Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5226/20.8T8VNG-A.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: VEÍCULO AUTOMÓVEL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
CONTRATO DE SEGURO
PROPRIETÁRIO DO VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. O julgador, para aferir da legitimidade das partes, tem apenas que atentar na relação material controvertida tal como o autor a apresenta na petição inicial para, em face dela, verificar se ele e o réu são sujeitos com interesse direto, o primeiro em demandar, e o segundo em contradizer, não interessando:
- saber se essa relação é verídica ou não;
- indagar da posição que o réu sobre ela venha a assumir;
- considerar a relação que tenha resultado da discussão da causa, pois que esta vai interessar antes para o conhecimento de mérito;
2. (...) pelo que, na sequência da alegação pela ré seguradora, de que a pessoa que subscreveu o contrato de seguro e nele figura como tomador do seguro, é pessoa diferente da autora, proprietária do veículo segurado, o que, em seu entender, configura uma «exceção perentória inominada, de direito material, de manifesta improcedência dos pedidos deduzidos pela Autora», pedindo, por isso, a sua absolvição dos mesmos, não podia o julgador, no despacho saneador, por sua exclusiva iniciativa e sem prévia audição das partes, convolá-la para exceção dilatória consistente na ilegitimidade processual da ré e, tendo-a por verificada, absolvê-la da instância;
3. (...) pois trata-se de uma questão que nada tem a ver com o pressuposto processual atinente à legitimidade da ré para os termos da ação, mas com o mérito da causa, ou seja, com a falsidade ou inexatidão do declarado no contrato de seguro quanto:
- à propriedade do veículo segurado;
- ao beneficiário do seguro;
e às consequências jurídicas daí decorrentes;
4. (...) o que, no caso concreto, implica, além do mais:
i) aferir do respetivo interesse segurável;
ii) saber se o facto de, no contrato de seguro, figurar como tomador do mesmo o sócio-gerente da autora, quando é esta a proprietária do veículo segurado:
- afeta a validade do contrato e, em caso afirmativo, em que termos;
- determina o afastamento da responsabilidade da ré pelos alegados prejuízos sofridos pela autora em consequência do sinistro.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
DT, Lda., intentou a presente ação declarativa de condenação contra SU, S.A., atualmente denominada GS, S.A., alegando, em síntese, que no dia 22 de setembro de 2019, pelas 3 horas, na Rua ____, em ____, ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros, da marca M, modelo E, com a matrícula TH, pertença da autora, então conduzido pelo seu sócio-gerente, SS, no seu interesse próprio, e sob a sua direção efetiva.
O acidente consistiu no embate do TH contra um muro.
Naquela data, a responsabilidade civil decorrente da circulação do TH encontrava-se transferida para a companhia de seguros L, detida pela ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ____, que contemplava a cobertura de danos próprios do veículo.
Na sequência do acidente a autora sofreu prejuízos, que a ré se recusa a ressarcir e pelos quais pretende ser indemnizada através desta ação.
A autora conclui assim a petição inicial:
«Termos em que, nos melhores de direito (...), deve a presente ação ser julgada totalmente procedente por provada e, em consequência, ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €29.579,91 (vinte e nove mil quinhentos e setenta e nove euros e noventa e um cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação, até integral e efetivo pagamento. Condenada ainda a pagar à Autora a quantia que se vier a vencer, desde a presente data até efetivo e integral pagamento, a título de paralisação e privação de uso da viatura acidentada, na quantia diária de € 20,00 (vinte euros).»
*
A ré contestou[1], começando por invocar uma denominada «Exceção perentória inominada, de direito material, de manifesta improcedência dos pedidos deduzidos pela Autora», alegando, para o efeito, a este propósito, que «entre SS e a Ré foi celebrado um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n.º ____, o qual se regia pelas suas condições particulares, gerais e especiais (...).
O objeto desse contrato de seguro era o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula TH, de marca M, modelo E.
Para além da cobertura obrigatória de responsabilidade civil, o SS subscreveu ainda, no âmbito do indicado contrato de seguro, a cobertura facultativa de “choque, colisão e capotamento” sofridos pelo TH.
O referido contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ____, tinha como único tomador e segurado o SS.
Ora, a Ré não celebrou com a autora qualquer contrato de seguro que lhe garantisse o ressarcimento de danos sofridos pelo TH em consequência de choque, colisão e capotamento que sofresse.
Por outro lado, aquando da celebração do contrato de seguro, o SS não declarou à Ré que o contratava por conta ou no interesse de terceiro, pelo que o seguro se considera contratado por conta própria (cfr artigo 47º n.º 2 do RJCS).
