ja ter recebido, na qualidade de Administrador de Insolvência designado no âmbito do referido processo cede à SEGUNDA OUTORGANTE, livre de ónus ou encargos. o quinhão hereditário de que o INSOLVENTE é titular nas heranças abertas por óbito de seus pais DD… e F…, correspondente a sete dezoito avos indivisos das mesmas heranças.
- Que foi prescindida a assembleia de credores aludida no artigo 156.° e prevista na ali. n) do n.° 1 do artigo 36°, ambos do CIRE.
PELA SEGUNDA OUTORGANTE FOI DITO:    
- Que aceita a presente cessão de quinhão hereditário nos termos exarados.
MAIS DECLARARAM O PRIMEIRO, NA INVOCADA QUALIDADE, E A SEGUNDA OUTORGANTES:
- Que o preço respeitante a presente cessão foi pago pela cessionária na presente data, mediante a entrega de cheque bancário emitido no dia vinte e sete de junho de dois mil e vinte e dois, pelo Banco Comercial Português, S.A. no montante de quatro mil e quinhentos autos e com o número 4144879380.»
Por requerimento apresentado em 19.10.2022 no processo principal, transposto para os autos de liquidação em 11.11.2022, os Insolventes arguiram a nulidade do processado da liquidação posterior à venda ou projecto de venda, alegando que o Administrador de Insolvência procedeu à venda do direito que o insolvente detinha na herança de seus pais, acto que só em 17.10.2022 tomaram conhecimento, pela consulta electrónica do registo predial.
Sustentaram que não tendo sido previamente informados da venda ou projecto de venda, a sua filha D… ficou impedida de exercer direito de remição, o que pretendida fazer.
Mais alegaram que o mandatário dos Insolventes não tem acesso, no sistema citius, aos apensos do processo de insolvência.
Os credores representados nos autos, notificados nos termos do artº 221º do CPC, não se pronunciaram.
O Administrador da Insolvência respondeu por requerimento apresentado em 02.11.2022, transposto para o apenso de liquidação em 11.11.2022, alegando, em síntese, que os Insolventes referiram a existência de um filho menor de idade mas não da filha que agora indicam, que o art.º 61.º, n.º 1 do CIRE não impõe qualquer obrigação de informar o insolvente das diligências de liquidação e que o direito de remição apenas existe quando o A.I. tem conhecimento sobre a existência de ascendentes ou descendentes em condições de poderem exercer o direito.
Em 07/12/2022, foi proferido Despacho, julgando improcedente a arguição de nulidade suscitada pelos Insolventes.
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Inconformados os insolventes interpuseram recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
A) O presente recurso tem por objecto o douto despacho de 07.12.2022, por via do qual o Mmo. Juiz a quo julgou improcedente a arguição de nulidade processual (requerimento dos insolventes de 19.10.2022) face à venda e projecto de venda dos bens que compunham a herança dos progenitores do insolvente AA …, bens esses que foram apreendidos para os presentes autos de insolvência.
B) Na invocação da nulidade processual, foi alegado que os insolventes ou o mandatário não foram notificados da referida venda ou projecto de venda; que ficou prejudicado o direito de remição do art. 842.º CPC que a filha dos insolventes pretendia exercer;
C) e que o mandatário não tinha acesso (no Citius) a nenhum dos apensos dos presentes autos (B, D ou E), mas somente ao processo principal, razão pela qual desconhecia a apreensão, e, bem assim, o projecto das vendas e as vendas e os valores pelos quais as mesmas se deram.
D) A D…, filha dos insolventes, pretendia exercer direito de remição, mas ficou impedida de o fazer.
E) O tribunal a quo, pelo despacho ora posto em crise, considera que não houve nulidade processual alguma, por considerar que a lei não estabelece nenhuma obrigação de notificação das vendas ou projectos de venda do património (ou sequer da sua apreensão); que cabe ao remidor (e aos insolventes) acompanhar o processo, consultando--o ou pedindo o acesso ao mesmo; que a venda dos referidos bens e direitos foi anunciada em 14.09.2022 no apenso E (liquidação) e que, se os interessados não tiveram conhecimento da mesma, sibi imputet… e que mesmo que houvesse irregularidade, a mesma estaria sanada pelo decurso do prazo de 10 dias após a publicitação da prestação de contas - cfr. art. 199.º/1 do CIRE.
F) Com todo o respeito, que é muito, consideram os insolventes que se verificou efectivamente uma violação da lei do processo, violação essa materializada no facto de os insolventes e / ou o seu mandatário não terem sido notificados da apreensão e/ou das vendas e dos projectos de vendas; no facto de o mandatário dos insolventes não ter, à data (mas somente após 19.10.2022) acesso a nenhum dos apensos dos autos (mas somente ao processo principal).
