Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27043/20.5T8LSB.L1-6
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: CONTRATO PROMESSA
NULIDADE FORMAL
FALTA DE RECONHECIMENTO DE ASSINATURAS
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A invocação da nulidade decorrente da falta do reconhecimento presencial das assinaturas no contrato promessa de compra e venda relativo a imóveis, exigido pelo artigo 410º nº 3 do Código Civil, é abusiva, quando o pedido condenatório decorrente – restituição do sinal prestado – já consta do próprio contrato promessa como consequência da impossibilidade de obtenção de crédito bancário.
II - Não sendo oferecida nenhuma outra razão que corresponda a um interesse atendível do outorgante que invoca a nulidade por falta de forma, e a que a procedência da nulidade serviria suprir, a procedência da nulidade acabaria a resultar num direito de rescindir unilateralmente e sem qualquer justificação e em qualquer altura o contrato promessa, rompendo assim o equilíbrio contratual e violando o princípio do pontual cumprimento dos contratos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
H…, com os sinais dos autos, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra M… e J…, também com os sinais dos autos, peticionando a final que o contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes em 25.11.2019, seja declarado nulo e de nenhum efeito, e que os RR. sejam condenados a restituir à A. a quantia de €210.000,00 relativa ao sinal e seu reforço, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.
A Autora alegou, em síntese, que o contrato promessa de compra e venda (e o mesmo sucedendo quanto ao aditamento ao contrato promessa de compra e venda) – no qual se fez menção de que as partes prescindiam do reconhecimento notarial das assinaturas e sendo que a Autora apenas foi auxiliada por um outro cidadão de nacionalidade chinesa, que lhe explicou sumariamente o teor do contrato bem como por um vendedor imobiliário, sem que ninguém lhe explicasse o teor e as consequências legais das cláusulas constantes do contrato promessa – é nulo e de nenhum efeito porquanto sendo a A. de nacionalidade chinesa e não sabendo a língua portuguesa nem a legislação portuguesa, devia ter sido assistida por intérprete (artigos 65.º nº 1 e 70º nº 1 al. b), ambos do Código do Notariado) e bem assim, e pela mesma razão e ainda porque não houve intervenção de notário, advogado ou solicitador, a falta de reconhecimento notarial das assinaturas não lhe pode ser assacada, visto que desconhecia essa exigência e consequentemente a nulidade dela decorrente deve operar.  
Os Réus contestaram, impugnando a versão factual da Autora, sustentando ao invés que a mesma foi assistida por um mediador imobiliário de nacionalidade chinesa que lhe traduziu os documentos, que foi a Autora quem quis que o contrato fosse assinado no escritório da sua mediadora onde não havia notário – não sendo por isso aplicáveis as disposições do Código do Notariado – dando assim origem à falta de reconhecimento das assinaturas, não podendo invocar a nulidade sob pena de abuso de direito.
A A., convidada para responder à matéria de excepção, impugnou que tivesse feito mais do que assinar o contrato promessa – nem assinou o aditamento – e que mandatar o Sr. JG…, mediador dos vendedores, para este diligenciar junto do Banco M… a obtenção de crédito bancário para a aquisição da fracção objeto dos presentes autos. Não promoveu nem teve conhecimento de trocas de correspondência entre o Sr. JG… e os promitentes vendedores, nem foi de sua iniciativa a procura de crédito junto de outros bancos, nem qualquer comunicação pela qual tivesse dado a entender aos promitentes vendedores o seu interesse na manutenção e cumprimento da promessa. Não sabe quem é o Sr. O…, não sabe onde é o escritório da imobiliária, não promoveu nem sugeriu a dispensa de reconhecimento notarial das assinaturas. “Era, sobre os RR, promitentes vendedores, que impendia a obrigação enquanto cidadãos nacionais e conhecedores da lei portuguesa de promoverem a observância dos requisitos de forma impostos pelo nº 3 do art.º 410.º do Código Civil”, posto que os requisitos de forma se destinam a proteger a parte mais fraca no contrato, que é a parte promitente compradora.
Responderam os Réus pugnando pelo excesso de pronúncia da Autora, e respondeu esta pela indevida resposta dos Réus.
Realizou-se a audiência prévia, tendo sido fixado à acção o valor de €210.000,00, proferido despacho saneador tabelar, identificado o objecto do litígio e enunciados os factos já assentes e os temas de prova, para além do mais que aqui não releva.
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Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido prescindida a testemunha da Autora, JG… e a testemunha dos Réus, O…. A Autora, assistida pelo tradutor C…, prestou declarações de parte. A Autora prescindiu da testemunha N…, e foi apenas ouvida a testemunha R….
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Foi proferida sentença de cuja parte dispositiva consta:
“Pelos fundamentos expostos, julgo a acção improcedente e, em consequência, absolvo os RR. dos pedidos deduzidos pela A. Registe e notifique. Custas pela A.”.
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Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
A. A A aqui recorrente veio aos presentes autos arguir a nulidade do contrato-promessa de compra e venda em apreço por preterição do reconhecimento de assinaturas;
B. De acordo com o n.º 3, do artigo 410.º do Código Civil, os contratos-promessa que visem a aquisição de um imóvel devem conter o reconhecimento de assinaturas dos promitentes vendedores e compradores;
C. A preterição do reconhecimento de assinaturas das partes é geradora de nulidade;
D. O reconhecimento de assinaturas das partes tem como intuito a proteção dos futuros adquirentes;
E. A A. não aceitou/acordou nem desejou que o contrato-promessa fosse celebrado com preterição das suas formalidades legais;
F. Inexiste um facto voluntário da A., isto é, um facto cuja ocorrência dependa da vontade da A. e cujos efeitos se produzem porquanto queridos por essa vontade e na medida do que sejam sugestivos de que aceitou/acordou, nem desejou que o contrato-promessa fosse celebrado com preterição das suas formalidades legais;
G. A A. nada sabia quanto aos formalismos do contrato;
H. A A. não sabia, nem lhe foi explicado, que a Lei portuguesa exigia o reconhecimento das assinaturas para o contrato que estava a celebrar;
I. A A. não sabia, nem lhe foi explicado, as consequências da ausência do reconhecimento das assinaturas para o contrato que estava a celebrar;
J. A A. não sugeriu que fosse dispensado o reconhecimento das assinaturas para o contrato que estava a celebrar;
K. A A. apenas sabia que estava a prometer comprar, e que os vendedores estavam a prometer vender, o imóvel “x” pelo preço “y”;
L. Tudo o resto que consta do contrato assinado a A. não sabia, nem lhe foi explicado;
M. Tudo o resto que consta do contrato não desejou nem aceitou/acordou;
N. Há uma contradição insanável entre os factos dados como provados e não provados e o entendimento do Tribunal a quo segundo o qual a A. aceitou/acordou que o contrato-promessa fosse celebrado com preterição das suas formalidades legais (PRIMEIRO ERRO);
O. Quem assina um contrato-promessa, não aceita/acorda nem deseja que este seja celebrado com preterição das suas formalidades legais sobretudo quando a Outorgante:
a. É de nacionalidade chinesa e desconhece a língua portuguesa, quer falada quer escrita, assim como desconhece a legislação portuguesa e seus formalismos.
b. No momento da celebração do contrato-promessa suprarreferido, foi auxiliada por um outro cidadão de nacionalidade chinesa, que lhe explicou sumariamente o teor do contrato, nomeadamente, o preço.
c. No momento da celebração do contrato-promessa, ninguém lhe explicou o teor e as consequências legais das cláusulas constantes do contrato promessa.
d. Não sugeriu que fosse dispensada a formalidade de proceder ao reconhecimento de assinaturas no contrato-promessa.
e. Tendo-se limitado a assinar o contrato no local que lhe indicaram.
f. Não recebeu qualquer tradução do contrato-promessa antes da respetiva assinatura.