Ademais, nos termos da cláusula 2ª do clausulado da condição especial de “choque, colisão e capotamento”, a Ré apenas se comprometeu a garantir “ao Segurado o ressarcimento dos danos que resultem para o veículo seguro em virtude de choque, colisão ou capotamento”.
Por fim, os danos invocados na PI, mesmo que tivessem ocorrido nos termos descritos, estariam excluídos da garantia da cobertura obrigatória de responsabilidade civil automóvel do acima mencionado contrato de seguro, em face do que estabelece a cláusula 5ª, n.º 4, alínea a) das Condições Gerais da Apólice (cfr, ainda, art.º 14.º n.º 4, alínea a) do DL 291/2007), já que se tratam de danos sofridos pelo próprio veículo seguro por essa apólice.
Assim, a Ré não se comprometeu, através do contrato de seguro em apreço ou qualquer outro negócio, a garantir à A o pagamento de qualquer indemnização por danos por esta sofridos em consequência da danificação do TH, fosse porque motivo fosse.
Pelo que, independentemente de ter ou não ocorrido o “acidente” descrito na PI, a Ré nunca estaria legal ou contratualmente obrigada a pagar à autora qualquer indemnização, pelo que é manifesta e improcedência das pretensões que deduz nesta ação, devendo a Ré ser absolvida dos pedidos, L no douto despacho saneador.»
Além disso:
- argui a nulidade do contrato de seguro;
- impugna a factualidade alegada pela autora na petição inicial.
Por outro lado, dando por reproduzido o alegado nos art.ºs 1.º a 165.º da contestação, deduz reconvenção, pedindo que seja declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de seguro acima identificado.
Para assegurar a legitimidade passiva em sede de instância reconvencional, requereu a intervenção principal provocada de SS.
A ré conclui assim a contestação/reconvenção:
«Termos em que
a) Deve ser julgada procedente a exceção inominada de direito material de manifesta improcedência dos pedidos, absolvendo-se a Ré desses pedidos
Sem prescindir
b) Deve ser julgada procedente a exceção de nulidade do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ____, pelo menos no que toca à sua cobertura de “choque, colisão, capotamento”, declarando-se esse contrato de seguro, nessa parte, nulo e de nenhum efeito desde a data do seu início (07/03/2019) e absolvendo-se a Ré do pedido
Sem prescindir
c) A ação deve ser julgada improcedente, com as consequências legais;
d) A reconvenção deve ser julgada procedente e, por via disso deve ser declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de seguro titulado pela apólice n.º ____, pelo menos no que toca à sua cobertura de “choque, colisão, capotamento”, desde a data do seu início (07/03/2019) os reconvindos condenados a reconhecerem a invalidade desse contrato de seguro nessa parte, paratodos os efeitos legais, com a consequente exoneração da Reconvinte do dever pagar qualquer prestação prevista nesse contrato.
e) Para que o pedido reconvencional possa produzir o seu efeito útil, deve ser admitida a intervir nesta ação, como parte principal, associada à Autora, a “SS, tudo com as consequências legais.»
*
Na sequência de uma nem sempre linear tramitação dos autos, por decisão datada de 20 de janeiro de 2022:
a) foi admitido o incidente de intervenção principal provocada de SS e ordenado o «cumprimento ao disposto no artigo 319.º do Código de Processo Civil»[2];
b) foi ordenada a notificação da «A. para, no prazo de dez dias, responder às excepções deduzidas pela R.»
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Citado, o chamado SS não contestou, nem, por outra qualquer forma, interveio nos autos.
*
Na audiência prévia realizada no dia 13 outubro de 2022 e a que se reporta a ata com a Ref.ª 419614380 (assinada a 17 de outubro de 2022), a senhora juíza "a quo" proferiu a seguinte decisão:
«Veio a Ré suscitar a excepção peremptória inominada de direito material, alegando que o único tomador e segurado do contrato seguro em causa nos autos relativa à viatura segura não é a A , mas sim SS, não tendo a Ré celebrado com a A. qualquer contrato de seguro que lhe garantisse o ressarcimento de danos sofridos pelo veiculo TH em causa nos autos em consequência de choque, colisão e capotamento, não tendo o segurado SS, aquando da contratação, declarado que o fazia por conta ou no interesse de terceiro.
A A notificada, nada disse.
Cumpre apreciar:
Analisando o teor da contestação da Ré nos artigos 1 a 6, verifica-se dos mesmos que a excepção deduzida consubstancia não uma excepção peremptória inominada, tal como a Ré invoca, mas antes constitui uma ilegitimidade processual (o tribunal não está vinculado à qualificação jurídica dada pelas partes aos factos por si alegados – artigo 5º, n.º 3 do CPC).