G) Mas, além disso, a publicitação das vendas, a que se reporta o douto despacho, foi feita em momento posterior às mesmas, pelo que mesmo que os interessados tivessem consultado o processo no devido tempo, não ficariam a saber das mesmas, nem a conhecer projecto de venda nenhum (a publicitação deu-se em 14.09.2022 no apenso da prestação de contas, mas as vendas ocorreram em Junho e Julho de 2022, como decorre das informações de registo predial juntas ao requerimento de 19.10.2022).
H) Ora mesmo que os interessados tivessem levado a cabo a diligência a que o douto despacho sob recurso se reporta, teriam ficado a saber das vendas em momento posterior às mesmas – quando o direito de remição já não podia ser exercido; logo, a consulta do processo teria sido inútil, porque o Sr. AI não publicitou projecto de venda nenhum, fosse antes, fosse depois de consumadas as vendas.
I) Por outro lado, os insolventes demonstraram, na alegação de nulidade processual, que o seu mandatário não tinha acesso a nenhum apenso do Citius (somente ao processo principal) – doc. 7 junto ao requerimento de 19.10.2022.
J) A própria invocação de nulidade processual, em 19.10.2022, foi realizada nos autos principais e não no apenso D, precisamente porque o mandatário não tinha acesso ao mesmo (por ordem do Mmo. Juiz a quo foi o dito requerimento autuado no referido apenso)!
K) Quanto ao argumento apresentado pelo tribunal a quo de que teria ocorrido a a sanação da irregularidade pelo decurso do prazo de 10 dias sobre a apresentação das contas, tal não é, com todo o respeito, relevante, porquanto o prazo de 10 dias nunca poderia iniciar o seu cômputo sem que o mandatário dos insolventes tivesse conhecimento da referida apresentação das contas – e, como se alegou e demonstrou, não teve acesso ao respectivo apenso antes de 19.10.2022; pelo que tal sanação nunca ocorreu.
L) Já quanto à desnecessidade da notificação dos interessados insolventes sobre o projecto de venda, ou da venda: se, efectivamente, como se demonstrou, o mandatário não tinha conhecimento dos apensos (não lhe foi concedido acesso antes de 19.10.2022), os insolventes não tinham maneira de conhecer os mesmos; mas, como se deixou supra indicado, não há nenhum projecto de venda em nenhum apenso dos autos – seja ele anterior, seja posterior às ditas vendas!
M) As condições de venda dos referidos direitos só foram comunicadas aos autos em momento posterior à efectivação das mesmas vendas e não antes!
N) Sendo assim, como poderia a remidora exercer o direito, mesmo que os insolventes, diligentemente, acompanhassem a publicidade do processo?
O) Impunha-se que o Sr. AI notificasse os insolventes do projecto das vendas, antes da concretização dessas mesmas vendas – o que não ocorreu.
P) É verdade que a lei é omissa a este aspecto – imposição da referida notificação (e, com o isso, o tribunal a quo sustentou a inexistência de qualquer irregularidade);
Q) Se o direito de remição existe para proteger a família; se prevalece sobre o direito de preferência (art. 844.º/1 CPC), então porque não há-de ser comunicado, ao remidor, o projecto de venda, à semelhança do que a lei impõe ao obrigado à preferência (art. 416.º/1 CC)?
R) O direito de remição do art. 842.º CPC prevalece sobre o direito de preferência e, em termos valorativos, é superior ao mesmo; existe para proteger a família e permitir a salvaguarda do património familiar.
S) Visa permitir aos descendentes do insolvente que evitem a saída, do património familiar, de um bem apreendido.
T) Ora, se assim é; se é a família que está a ser protegida; como pode o direito de remição ter um tratamento menos exigente do que o direito de preferência (legal ou convencional)?
U) A interpretação segundo a qual o Sr. AI não tem de realizar qualquer notificação aos insolventes, sobre o projecto de venda do património apreendido, e antes da venda efectiva do mesmo, é inconstitucional – por violação do art. 20.º/1 da Constituição – porque desprotege um direito que é superior à preferência (legal ou convencional) e, ainda para mais, visa a tutela da família.
V) Uma interpretação como a realizada pelo Sr. AI e pelo Tribunal a quo, priva o titular do direito de remição de uma efectiva tutela judicial; e, admitindo-se o desconhecimento, pelo Sr. AI, da existência de uma filha maior dos insolventes (que não integra o agregado familiar dos mesmos), impunha-se a sua notificação aos insolventes, pelo menos.