P. É legítimo, e não age em abuso de direito, a A. ao exigir a nulidade do negócio, porquanto a A. não excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito;
Q. A A., limita-se a requerer a nulidade de um negócio, por preterição das suas formalidades legais, que nunca teria celebrado se soubesse que essas mesmas formalidades não se encontravam verificadas;
R. O que se coaduna perfeitamente com as finalidades do vicio da nulidade;
S. A pretensão da A. vem indeferida apesar de todos os temas da prova que lhe competia provar se encontrarem dados como provados;
T. O Tribunal a quo erra ao entender que a A. cumpriu com o acordado, procedendo ao pagamento do sinal e fazendo o seu reforço posteriormente (SEGUNDO ERRO).
U. A lei confere aos promitentes compradores a faculdade de invocar a nulidade decorrente do disposto no n.º 3 do artigo 410º do CC, mesmo tendo subscrito o contrato promessa
V. Não obstante ter assinado o contrato (sem o reconhecimento presencial das assinaturas) e, não obstante ter chegado a efetuar um reforço do sinal, não atua com abuso de direito o promitente-comprador que após a celebração do contrato, vai pedir ao outro contraente a devolução do sinal, invocando a omissão daquela formalidade vindo a intentar uma ação onde pretende obter judicialmente a declaração de nulidade e a restituição do sinal
W. A Assinatura do contrato-promessa e o pagamento do sinal e respetivo reforço não assume o carácter reiterado e consistente necessário para fundar uma confiança séria e legítima que seja atendível para efeitos de paralisar o exercício do direito de invocar a nulidade do negócio.
X. A A. Não tomou nenhum comportamento adicional.
Y. A A. nunca comunicou aos RR ou por qualquer modo lhes deu a entender que não iria arguir a nulidade.
Z. A A. não marcou a escritura, nem foi interpelada para o efeito pelos RR;
AA. A A. não assinou a adenda ao contrato em apreço nos presentes autos
AB. A A. não sugeriu que fosse dispensada a formalidade de proceder ao reconhecimento de assinaturas no contrato-promessa.
AC. A A. não agiu como se o contrato fosse inteiramente válido, jamais dando a entender aos RR, fosse de que modo fosse, que não iria servir-se da irregularidade formal do negócio para, com base nela, obter a sua anulação.
AD. A A. não contribuiu para omissão das formalidades legais do artigo 410.º, n.º 3 do Código Civil nem com o seu comportamento posterior, fez criar nos RR a legitima expectativa de que não se serviria do privilégio que a lei lhe confere de proceder a tal arguição, sem quaisquer limitações.
AE. Não há um comportamento consistente e reiterado que fosse bastante para criar nos RR uma confiança séria e legitima que a nulidade não iria ser invocada.
AF. O exercício da sua pretensão da A. não corresponde a uma clamorosa e intolerável ofensa ao princípio da boa-fé e ao sentimento de justiça geralmente partilhado pela comunidade.
AG. Pelo que a A. não age em abuso de direito.
Termos em que deve a Decisão recorrida ser revogada e em consequência deve o Tribunal declarar nulo o contato promessa de compra e venda celebrado em 25 de novembro de 2019 entre a A aqui recorrente e os RR aqui recorridos, devendo, em consequência, ser-lhe restituído pelos RR em singelo o sinal passado, acrescido de juros moratórios a partir da data sentença recorrida (…).
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Contra-alegaram os Réus, formulando a final as seguintes conclusões:
i) A Recorrente intentou, contra os Recorridos, uma ação judicial destinada a ver declarada a nulidade do contrato promessa de compra e venda de imóvel, em que a Recorrente era promitente-compradora e os Recorridos promitentes-vendedores, invocando, para tal, que no ato da celebração do contrato não foi assegurada a presença de um intérprete, e que se preteriu o reconhecimento de assinaturas.
ii) O Tribunal recorrido, interpretando e aplicando de feição as regras e institutos adequados, v.g. o do abuso do direito, considerou a ação totalmente improcedente, não dando provimento aos pedidos formulados pela Recorrente, que pretendia a restituição das quantias entregues a título de sinal, com base na invalidade do contrato celebrado.
iii) Inconformada, a Recorrente interpôs o presente recurso da decisão, pugnando novamente pela invalidade do contrato, e defendendo que o Tribunal a quo fez uma incorreta subsunção dos factos ao Direito.
iv) Porém, a Recorrente ataca a sentença sem invocar e demonstrar quaisquer circunstâncias, erros ou vícios que possam colocar em causa a validade, correção, fundamentação e eficácia da sentença.
v) A Recorrente não conclui minimamente se o recurso versa sobre a matéria de direito, ou se visa impugnar a decisão relativa à matéria de facto.
vi) Se o recurso incide sobre a matéria de facto, deve desde logo observar os requisitos previstos no artigo 640º, n.º 1, do CPC, sob pena de rejeição, pelo que não o fazendo, deverá ser rejeitado, ao menos na parte em que respeite à impugnação da matéria de facto.
vii) A Recorrente limita-se a replicar a argumentação expendida em primeira instância, diante do Tribunal a quo, que corretamente se pronunciou pela improcedência dos pedidos.
viii) Alega, em suma, que embora tenha assinado o contrato promessa, não aceitou as condições que nele figuravam, como a preterição do reconhecimento das assinaturas, porque desconhece a legislação e a língua portuguesas.
ix) Porém, a mais de que o contrato lhe foi traduzido por um cidadão de nacionalidade chinesa que a acompanhou, ainda que assim não o fosse sempre se diria que o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém (artigo 6.º do Código Civil).
x) Para sustentar a nulidade da promessa de compra e venda, a Recorrente invocou o artigo 70º, n.º 1, alínea b), do Código do Notariado, o qual não é aplicável porquanto no ato da celebração da promessa não estava presente qualquer entidade com poderes notariais.
xi) Por fim, fundamentou a nulidade no facto de a promessa não ter sido objeto de reconhecimento de assinaturas dos outorgantes, o que geraria uma invalidade.
xii) Efetivamente, tal seria suficiente para inquinar o ato, não fosse a Recorrente ter concordado e assinado livre e conscientemente um contrato de cujo teor consta uma cláusula da qual resulta que as partes prescindem do reconhecimento de assinaturas.