De facto, da análise da apólice junta pela Ré consta como tomador do seguro e condutor habitual SS (documento junto 35v e seguintes) e não a A.
De facto, não tendo a Ré contratado com a A. o contrato de seguro em causa nos autos, não tem a Ré interesse em contradizer a acção contra si proposta, porque não há para si prejuízo que advenha da procedência desta acção (artigos 30º, n.º 1 e 2 do CPC).
A ilegitimidade constitui uma excepção dilatória, nos termos do artigo 577, al. a) do CPC que conduz absolvição da instância (artigo 576º do CPC).
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, por se verificar a excepção de ilegitimidade passiva por parte do R., absolve-se o R da instância.
Sendo a Ré parte ilegítima fica prejudicado o conhecimento pelo tribunal em sede de excepção da nulidade do contrato invocada pela Ré em sede de defesa, nos termos do artigo 608º, n.º 2 do CPC.
Custas pela A.»
Além disso, a senhora juíza "a quo" proferiu ainda a seguinte decisão:
«Uma vez que o Réu Reconvindo (interveniente) não apresentou contestação, declaro confessados os factos articulados pelo A (n.º 1 do artigo 567º do CPC).
Cumpra-se o disposto no n.º 2 do artigo 567º do CPC.»
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Posteriormente, no dia 17 de fevereiro de 2023, foi proferida sentença de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, julga-se procedente, por provada, a presente reconvenção e, em consequência, determina-se a nulidade parcial do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ____, apenas na parte da cobertura de “choque, colisão, capotamento”, desde a data do seu início 07-03-2019, celebrado entre GS SA e SS e condeno os Reconvintes[3] DT Lda e SS a reconhecer essa nulidade parcial do referido contrato de seguro, com a subsequente absolvição da Reconvinte GS SA do dever de pagar qualquer prestação prevista nesse contrato e no que respeita apenas a tal cobertura.»
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Foi da decisão proferida na audiência prévia realizada no dia 13 outubro de 2022, que julgou verificada «a excepção de ilegitimidade passiva por parte do R.» e absolveu «o R[4] da instância», que no dia 14 de novembro de 2022, a autora interpôs o presente recurso de apelação, ao abrigo do disposto no art.º 644.º, n.º 1, al. b), cujas alegações concluiu assim:
«1 – Veio a Recorrente dar entrada da presente ação declarativa, peticionando a condenação da Recorrida a pagar-lhe a quantia de €29.579,91 (vinte e nove mil quinhentos e setenta e nove euros e noventa e um cêntimos), acrescida da quantia diária de € 20,00 (vinte euros), a título de paralisação, desde a data do acidente, até efetivo e integral pagamento, alegando a existência de um acidente com a viatura automóvel da marca M, com a matrícula TH, seguro, à data, na Recorrida.
2 – A Recorrida veio contestar o acidente descrito, alegando que não subscreveu qualquer contrato de seguro com a Autora, mas sim com SS, sócio-gerente da sociedade Autora e aqui Recorrente, pedindo que fosse reconhecida a nulidade do contrato de seguro.
3 – No despacho saneador, o Tribunal a quo entendeu conhecer a alegada exceção de ilegitimidade passiva da Recorrida, justificando aquela decisão com o facto de a Recorrida não ter contratado com a Recorrente o contrato de seguro em causa nos autos.
4 – A Recorrente não pode aceitar aquela decisão, pelas razões que de seguida se irá expor.
5 – A causa de pedir subjacente à pretensão da Recorrente é o contrato de seguro celebrado entre a Recorrida e o tomador SS que constitui um seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e simultaneamente um seguro por danos próprios.
6 – De acordo com a LSC, o seguro pode ser contratado, pelo tomador, por conta própria ou por conta de outrem.
7 – Ainda de acordo com o art.º 47º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, “no seguro por conta própria, o contrato tutela o interesse do próprio tomador se seguro, dispondo o n.º 1 do art.º 48º do mesmo diploma legal que “no seguro por conta de outrem, o tomador do seguro atua por conta do segurado, determinado ou indeterminado”.
8 – O segurado coincidirá com o tomador do seguro nos contratos celebrados por conta própria, e com a pessoa no interesse de quem o tomador celebra o contrato, nos seguros por conta de outrem.
9 – O segurado pode ser qualquer pessoa, mas tem de ser, em concreto, alguém que tenha interesse no seguro.
10 – O interesse no seguro constitui, assim, um elemento fulcral do contrato de seguro.
11 – Tanto assim, que art.º 43º, n.º 1 do RJCS (tal como sucedia com o revogado art.º 428º § 1 do Código Comercial) é terminante na exigência, em todos os casos, da presença de um interesse de seguro, sob pena de nulidade.