W) É contrária ao art. 20.º/1 da Constituição, a interpretação que dispensa o Sr. AI de notificar os insolventes do projecto de venda, antes da venda, porquanto tal interpretação desprotege o direito de remição; o direito de remição é superior ao direito de preferência, legal ou convencional, e este encontra-se protegido pela imposição (art. 416.º/1 CC) da comunicação do projecto de venda ao titular da preferência.
X) Se a remição é superior à preferência, e se visa proteger a família e o património familiar, nenhum sentido faz, à luz da Constituição, que tenha menos garantias do que a preferência;
Y) Impõe-se a interpretação segunda a qual o Sr. AI está obrigado a notificar os insolventes do projecto de venda dos bens apreendidos (de forma a que estes possam, em comunicação com os descendentes, informá-los do direito e das opções que têm).
Z) Tal notificação não ocorreu, o que gera uma nulidade processual, nulidade essa que se invocou.
AA) São nulos todos os actos processuais praticados a jusante do momento em que tal notificação deveria ter ocorrido (necessariamente antes da concretização das vendas pelo Sr. AI), sendo também, naturalmente, nulas as referidas vendas.
BB) As mesmas são, assim, nulas e de nenhum efeito, o que se pede seja declarado pelo Tribunal ad quem.
CC) A nulidade processual – pela omissão da notificação aos insolventes do projecto de venda, previamente às vendas – deve assim ser declarada, com o julgamento da procedência do presente recurso de apelação.
DD) Ao julgar como julgou, o Tribunal a quo violou o art. 195.º do CPC, assim como também o art. 842.º do CPC, e o art. 416.º do CC; e a interpretação dada pelo Tribunal a quo viola o art. 20.º/1 da Constituição, na medida em que não consagra uma tutela jurisdicional efectiva ao titular da remição, quando comparado com o titular do direito de preferência.
EE) Deve assim, na procedência do presente recurso, ser julgada procedente a invocação da nulidade processual e declarada nulas e de nenhum efeito as vendas dos prédios descritos na CR Predial de …, sob os números 1742, 1772, 1831 e 1810, todos da freguesia de … e ordenado o cancelamento dos registos das aquisições a que se reportam as mesmas vendas (registos das aquisições sob a apresentação n.º 4552, de 04.07.2022, para o prédio descrito sob o n.º 1742; apresentação n.º 4551, de 04.07.2022, para os prédios descritos sob os n.º 1772 e 1831; e apresentação n.º 610, de 29.06.2022, para o prédio descrito sob o n.º 1810),
FF) Porquanto só assim se fará JUSTIÇA.
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Não foram apresentadas Contra-Alegações.
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O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo. 
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Foram colhidos os vistos das Exmªs Adjuntas.
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II– OBJECTO DO RECURSO
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelos apelantes, importa decidir se a não notificação aos Insolventes, previamente à realização da venda dos quinhões hereditários apreendidos, da modalidade e das condições em que a mesma seria realizada,  determina a nulidade do processado.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A) De Facto
No despacho sob recurso, com base no que consta do processo de insolvência e dos respectivos apensos, foi considerada como provada a seguinte factualidade:
1- Em 22.06.2020 o Administrador da Insolvência apresentou relatório elaborado
nos termos do art.º 155.º, do CIRE, no qual propôs a liquidação do activo nos termos do art.º 158.º, do CIRE, inventariando “Quinhão hereditário da herança indivisa por óbito, do pai do Insolvente - DD… - composto por” direitos sobre imóveis, especificados sob as verbas 1 a 4.
2- Em 24.06.2020 o Administrador da Insolvência constituiu o Apenso B (Apreensão de Bens), a que juntou auto de apreensão do mesmo quinhão hereditário, subdividido em quatro verbas.
3- Em 07.03.2022 o Administrador(a) de Insolvência apresentou, no mesmo apenso E, auto de apreensão de direitos, rectificado, que passou a reportar-se aos quinhões
hereditários, por óbito de DD… e F…, subdividido em quatro verbas, reportadas aos mesmos imóveis.
4- Em 23.02.2022 o Administrador(a) de Insolvência constituiu o presente apenso D (Liquidação).
5- Em 06.06.2022 informou “encontrar-se a aguardar, a Liquidação, das Guias de IMT e Imposto Selo, dos imoveis apreendidos, pelo que – após o agendamento e concretização de Escritura de Compra e Venda”.
6- Em 29.06.2022 declarou “juntar aos Autos, cópia da escritura de Compra e Venda da Verba n.º 2, do “Auto de Apreensão”, em cumprimento do Contrato promessa de Compra e Venda celebrado, em 15/03/2019, tendo sido pago, como sinal, o valor de €.1.000,00, pelo que, a Massa Insolvente, recebeu cheque de €.500,00, o qual foi depositado, na Conta da Massa”.