xiii) A doutrina e a jurisprudência são unânimes em considerar este tipo de situações como casos típicos de abuso do direito, ou de exercício abusivo de uma posição jurídica, comportamento que é vedado pela cláusula geral prevista no artigo 334º.
xiv) O caso dos autos é, por isso, um caso típico de abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium: «uma pessoa, em termos que, especificadamente, não a vinculem, manifeste a intenção de não praticar determinado ato e, depois, o pratique…».
xv) A Recorrente assinou livre e conscientemente o contrato e as cláusulas que nele se inserem, procedeu ao pagamento do sinal e de um reforço do sinal, e durante largos meses nada manifestou no sentido de não vir a cumprir o contrato, criando uma situação de confiança junto dos Recorridos.
xvi) Vários meses volvidos, e sem mais, vem intentar uma ação de nulidade do contrato promessa, pedido a restituição do sinal e do reforço do sinal.
xvii) Por se tratar de uma inalegabilidade formal, a Recorrente estava impedida de alegar a nulidade do contrato com base num vício para cuja formação concorreu, constituindo-se assim em abuso do direito.
xviii) Não ocorrendo qualquer nulidade, o contrato é plenamente válido, tal como decidido pelo Tribunal a quo.
Nestes termos e nos demais de Direito (…) deverá o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, e em consequência ser confirmada a decisão recorrida, com todos os efeitos legais.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC - a única questão a decidir é a de saber se a acção deve proceder.
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III. Matéria de facto
A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto é a seguinte:
“2.1. Factos provados
Para a boa decisão da causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1) Encontra-se inscrita a aquisição a favor dos RR. por compra da fracção autónoma designada pela letra “…” correspondente ao ….º andar direito no … piso e com a arrecadação n.º … e o lugar duplo de estacionamento n.º … na cave 1, do prédio urbano para habitação sito na Avenida …, n.ºs … e Rua … nº … Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º …, e inscrita na matriz predial urbana sob o art.º … da freguesia do …, concelho de Lisboa, com o valor patrimonial de € 212.023,35.
2) A A. e os RR. subscreveram o original do documento cuja cópia se encontra de fls. 31v a 33 no qual se lê:
“CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PRIMEIROS OUTORGANTES OU PROMITENTES VENDEDORES
- M…, portadora do cartão de cidadão n.º …, válido até …, casada em regime de comunhão geral com J…, portador do cartão de cidadão nº …, válido até …, contribuinte fiscal nº …, ambos residentes na AV. …, n.º … dto, … Lisboa;
SEGUNDA OUTORGANTE OU PROMITENTE COMPRADORA 
H…, solteira, maior, portadora do título de residência n.º … válido até …, contribuinte fiscal nº …, residente na Rua … Lisboa.
TODOS OS OUTORGANTES CELEBRAM ENTRE SI O PRESENTE CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA QUE SE REGE PELAS SEGUINTES CLÁUSULAS:
PRIMEIRA CLÁUSULA
Os Primeiros Outorgantes são donos e legítimos proprietários da Fracção … do prédio urbano, com destino a habitação, sito (…), concelho de Lisboa, distrito de Lisboa, com o valor patrimonial de € 212.023,35 (…) com a licença de utilização n.º …, emitida pela Câmara Municipal de Lisboa em … e certificado energético n.º …, válido até ...
SEGUNDA CLÁUSULA
Pelo presente contrato os Primeiros Outorgantes prometem vender à Segunda Outorgante, a qual prometem comprar àqueles, o imóvel supra descrito, no estado de conservação em que este se encontra. 
TERCEIRA CLÁUSULA
A Segunda Outorgante pagará aos primeiros outorgantes o montante de €675.000,00 (…) da seguinte forma: 
a) Pagamento de €160.000,00 (…) a título de sinal e princípio de pagamento na data da assinatura do presente contrato-promessa mediante a entrega de cheque bancário do M…, n.º …, com o que se dá pelo presente a respectiva quitação.
b) Pagamento de €50.000,00 (…) até dia 31/01/2020, mediante entrega de cheque bancário.
c) Pagamento de €465.000,00 (…) no acto da outorga da escritura pública de compra e venda.
QUARTA CLÁUSULA
O prédio referido na cláusula anterior apresenta uma hipoteca voluntária do Banco …  que apresentava o valor de €126.561,12 (…) à data de 19 de Julho de 2019.
QUINTA CLÁUSULA
1. A escritura pública de compra e venda deverá ser realizada até 29 de Fevereiro de 2020.
2. As despesas com a escritura, registos e impostos, correrão por conta exclusiva da Segunda Outorgante.
SEXTA CLÁUSULA
1. A validade do presente contrato tem como condição essencial a concessão de empréstimo bancário à Segunda Outorgante, sendo que o imóvel terá de ser avaliado pelo Banco, em valor nunca inferior a €650.000,00 (…).
2. No caso de não verificação da condição supra referida, o presente contrato promessa não produzirá os seus efeitos e vontades, sendo os Promitentes Vendedores obrigados a restituir o sinal prestado, apenas em singelo, à Promitente Vendedora, sem o acréscimo de qualquer outro valor, seja a que título for, no prazo de oito dias após ter conhecimento do indeferimento do referido empréstimo bancário.
SÉTIMA CLÁUSULA
1. Os Outorgantes prescindem do reconhecimento das assinaturas. 2. Os Primeiros e Segunda Outorgante declaram que, em caso de incumprimento do presente contrato, a parte não faltosa pode exigir a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830º do Código Civil.
3. Em caso de incumprimento do presente contrato, imputado aos Primeiros Outorgantes, a Segunda Outorgante tem a faculdade de exigir em dobro o valor de sinal que prestou referido na alínea a) da terceira cláusula.
OITAVA CLÁUSULA
Acordam os OUTORGANTES que, para efeitos de realização de todos e quaisquer contactos, comunicações, citações e notificações a realizar entre outorgantes, são utilizadas as seguintes moradas:
Dos PRIMEIROS OUTORGANTES: AV. (…) Lisboa.
Da SEGUNDA OUTORGANTE. Rua (…) Lisboa
NONA CLÁUSULA
Qualquer alteração ao disposto no presente contrato promessa de compra e venda que os outorgantes possam vir a acordar só será válida se consagrada por escrito, em documento assinado por todos os outorgantes, do qual conste indicação expressa das cláusulas que forem suprimidas e a nova redacção das aditadas, excluídas ou modificadas.
DEPOIS DE LIDO PELOS OUTORGANTES E POR ESTAREM DE ACORDO COM TODAS AS SUAS CLÁUSULAS E NADA MAIS TEREM A ACRESCENTAR, VAI POR ELES SER ASSINADO.
FEITO EM DUPLICADO E COMPOSTO POR 4 (QUATRO) PÁGINAS.
LISBOA, 25 DE NOVEMBRO DE 2019,
OS PRIMEIROS OUTORGANTES,
A SEGUNDA OUTORGANTE, (…)”.