12 – Trata-se, de resto, de uma regra absolutamente imperativa (artigo 12.º da LCS).
13 – Segundo a definição legal, no seguro de danos - como indubitavelmente é o do caso do seguro em apreço - o interesse de seguro configura-se como a relação existente entre o segurado e o valor patrimonial seguro (artigo 43.º, nº 2 da LCS).
14 – O interesse de seguro é exigido ao sujeito por conta de quem o contrato foi celebrado, ou seja, ao tomador-segurado, nos seguros celebrados por conta própria, e ao terceiro-segurado, nos seguros celebrados por conta de outrem.
15 – Não é ao tomador que se exige a titularidade do interesse seguro, e muito menos ao beneficiário, mas sim ao segurado, sempre ao segurado (artigo 43.º, nº 1 da LCS).
16 – No seguro de danos, o interesse de seguro, respeita à conservação ou à integridade da coisa, direito ou património seguros, o mesmo é dizer, à relação existente entre o segurado e o valor patrimonial seguro (artigo 47.º, nº 2 da LCS).
17 – Mas a relação económico-jurídica que está na base do interesse que confere validade ao contrato de seguro não se esgota nos institutos da propriedade, usufruto, posse ou mesmo numa relação creditícia.
18 – A simples detenção, quando legítima, pode justificar o interesse em segurar.
19 – Ora, é sobre a parte que se pretende prevalecer da referida nulidade do seguro por inexistência do interesse em segurar que compete alegar e provados factos conducentes à alegada nulidade, dado ser esta vício impeditivo e extintivo do direito contra si invocado (artº 342º, nº 2, do Código Civil).
20 – Na parte que releva à decisão da pretensão formulada nos autos, o contrato de seguro concluído entre a Recorrida e o tomador SS, sócio-gerente da sociedade aqui Recorrente, configura um seguro facultativo de danos, e dado que respeita a uma coisa - um bem móvel (automóvel) – um seguro de coisa (artigos 43.º, nº 2, 123.º e 130.º da LCS).
21 – Analisando a proposta respetiva, dela não se consegue extrair qualquer conclusão quanto à circunstância de o contrato de seguro ter sido celebrado por conta da própria tomadora ou por conta de outrem, designadamente a aqui Recorrente.
22 – De facto, nenhuma menção é feita relativamente à propriedade do veículo.
23 – E o facto de não ser feita referência ao Interveniente como condutor habitual – circunstância suscetível de influir na avaliação levada a cabo pela seguradora, ao nível do risco coberto, bem como da probabilidade e frequência da sua verificação e do seu custo – não nos parece bastar para concluir que o seguro (facultativo) foi feito por conta deste condutor habitual.
24 – Por essa razão, nos termos do preceituado no art.º 47º, n.º 1 da LCS, tal seguro considera-se contratado por conta própria.
25 – Não demonstrada a invocada inexistência do interesse em segurar por parte do tomador do seguro sub judice, cai por terra, a nosso ver, a nulidade do seguro invocada pela Recorrida.
26 – Mas ainda que se concluísse pela pretendida invalidade do contrato de seguro, cremos, mesmo assim, que, no caso em análise, a Recorrida não se poderia dela prevalecer.
30 – Com efeito, desconhece-se se a Recorrida seguradora, durante a fase negocial, solicitou ao tomador do seguro informação sobre a identidade do proprietário do veículo.
31 – Dos elementos juntos aos autos pela própria Recorrida não decorre que alguma vez a mencionado tomador tenha prestado declarações desconformes à realidade, designadamente, intitulando-se proprietário do veículo seguro.
32 – De resto, nem tal é alegado pela Recorrida.
33 – É do conhecimento da Recorrente que, no momento da celebração do contrato de seguro, o sócio-gerente da Recorrente enviou o documento único automóvel, onde consta o proprietário da viatura automóvel aqui em crise.
34 – Acresce ainda que, em momento algum, o sócio-gerente da Recorrente referiu que o contrato de seguro era para ser feito em seu nome, antes pelo contrário, deixou bem claro ao funcionário da Recorrente que estava do outro lado da linha telefónica, que o veículo era da aqui Recorrente e que o contrato de seguro era para ser feito em nome desta, até por questões de ordem contabilística.
35 – O que a Recorrida não acedeu, tendo celebrado, à revelia da Recorrente, o contrato de seguro aqui em crise com o sócio-gerente da Recorrente.
36 – Não obstante o ora alegado, e só por mera hipótese académica se admite, a não ter sido disponibilizada à Recorrida, aquando da celebração do contrato, informação acerca da identidade do proprietário do veículo, tal falha apenas a ela é imputável.