7- Juntou cópia de escritura pública de compra e venda datada de 28.06.2022, na qual, conjuntamente com a co-herdeira irmã do Insolvente, declarou vender a Casa Agrícola da …, Lda., o prédio rústico a que respeita a verba dois dos autos de apreensão.
8- Em 29.06.2022, em requerimento separado, declarou juntar aos Autos, cópia da escritura de Compra e Venda, do quinhão hereditário, conforme Auto de Apreensão de Direitos - já junto aos Autos -, pelo montante, global, de €.4.500,00, correspondente às Verbas n.os 1, 3 e 4, pelos valores correspondentes a €.300,00, €.1,200,00 e €.3.000,00,
respectivamente, conforme Declaração, para efeitos fiscais”, concluindo que a liquidação do activo estava concluída.
9- Juntou cópia de escritura pública denominada “Alienação de Quinhão Hereditário”, datada de 28.06.2022, na qual declarou ceder à co-herdeira irmã do Insolvente o quinhão hereditário titulado pelo Insolvente.
10- Por requerimento apresentado em 30.06.2022 o Administrador da Insolvência constituiu o apenso E (Prestação de contas) e prestou contas da liquidação, com referência à venda das verbas 1 a 4.
11- Em 14.09.2022, no apenso E, a prestação de contas foi actualizada quanto às custas do processo e a encargos administrativos com a venda.
12- A prestação de contas foi publicitada nos termos do art.º 64.º, do CIRE, por anúncio e edital inseridos no citius em 14.09.2022.
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B) O Direito
«O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.» – art. 1º, nº1, do CIRE.
É um processo especial, o qual, quanto à sua natureza, pode ser considerado misto, com uma fase marcadamente declarativa (até à declaração de insolvência) e outra claramente executiva (após a declaração de insolvência com liquidação de todo o património do devedor que integra a massa insolvente para satisfação dos credores ou através da aprovação de um plano de insolvência).
Nos termos do nº1 do art. 17º do CIRE, o processo de insolvência é regido pelas regras deste código e, subsidiariamente pelo Código de Processo Civil, «em tudo o que não contrarie as disposições do presente código.».
A liquidação do activo insere-se, claramente na fase “executiva” do processo de insolvência e está orientada directamente para a finalidade principal deste processo: conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores.
Nos termos do disposto no nº1 do art. 164º do CIRE, a alienação dos bens compreendidos na massa insolvente é feita, designadamente, por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo, embora preferencialmente por venda em leilão electrónico.
Como resulta do já citado artigo 17º, as normas do CPC apenas se aplicam se não houver norma contrária a essa aplicação no CIRE.
No que respeita à venda em processo executivo, estabelece o art. 812º do CPC:
«1 - Quando a lei não disponha diversamente, a decisão sobre a venda cabe ao agente de execução, ouvidos o exequente, o executado e os credores com garantia sobre os bens a vender.
2 - A decisão tem como objeto:
a) A modalidade da venda, relativamente a todos ou a cada categoria de bens penhorados;
b) O valor base dos bens a vender;
c) A eventual formação de lotes, com vista à venda em conjunto de bens penhorados.
3 - O valor de base dos bens imóveis corresponde ao maior dos seguintes valores:
a) Valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efetuada há menos de seis anos;
b) Valor de mercado.
4 - Em relação aos bens não referidos no número anterior, o agente de execução fixa o seu valor de base de acordo com o valor de mercado.
5 - Nos casos da alínea b) do n.º 3 e do número anterior, o agente de execução pode promover as diligências necessárias à fixação do valor do bem de acordo com o valor de mercado, quando o considere vantajoso ou algum dos interessados o pretenda.
6 - A decisão é notificada pelo agente de execução ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender, preferencialmente por meios eletrónicos.
7 - Se o executado, o exequente ou um credor reclamante discordar da decisão, cabe ao juiz decidir; da decisão deste não há recurso.»
Em processo executivo singular devem ser ouvidos o exequente, o executado e os credores com garantia sobre os bens a vender.
Coloca-se a questão de saber se esta regra se aplica à venda realizada em processo de insolvência, sustentando os insolventes que nem os próprios, nem o seu mandatário, foram notificados da venda ou projecto de venda dos direitos apreendidos nos autos e que, devido a esse facto, ficou prejudicado o direito de remição que a sua filha pretendia exercer. Dizem também que o seu mandatário apenas tinha acesso ao processo de insolvência e não aos apensos, pelo que deve ser julgada procedente a nulidade invocada e que a interpretação segundo a qual o Administrador não tem de realizar qualquer notificação aos insolventes sobre o projecto de venda do património apreendido e antes da venda efectiva do mesmo, é inconstitucional – por violação do artº 20º, nº1, da Constituição da República Portuguesa.