3) Em 26 de Fevereiro de 2020, por documento denominado de “ADENDA AO CONTRATO DE COMPRA E VENDA”, celebrado no dia 25 de novembro de 2019, e somente assinado pelos RR., foi declarado por estes:
“1. Concordam em prorrogar o prazo para a realização da escritura publica que formalizará a compra e venda do imóvel até ao dia 31 de março de 2020, procedendo à modificação do disposto no número 1 da Quinta Cláusula;
2. O contrato promessa de compra e venda se encontra em vigor, não existindo qualquer consequência para nenhuma das partes, nomeadamente no que ao pagamento de qualquer valor diz respeito.
3. Até á presente data a segunda Outorgante já pagou aos primeiros Outorgantes o valor de 210.000,00 (…) devendo o valor remanescente – ser pago no acto da outorga da escritura pública de compra e venda.”.
4) A 25 de Novembro de 2019, a A. pagou aos RR., a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de €160.000,00, mediante a entrega do cheque bancário do … nº ….
5) A A. pagou aos RR. a quantia de €50.000,00 em 26.2.2020.
6) A A. é de nacionalidade chinesa e desconhece a língua portuguesa, quer falada quer escrita.
7) Assim como desconhece a legislação portuguesa e seus formalismos.
8) No momento da celebração do contrato-promessa supra referido, a A. foi auxiliada por um outro cidadão de nacionalidade chinesa, JG…, que lhe explicou sumariamente o teor do contrato, nomeadamente, o preço.
9) No momento da celebração do contrato-promessa, ninguém explicou à A. o teor e as consequências legais das cláusulas constantes do contrato promessa supra identificado.
10) Tendo-se a A. limitado a assinar o contrato no local que lhe indicaram.
11) O contrato-promessa descrito em 2) não foi traduzido à A. antes da respetiva assinatura.
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2.2. Factos não provados
Discutida a causa não se provou nenhum outro facto para além dos acima expostos. Nomeadamente:
i. Não se provou que, no momento da assinatura do contrato-promessa, a A encontrava-se acompanhada de dois agentes imobiliários, JG… e O… e que JG… assegurou a tradução do contrato-promessa à A., uma vez que sendo de nacionalidade chinesa, reside em Portugal, pelo que compreende e fala a língua portuguesa.
ii. Não se provou que JG… e a agência imobiliária na qual se integram foram os representantes da A. no processo de aquisição do imóvel aos RR., tendo JG… traduzido à A., de português para mandarim, o teor das cláusulas constantes do contrato-promessa.
iii. Não se provou que, confrontada com a necessidade de se proceder ao reconhecimento de assinaturas no contrato-promessa, a A. sugeriu que fosse dispensada tal formalidade.
iv. Não se provou que foi sugerido que a assinatura tivesse lugar no escritório da imobiliária que representou a A., inexistindo aí qualquer entidade com capacidade para reconhecer assinaturas, ao que os RR expressaram a sua anuência.
v. Não se provou que a 26.02.2020, A. e R. acordaram nos termos constantes do documento referido em 3) dos factos provados.
vi. Não se provou que a A. reportou, através da agência imobiliária que a representava, que estaria com dificuldades no processo de obtenção financiamento bancário, pelo que solicitou mais tempo para conseguir obtê-lo.
vii. Não se provou que interpelados para o efeito, os representantes da A. informaram que esta ainda não tinha conseguido obter o financiamento bancário, mas propunha fazer mais um reforço de sinal €5.000,00 (…), como forma de demonstrar a sua intenção de cumprir o contrato com os RR.
viii. Não se provou que no dia 9 de julho de 2020, a agência imobiliária representante da A. enviou um e-mail aos RR. a informar que estaria «mesmo a terminar o processo bancário do cliente, peço para aguardar mais um pouco. Logo que tiver novidades irei transmitir aos senhores».
ix. Não se provou que no dia 31 de agosto de 2020, a agência imobiliária, representante da A., enviou uma comunicação, por e-mail, aos RR., informando que a A. havia comunicado à agência que não tinha conseguido obter aprovação do crédito bancário necessário para a aquisição do imóvel, acrescentado que a A. «manifestou interesse de aquisição do imóvel, tendo encetado diligência junto de outros bancos, pelo que somos a questionar V. Exas. se pretendem outorgar adenda ao contrato de promessa de compra e venda celebrado em 25/11/2019, prorrogando o seu prazo».
Relativamente ao demais constante dos articulados e uma vez que consiste em matéria de direito, conclusiva ou irrelevante para a boa decisão da causa, o tribunal entende que, nesta sede, não tem de pronunciar.
2.3. Fundamentação da decisão de facto
A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada, à luz dos princípios que regem a matéria, dos seguintes meios de prova que a seguir se indicam.
Relevaram os seguintes documentos juntos aos autos: Certidão permanente junta a fls. 7 a 9; Caderneta predial junta a fls. 10; Contrato promessa junto a fls. 31v a 33; Adenda ao contrato promessa junta a fls. 14; Emails juntos a fls. 33v e ss.
Considerou-se o depoimento da seguinte testemunha R…, amiga da A.
Por fim, teve-se em consideração as declarações da A. H….
Concretizando:
O facto provado descrito em 1) decorre da certidão permanente junta a fls. 7 a 9 e da caderneta predial junta a fls. 10.
O facto provado descrito em 2) decorre da cópia do contrato promessa que se se encontra de fls. 31v a 33.
O facto provado constante de 3) decorre da adenda ao contrato promessa junta a fls. 14.
Os factos 4) e 5) foram considerados provados por acordo das partes.
Os factos 6) a 11) resultaram provados com base nas declarações da A. que na audiência explicou que vive em Portugal desde Maio de 2022 e que tem nacionalidade chinesa. Anteriormente, esteve em Portugal em 2017 e 2019, no máximo por 15 dias. A A. declarou que não fala nada de português, tendo tido apenas 2 aulas via internet. Relativamente ao contrato promessa, disse que não lhe entregaram nenhuma versão em chinês, nem o traduziram todo. Apenas traduziram uma parte, em especial o preço que foi dito em chinês por JG…. A testemunha, R…, amiga da A., apenas a conhece pessoalmente há uns meses. Segundo a testemunha a A. não sabe nada da língua portuguesa, seja escrita ou falada, nem conhece as leis portuguesas. A A. e a testemunha foram consideras credíveis nas declarações que prestaram, pelo que foram considerados provados os factos descritos.
Relativamente aos factos não provados, o Tribunal considera que não foi feita prova sobre o alegado, sendo que a A. negou parte dos mesmos nas declarações que prestou e que acima reproduzimos.
No que concerne aos emails juntos pelos RR. importa reter que nenhum deles foi subscrito pela A., mas sim por terceiros, pelo que inexistindo mais prova, nenhum valor probatório os mesmos têm nestes autos”.
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IV. Apreciação
A recorrente não enuncia expressamente, nem mesmo tacitamente, nas conclusões ou no corpo da alegação de recurso, a vontade de impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido. Mesmo que assim não se entendesse, não foram cumpridos os ónus previstos no artigo 640º do CPC. Nestes termos, a matéria de facto provada e a considerar é que a consta acima transcrita.