37 – É que não só o proponente do seguro tem o dever de prestar declarações conformes com a verdade, também sobre a seguradora recai o dever de se esclarecer devidamente, solicitando àquele os esclarecimentos e os documentos que entende necessários a avaliar o risco que vai assumir, podendo colher informações junto das entidades públicas, designadamente quanto ao registo de propriedade do veículo a segurar.
38 – Aliás, vários acórdãos foram produzidos com base nestas premissas, basta atentar no que se refere o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.10.2016 (processo n.º 647/11.0TBVPV.L1.2, in www.dgsi.pt), o Ac. do Tribunal da Relação do porto de 18.05.2017 (processo n.º 2059/12.9T2AVR.P1, in www.dgsi.pt).
39 – A omissão, por parte da ré seguradora, de um especial dever na sua atividade de análise e confirmação da declaração de risco, inobservando qualquer diligência mínima, com vista ao conhecimento do risco que aceitou dar cobertura implica, por aplicação dos supra referidos princípios da boa-fé e do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, que aquela deverá suportar as inerentes consequências, não podendo, para se desvincular da execução do contrato, escudar-se posteriormente numa nulidade do contrato para a qual, com a sua omissão, contribuiu e teve ocasião de evitar, In casu alegar a sua ilegitimidade processual.
40 – Conclui-se, assim, que a considerar-se verificada a nulidade, nunca a Recorrida dela se poderia prevalecer, por ser abusiva a sua invocação, e opô-la à lesada, autora nos presentes autos, assim como a sua ilegitimidade processual.
41 – Em suma, deverá improceder a invocada ilegitimidade processual da Recorrida, pois tem todo o interesse em contradizer a presente demanda.
42 – Pelas razões acima aduzidas, deverá o despacho que considerou a Recorrida parte ilegítima na ação, ser revogado, sendo substituído por outro que a considere parte legitima, devendo, para o efeito, ser ordenada a respetiva produção de prova relativamente ao acidente relatado nos autos.»
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A ré/apelada contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer “ex officio”, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art.º 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação L no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art.º 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, “ius novarum”, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal “a quo” (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, “ex vi” do art. 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue a ré/apelada para legítima para os termos da presente ação.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A factualidade relevante para a decisão do recurso é a que consta do relatório que antecede.
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3.2 – Fundamentação de direito:
3.2.1 – Uma nota sobre as conclusões:
O n.º 1 do art. 639.º impõe que o recorrente apresente conclusões que sintetizem os fundamentos da argumentação desenvolvida no corpo das alegações.
As conclusões devem, assim, além do mais, satisfazer o imperativo legal de síntese dos argumentos do recorrente.
Para maior compreensibilidade, convencimento e eficácia, elas devem ser breves, claras e bem sistematizadas.
Ou seja, para serem efetivamente, na prática, conclusões, elas devem constituir-se como o culminar do raciocínio argumentativo acabado de desenvolver em sede de motivação, no corpo das alegações, e expresso em frases claras, objetivas e sintéticas, que possam delimitar objetivamente a esfera de atuação do tribunal "ad quem", nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1.
Não é exatamente o que ocorre no caso presente, em que nos encontramos perante conclusões prolixas, contendo frases extensas, nalguns casos, deficientemente sistematizadas, e que extravasam o âmbito da única questão objeto da decisão recorrida, a única em apreciação neste recurso
Além disso, as conclusões também não servem para a recorrente esgrimir argumentos de ordem jurisprudencial que não devem ultrapassar o sector da motivação.
O art.º 639.º, n.º 3, prevê a possibilidade de prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.
A prolação desse despacho fica dependente do juízo que for feito acerca da maior ou menor gravidade das irregularidades ou incorreções, em conjugação com a efetiva necessidade de uma nova peça processual que respeite os requisitos legais.
Para tal, pode ser conveniente tomar em consideração os efeitos que a intervenção do juiz e as subsequentes intervenções das partes determinem na celeridade.
Parece ainda adequado que o juiz atente na reação do recorrido manifestada nas contra-alegações de forma a ponderar se alguma irregularidade verificada perturbou o exercício do contraditório, designadamente quando se esteja perante conclusões obscuras.
No caso do recurso sobre o qual nos debruçamos, não parece que tenha resultado prejudicado o exercício do contraditório por parte da apelada.
Além disso, como refere Abrantes Geraldes, a experiência confirma que se entranhou na prática judiciária um verdadeiro círculo vicioso: em face do número de situações em que se mostra deficientemente cumprido o ónus de formulação de conclusões, os Tribunais Superiores acabam por deixá-las passar em claro, preferindo, por razões de celeridade (e também para que a parte recorrente não seja prejudicada), avançar para a decisão, na qual é feita a triagem do que verdadeiramente interessa em face das alegações e da sentença recorrida.