Dispõe o art.º 195º do Código de Processo Civil:
“Regras gerais sobre a nulidade dos atos
1 - Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
2 - Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.
3 - Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo.”
Cumpre decidir se a não notificação dos insolventes, previamente à venda do quinhão hereditário, determina nulidade do processado.    
De acordo com o art. 55º, n.º 1, do CIRE, são funções da competência do administrador, entre outras:
a) Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram”.
Nos termos do disposto no n.º 5 do mesmo artigo: “Ao administrador da insolvência compete ainda prestar oportunamente à comissão de credores e ao tribunal todas as informações necessárias sobre a administração e a liquidação da massa insolvente.
Por sua vez, estabelece o artº 164º do mesmo Código:
“1- O administrador da insolvência escolhe a modalidade da alienação dos bens, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
2- O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.
(…)”      
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, pgs. 616 e 617: “… a decisão quanto à escolha é cometida, em exclusivo, ao administrador da insolvência, segundo o seu critério e tendo em conta o que entenda ser mais conveniente para os interesses dos credores…”
Esta opção do legislador tem várias consequências, uma delas “a decisão (do Administrador da Insolvência) não ser censurável através de qualquer tipo de impugnação, perante os outros órgãos ou perante o juiz.” O Administrador da Insolvência não está, porém, impedido de, por sua própria iniciativa, solicitar a colaboração da comissão de credores ou da própria assembleia, podendo fazê-lo “em termos meramente consultivos e, nessa eventualidade, não está sujeito a seguir a orientação definida.”
E prosseguem estes autores “Curiosamente, por virtude da primeira parte do n.º 2 – o qual, todavia, acolhe especificamente, em sede de processo de insolvência, o que já está consagrado, no processo executivo comum, pelo nº1 do art. 812º do CPC – o administrador deve sempre ouvir previamente os credores com garantia real sobre os bens a alienar acerca do meio pelo qual devem ser vendidos. (…) Mas o facto de o nº2 limitar a audição ao credor com garantia real afasta a necessidade de auscultar o devedor insolvente, que decorreria da aplicação subsidiária do dito nº1 do art. 812º, legitimado pelo art. 17º do CIRE (sobre estes pontos, e no sentido propugnado, podem ver-se os Acs. da Rel. de Guim., de 15/Set/2011, no processo 4771/07.5TBBCL-H-G1, e de 28/Jul/2008, no processo 1566/08.2).”
Sustentaram os insolventes que o seu mandatário não tinha acesso no sistema Citius a qualquer dos apensos dos autos de insolvência, razão pela qual desconhecia a apreensão e o projecto da venda dos bens apreendidos.
Conforme resulta dos autos, os devedores apresentaram-se à insolvência, tendo a respectiva petição inicial sido subscrita pelo Ilustre Mandatário que continua a representar os mesmos. Assim, não se entende que, tendo sido proferida sentença em 29/04/2020 declarando a insolvência dos devedores/requerentes, só em 19/10/2022 viessem invocar a falta de acesso aos restantes apensos. Diga-se também, e no que concerne especificadamente à falta de acesso ao apenso de apreensão e ao invocado desconhecimento da mesma, em 19/11/2020 foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, a qual foi notificada ao Ilustre Mandatário em causa através de notificação electrónica elaborada em 23/11/2020. Nessa sentença consta expressamente que: “2. Foi apreendido o quinhão hereditário referenciado no auto de apreensão apresentado em 24.06.2020 no apenso B”.
Deste modo e a verificar-se a invocada falta de acesso ao apenso de apreensão de bens e a traduzir-se a mesma em nulidade, já há muito que se encontrava ultrapassado o prazo para a sua arguição – 10 dias a contar da referida notificação – cfr arts 199º e 149º, nº1, do C.P.Civil.
No que concerne ao direito de remição, o mesmo encontra-se previsto nos artigos 842º a 845º do Código de Processo Civil e consiste num direito de preferência legal, de formação processual, na medida em que visa tutelar a manutenção e a intangibilidade do património familiar, evitando, por essa via, e quando é exercido, a saída dos bens do campo do património da família do executado, muitas vezes, por razões sentimentais e memórias familiares que lhes estão associadas (cf. José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, pág. 621).
E é deferido ao cônjuge e aos familiares referidos no artigo 842º do Código de Processo Civil, pela hierarquia estabelecida no artigo 845º do mesmo código. Como decorre do disposto no artigo 842º do Código de Processo Civil, “[a]o cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.”