A questão do recurso é por isso apenas de Direito, e incide sobre saber se os fundamentos de facto provados permitem ou não chegar à conclusão que o tribunal recorrido chegou, qual seja, a de que a nulidade por falta de reconhecimento das assinaturas apostas no contrato promessa de compra e venda não pode proceder por via do abuso de direito.
Dizer em primeiro lugar que a recorrente não ataca a seguinte conclusão do tribunal: “A A. arguiu a nulidade do contrato com base no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) do Código do Notariado, a qual prescreve que “o ato notarial é nulo, por vício de forma, apenas quando falte algum dos seguintes requisitos: b) a declaração do cumprimento das formalidades previstas nos artigos 65.º e 66.º.”. Por sua vez, dispõe o artigo 65.º, n.º 1, que “Quando algum outorgante não compreenda a língua portuguesa, intervém com ele um intérprete da sua escolha, o qual deve transmitir, verbalmente, a tradução do instrumento ao outorgante a declaração de vontade deste ao notário”. Acontece que as normas legais citadas, integrantes do Código do Notariado, têm aplicação quando o acto é notarial, praticado perante notário. No caso dos autos, as normas não são aplicáveis, uma vez que não houve intervenção de notário. O contrato-promessa em causa consta de documento particular, sem intervenção de notário, pelo que os citados artigos são inaplicáveis. É verdade que resultou provado que a A. é cidadã de nacionalidade chinesa e não entende a língua portuguesa, mas tal não afecta a validade do negócio, uma vez que a forma do mesmo não exigia o cumprimento das normas do Código do Notariado. Por outro lado, no acto esteve presente um cidadão que falava o idioma da A. e lhe traduziu parte do contrato. Assim sendo, não se verifica a nulidade invocada”.          
Não atacando esta argumentação, que a Autora havia usado na petição inicial, a sentença transitou nesta parte – artigos 639º nº 1 e 628º, ambos do CPC.
A recorrente invoca que provou todos os temas de prova que lhe competia provar, e que o tribunal incorre em erro ao não lhe dar razão. Não tem razão: - o abuso de direito que o tribunal aplicou pressupõe que o tribunal reconhece o direito (que deriva da prova de todos os temas de prova que competiam a quem invoca o direito) mas que não permite o seu consequente exercício – nulidade do contrato e devolução do sinal e reforço. Em todo o caso, também não se nos afigura linear que a recorrente tenha provado todos os temas de prova que lhe competiam.
Em rigoroso resumo, a questão dos autos limita-se a saber se ocorre ou não abuso de direito por parte da autora na invocação da nulidade derivada da falta de reconhecimento das assinaturas no contrato promessa.
O tribunal recorrido considerou: “No artigo 410.º, n.º 1, do Código Civil, vem consagrado o princípio da equiparação, o que significa que o contrato promessa, quanto aos requisitos e efeitos, se encontra, via de regra, submetido às normas respeitantes aos contratos em geral, e às que sejam específicas do contrato prometido. Abrem-se, no entanto, duas excepções ao princípio da equiparação: uma relativa à forma, e outra relativa aos preceitos que pela sua natureza não se devam considerar extensivos ao contrato promessa. No que diz respeito à forma, vigora o princípio da liberdade da forma (artigo 219.º do Código Civil), a não ser que, como acontece no caso vertente, a lei exija, para o contrato prometido, documento autêntico ou particular. Neste caso, a promessa “só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula, ou por ambas, consoante o contrato promessa seja unilateral ou bilateral” (artigo 410.º, n.º 2). Trata-se de uma formalidade “ad substantiam”. No nosso caso, e porque se trata de um contrato-promessa relativo à celebração de contrato oneroso de transmissão de um direito real (direito de superfície) sobre uma fracção autónoma, exige-se, ainda, documento escrito com reconhecimento presencial da assinatura dos promitentes, e a certificação da existência da respectiva licença de utilização.
(…)
A A. arguiu a nulidade do contrato-promessa de compra e venda por preterição do reconhecimento de assinaturas. De acordo com o n.º 3, do artigo 410.º do Código Civil, os contratos-promessa que visem a aquisição de um imóvel devem conter o reconhecimento de assinaturas dos promitentes vendedores e compradores.
Acontece que, no contrato-promessa foi consignado, no n.º 1 da sua cláusula sétima que os outorgantes prescindem do reconhecimento de assinaturas. Daqui decorre que A. e RR. aceitaram que o contrato-promessa fosse celebrado com preterição das suas formalidades legais.
A invocação da nulidade pela A. constitui um verdadeiro abuso de direito.
Ora, segundo o artigo 334.º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.  No direito anterior ao actual Código Civil a figura já era conhecida e admitida, apesar de se não achar expressamente prevista.
A concepção adoptada de abuso do direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se atingir, com o seu exercício, a boa-fé, os bons costumes ou o fim social ou económico do direito conferido; basta que os atinja. Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou na sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso (Professores Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 334.º do seu Código Civil Anotado).
A mesma é a posição dos Professores Manuel de Andrade e Vaz Serra, quando falam em direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça” e em “clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante” (Teoria Geral das Obrigações, página 63, e BMJ 85, página 253, respectivamente). 
Segundo, ainda, o Prof. Antunes Varela, para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito. Com a fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pelo fim económico ou social do direito tem o artigo 334.º especialmente em vista os casos de exercício reprovável daqueles direitos que são muito marcados pela sua função social. A fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do venire contra factum proprium. São os casos em que a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando uma determinada causa de nulidade, anulação, resolução ou denúncia, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação ou do contrato (Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, páginas 537/538).
O Prof. Menezes Cordeiro, por sua vez, considera existir venire contra factum proprium numa de duas situações: quando uma pessoa, em termos que, especificadamente, não a vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificadamente adstrita, declare pretender avançar com certa actuação e, depois, se negue (Da Boa Fé no Direito Civil, volume II, página 747).
Na jurisprudência, que é abundantíssima, podem ver-se, em coincidência de opiniões, e como exemplos mais recentes, os acórdãos do STJ de 04.04.2006, 24.01.2008, 07.02.2008 e 28.02.2008 (CJ do Supremo, Ano XIV, Tomo II, página 33, e Ano XVI, Tomo I, páginas 62, 77 e 122, respectivamente).
A lei não enuncia as consequências do abuso do direito, tendo vindo a entender-se que a sanção varia consoante os casos, podendo compreender a indemnização, a nulidade do negócio, a validade do acto nulo ou a ineficácia da conduta; os efeitos, diz o Prof. Antunes Varela, serão os correspondentes à forma de actuação do titular (local citado).
Com base nele, o lesado pode requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito (Pires de Lima e Antunes Varela, obra e local citados). 
Resulta dos autos, que a preterição das formalidades legais foi por acordo de ambos os contraentes. Por outro lado, resulta ainda dos autos que a A. cumpriu com o acordado, procedendo ao pagamento do sinal e fazendo o seu reforço posteriormente.