Agindo deste modo, os Tribunais Superiores colocam os valores da justiça, da celeridade e da eficácia acima de aspetos de natureza formal[5].
É exatamente por essa razão que não se determina o aperfeiçoamento das conclusões da alegação de recurso da apelante, deixando-se, no entanto, claro, que elas constituem um texto que não cumpre exatamente o sentido da lei quando impõe que o recorrente conclua a sua alegação de forma sintética, indicando os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
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3.2.2 – Enquadramento jurídico:
No despacho saneador proferido na audiência prévia, a senhora juíza "a quo" julgou verificada a exceção dilatória consistente na ilegitimidade da ré, aqui apelada, para os termos da presente ação, absolvendo-a, em consequência, da instância.
Ainda que tal não constituía questão objeto deste recurso, importa começar por referir que a senhora juíza "a quo" não podia conhecer de tal exceção nos termos em que o fez.
Afirma a senhora juíza "a quo" que «analisando o teor da contestação da Ré nos artigos 1 a 6, verifica-se dos mesmos que a excepção deduzida consubstancia não uma excepção peremptória inominada, tal como a Ré invoca, mas antes constitui uma ilegitimidade processual (o tribunal não está vinculado à qualificação jurídica dada pelas partes aos factos por si alegados – artigo 5º, n.º 3 do CPC).»
Não é assim!
Temos como evidente:
- que o alegado pela ré não configura uma situação de ilegitimidade processual; e,
- que a ré não pretendeu invocar a exceção dilatória consistente na sua ilegitimidade para os termos da ação, tanto mais que em momento algum pugna sequer pela sua absolvição da instância, mas pela sua absolvição dos pedidos.
O que a ré quis invocar, se bem ou mal, se com ou sem fundamento, não é isso que aqui e agora interessa, foi, efetivamente, aquilo que considera ser uma «exceção perentória inominada, de direito material», com fundamento na «manifesta improcedência dos pedidos deduzidos pela Autora».
Não se trata de uma alegação inédita!
Veja-se, a este propósito, por exemplo, o Ac. da R.G. 07.12.2017, Proc. n.º 227/16.3CBT.G1 (Maria Amália Santos), in www.dgsi.pt, onde consta o seguinte:
«(...) na decisão recorrida invoca-se a existência de uma exceção peremptória (inominada) de direito material, consistente na manifesta improcedência dos pedidos, (...).
Trata-se de uma exceção que vem definida na lei como uma das que “…importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo A.” (artº 576º nº2 do CPC).
Não especifica a lei – contrariamente ao que sucede com algumas exceções dilatórias (no art.º 577º do CPC) -, quais sejam as exceções perentórias, referindo-se apenas aos factos alegados, deixando ao julgador[6] a integração dos mesmos no conceito: de impeditivos, modificativos ou extintivos do efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.
E quanto ao regime do seu conhecimento deixou também ao critério do julgador a apreciação, em concreto, dos casos em que o tribunal pode conhecer, oficiosamente, das exceções perentórias, no artº 579º do CPC, dizendo que o tribunal conhece oficiosamente das exceções perentórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado.
Ora, no caso que nos ocupa, o tribunal conheceu de uma questão impeditiva do direito do A, que não está na exclusiva disponibilidade das partes - como o comprova o disposto no artº 590º nº1 do CPC, ao permitir o seu conhecimento no despacho liminar – que apelidou de exceção (inominada) de direito material, consistente na manifesta improcedência dos pedidos, sem se pronunciar quanto ao mérito dos mesmos.
E bem, em nosso entender, pois se apreciou apenas a sua formulação em relação à acção onde se inserem, não chegou a conhecer dos mesmos quanto ao seu mérito, ou seja, quanto à sua procedência ou improcedência – o que sempre permitirá à parte ver discutida noutra acção os pedidos correctamente formulados (não se nos afigurando, salvo melhor entendimento, que o conhecimento desta questão, nos termos em que o foi, possa formar caso julgado noutra acção a propor).
Perante todo o exposto, como se decidiu e bem no tribunal recorrido, trata-se de uma exceção inominada de conhecimento oficioso, que por força do disposto no artº 576º n.º 3 do CPC importa a absolvição (total) do réu do pedido.»
Vedado estava, por conseguinte, à senhora juíza "a quo", com o singelo argumento de que «(...) o tribunal não está vinculado à qualificação jurídica dada pelas partes aos factos por si alegados – artigo 5º, n.º 3 do CPC)», convolar, por sua exclusiva iniciativa, uma invocada exceção perentória inominada de direito material, cuja procedência determina a absolvição do(s) pedido(s), para exceção dilatória consistente na ilegitimidade processual da ré e, tendo-a por verificada, absolvê-la da instância.
Isto, reitera-se, por sua exclusiva iniciativa e sem prévia audição das partes, em violação, portanto, do princípio do contraditório na vertente da proibição de prolação de decisões-surpresa (art. 3.º, n.º 3).
Sucede que nenhuma nulidade foi arguida contra a decisão recorrida, pelo que, em causa neste recurso está apenas saber se a ré é, ou não, parte legítima para os termos da presente ação.
Dispõe o art.º 30.º:
«1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.»
Como é sabido, no direito substantivo, o conceito de legitimidade reporta-se à relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do ato jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo.
Como pressuposto processual geral, ou condição necessária à prolação de decisão de mérito, no direito adjetivo o mesmo conceito exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão e o pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.
Tal como no direito substantivo, haverá que aferir, em regra, pela titularidade dos interesses em jogo (no processo), de acordo com o critério enunciado nos n.ºs 1 e 2 do art.º 30.º, ou seja, em função do interesse direto (e não indireto ou derivado) em demandar, expresso pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, e do interesse direto (e não indireto ou derivado) em contradizer, expresso pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da sua perda (ou, considerado o caso julgado material formado pela absolvição do pedido, pela vantagem jurídica que dela resultará para o réu)[7].
Ainda dentro da regra enunciada nos referidos n.ºs 1 e 2 do art.º 30.º, a titularidade do interesse em demandar e do interesse em contradizer apura-se, sempre que o pedido afirme (ou negue) a existência duma relação jurídica, pela titularidade das situações jurídicas (direito, dever, sujeição, etc.) que a integram.
Há muito tempo que foi posto termo à clássica discussão no nosso direito processual civil, entre Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, sobre se a averiguação da titularidade dos interesses (ou das situações jurídicas integradas na relação material afirmada ou negada em juízo) deve, para o apuramento da legitimidade processual, fazer-se em termos objetivos, isto é, abstraindo apenas da efetiva existência do direito ou interesse material, ou em termos subjetivos, isto é, com abstração também da sua efetiva titularidade.
Se é verdade que o legislador perfilhou a segunda tese, também cumpre referir, na esteira de Lopes do Rego[8], que o Professor Barbosa de Magalhães nunca considerou que a legitimidade das partes tenha de ser aferida sempre e apenas pelo que o autor alegue na petição que formula - mas que, na medida em que a legitimidade deva ser determinada apenas em função da titularidade da relação material controvertida, esta deve ser tomada com a configuração que lhe foi dada unilateralmente na petição inicial.
De acordo com a tese prevalecente, como bem sintetizam Lebre de Freitas / Isabel Alexandre[9], ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última[10].
A legitimidade deve, assim, ser aferida e determinada pela utilidade ou prejuízo que da procedência ou improcedência da ação possa derivar para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que elas, considerando o pedido e a causa de pedir, assumem na relação jurídica controvertida, tal como a apresenta o autor.
O julgador, para aferir da legitimidade das partes, tem apenas que atentar na relação material controvertida tal como o autor a apresenta na petição inicial para, em face dela, verificar se ele e o réu são sujeitos com interesse direto, o primeiro em demandar, e o segundo em contradizer.
Não importa:
- saber se essa relação é verídica ou não;
- indagar da posição que o réu sobre ela venha a assumir;
- considerar a relação que tenha resultado da discussão da causa, pois que esta vai interessar antes para o conhecimento de mérito[11].
Como se viu, na petição inicial com que introduziu em juízo a presente ação, a autora alega ser dona do TH, veículo que, no circunstancialismo de tempo e lugar acima descrito, quando era conduzido pelo seu sócio-gerente, SS, no seu interesse próprio, e sob a sua direção efetiva, embateu contra um muro.
Naquela data, a responsabilidade civil decorrente da circulação do TH encontrava-se transferida para a companhia de seguros L, detida pela ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ____, que contemplava a cobertura de danos próprios do veículo.
Na sequência do acidente, a autora sofreu prejuízos que a ré se recusa a ressarcir e pelos quais pretende ser indemnizada através desta ação.
Perante isto, não podem subsistir dúvidas quanto à legitimidade da ré para os termos da ação, pois, face à relação material controvertida, tal como a autora a configura na petição inicial, é manifesto o seu interesse em contradizer, face ao prejuízo para si adveniente da procedência da ação.
Não afirmando a autora, em momento algum da petição inicial, ter sido ela, enquanto proprietária do TH, quem celebrou com a L o contrato de seguro titulado por aquela apólice, foi a ré quem revelou, na contestação, que o dito contrato tinha «como único tomador e segurado o SS.»
A partir daí, o que passou a estar em discussão nada tem a ver com o pressuposto processual da legitimidade processual da ré para os termos da ação, pois, repete-se, ele afere-se apenas e só à luz da relação material controvertida tal como a autora a apresenta na petição inicial, mas, antes, com o mérito da causa.
E que questão é esta que nada tem a ver com a legitimidade processual da ré para os termos da ação, mas com o fundo, com o mérito da causa?
Obviamente, a questão da falsidade ou inexatidão do declarado no contrato de seguro acerca:
- da propriedade do veículo segurado;
- do beneficiário do seguro;
e das consequências jurídicas daí decorrentes.
Trata-se, pois, como se afigura claro, de uma questão que nada tem a ver com o pressuposto processual da legitimidade, mas com o mérito da causa.
Ou seja, e concretizando, uma vez verificado que:
- a autora é a proprietária do TH;
- o contrato de seguro titulado pela apólice n.º ____, pelo qual foi transferida para a L, detida pela ré, a responsabilidade civil decorrente da circulação do TH, seguro esse que contemplava a cobertura de danos próprios do veículo, foi subscrito pelo sócio-gerente da autora, SS;
- é o sócio-gerente da autora, SS, quem figura no contrato como sendo o tomador do seguro e o habitual condutor do TH;
- no momento do sinistro o TH era conduzido pelo sócio-gerente da autora, SS,
o que está em causa não é apurar da (i)legitimidade da ré para os termos da ação, questão que ela nem sequer suscitou, e que foi objeto de indevida apreciação oficiosa nos termos acima assinalados, mas, antes, saber:
a) do interesse segurável em causa;
b) da ocorrência de uma situação de falsidade ou inexatidão do declarado no contrato de seguro acerca:
- da propriedade do veículo segurado;
- do beneficiário do seguro,
e, em caso afirmativo, das consequências jurídicas daí resultantes, o mesmo é dizer, se isso:
- afeta a validade do contrato e, assim sendo, em que termos;
- determina o afastamento da responsabilidade da ré pelos alegados prejuízos sofridos pela autora em consequência do sinistro descrito na petição inicial.
É isto que está em causa, é isto que importa apreciar e decidir, e não se se verifica o pressuposto processual da legitimidade da ré para os termos da ação.
***
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação procedente, em consequência do que:
4.1 – Revogam a decisão recorrida, proferida na audiência prévia realizada no dia 13 outubro de 2022 e a que se reporta a ata com a Ref.ª 419614380 (assinada a 17 de outubro de 2022), que julgou verificada a exceção dilatória consistente na ilegitimidade da ré para os termos da presente e, consequentemente, a absolveu da instância;
4.2 – Substituem a decisão agora revogada por outra a considerar a ré parte legítima para os termos da ação;
4.3 – Determinam que aos autos prossigam seus regulares termos conforme a senhora juíza "a quo" considerar ser de direito, ficando sem efeito tudo quanto foi processado e decidido, quer na audiência prévia, quer subsequentemente a ela.
As custas do recurso, na vertente de custas parte, são a cargo da apelada (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2).

Lisboa, 30 de maio de 2023
José Capacete
Diogo Ravara
Cristina Silva Maximiano
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[1] Fê-lo ao longo de exageradamente extenso advogado, à revelia do disposto nos art.ºs 5.º, n.º 1 e 572.º, als. b) e c).
[2] Deveria esta decisão ter sido clara, objetiva e rigorosa, concretizando que a citação de SS. era para os termos da reconvenção.
[3] Trata-se de um lapso de escrita, pois, por certo, pretenderia a senhora juíza "a quo" escrever «Reconvindos».
[4] Trata-se de mais um lapso de escrita, pois, por certo, pretenderia a senhora juíza "a quo" escrever «Ré».
[5] Recursos em Processo Civil, 7.ª Ed., Almedina, 2022, pp. 185-188.
[6] Por lapso escreveu-se «julgado».
[7] Cfr. Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2014, pp. 70-71.
[8] Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª Edição, Almedina, 2004, p. 59.
[9] Ob. e Loc. Cit.
[10] Cfr. Ac. da R.C. de 12.06.2011, Proc. n.º 1223/10.0TBTMR.C1 (Carlos Querido), in www.dgsi.pt, do qual, nesta parte, se transcreveram alguns excertos.
[11] Cfr. Ac. da R.L. de 12/10/2009, Proc. n.º 29306/03.5YXLSB-A.L1-6 (Pereira Rodrigues), in www.dgs.pt.