Em face deste regime, não se suscitam dúvidas que os descendentes do executado têm direito de remição na compra e venda do imóvel.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 2020, pág. 264 e 265, em anotação ao artº 843º: “Sendo o interesse tutelado pelo instituto da remição o do círculo familiar do executado, não existe qualquer dever de proceder a averiguações no sentido de identificar familiares próximos do executado ou da sua localização e notificação pessoal para efeitos de exercício de tal direito, não sendo aplicável ao instituto do direito de remissão o regime previsto no atual artº 819º (STJ 13-9-12, 4595/10). A lei presume que o executado dará conhecimento atempado ao titular da remição das vicissitudes relevantes para o eventual exercício de tal direito (STJ 14-12-16, 577/10, STJ 10-12-09, 321-B/1997 RC 21-2-20, 494/18 e RG 19-6-19, 1169/14). Recai, assim, sobre o potencial remidor um ónus de acompanhar os termos da execução para exercer, tempestivamente, o seu direito …”,
Tem sido genericamente entendido pela Doutrina e Jurisprudência que este direito de remição é aplicável à venda realizada no âmbito do processo de insolvência – cfr neste sentido, na doutrina, Salvador da Costa, A Venda Executiva, Os Direitos Reais De Aquisição E Os Direitos de Remição, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. I, Coimbra Editora, 2013, pág. 1238 e na jurisprudência, entre outros, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 14/07/2014, Proc. n.º 2741/11.8TBPBL-I.C1 e da Relação de Guimarães, de 03/11/2016, Proc. n.º 141/14.7TBGMR-E.G1, disponíveis em www.dgsi.pt.
Como se viu, à luz do CIRE, a notificação sobre a modalidade de venda apenas se prevê para o credor com garantia real sobre o bem a alienar, o qual é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada.
Após esta notificação, o credor com garantia real tem o prazo de uma semana, ou posteriormente, mas em tempo útil, para propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado.
Tal proposta só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 20 /prct. do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º do Código de Processo Civil – cfr art.º 164º, n.ºs 2 a 4 do CIRE.
Apenas aos credores com garantia real ou preferentes atribui a lei o exercício dos respectivos direitos nos termos previstos para a venda em processo executivo – cfr ainda art.º 165º do CIRE.
Invocaram os apelantes que é contrária ao artº 20º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação que “dispensa o Sr. AI de notificar os insolventes do projecto de venda, antes da venda, porquanto tal interpretação desprotege o direito de remição”.
O art. 20º da Constituição da República dispõe:
“1- A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
(…)
5 – “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”
Dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, - 4ª edição revista e aumentada - Vol. I, em anotação ao normativo em causa, págs. 408 e segs:
“O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (n°1 e epígrafe) é, ele mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais. Sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de Direito. É certo que carece de conformação através da lei, ao mesmo tempo em que lhe é congénita uma incontornável dimensão prestacional a cargo do Estado […]” e, na pág. 416, “Na epígrafe e no n°5 a Constituição alude expressis verbis ao direito à tutela jurisdicional efectiva (epígrafe) ou ao direito à tutela efectiva (n°5). Não é suficiente garantia o direito de acesso aos tribunais ou o direito de acção.
A tutela através dos tribunais deve ser efectiva. O princípio da efectividade articula-se, assim com uma compreensão unitária da relação entre direitos materiais e direitos processuais, entre direitos fundamentais e organização e processo de protecção e garantia.
Não obstante reconhecer o direito à protecção de direitos e interesses, não é suficiente garantia o direito de acção para se lograr uma tutela efectiva. O princípio da efectividade postula, desde logo, a existência de tipos de acções ou recursos adequados (cfr. Código de Processo Civil, art. 2°-2), tipos de sentenças apropriados às pretensões de tutela deduzida em juízo e clareza quanto ao remédio ou acção à disposição do cidadão (cfr. As formas de processo hoje consagradas no Cód. Proc. Trib. Admin., arts. 35° e ss.). A imposição constitucional da tutela jurisdicional efectiva impende, em primeiro lugar, sobre o legislador, que a deve tomar em consideração na organização dos tribunais e no recorte dos instrumentos processuais, sendo-lhe vedado: (1) a criação de dificuldades excessivas e materialmente injustificadas no direito de acesso aos tribunais; (2) a criação de “situações de indefesa” originadas por conflitos de competência negativos entre vários tribunais.”