No caso dos autos é claro que a A. aceitou cumprir com o contrato até um determinado momento, aceitando o negócio por si aceite. Não pode agora querer discutir o que antes aceitou. Desta forma, resta concluir que os argumentos invocados pela A. constituem abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil) e são, portanto, ilegítimos”. (fim de citação).
Se podemos interpretar resumidamente a posição da recorrente, diz ela que não é possível acometer-se-lhe ter dado causa à nulidade. Se JG… explicou à A., sumariamente, o teor do contrato, nomeadamente, o preço e se “9) No momento da celebração do contrato-promessa, ninguém explicou à A. o teor e as consequências legais das cláusulas constantes do contrato promessa supra identificado” e se a A. se limitou a assinar o contrato no local em que lhe indicaram e se “11) O contrato-promessa descrito em 2) não foi traduzido à A. antes da respetiva assinatura”, então ela, desconhecedora da língua e do direito, não sabia que estava a assinar documento em que se dizia que as partes prescindiam do reconhecimento das assinaturas.
Não nos parece que seja seguro este argumento: - é que o facto 11 fala de tradução e o facto 9 fala de explicação. Não há um facto que nos diga que não houve explicação antes da data de celebração. Por outro lado, o facto de JG… ter explicado sumariamente no acto da celebração do contrato, o teor do contrato, nomeadamente o preço, não nos diz, pela expressão nomeadamente, se a explicação sumária foi apenas sobre o preço, e apenas sobre a coisa objecto desse preço. Até porque “ninguém ter explicado à A. o teor e as consequências legais das cláusulas do contrato promessa” não deixa de ser uma formulação vaga, que não garante que excepção feita ao preço (e à coisa) o teor de todas as demais cláusulas não tenha sido explicado nem também tenha sido omitida a explicação sobre a consequência legal das cláusulas. Repare-se que os factos não provados não equivalem à prova do seu contrário.
Por outro lado, as regras da lógica e da experiência não dizem absolutamente nada que alguém que assine um contrato promessa não aceite nem deseje que a celebração omita ou pretira as formalidades, tudo depende do caso concreto. E nem mesmo se o caso concreto é de uma cidadã chinesa que desconhece a língua portuguesa e a legislação portuguesa a lógica e a experiência dizem que não prescindirá das formalidades legais, desde logo porque a primeira regra da lógica e da experiência é que um cidadão de um país que apresenta grande diversidade social, cultural, política e consequentemente jurídica e que tendo apenas estado em Portugal 15 dias em 2017 e 2019 – e o contrato promessa foi assinado em 2019 – e negoceia a compra de uma casa, naturalmente que, precisamente porque nada sabe da língua e da lei, terá de recorrer a alguém para buscar conselho, e os conselhos nem sempre necessariamente vão pelo cumprimento de formalidades, se estas formalidades, em concreto, repetimos, em concreto, não se revestirem de importância. E diga-se ainda, sendo facto provado que após a explicação sumária de JG… a A. se limitou a apor a sua assinatura no contrato, não é facto que só no momento da assinatura a A. tivesse tomado conhecimento do que estava a comprar, a quem, por que preço e em que condições. Esta atitude de prudência arrasa também o argumento da A.: - não são os promitentes vendedores, por serem portugueses, que têm de suprir a ignorância da A., por ser estrangeira. A A. não se queixa de ter sido levada pelos RR. a querer comprar, portanto, a normalidade diz-nos que quem anda à procura de casa ou vê placa de anúncio ou se dirige à imobiliária que está a promover a venda do imóvel. A situação é, nesse momento, absolutamente paritária.
Impõe-se aqui, embora o caso não seja de anulação oficiosa da decisão sobre a matéria de facto nem de determinação da sua ampliação – até porque, recorde-se, a A. (e bem os RR) prescindiu (prescindiram) de grande parte da prova, e mais concretamente do referido JG… – recordar que nos articulados a A. afirmou que sabia o preço e que tinha mandatado JG… para a obtenção de financiamento bancário. Isto não pode deixar de significar que a A. sabia claramente qual era o preço, qual era o sinal, qual era o reforço do sinal (cláusula terceira, alíneas a) e b) – veja-se o artigo 5º da PI – e sabia perfeitamente que tinha que pedir empréstimo bancário e saberia que a obtenção do empréstimo era condição do contrato, e que se a Autora não conseguisse obter o empréstimo, os RR. tinham de lhe devolver o sinal em singelo. Toda esta matéria se engloba sob “explicação sumária do teor do contrato, nomeadamente do preço”. Quais são as consequências legais das cláusulas do contrato? A obrigação de celebrar o contrato prometido, se obtido o empréstimo? A obrigação de com essa celebração se pagar o preço restante? A aquisição da propriedade da casa? Os direitos que a lei portuguesa concede ao proprietário, mesmo que em propriedade horizontal?
Seguramente que de tudo isto (da ignorância de tudo isto) não pode a Autora queixar-se: - dada a sua curta experiência em Portugal e sendo de nacionalidade chinesa, não sabendo nada da língua portuguesa nem da lei portuguesa, não nega a Autora que quis comprar uma casa em Portugal. Portanto, de todos estes elementos e de todas as consequências legais dos teores destas cláusulas a Autora sabia. E queria: - queria mesmo comprar, queria mesmo pagar 675 mil euros por aquele imóvel, financiados pela banca portuguesa.
Então, das cláusulas cujo teor e consequências legais eventualmente lhe não terão sido explicadas por JG…, que cláusulas são essas? A da data em que devia ser celebrada a escritura pública de compra e venda e que as suas despesas, bem como de registos e impostos corria por sua conta? A Autora não se queixa que os RR. tenham deixado passar o prazo da escritura. Não vem a juízo porque ainda quer fazer a escritura, visto que não sabia o prazo. A Autora não se queixa de que foi enganada porque não sabia que as despesas de escritura, registos e impostos corriam por sua conta.
Não está também em causa, nos autos, que a A. não se conforme com a disciplina da execução específica (cláusula 7ª) ou com a devolução do sinal em dobro, a ela, pelos RR. que não quisessem cumprir o contrato.
Não há qualquer controvérsia relativamente a moradas para comunicações entre as partes nem à exigência de alterações por escrito ao contrato promessa.
Não há nota, nos autos, da descoberta pela recorrente dalgum vício ou defeito do imóvel, ou de ónus ou limitação, ou de problemas da vizinhança, da zona ou do meio-ambiente, ou dalgum problema relacionado com a pessoa dos promitentes-vendedores, ou dalguma imposição legal que representasse ónus excessivo para a recorrente.
Donde, a única cláusula que afinal, na lógica da acção e do recurso, não terá sido explicada, é da cláusula 7ª nº 1, sobre “Os Outorgantes prescindem do reconhecimento das assinaturas”. Não terá então sido explicado à Autora que a lei exigia o reconhecimento presencial, porque é que o exigia, nem que a consequência era a nulidade.
E disse ainda a A., em articulados, que se soubesse que o vício era a nulidade, nunca teria querido vincular-se pelo contrato-promessa. Visto que não concretiza a razão, porquê?
Notar, ainda antes de responder, que o que a lei regulou, no artigo 410º nº 3 do Código Civil, foi a situação especifica da transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, assegurando, por via do reconhecimento presencial, que quem reconhece também se certifica que existe licença de utilização ou de construção. No caso, a protecção é para o promitente comprador, para evitar que se comprometa a comprar edifício construído ou a construir, sem licença de utilização ou construção, quer isto dizer, que no final, pago o preço, não poderia ser utilizado para o fim para que tinha sido comprado. É por isso que a parte final do artigo 410º nº 3 do Código Civil estabelece que a falta de forma não pode ser invocada pelo promitente vendedor salvo se a mesma tiver sido causada culposamente pelo promitente comprador.
A disposição foi introduzida no Código Civil pelo Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, em cujo preâmbulo se lê:
1. O contrato-promessa tem sido a via através da qual os interessados em habitação própria têm procurado garantir a aquisição da desejada unidade habitacional, nos casos em que, por qualquer motivo - designadamente o inacabamento da respectiva construção ou a inexistência imediata dos requisitos indispensáveis ao registo do direito de propriedade do transmitente -, não é possível a imediata celebração do contrato de compra e venda.
Sucede, porém, que, por efeito do regime legal do contrato-promessa - adequado a épocas de estabilidade social e económica, mas que não responde na justa medida a situações de rápida mutação da conjuntura económica e financeira em que avulta, como factor preponderante, a desvalorização da moeda -, inúmeros promitentes-compradores encontram-se em situação que justifica diversa tutela normativa. Com efeito, ou vêem frustradas as suas aspirações face à resolução do contrato pelo outro outorgante, com uma indemnização (o dobro do sinal passado) que nem sequer equivale já à importância inicialmente desembolsada, não cobrindo o dano emergente da resolução, ou acham-se coagidos, pela força das circunstâncias e para alcançarem o direito de propriedade da casa, que, muitas vezes, já habitam e pagaram integralmente, a satisfazer exigências inesperadas que incomportavelmente agravam o preço inicialmente fixado.
Importa, assim, reajustar o regime legal do contrato-promessa, por forma a adequá-lo às realidades actuais, estabelecendo verdadeiro equilíbrio entre os outorgantes (o que passa pela mais eficiente tutela do promitente-comprador) e desmotivando a sua resolução com intuitos meramente especulativos. Prevê-se, para tal, a actualização da indemnização em certos casos e a criação de condições adequadas ao exacto cumprimento da promessa em qualquer caso, mesmo pelo recurso à sua execução específica, embora sem prejuízo da adequada modificação do negócio, por alteração anormal das circunstâncias, nos termos que a lei já prevê.
2. Nesta conformidade, e como primeira medida destinada não só a dar mais solenidade ao contrato mas também a impedir que, sem conhecimento do promitente-comprador, possam ser objecto de promessa de venda prédios de construção clandestina, exige-se o reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes no respectivo documento e que neste o notário certifique a existência da licença de construção do prédio, sem que, todavia, o promitente-vendedor possa tirar qualquer efeito da omissão desses requisitos, na hipótese de o promitente-comprador para ela não ter contribuído.
(…)” (sublinhado nosso).
Este é o objectivo principal: - assegurar que há licença de utilização ou construção. Ora, a A. e recorrente não se queixa disto.
É verdade que o legislador, no preâmbulo citado, também quis revestir o contrato de forma mais solene – e nesta decorrência até temos nota, no recente Acórdão do STJ de 26.10.2022 proferido no processo 5261/20.6T8BRG.G1.S1, da nulidade da cláusula que estipule antecipadamente a renúncia à invocação da nulidade decorrente da inobservância do artigo 410º nº 3 do Código Civil – e que a solenidade não tem outro fito senão o de levar as partes à consciencialização da importância do negócio e de que, portanto, têm de ter sobre ele o inteiro conhecimento de que lhes resultará, em teoria, a inteira liberdade negocial.
Simplesmente, como já vimos no percurso das cláusulas do contrato no cotejo com a acção e o recurso, na realidade estamos apenas numa desconformidade perante a cláusula 7ª nº 1 do contrato-promessa, o que acaba a ser “invoco a falta de solenidade do contrato porque a lei quer que o contrato seja solene para me proteger da minha ligeireza em assinar cláusulas ou em me comprometer de modo impensado em cláusulas, independentemente de eu não invocar que qualquer das cláusulas ou o próprio negócio, no seu teor, foi impensado e resultou contrário aos meus interesses. E até independentemente de eu nada invocar contra os promitentes vendedores, não lhes assinalando qualquer incumprimento do contrato ou qualquer outro tipo de acção que me tenha causado qualquer espécie de prejuízo”. E se a defesa da natureza de interesse público do nº 3 do artigo 410º do Código Civil quando reportado ao promitente-comprador até pode conduzir a um resultado destes, o mesmo resultado não deixa de ser relevante para a apreciação de eventual abuso de direito.
Retomando, não resulta dos factos, para este tribunal de recurso, que esteja inequivocamente provado que a cláusula 7ª nº 1 do contrato promessa não tenha sido resumidamente explicada à Autora por JG… e que por isso se não possa dizer que a A. não comparticipou na causa da nulidade. É que, o ónus de prova da não participação da vontade da A. na preterição da formalidade, enquanto facto extintivo da invocação de abuso de direito feita pelos RR., pertence à A. – artigo 342º nº 2 do Código Civil.
Mas vamos admitir que à A. não foi explicado o teor da cláusula nem a sua consequência legal, porque o tribunal também não apresentou esta razão como cumulativa com o cumprimento do contrato que assinalou à Autora e do qual retirou o abuso de direito, e porque a recorrente também não se conforma com a conclusão de cumprimento.
O tribunal considerou que havia abuso de direito na invocação da nulidade de falta de forma consistente no não reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes no contrato-promessa, porque a Autora havia cumprido o contrato, ao pagar o sinal e o seu reforço. Repare-se que a Autora, na petição inicial, se refere ao pagamento de 50 mil euros em 31.1.2020 como reforço de sinal (ainda que o mesmo não esteja assim classificado no contrato, mas devendo de qualquer modo ser assim considerado, por via do artigo 441º do Código Civil).
É facto que o que os RR. invocaram para caracterizar a conduta contraditória – as demonstrações de persistência do interesse da A. em cumprir o contrato – foi parar ao rol dos factos não provados.
Todavia, temos como factos o pagamento do sinal em 25.11.2019, um sinal de 160 mil euros, sendo essa a data da assinatura do contrato promessa, o pagamento do reforço do sinal em 31.1.2020, como já vimos, e a afirmação da Autora de que em Setembro de 2020 procurou aconselhamento jurídico, e a interposição da acção em 16.12.2020. Portanto, temos assinatura do contrato e pagamento do sinal, reforço do sinal pouco mais de um mês depois, oito meses em que a A. não manifesta aos RR. nada, nem sim nem não (sendo certo que o prazo para a escritura definitiva era final de Fevereiro de 2020, e acabou prolongado pelos RR. por mais um mês) e depois invocação da nulidade.
Podemos secundar a afirmação do tribunal recorrido no sentido de que a A. cumpriu o contrato? Absolutamente que sim, no que toca ao pagamento do reforço. Criou ela fundada e relevante convicção de que o contrato continuaria a ser cumprido ou mais propriamente que não iria invocar a nulidade? A A. nada disse, ao passo que os RR. prolongaram a data para se fazer a escritura, o que não faz qualquer sentido (este prolongamento, que não é favorável aos RR) se não houvesse a manutenção da vontade de comprar, ou pelo menos não houvesse indício de que o contrato definitivo não iria ser celebrado. Do fim de Novembro ao fim de Março estamos na manutenção da convicção de cumprimento do contrato, a qual só poderia ser destruída por qualquer manifestação objectiva da A., que não o simples silêncio (que se manteve, relativamente aos RR., até Dezembro. Em rigor, até à data em que foram citados – 6.1.2021). Mas basta este tempo de silêncio para fundar relevantemente (em modos da frustração ser intolerável) a confiança dos Réus? Adiante responderemos.
As doutas elaborações teóricas sobre o abuso de direito que se encontra consignado no artigo 334º do Código Civil, encontram-se nos arestos que a recorrente cita e que a sentença cita, e não vamos repetir aquilo que é conhecido até à exaustão. Vamos apenas perguntarmo-nos duas perguntas sucessivas.
Primeira pergunta: - é, no caso concreto (em que o facto aparente é esta sucessão celebração do contrato, pagamento de sinal, pagamento do reforço, silêncio durante meses) manifesto, é ostensivo, é intolerável pela ordem jurídica, a invocação pela A. da nulidade resultante do incumprimento do artigo 410º nº 3 do Código Civil?
Segunda pergunta: - o abuso de direito só ocorre se encaixar estritamente nos casos-tipo que a doutrina e a jurisprudência foram construindo?
Uma primeira nota é esta: - o abuso de direito, porque em si contém a intolerabilidade pela ordem jurídica, isto é, pelo sentimento básico profundo do modo como as coisas devem decorrer no seio de uma sociedade organizada em torno do Direito, pode ser invocado pela parte e é, na mesma, de conhecimento oficioso pelo tribunal.
Deste conhecimento oficioso resulta, com efeitos práticos para o caso concreto, que se o abuso na modalidade de venire contra factum proprium que os RR. invocaram não proceder, isso não obsta a que o tribunal, o recorrido ou o de recurso, entenda que outra modalidade de abuso de direito ocorre, e que consequentemente impeça o exercício abusivo do direito, denegando a procedência da acção. De resto, a questão até podia nem se colocar assim, porque como se sabe (artigo 5º nº 3 do CPC) o tribunal é livre na interpretação do direito).
Retomando as perguntas, é mais simples começar pela segunda. A resposta é não. Claro que a formulação genérica do artigo 334º do Código Civil corresponde à ideia dum remédio genérico de aplicação casuística, que a parte, ou o tribunal, perante resultado do direito invocado, que fere intoleravelmente o sentimento jurídico da comunidade, usa. Estamos na latitude, ou mais concretamente, na ampla largueza do conceito da boa-fé, e dos conceitos de fim social e económico do direito, que remetem à ideia prévia do serviço/protecção de interesses patrimoniais ou não patrimoniais relevantes para o funcionamento societário organizado. Por isto, independentemente do resultado do exercício do direito não se enquadrar completamente numa qualquer categoria conceptual, seja a da conduta contraditória, o remédio pode ser sempre aplicado.
Primeira pergunta: - é ostensivamente abusiva, é intolerável a invocação da nulidade que a A. faz nestes autos?
A resposta é sim. Quando aplicamos o instituto de abuso de direito, o que pretendemos fazer é impedir que o funcionamento do direito conduza ao resultado correspondente, e este resultado acaba a concretizar-se no momento de decisão, no monumento da decisão, por assim dizer, na decisão judicial. Portanto, não tem o abuso de direito (a situação de facto correspondente) que ocorrer exclusivamente no tempo anterior à interposição da acção, podendo também revelar-se na própria interposição da acção, e mais concretamente nos termos em que a acção é posta e em que decorre a fase alegatória do processo.
Assim, o que em concreto vemos é aquilo que já referimos: - a A. invoca a nulidade sem que a procedência da mesma em juízo lhe fosse necessária, por corresponder a qualquer interesse seu (remetemos para o que já dissemos sobre o total silêncio de razões de prejuízo que do contrato pudessem resultar para si e que através da invocação de nulidade quisesse defender) e sobretudo porque o efeito que pretende – restituição do que pagou – é o mesmo que conseguiria se se limitasse a invocar a cláusula que condicionava a validade do contrato, isto é, ter conseguido ou não obter financiamento bancário.
Mas não, exclamará a Autora, para esse efeito era preciso que o financiamento bancário não fosse concedido. Resposta: - então sim, é isso mesmo que estamos a dizer, é ainda mais grave a situação (que se alcança pela invocação da nulidade), é mesmo intolerável. Porquê?
Porque a A. consegue um mecanismo de se desvincular das obrigações que assumiu, que quis mesmo assumir, a qualquer tempo, sem qualquer justificação, sem qualquer serviço de um qualquer seu interesse que a comunidade julgue relevante, um verdadeiro direito de rescindir unilateralmente o contrato, e sendo a intolerabilidade acrescida porque a contraparte (promitentes vendedores) esteve literalmente presa, sob a ameaça do pagamento do sinal em dobro, na sua capacidade de negociar a venda da casa a quaisquer outros interessados, durante todo o tempo que a A. entendeu ou que entendesse estar ou continuar calada.
É por esta razão que a acção não pode proceder, porque o exercício do direito acaba a não ter manifestamente qualquer correspondência com o fim económico do direito e nem mesmo com um fim social de colaboração do cidadão para o cumprimento da lei[1], porque como se vê o resultado final é em contrário ao equilíbrio contratual e ao princípio do pontual cumprimento dos contratos, estabelecido no artigo 406º do Código Civil.
Não caracterizamos assim, ou melhor, não entendemos que dos autos resultem indícios suficientes fortes que permitam uma caracterização da conduta contraditória em termos de se justificar a protecção da confiança dos RR.: - apesar da A. ter pago o sinal e o seu reforço e ter estado calada durante os meses que já assinalámos, ainda assim seria pouco (tempo) para se considerar que ela não iria invocar a nulidade. Tais indícios seriam credíveis, e maior confiança criariam, se tivesse sido provada a matéria das comunicações e negociações subsequentes que os RR. alegaram.
Em suma, consideramos, tal como o tribunal recorrido, que a acção não pode proceder, consideramos que não pode proceder por abuso de direito, tal como o tribunal recorrido também considerou, mas não consideramos que o abuso de direito ocorra pelas razões que o tribunal recorrido considerou.
Improcede, pois, o recurso. Tendo nele decaído, é a recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.
V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam negar provimento ao recurso e em consequência confirmam a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 11 de Maio de 2023
Eduardo Petersen Silva
Nuno Lopes Ribeiro
Gabriela de Fátima Marques
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[1] Alarguemos assim o conceito de fim social do direito.