Acerca da possibilidade de o credor garantido invocar, perante o juiz do processo, a nulidade processual (art. 195º, n.º 1, do C. P. Civil, ex vi do art. 17º, do CIRE) da venda efectuada pelo administrador da insolvência do bem garantido, por preterição das formalidades contidas no n.º 2 do art. 164º, do CIRE, podem encontra-se as seguintes posições explicitadas no Ac. da RG de 22/10/2020, relator: António Barroca Penha, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt e que, por elucidativo relativamente à questão, passamos a transcrever:
«(…) a jurisprudência (que julgamos maioritária) tem vindo a defender que a preterição de formalidades essenciais na venda efetuada pelo administrador da insolvência, não constitui fundamento da declaração de ineficácia do ato de alienação dos bens nem de nulidade da venda, tanto quanto é certo que a ineficácia dos atos do administrador da insolvência só pode ser declarada nos termos do disposto no art. 163º, do CIRE, sem prejuízo de tal preterição acarretar a eventual responsabilidade do administrador, nos termos do disposto no art. 59º, do CIRE. (5 - Por todos, cfr. Ac. RG de 28.07.2008, proc. n.º 1566/08-2, relatora Rosa Tching; Ac. RG de 31.03.2016, proc. n.º 8579/09.5TBBRG-E.G1, relator Joaquim Espinheira Baltar; Ac. RG de 17.12.2018, proc. n.º 721/17.9T8GMR-F.G1, relatora Ana Cristina Duarte; Ac. RP de 29.05.2014, proc. n.º 615/11.1TYVNG-D.P1, relator Aristides Rodrigues de Almeida; Ac. RP de 30.01.2017, proc. n.º 530/16.2T8AVR-F.P1, relator Manuel Domingos Fernandes; Ac. RE de 08.09.2016, proc. n.º 3223/13.9TBSTB-D.E1, relator Silva Rato; e Ac. RC de 16.01.2018, proc. n.º 6229/16.2T8VIS-E.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. )
Não obstante, existe igualmente uma corrente jurisprudencial contrária que vai no sentido de admitir que a inobservância pelo administrador da insolvência daquilo que a lei lhe impõe no n.º 2 do art. 164º, do CIRE, produz, tendencialmente, a nulidade/anulação da venda, por aplicação do disposto no art. 195º, n.º 1, do C. P. Civil. (6 - . Por todos, vide Ac. RE de 21.04.2016, proc. n.º 1911/12.6TBLGS-F.E1, relator Rui Machado e Moura; Ac. RP de 18.02.2010, proc. n.º 632/06.3TJVNF-L.P1, relator José Ferraz; Ac. RP de 07.07.2016, proc. n.º 7153/13.6TBMAI-D.P1, relator João Proença; Ac. RC de 13.11.2019, proc. n.º 108/17.3T8LRA-N.C1, relator Emídio Santos, todos disponíveis em www.dgsi.pt.)
Ao nível da doutrina Ana Prata, Jorge Morais e Rui Simões (7 - In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pág. 465), também consideram que a omissão da notificação ao credor garantido gera nulidade processual, criticando a posição assumida, neste particular, por Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, pois que a lei é clara sobre a necessidade de audição do credor garantido sobre o bem a alienar, designadamente acerca da modalidade da venda escolhida; adiantando que, se não fosse “vinculativa” esta audição, onde residiria o ilícito que está na base da responsabilidade do administrador da insolvência?
Acontece que, mormente por via do Ac. do STJ de 04.04.2017 (8 - Proc. n.º 1182/14.0T2AVR-H.P1, relator Fonseca Ramos, disponível em www.dgsi.pt.), foi igualmente introduzida uma outra posição jurisprudencial que, muito embora aceite que a primeira interpretação é a que parece resultar da lei, entende que a mesma deverá ser inaplicável, por violar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva (art. 20º, n.ºs 1 e 5, da CRP).
Para melhor explicitação, neste aresto, poderá ler-se designadamente que:
“ No caso, mesmo que a prática de actos de especial relevo da competência do administrador da insolvência, na fase de liquidação da massa insolvente, evidenciem terem sido por si violados os arts. 161º e 162º do CIRE pelo administrador da insolvência, o art. 163º do CIRE estatui que tal violação “não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”
Este normativo, na interpretação do Acórdão recorrido, não contempla o direito da parte lesada, no incidente de liquidação, por acto ou omissão do AI, poder arguir, perante o Juiz do processo, vícios procedimentais. A vingar tal interpretação, o remédio ao alcance de quem no processo for lesado, por actuação ilegal daquele órgão, é nenhum em termos imediatos e de proporcionalidade, exprimindo indefesa.
(…) A lei confere ao lesado como que uma possibilidade de actuação sancionatória de um órgão da insolvência, mas permanece eficaz o acto praticado que não será sindicável no processo. Parece incongruente: o lesado quererá, sobretudo, ver declarada a ineficácia de um acto que patrimonialmente pode ser danoso.
Não obterá a reparação, pela via da arguição da nulidade processual do acto, mas apenas, no contexto de responsabilização em acção judicial em que terá que ser demandante, podendo obter uma indemnização pelos prejuízos sofridos.

Segundo o art. 839º, nº 1, c) do Código de Processo Civil, a venda forçada fica sem efeito, em processo executivo, se for anulado o acto da venda, nos termos do art. 195º, ou seja, são aplicáveis as regras gerais sobre a nulidade dos actos omissivos ou comissivos prescritos na lei. Não se ignora que a insolvência é um processo de liquidação universal, que se rege por regras próprias, sendo, subsidiariamente, aplicável o Código de Processo Civil, como prevê o art. 17º do CIRE; estando em causa, no processo de insolvência, interesses dos credores (que podem ser muitos) – a execução é universal e concursal – do devedor insolvente e outros, não parece que a não apreciação imediata no processo de direitos alegadamente violados, exprima tutela efectiva.
Só excepcionalmente – ut. parte final do art. 163º do CIRE – a violação do disposto nos arts. 161º, nº1, e 162º (que contemplam actos de “especial relevo”) conduzirá à ineficácia dos actos ilícitos praticados.
O processo de insolvência, que o legislador quis célere e desjudicializado, não pode erigir tais valores em objectivos em si mesmos, com prejuízo dos interesses que nele se jogam. A celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do Juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência
A interpretação que o douto Acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163º do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação violadora do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar essa actuação ilícita perante o Juiz do processo, e que o despacho do julgador da 1ª Instância que apreciou tal arguição decretando a pedida nulidade, é ilegal por o acto ser eficaz, considerando que resta ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o AI, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados, viola o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, por não assegurar imediatamente no processo, tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata actuação do julgador, estando no limite de violar o princípio da proibição da indefesa.” (9 - No mesmo sentido, cfr. Ac. STJ de 15.02.2018, proc. n.º 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1, relator Henrique Araújo; Ac. RE de 08.02.2018, proc. n.º 6426/12.0TBSTB-F.E1, relator Mário Coelho (acórdão este que deu origem ao Ac. Tribunal Constitucional n.º 616/2018, de 21.11.2018).
Em bom rigor, esta posição, a despeito de aceitar, numa primeira análise, a primeira das interpretações como sendo a solução da lei, considera que, em consequência, se gera uma inconstitucionalidade, por violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido, pelo que acaba por concluir pela segunda das interpretações, admitindo assim a nulidade processual gerada pela preterição de formalidades legais (arts. 161º e 162º, do CIRE), por parte do administrador da insolvência em venda de bem garantido.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou igualmente sobre esta matéria (agora com referência ao disposto no art. 164º, do CIRE), nomeadamente no seu Acórdão n.º 616/2018, de 21.11.2018 (10- Proc. n.º 251/2018, relator José António Teles Pereira, acessível em www.tribunalconstitucional.pt.), em que se decidiu: “Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma contida nos artigos 163.º e 164.º, nºs 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.” (sublinhámos).»
Todavia, esta não é a situação que está em causa nos autos: como se viu, o artigo 164º do CIRE não prevê que que haja lugar por parte do AI à audição do devedor insolvente sobre as condições da alienação.
E percebe-se que assim seja: Por um lado, a finalidade subjacente ao regime estatuído no art.º 164.º é apenas a tutela do direito de crédito e por outro, aquando da realização da venda, o insolvente já tem conhecimento que bens lhe foram apreendidos e que os mesmos terão que ser vendidos pelo Administrador da Insolvência. Como bem sustentou o Mmº Juiz a quo, é ónus dos insolventes acompanhar o estado da liquidação e adoptar os procedimentos entendidos por convenientes, nomeadamente para efeitos do exercício do direito de remição por parte daqueles a favor do quais a lei o confere,  não se afigurando que a dispensa do AI de notificar os insolventes do projecto de venda se traduza em violação do disposto no artº 20º, nº1, da Constituição da República Portuguesa.
Diga-se, por último, que nas contas prestadas pelo AI em 30/06/2022 – apenso E – consta expressamente a receita que adveio da venda dos quinhões. Em 14/09/2022 foi publicado anúncio e afixado edital notificando os credores e os devedores para, no prazo de 5 dias, decorridos que fossem dez dias de éditos, se pronunciarem sobre as contas apresentadas pelo administrador da insolvência. Mais uma vez, pelos devedores nada foi invocado no referido prazo quanto à falta de acesso e ao desconhecimento da apreensão, bem como da realização da venda, pelo que também, quando foi arguida a nulidade com fundamento na falta de notificação das condições em que seria realizada a venda – 19/10/2022 –, já tinha decorrido o prazo de 10 dias a contar da data em que se tem que presumir que os insolventes tomaram conhecimento da mesma. Igualmente a nulidade ter-se-ia que considerar sanada.
Deve, pois, o recurso ser julgado improcedente.
*
IV-DECISÃO
Em face do exposto acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo o despacho recorrido.
Custas: pelos apelantes.
Registe e Notifique.      
                                                       
Lisboa, 02/05/2023
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro