Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
731/18.9T8AMD.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: REPARAÇÃO DE VEÍCULO
CONTRATO DE EMPREITADA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
DESISTÊNCIA DA OBRA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.O contrato pelo qual uma das partes se obriga perante a outra a executar trabalhos de reparação mecânica de um veículo automóvel deve qualificar-se como um contrato de empreitada, nos termos do Art.º 1207.º e ss. do C.C..
2.Verificando-se, durante a execução dos trabalhos de reparação do veículo, que existiriam outras situações que impediam a circulação do veículo e cuja reparação importava em valor superior ao inicialmente acordado, a correspondente proposta de reparação dessas avarias constitui uma alteração à obra que o dono da obra não está obrigado a aceitar (cfr. Art.º 1214.º n.º 1 do C.C.).
3.Tendo nessa sequência o dono da obra solicitado a entrega do veículo, tal traduz-se numa desistência da obra, nos termos do Art.º 1229.º do C.C., não se podendo falar em resolução do contrato, porque esta só é admitida nos casos explicitamente convencionados pelas partes e nos casos previstos na lei (cfr. Art.º 432.º n.º 1 do C.C.).
4.Não se verificando qualquer incumprimento definitivo e culposo por parte do empreiteiro (cfr. Art.º 801.º n.º 2 do C.C.), essa hipotética comunicação de resolução do contrato de empreitada sempre teria de se considerar um ato ilícito, correspondente a uma situação de incumprimento do contrato de empreitada pelo dono da obra.
5.Acresce que, o direito à resolução do contrato de empreitada está condicionado à exigência prévia a da eliminação dos defeitos pelo empreiteiro ou à possibilidade de reconstrução da obra, previstos no Art.º 1221.º do C.C. (cfr. Art.º 1222.º do C.C.).
6.No caso, o contrato de empreitada implicou a entrega da viatura ao empreiteiro com vista à realização da obra acordada, encontrando-se assim convencionadas, de forma subordinada ao contrato de empreitada, prestações acessórias típicas de um contrato de depósito, ficando o empreiteiro obrigado a cumprir as obrigações de guarda e restituição da coisa (cfr. Art.º 1185.º do C.C.).
7.O empreiteiro, enquanto depositário da coisa a reparar, fica assim também obrigado a restituir a coisa depositada (Art.ºs 1187.º al. c) e 1192.º do C.C.), devendo a restituição ocorrer, em caso de silêncio das partes sobre esse assunto, no lugar em que, segundo o contrato, tiver o depositário de a guardar, correndo as despesas com a restituição ao cargo do depositante (Art.ºs 1195.º e 1196.º do C.C.).
8.No caso o dono da obra (e depositante) condicionou o cumprimento da obrigação de entrega da viatura pelo empreiteiro à montagem de determinada peça (turbo) e à devolução do preço pago.
9.A exigência da devolução integral do preço pago é ilegítima, porque não houve resolução do contrato fundada em incumprimento definitivo do empreiteiro (cfr. Art.s 801.º n.º 2 ou 1222.º do C.C.) com efeitos retroativos (cfr. Art. 434.º n.º 1 do C.C.).
10.A desistência da obra pelo dono, nos termos do Art.º 1229.º do C.C., que tem efeitos apenas para o futuro (ex nunc), não tem como consequência a obrigação de restituição de tudo o que haja sido prestado pelas partes (cfr. Art.º 434.º e 289.º do C.C.), embora pudesse ter de existir um encontro de contas entre o custo dos trabalhos efetivamente realizados e o preço que havia sido antecipadamente pago pelo dono da obra, por conta do preço que seria devido, nos termos do Art.º 1229.º, 2.ª parte, do C.C..
11.Quanto à obrigação de montagem do turbo, por força da desistência do dono da obra, nos termos do Art.º 1229.º do C.C., extinguiu-se o contrato de empreitada e, por isso, essa obrigação deixou de ser exigível cumprir ao empreiteiro.
12.Colocada a questão em termos de prestação acessória decorrente do contrato de depósito, nesse contrato não existe a obrigação legal específica de entrega da coisa nos precisos termos em que a mesma foi depositada. O que sucede, é que o depositário responderá por todos os danos verificados durante o cumprimento da obrigação de guarda da coisa, que lhe sejam diretamente imputáveis, ou que fossem por si evitáveis no quadro do cumprimento da sua obrigação de guarda (Cfr. Art.ºs 798.º, 799.º, 1187.º al. a) e 1188.º do C.C.).
13.A existência de eventual direito a indemnização por danos causados na viatura durante o período de guarda da mesma pelo empreiteiro não justificaria a recusa pelo credor (depositante) do cumprimento pelo devedor (depositário) da obrigação de entrega da coisa, findo que se mostra o contrato.
14.Nestas condições, a recusa da obrigação de entrega da coisa determina uma situação de mora do credor (cfr. Art.º 813.º do C.C.), passando a correr por conta do dono da obra (depositante) o risco pela responsabilidade da impossibilidade superveniente de realização da prestação devida (cfr. Art.º 815.º n.º 1 do C.C.).
15.Acresce ainda que, nos termos do Art.º 1228.º n.º 1 do C.C., se por causa não imputável a qualquer das partes, a coisa perecer ou se deteriorar, o risco corre por conta do proprietário da coisa e não pelo empreiteiro.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
F… intentou a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, contra J… e B…, cuja identificação foi posteriormente corrigida para “BA…, Lda.”, sendo certo que, por sentença de 16/01/2020, veio a ser homologada a desistência do pedido quanto a esta 2.ª R., “BA…, Lda.”, extinguindo-se a instância quanto à mesma (cfr. fls. 79 a verso).
Pediu o A. a condenação dos R.R. a: restituírem as chaves da viatura; a procederem à reparação da viatura e entregar a mesma nos exatos moldes em que foi depositada nas instalações do R.; na restituição em condições de utilização do turbo; na restituição em condições de utilização da bateria; na restituição do puxador da porta de em condições de utilização; na restituição do mecanismo que faz abrir e fechar as portas eletricamente; e a procederem à reparação do vidro e dos riscos da viatura. Ou, em alternativa, pediu a condenação dos R.R. ao pagamento do valor total de 5.500,00 Euros, correspondente à reparação de todos os danos da viatura, conforme orçamentos pedidos a outras oficinas para a reparação da mesma, como ela se encontra na presente data, acrescida de juros de mora vincendos, a contabilizar sobre o capital em divida, até integral e efetivo pagamento. Pediu ainda a condenação dos R.R. a restituir o valor de 500,00 Euros, pagos para reparação da viatura, uma vez que a mesma nunca foi reparada, acrescida de juros de mora vincendos, a contabilizar sobre o capital em divida, até integral e efetivo pagamento; a condenação dos R.R., a título de responsabilidade civil extracontratual, ao pagamento do valor total de 5.761,98€, correspondente ao pagamento do contrato de locação financeira relativo à viatura, efetuado com o Banco Santander, relativamente ao qual o A. se encontra a pagar uma prestação mensal de 240,03€; e a condenação dos R.R. ao pagamento das rendas relativas ao contrato de locação financeira respeitante à viatura desde maio de 2018 até à notificação da sentença.
Alega, em síntese, que é proprietário de um veículo automóvel cujo turbo avariou e que, por recomendação, contatou o 1.º R., que trabalhava nas oficinas da 2.ª R., tendo aquele visto o veículo e confirmado que o problema era efetivamente do turbo. Foi-lhe dado um orçamento para a reconstituição do turbo, o arranjo do punho da porta lateral, pastilhas e verificação de travões, no montante total de 700 euros.
O A. entregou parte do preço, de 500 euros, tendo o R. se comprometido a entregar a viatura no prazo de 15 dias. Prazo esse que foi ultrapassado, sem que a viatura fosse entregue.
Quando foi chamado pelo R. para levantar a viatura, verificou que a mesma não estava reparada, não trabalhava e não tinha o turbo colocado. Ao recusar-se a levar a viatura naquelas condições, o R. deixou a viatura na rua ao abandono, recusando-se a entregá-la com as peças que tinham sido tiradas, e com as chaves.
Não obstante as interpelações e constatando que a viatura se degradava, foi buscar a viatura de reboque do local onde se encontrava, sem que tenha recebido as chaves.
A viatura está sem turbo e sem peças que a componham, foi riscada, os bancos ficaram retalhados de exposição ao sol e a foi objeto de vandalismo.
Pretende assim a reparação da viatura no estado em que encontrava, ou o pagamento do montante necessário para reparação, e ainda o valor que está a pagar à empresa de locação financeira.
Citados os R.R., inicialmente apenas a 2.ª R., BA…, Lda., contestou invocando a sua ilegitimidade passiva, reclamando a condenação do A. como litigante de má-fé.
Findos os articulados, veio a ser realizada audiência prévia, na qual o A. veio desistir do pedido contra a 2.ª R., BA…, Lda., que por sua vez desistiu do pedido de condenação como litigante de má-fé.
O 1.º R., invocando não ter sido notificado da decisão da Segurança Social que deferiu a nomeação de patrono, veio sustentar existir um justo impedimento para a não apresentação de contestação.
Na sequência, por despacho de 14 de dezembro de 2020, veio a ser declarada a nulidade dos procedimentos subsequentes à junção do pedido de apoio judiciário, salvaguardando-se a homologação da desistência do pedido quanto à co-R. e determinado o reinício do prazo para o 1.º R. contestar.
O 1.º R. veio então contestar, admitindo que fazia biscates na área de reparação de viaturas e que foi contatado para a reparação e montagem de um turbo de um veículo automóvel, aceitando desinstalar o turbo antigo e a instalar o que lhe fosse entregue pelo dono do carro, pelo preço de 120,00 euros. Aceita que viu a viatura do A. e que a mesma tinha o turbo danificado. Contudo, mais tarde, o A. pediu que incluísse no serviço a reparação do turbo e a sua montagem, o que respondeu só poder ser feito por oficina especializada. Informou o A. que tinha um orçamento da empresa M…P… para reparação do turbo por 400 euros, e que, por lhe ter sido pedido, também faria o arranjo do punho da porta lateral, substituição de pastilhas e verificação dos travões, o que orçamentou por 300 euros. O A. aceitou aquelas condições, tendo mandado reparar o turbo, pagando o orçamento do seu próprio bolso. Montou o turbo, mas ele ficou bloqueado, tendo sido detetado que o problema não era do turbo, mas do mecanismo que o alimenta. Adiantou mais 400 euros para a reparação do turbo à referida oficina de peças e, com autorização do A., desmontou o cárter, concluindo que o óleo que estava a ser usado não era o adequado, tendo então explicado ao A. que havia um problema na alimentação do turbo, que o cárter estava obstruído, e que, por uso de óleos indevidos era necessário efetuar uma lavagem ao motor antes de voltar a montar o turbo. O A., porém, não aceitou os arranjos adicionais e pediu-lhe apenas para montar o turbo, o que não aceitou por já ter despendido muito dinheiro, que lhe tinham sido omitidos factos relevantes para a reparação da viatura, pedindo ao A. que a retirasse da oficina, o que ele não aceitou. Após, empurrou o veículo para fora da oficina com o turbo desmontado, mas reparado, para que o A. mandasse rebocar o veículo, tendo-lhe entregue as chaves, mas o A. recusou levar a viatura sem a sua reparação ou a devolução do dinheiro. Mais tarde, apercebeu-se que a viatura tinha sido vandalizada, o que avisou o A., que a manteve onde se encontrava por mais 3 meses, sujeita a mais vandalismo e degradação. Alegou ainda que o A. sabia que o R. não tinha capacidade técnica para a reparação dos problemas que foram detetados na viatura, que este se dedicava àquela atividade em horas vagas, acabando por impugnar os danos invocados pelo A..
Findos os articulados, foi proferido despacho a dispensar a realização de audiência prévia e a identificar o objeto do litígio, enunciado os temas da prova.
Admitida a prova, designou-se a realizou-se a audiência final e, finda a produção da prova e discutida a causa, veio a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente por não provada, absolvendo o R. dos pedidos contra ele formulados.
É dessa sentença que o A. vem agora interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
A. O presente Recurso tem por objeto a Sentença proferida nos autos que julgou a presente ação improcedente, por não provada, e em consequência absolveu o Réu J… de todas as pretensões formuladas pelo Recorrente, versando o mesmo sobre matéria de facto, por incorretamente julgada; (…)
E. Relativamente aos factos considerados provados requer-se, por meio do presente Recurso, a sua alteração no sentido de passar a figurar como facto NÃO PROVADO o facto constante do Ponto 17. dos atuais factos provados, atento o teor dos meios de prova expressamente referidos supra nas alegações, porquanto, no entendimento do ora Recorrente, e tendo presente os concretos meios de prova elencados e a apreciação crítica dos mesmos ora realizada, resulta sobejamente demonstrado que o Réu não montou o turbo porque ao fazê-lo se sentiria lesado, uma vez que já teria pago a segunda reconstrução do turbo, por sua iniciativa, a expensas suas – diversamente do que fora dado como provado.
F. Sendo que, resulta da prova gravada, que o Réu assume expressamente que não procede à (re)montagem do turbo porque esta envolveria trabalho e já envolveu gastos que o Réu não previa, sendo que, no entanto, a escolha de o retirar uma segunda vez para reparar foi exclusivamente sua.
G. Consequentemente, atendendo à alteração de matéria de facto anteriormente requerida, e atendendo aos meios probatórios constantes dos autos e expressamente referidos nas alegações supra, deve ser antes dado indiciariamente como PROVADO, pelo menos no tocante ao turbo, que o Réu (ponto 17.) “não montava o turbo porque ao fazê-lo se sentiria lesado, uma vez que já teria pago a segunda reconstrução do turbo, por sua iniciativa, a expensas suas.”
H. O que desde logo altera todo o circunstancialismo e consequentemente a decisão ora recorrida.
I. Assim, firmado como provado tal facto, em consequência, passa a não se encontra motivo válido legalmente para que não findasse o Réu a prestação da montagem do turbo, quando voluntariamente se desviou do contratado entre as partes.
J. Pelo que sempre se dirá, em conclusão, que o Réu passou a encontrar-se em incumprimento da sua prestação, solicitada que foi a montagem do turbo por ele, posteriormente, expressamente recusada.
K. Alterada a matéria de facto nos termos requeridos, incumprindo o Réu a prestação quanto à colocação do turbo, e comunicada que foi a intenção expressa de não montar o mesmo pelos motivos supra expostos, que foram inclusivamente confessados em sede de audiência, entende o Autor que juridicamente devia ser entendido que o Réu se recusa ao cumprimento.
L. O que imporia necessário resultado diferente à causa como infra se explanará.
M. É nessa esteira, pelo menos quanto à primeira prestação do contrato, que entende o Recorrente que existiu incumprimento do Réu sem fundamento legal para tal, devendo inequivocamente ser considerado inadimplente de forma definitiva.
N. Sendo de reforçar que a contraprestação decorrente do arranjo do turbo a ser efetuada pelo Autor – o pagamento do preço -, já estaria cumprida, facto provado número 11.
O. Pelo que se conclui que operou recusa ilegítima do cumprimento da obrigação por parte do Réu, porquanto esta estriba numa exigência que não tem suporte no celebrado entre as partes, e, portanto, a algo que não estava o dono da obra vinculado.
P. Reforçando-se, dado o enquadramento factual já supra sindicado também em sede de alegações, que em sequência da atuação do Réu, acresceu a perda do interesse do Autor na execução da obra.
Q. Porquanto o Réu, inclusivamente, determinou também que para cumprir a totalidade da prestação quanto ao turbo – onde se inclui desmontagem, reconstrução e montagem - sempre teria de fazer intervenções no motor, necessitando de celebrar novo contrato de empreitada, e consequente de ser pago em 1.000,00 € para essa nova intervenção.
R. Acrescendo que desse circunstancialismo resultam significantes alterações em termos de aplicação do regime jurídico em apreço.
S. Do circunstancialismo factual em causa entende o Recorrente que operou, da sua parte, a competente resolução contratual, sendo de concluir que está em causa o regime jurídico previsto nos artigos 432.º e seguintes do Código Civil, e não o regime do artigo 1229.º do Código Civil como entendeu erradamente o Tribunal a quo.
T. Assim, o regime em causa será o da resolução do contrato e não o regime da desistência da obra, como erradamente subsumiu o Tribunal ao seu comportamento.
U. Pelo que, operando resolução, dados os efeitos retroativos previstos no artigo 434º e 289.º número 1. do Código Civil, deverá ser retomada a realidade factual pré-contratual.
V. Assim, a lei determina que tal retroatividade imporia que juridicamente a situação factual anterior se manifestasse da seguinte forma: devolução por parte do Recorrido do preço pago e a restituição por parte do mesmo do carro com o turbo montado (mesmo que avariado) - e não às peças.
W. Acrescendo que, face à situação factual sindicada, por parte do Tribunal ocorreu deficiente aplicação do regime do contrato de depósito, incluindo e incidindo igualmente numa errada aplicação sobre a dever de guarda e conservação da coisa.
X. Pois que, de acordo com o preceituado no artigo 1187.º, alínea c) do Código Civil, deve o depositário restituir a coisa.
Y. Uma restituição que deveria operar no estado em que a recebeu – e não às peças.
Z. Concluindo-se pela errada aplicação dos preceitos quando o Tribunal a quo entendeu que o dever de entrega da coisa se cumpriu quando a mesma se disponibilizou desmontada ao Recorrente, o que, ainda para mais na esteira do incumprimento já sufragado, salvo o devido respeito, não tem causa legítima e se demonstra uma interpretação anómala do presente regime.
AA. Isto já que, como se disse, o depositário está obrigado a restituir a coisa quando esta lhe for exigida e no estado em que a recebeu.
BB. Uma obrigação que se entende perspetivada segundo um critério de razoabilidade/proporcionalidade e de justiça contratual, à luz do princípio da boa-fé contratual.
CC. Assim, crer que está cumprida a obrigação quando o veículo é entregue com as peças colocadas no seu interior, já tendo sido paga inclusivamente a prestação para montar o respetivo turbo, é deturpar e desviar o sentido da norma.
DD. Concluindo-se e reiterando-se que, para cumprir a obrigação o Recorrido deveria antes entregar o automóvel com o turbo montado, e não às peças.
EE. Acrescendo que, segundo o vertido no artigo 1195.º do Código Civil, deveria ser a obrigação cumprida no lugar estipulado para a guarda.
FF. Sucede que o Tribunal a quo entendeu erradamente que tal obrigação se cumpriu mesmo tendo o Recorrido colocado o automóvel desmontado na rua, ou seja, fora da oficina onde fora depositado pelo Recorrente.
GG. Pelo que, somos obrigados a concluir que, uma vez mais, interpretar o regime no sentido de entender que o dever de guarda se exerce igualmente quando o automóvel é colocado na rua, com peças desmontadas, é, salvo o devido respeito, uma interpretação que não encontra no regime o mínimo de correspondência.
HH. Concluindo que tão pouco se salvaguardou o dever de guarda, e exemplo disso é o facto que o carro ter sido totalmente pilhado e vandalizado – factos provados 19. e 20. – não sendo razoável crer que o mesmo operasse se estivesse dentro da oficina.
II. Devendo assim antes entender-se que o Recorrido incumpriu, sem causa legítima, a prestação e os deveres a que estaria adstrito como depositário, pelo que tal violação sempre importaria responsabilidade civil.
JJ. Acresce que o Recorrente, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, com o qual também não concorda, por tudo o já sufragado, entende no caso concreto não ser aplicável o regime da mora do credor, prevista nos artigos 813.º e seguintes do Código Civil.
KK. Onde o regime determina que existe transferência para o credor do risco face a impossibilidade da prestação quando, sem motivo justificado, o credor não aceita a prestação que lhe é oferecida.
LL. Pois que conclui o Recorrente que não é o credor (Recorrente) que se encontra em mora, sendo antes o devedor: que não lhe entrega o veículo no estado em que o recebeu, bem como não o deposita (no caso mantém) na oficina para ser levantado e tão pouco se encontra a cumprir o dever de guardar o bem.
MM. Pelo que se conclui que nunca cumpria ao Recorrente aceitar a prestação nestes termos, tendo para isso motivo justificado.
NN. Motivo pelo qual não pode igualmente a Douta Sentença recorrida deixar de ser revogada e substituída por Douto Acórdão que, conhecendo da impugnação da matéria de facto e concluindo pela não verificação no caso dos regimes e pressupostos jurídicos aplicados pelo Tribunal a quo, julgue o presente Recurso procedente por provado, determinando procedente o anteriormente peticionado pelo Recorrente.
OO. E bem assim, igualmente mediante o sufragado, tendo o Recorrido incumprindo a obrigação de disponibilizar o automóvel nos moldes previstos legalmente e face à deterioração que ocorreu do mesmo, existindo inclusivamente privação de uso deste condenar-se o Réu, tal como peticionado, no pagamento dos valores contrato de locação financeira peticionados.
PP. Do mesmo modo, face ao que cabe exigir ao Recorrido, por força do incumprimento no tocante ao regime jurídico do depósito, conclui-se que deve igualmente entender-se que deve ser condenado à reparação dos danos na viatura, pois que por culpa da sua atuação este foi objeto de esbulho e vandalismo.
Pede assim que seja dado integral provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e substituindo-a por acórdão que julgue procedente por provado o sufragado, condenando o Recorrido no pedido.
O R. respondeu ao recurso e, mesmo não apresentando conclusões, pugnou pela improcedência do mesmo.
 *
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art.º 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A impugnação da matéria de facto;
b) O incumprimento do contrato de empreitada pelo R., sua cessação por resolução e consequências legais.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso julgou por provada a seguinte factualidade:
1. No ano de 2015, o A., F…, era titular do direito de locação financeira sobre o veículo automóvel de marca Peugeot 807, com a matrícula …-VZ, estando inscrita reserva de propriedade a favor de Banco …, S.A.;
2. Em data não concretamente do mês de agosto de 2015, o A. falou com um conhecido, chamado B…, e deu-lhe a saber que tinha o turbo do veículo referido em 1) avariado, que tinha comprado um turbo já usado para instalar, e que procurava alguém que fizesse a substituição do turbo, pelo preço mais barato possível;
3. B… disse conhecer o R., J…, que trabalhava na confeitaria dos Pastéis de Belém, mas que fazia pequenas reparações de veículos automóveis nos seus tempos livres;
4. Com o A. presente, B… telefonou ao R., J…, e explicou o serviço pretendido, tendo este respondido aceitar fazer a substituição do turbo pelo preço de 120 euros.
5. O A., F…, rebocou o veículo para a oficina do R., J…, que era um espaço que funcionava no interior de um armazém cedido pela sociedade BA…, Lda., que explorava um stand automóvel;
6. O R. confirmou que o turbo estava avariado, pelo que A. e R. acordaram que o R. fizesse a desmontagem do turbo avariado e a montagem de um turbo que o autor lhe entregasse, pelo preço de 120 euros;
7. Mais tarde, sem que lhe tivesse sido entregue do turbo pelo A., o R. propôs ao A. levar o turbo avariado a uma casa da especialidade para que fosse recondicionado, o que o A. aceitou;
8. O R. levou o turbo à oficina M…P…, Lda., que orçamentou a reparação do turbo avariado em 400 euros;
9. Informado do orçamento, o A. pediu ao R. que procedesse ainda ao arranjo do punho da porta lateral da viatura, da substituição de pastilhas e verificação de óleo dos travões;
10. O R. informou ao A. que aqueles serviços e a desmontagem e montagem do turbo ascendiam a 300 euros, ficando um total de 700 euros, o que o A. aceitou;
11. Em data não concretamente apurada, A. e R. encontraram-se na pastelaria dos Pasteis de Belém, onde este trabalhava, tendo o A. entregue ao R., como adiantamento dos serviços acordados, 500 euros em numerário;
12. O R. promoveu a reparação do motor na oficina M…P…, Lda. para o qual pagou o montante de 400 euros;
13. Montado o turbo recondicionado, o R. ensaiou o veículo e o motor gripou;
14. Uma vez que a oficina M…P… descartou que o problema fosse do turbo, o R. pediu ao A. autorização desmontar o cárter, o que lhe foi dada, tendo detetado que havia uma obstrução que impedia o óleo de fluir e de chegar ao motor;
15. O R. informou o A. daquele diagnóstico e que seria necessário fazer uma lavagem do motor e reparar quaisquer fugas de óleos, antes de montar o turbo, e que essa intervenção custaria 1.000 euros;
16. O A. recusou a execução desses trabalhos, exigiu a devolução o veículo no estado em que se encontrava, com o turbo montado, e a devolução do preço pago;
17. O R. respondeu que dava por findos os trabalhos, que o A. podia levar o veículo consigo, mas que não montava o turbo por existir aquele problema de motor, além de que a montagem do motor exigia a realização de trabalhos que não estavam cobertos pelo preço já pago;
18. Perante a recusa do A. em levar o veículo consigo, o R. colocou as peças do motor no seu interior, fechou-o e empurrou-o para fora da oficina, deixando-o estacionado nas imediações da oficina para que o R. diligenciasse pelo seu reboque;
19. Estacionada no exterior da oficina por um período de tempo não apurado e sem que o A. a levasse consigo, a viatura acabou por ser vandalizada em circunstâncias não apuradas, tendo sido partido o vidro da porta, remexido e danificado o seu interior, sendo levado o turbo e a bateria;
20. A viatura foi rebocada pelo A. sem bateria, puxador da porta de correr e mecanismos de abertura elétrico;
21. O A. remeteu ao R. uma carta registada com aviso de receção datada de 22 de abril, interpelando-o para devolver o valor pago para reparação da viatura e sua a devolução nos termos em que lhe foi entregue, com todas as peças e sem riscos.
22. Em resposta, o R. respondeu telefonicamente ao A. que o turbo do veículo estava reparado.
 *
O tribunal julgou ainda como não provados os seguintes factos:
a) Em agosto de 2015, o A. levou o veículo referido em 1) dos factos provados à oficina Peugeot para pedir um orçamento, tendo o mesmo sido informado que a viatura tinha o turbo avariado e foi-lhe referido o valor da reparação;
b) O R. comprometeu-se a proceder à reparação da viatura em 15 dias pelo preço de 300 euros;
c) Posteriormente, e depois de várias idas à oficina por parte do A., o R. informou que já tinha desmanchado a viatura e que a resolução da avaria era de fácil reparação;
d) Passada uma semana, já voltou a dizer que a avaria era do turbo.
e) O R. disse ao A. que fazia a reconstituição do turbo por 300 euros e que trazia o comprovativo de outro mecânico;
f) Na altura da entrega da quantia referida em 11) dos factos provados, o réu comprometeu-se a proceder à reparação da viatura no prazo de 15 dias;
g) O R. recusou-se a entregar a viatura com as peças que tinham sido retiradas e a entregar as chaves da viatura;
h) Ao empurrar a viatura para o local onde se encontrava, o R. fez a viatura embater com o lado direito no portão e a viatura ficou toda riscada;
i) Os bancos da viatura, que são em pele, ficaram retalhados por estarem expostos ao sol;
j) A reparação das anomalias existentes na viatura ascende a 5.500,00 euros;
k) O valor correspondente ao contrato de locação financeira da viatura é de 5.761,98 euros.
l) O A. ocultou ao R. a situação real das avarias da viatura.
Tudo visto, cumpre apreciar.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões que fazem parte do objeto dos recursos apresentados, cumpre delas tomar conhecimento pela sua ordem de precedência lógica, começando inevitavelmente pela impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
1. Da impugnação da matéria de facto.
Estabelece o Art.º 662º n.º 1 do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Nos termos do Art.º 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que ao Recorrido caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo um dos mais relevantes o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
No caso dos autos, o A., aqui Recorrente, pretende pôr em causa o julgamento do facto provado em 17, considerando que o mesmo deveria ser dado por não provado (cfr. conclusão E), porquanto da prova produzida em audiência, nomeadamente por depoimento do próprio R., cujos extratos relevantes reproduziu, resultaria demonstrado que aquele não montou o turbo, porque se sentiria lesado se o tivesse feito. Por isso, considera que deveria ser dado por provado que o R. “não montava o turbo, porque ao fazê-lo se sentiria lesado, uma vez que já teria pago a segunda reconstrução do turbo, por sua iniciativa, a expensas suas.” (cfr. conclusão G).
O Recorrido limitou-se a contrapor que o presente recurso era uma mera manifestação de inconformismo do Recorrente com uma sentença que julgou a matéria de facto de forma irrepreensível.
Apreciando, como se vê, em causa está apenas o que ficou assente no ponto 17 dos factos provados da sentença recorrida, donde resulta que: «O R. respondeu que dava por findos os trabalhos, que o A. podia levar o veículo consigo, mas que não montava o turbo por existir aquele problema de motor, além de que a montagem do motor exigia a realização de trabalhos que não estavam cobertos pelo preço já pago».
Este facto vem na sequência da matéria que ficou a constar nos dois pontos anteriores, que traduzem uma nova proposta de reparação da viatura, apresentada pelo R., no valor de €1.000,00 (cfr. facto 15), com a consequente recusa dessa proposta pelo A., que exigiu a devolução do veículo no estado que se encontrava, com o turbo montado e devolução do preço pago (cfr. facto 16). É assim que vem a ser dado por provado, no ponto 17, que o R. respondeu que dava os trabalhos por findos e que o A. poderia levar o veículo, não aceitando, no entanto, montar o turbo, devido ao problema no motor, explicando que a montagem do motor exigia trabalhos não cobertos pelo preço já pago.
A sentença recorrida julgou essa matéria por provada, expressando a sua convicção nos seguintes termos: «O episódio que levou à rutura entre autor e ré é descrito, de forma categórica, pela mulher do autor, que mereceu credibilidade nesta parte. Explicou que num contexto de estar farta de esperar pelo veículo, convencida que o marido não estava a diligenciar eficazmente pelos interesses do casal, recusou liminarmente o diagnóstico que estava a ser dado (que admite desconhecer se era atinado ou não, convencida que o réu estava de má-fé), tendo exigido a devolução do dinheiro pago, e do veículo com o motor montado. O réu recusou e disse ao autor para levar o veículo consigo.
«Estes eventos são confirmados, em termos gerais, por autor e réu, que reconhecem ter sido pedido mais 1000 euros para limpeza do motor – factos provados 16) a 18).
«O autor, nas declarações de parte, reconhece que o réu não impediu que levasse o veículo ou que se tenha recusado a devolver a chave. Ele, autor, é que não queria receber o veículo com o motor por montar. Efetivamente, se o réu quisesse reter a viatura não a tinha levado para fora das instalações da oficina, sabendo que o autor poderia ter uma chave suplente ou aceder com um reboque – facto não provado g)».
O Recorrente entende que o facto 17 deveria ser dado por não provado com base no depoimento do próprio R. (gravação a partir dos minutos 20:35) quando disse: «… Já não montei o turbo, falei com o Sr. F…, porque o que se estava a passar ali era com o motor, mas não com o turbo»; acrescentando (aos minutos 21:23) que: «(…) expliquei-lhe a situação, disse-lhe que havia solução para aquilo, portanto que teriam de ser outros valores e, pronto, o Sr. F… já não me permitiu mais mexer na viatura. Obrigando-me a montar o turbo na mesma assim. Eu disse que não montava. Não achava correto, já tinha sido lesado no recondicionamento de um segundo, não é?»; e ainda (aos minutos 22:54) que: «Faltava montar a tal peça dos travões, o cárter, o chupador do óleo… portanto parte que se retira para averiguar onde é que está o problema que provocou o tal dano no turbo, não é? Todas essas peças faziam falta montar lá. E eu disse que não montava porque não ia ser pago por aquele serviço, não ia montar, não é? E uma vez, não lhe montava o turbo porque não achei corretamente colocar o turbo lá. E de acordo com o meu irmão não é, que ele é mecânico, que disse “é pá isso o melhor é não fazeres isso, é entregares assim o carro”, e pronto e foi o sucedido».
Portanto, na perspetiva do Recorrente deveria antes constar provado que o R. não montou o turbo no carro do A. porque julgou, depois de ter procedido a uma segunda reconstrução do turbo, por iniciativa própria (cfr. gravação aos minutos 45:27), na qual alegadamente gastou 800 euros, que já seria lesivo dos seus interesses proceder à (re)montagem do turbo. Isto, porque 800 euros, gastos em duas reconstruções de turbo, ultrapassavam os 500 euros entregues pelo A..
Pretende assim evidenciar que o R. não tinha motivo para não proceder à montagem do turbo, pois já se encontrava pago pela quantia entregue pela A., apenas lhe restando cumprir a sua obrigação de desmontar, reconstruir e, por fim, montar o turbo.
Ouvida a gravação do depoimento do R., único posta em causa com a presente impugnação, efetivamente o mesmo disse que se sentia lesado por ter gasto cerca de 800 euros para recondicionamento do motor e, por isso, decidiu não montar as peças por se sentir lesado. Mas também disse o motivo pelo qual se sentia prejudicado, explicando que o A. o enganou, porque o R. veio a saber que o veículo teria estado antes noutra oficina em que teriam exigido um valor muito superior pela reparação devida e, portanto, quando o R. assumiu as despesas com o recondicionamento do motor, num total de 800 Euros, julgando que o problema era apenas de substituição do turbo, já existiriam antes razões para saber que o problema nunca teria sido apenas do turbo, o que o levou a ter despesas que doutro modo não teria. É esse o sentido final do seu depoimento gravado (v.g. gravação aos minutos 24:25 a 25:08).
Em todo o caso, temos de o dizer, o facto que ficou provado no ponto 17 reflete, em grande parte, o sentido do depoimento do R. que, perante o comportamento do A., decidiu pôr termo aos trabalhos, dizendo a este para levar a viatura. Portanto quanto à primeira parte do ponto 17 da sentença recorrida, motivos não existiriam para julgar esses factos por não provados.
Quanto à recusa de montagem do turbo, ela já constava provada no ponto 17 e também foi confirmada pelas declarações do R., que justificou essa recusa em termos tais de que resulta a conclusão de que seria um trabalho inútil, porque o problema não era do turbo, mas sim do motor e da existência duma obstrução dos canais de alimentação que conduziam o óleo ao dito turbo. Fica-se assim com a ideia geral de que o turbo teria sempre de ser desmontado, de qualquer maneira, nessa outra reparação maior e necessária, relativa ao motor, sendo que a mera montagem do turbo, nessas condições, não permitiria sequer que o veículo pudesse circular pelos seus próprios meios.
Por outro lado, pelas mesmas razões, a montagem do turbo, em condições de funcionalidade, implicava efetivamente a realização doutros trabalhos que não estariam a coberto pelos trabalhos inicialmente previstos realizar, que se resumiam apenas à substituição da peça do turbo.
Em suma, foi tudo isso que ficou provado no ponto 17 da sentença recorrida e, a nosso ver, corretamente, mesmo em função do depoimento do R. que o próprio Recorrente transcreveu nas alegações, ainda que omitindo a justificação apresentada para o alegado prejuízo tido pelo R..
No que se refere ao aditamento aos factos provados sugerido pelo Recorrente na conclusão G), ele traduz outro segmento do depoimento do R., donde resulta que o mesmo também assumiu que não montaria o turbo, porque se sentiria prejudicado, uma vez que já teria pago uma segunda “reparação” junto da oficina M… P…, Lda..
Essas duas reparações, de 400 euros, cada, custeadas pelo R., foram alegadas nos artigos 20.º e 26.º da sua contestação e constam dos factos provados nos pontos 8 e 12 da sentença recorrida. Tal como o foi a omissão de informações imputada ao A. acerca da avaria do turbo, conforme consta do artigo 56.º do mesmo articulado (v.g. a fls. 114 verso), que ficou dada por não provada na alínea l) da sentença recorrida. Sem prejuízo, temos de reconhecer que o ponto 17 dos factos provados não esgota as justificações dadas pelo R. para não montar o turbo e, por isso, deve ser aditado que este entendeu igualmente não dever montar o turbo por se sentir prejudicado, por já ter assumido o pagamento da segunda reparação mencionada no ponto 12.
Em conformidade, o ponto 17 deve passar a ter a seguinte redação:
«17. O R. respondeu que dava por findos os trabalhos, que o A. podia levar o veículo consigo, mas que não montava o turbo por existir aquele problema de motor, além de que a montagem do motor exigia a realização de trabalhos que não estavam cobertos pelo preço já pago, sendo que também já se sentia lesado, uma vez já ter pago a segunda reparação do motor, mencionada em 12, por sua iniciativa».
2. Do incumprimento do contrato de empreitada e suas consequências.
Fixada a factualidade relevante, cumpre então apreciar os fundamentos da apelação relativamente ao mérito da causa.
Relembremos que o A. intentou a presente ação formulando como pedidos que o R. fosse condenado a: restituir as chaves da viatura; a proceder à reparação da viatura e entregar a mesma nos exatos moldes em que foi depositada nas instalações do R.; a restituir o turbo em condições de utilização; a restituir a bateria do veículo em condições de utilização; a restituir o puxador da porta de em condições de utilização; a restituir o mecanismo que faz abrir e fechar as portas eletricamente; e a proceder à reparação do vidro e dos riscos da viatura. Ou, em alternativa, a pagar o valor de 5.500,00 Euros, correspondente à reparação de todos esses danos da viatura, acrescida de juros de mora. Em todo o caso, deveria o R. sempre restituir o valor de 500,00 Euros pagos para reparação da viatura, uma vez que ela nunca foi reparada, e ser condenado ao pagamento do valor de 5.761,98€, correspondente ao pagamento do contrato de locação financeira relativo à viatura, a que acresceriam as rendas relativas à mesma locação financeira, desde maio de 2018 até à notificação da sentença.
Todos esses pedidos assentam na alegada celebração de contrato entre A. e R. consistente numa concreta reparação do veículo automóvel pelo R., mediante o pagamento do correspetivo preço pelo A., que seria o seu legítimo detentor, enquanto locatário do mesmo, no quadro de um contrato de locação financeira celebrado com instituição bancária.
Inquestionavelmente que o contrato que vinculava ambas as partes é qualificável como um contrato de empreitada.
O contrato de empreitada é definido na lei como aquele pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço (cfr. Art.º 1207.º do C.C.).
A reparação de veículos automóveis está entre as situações típicas de realização de “obra” reconhecidas pela doutrina e jurisprudência (vide, a propósito, entre muitos outros: Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil”, Vol. XII, pág. 835; Pedro Romano Martinez in “Direito das Obrigações (parte Especial) Contratos”, 2.ª Ed., 2001, pág. 317/8; Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, Vol. III, “Contratos em Especial”, 3.ª Ed., pág. 515; Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, vol. II, 4.ª Ed., pág.s 864 a 855; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/11/2020 – Proc. n.º 24904/18.5T8PRT.P1 – Relator Aristides Rodrigues de Almeida; e acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24/11/2016 – Proc. n.º 134724/15.7YIPRT.G1 – Relatora: Maria dos Anjos Nogueira, disponíveis em www.dgsi.pt).
No caso, o acordo consistiu inicialmente na desmontagem do turbo avariado no veículo detido pelo A. e montagem de um turbo que o próprio A. entregaria, tudo mediante o pagamento do preço de €120,00 (cfr. facto provado 6). Mas, mais tarde, como o A. não entregou o turbo a montar, o acordo passou pela entrega do veículo a uma casa da especialidade para que aí fosse recondicionado, o que foi aceito pelo A. (cfr. facto provado 7) e veio a importar no preço de €400,00 (cfr. facto provado 8).
O A., que foi informado do preço dessa reparação, pediu então ao R. que procedesse ainda ao arranjo do punho da porta lateral da viatura, substituição das pastilhas e verificação do óleo dos travões (cfr. facto provado 9). Tendo o R. informado que esses serviços, com a desmontagem e montagem do turbo, ascendiam a €300,00, o que foi aceito pelo A. (cfr. facto provado 10).
Em suma, no final, o que concretamente ficou acordado foi que o R. “recondicionaria” o turbo avariado, através da entrega do veículo a casa da especialidade, por €400,00, e arranjaria o punho da porta lateral da viatura, substituiria as pastilhas e verificaria do óleo dos travões, com a desmontagem e montagem do turbo, por €300,00, tudo num total de €700,00.
Por conta destes trabalhos o A. pagou ao R. €500,00 (cfr. facto provado 11), sendo certo que o único trabalho que efetivamente realizou foi promover a reparação do turbo, junto de oficina da especialidade, por €400,00 (cfr. facto provado 8), tendo depois promovido a reparação do motor, na mesma oficina, pelo que pagou mais €400,00 (cfr. facto provado 12), não se evidenciando que o A. tenha autorizado esse trabalho ou aceito orçamento que compreendesse essa nova despesa.
Sucede que, o turbo “recondicionado”, depois de devidamente montado no veículo, quando foi ensaiado pelo R., levou a que o motor gripasse (cfr. facto provado 13), tendo-se chegado a conclusão que o problema não poderia ser do turbo, entretanto já reparado (cfr. facto provado 14).
Nessa sequência, o R., com autorização do A., desmontou o cárter e detetou que o problema se referia a uma obstrução que impedia o óleo de fluir e chegar ao motor (cfr. facto provado 14), o que implicava a realização doutras reparações, que poderiam importar em cerca de €1.000,00 (cfr. faco provado 15), o que não foi aceito pelo A., que exigiu a devolução da viatura no estado em que se encontrava, com turbo montado, e ainda a devolução do preço já pago (cfr. facto provado 16). Por sua vez, o R. também deu os trabalhos por concluídos, permitindo ao A. levar o veículo, mas recusando montar o dito turbo (cfr. facto provado 17).
Sendo estes os factos, há que partir da consideração jurídica básica de que os contratos devem ser pontualmente cumpridos (Art.º 406.º n.º 1 do C.C.), incumbindo ao R., no quadro deste contrato de empreitada, executar a obra sem vícios, ficando o A. obrigado a pagar o correspetivo preço, nos termos acordados (Art.ºs 1208.º e 1211.º do C.C.).
O R., pela descrição sumária feita, evidentemente que não chegou a realizar a obra, excerto no que se refere à entrega do veículo em casa da especialidade para “recondicionamento” do turbo. Muito embora, esta última mencionada prestação não tenha determinado a efetiva e pretendida reparação da viatura, em termos tais que permitissem a sua normal circulação na via pública, pois no final apurou-se que o problema já não seria do turbo, entretanto reparado.
Portanto, o A. pagou €500,00 pela realização duma obra que deveria importar num total de €700,00, sendo €400,00, pelo recondicionamento do turbo – o que foi feito –, e €300,00 pelo arranjo do punho da porta lateral da viatura, substituição das pastilhas, verificação do óleo dos travões, com a desmontagem e montagem do turbo – o que nunca chegou a ser feito.
Em suma, não há dúvida que o R. não chegou a cumprir a sua prestação de forma integral (cfr. Art.ºs 763.º e 1208.º do C.C.), tal como convencionada entre as partes, sendo que, entretanto, ambas as partes, desentendendo-se, acordando pelo menos em fazer cessar de imediato essa relação contratual, ainda que desacordando sobre os termos exatos dessa cessação.
É inequívoco que ambas perderam interesse subjetivo na manutenção deste contrato. O A., porque exigiu a devolução do veículo no estado que se encontrava e a devolução do preço já pago (facto provado 16), e o R., porque respondeu no sentido de que dava por findos os trabalhos, permitindo ao A. que levasse a viatura (facto provado 17).
No caso, não está em causa sequer uma questão de denúncia de defeitos de obra, de direito à redução do preço ou à resolução do contrato com fundamento no incumprimento do empreiteiro (cfr. Art.ºs 1221.º e 1222.º do C.C.), pois o A. nunca chegou a exercer de forma “formal” qualquer desses direitos.
Veja-se que, em bom rigor, até ao desentendimento ocorrido entre as partes, o R. ainda não estava em incumprimento, porque a sua prestação completa ainda era possível, não estando sequer estabelecido um prazo para a sua realização integral.
Tenha-se em consideração que não ficou provado o prazo alegado pelo A. para a realização dos trabalhos, tal como consta da alínea f) dos factos não provados pela sentença recorrida. Logo, não havia sequer mora do empreiteiro, devedor da prestação relativa à realização da obra (Art.º 804.º n.º 2 do C.C.).
Acresce que, estando as partes vinculadas por contrato de empreitada, o dono da obra, no caso o A., não poderia, pura e simplesmente, resolver o contrato, por incumprimento do R. – incumprimento que, diga-se, era inexistente à data do desentendimento entre as partes –, porque essa possibilidade estaria sempre condicionada pela exigibilidade prévia da reparação de qualquer defeito da obra, nomeadamente por essa prestação se mostrar ainda incompleta (cfr. Art.º 1222.º n.º 1 do C.C.).
Como escreveram Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, Vol. II, 4.ª Ed., pág. 897): «Os direitos de redução do preço e de resolução do contrato não são atribuídos, em alternativa, com os de eliminação dos defeitos ou reconstrução da obra, conferidos no artigo anterior. (…) O Art.º 1222.º, na verdade, torna o exercício daqueles dois direitos dependentes do facto de não terem sido eliminados os defeitos ou construída de novo a obra. Dá-se, portanto ao empreiteiro a possibilidade de, querendo, manter o contrato pelo preço estipulado, eliminando os defeitos da obra ou construindo outra de novo; só na hipótese de ele não fazer nem uma coisa nem outra, se abre a possibilidade de redução do preço ou de resolução do contrato».
Existe assim uma hierarquização dos meios de tutela legal conferidos ao dono de obra. O dono da obra deve em primeiro lugar exigir a eliminação dos defeitos. Se esta não for possível, pode pedir uma obra nova. Não sendo esta viável, pode então pedir a redução ou resolução do contrato. Não há dúvida que o legislador visou, com esta hierarquização, fundamentalmente, proteger o empreiteiro (vide: Menezes Cordeiro in Tratado de Direito Civil”, Vol. XII, pág. 957, citando entre outros: Ac. do STJ de 2/12/1993 in CJSTJ 1993, Tomo 3, pág. 157 a 158; Ac. TRE de 15/1/1995 C.J. 1995, Tomo I, pág. 274 a 277; Ac. TRP de 15/4/1997 in BMJ 466 – pág. 586; Ac. TRL de 4/5/2010 (Dina Monteiro) proc. n.º 428/2001, disponível em www.dgsi.pt). Embora se deva acrescentar que o legislador assim o fez com o propósito de proteger a estabilidade desta relação jurídica contratual de natureza duradoura, ponderando a materialidade dos interesses do dono da obra por contraposição com os do empreiteiro.
Cura Mariano (in “Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra”, 7.ª Ed., pág. 129), neste contexto, também confirma que o direito à resolução, com fundamento em incumprimento defeituoso, só pode ser exercido após a colocação da obra pelo empreiteiro à disposição do seu dono para verificação da sua exatidão. Mas ressalva que: «antes desse momento, a resolução do contrato, com fundamento na realização defeituosa da obra, só pode ocorrer, nos termos do Art.º 801.º do C.C., quando a gravidade dos defeitos que já se verificam em pleno processo de execução permite que se considere impossível a sua realização, ou quando as características desses defeitos ou a posição assumida pelo empreiteiro face à sua existência, numa perspetiva objetivas, justifiquem a quebra de confiança que o dono da obra depositava na pessoa do empreiteiro para proceder ao adimplemento perfeito da sua prestação».
Este entendimento, que permite de algum modo afastar a regra da hierarquização supra mencionada, na verdade, no caso, dos autos, não pode sequer ser tido em consideração, porque a matéria de facto não permite que possamos trilhar este caminho, verdadeiramente excecional ao quadro legal estabelecido no Código Civil para o contrato de empreitada.
Seja como for, como vimos, o A. não chegou a resolver o contrato com fundamento no incumprimento do empreiteiro, até porque não havia ainda incumprimento por parte do R., pois nem sequer havia ainda mora. O que se verificou, de facto, não foi uma situação de perda objetiva do interesse do dono da obra, nos termos do Art.º 808.º n.º 2 do C.C.. Houve, apenas e só, perda subjetiva de interesse na manutenção da relação contratual, ainda que motivada pelo eventual desagrado com o rumo que a obra estava a tomar, fruto de circunstâncias que, em abono da verdade, não podem ser imputadas ao R., mas à realidade objetiva das necessidades de reparação dessa viatura.
Cumpre ainda acrescentar que o A. não estava efetivamente obrigado a aceitar a alteração à obra que havia sido proposta pelo R., com o consequente agravamento do preço para cerca de €1.000,00 (cfr. Art.º 1214.º n.º 1 do C.C.). Nessa medida, não existia, por isso também, qualquer incumprimento imputável ao dono da obra. Embora se deva concluir que, a não aceitação dessas alterações à obra, tenham determinado a verificação duma situação de impasse, em que a pretendida reparação da viatura, com vista a que a mesma pudesse circular normalmente na via pública, nos termos inicialmente previstos, se tenha revelado inviável com os mesmos pressupostos. Ou seja, ficou claro que não adiantava nada reparar ou substituir o turbo, se subsistisse a avaria no motor.
Em todo o caso, como vimos, o A. quis efetivamente por termo ao contrato de empreitada, tendo a sentença recorrida configurado essa situação como desistência do dono da obra, nos termos do Art.º 1229.º do C.C.. No entanto, sustenta agora o Recorrente que o que houve foi resolução do contrato nos termos dos Art.ºs 432.º e ss. do C.C..
Sucede que, a resolução do contrato só é admitida quando fundada na lei ou em convenção das partes que o possibilite (cfr. Art.º 432.º n.º 1 do C.C.). Ora, não tendo havido convenção das partes sobre a possibilidade de resolução do contrato, nos termos da lei a resolução só poderia ser tida por legítima se fundada no incumprimento definitivo da outra parte, ou impossibilidade culposa de realização da prestação devida, conforme decorre do Art.º 801.º n.º 2 do C.C.. O que, como já tivemos oportunidade de esclarecer, não se verificava no caso concreto.
Em consequência, o exercício do direito de resolução por mera comunicação à parte contrária (cfr. Art.º 436 n.º 1 do C.C.), não fundada em circunstância estabelecida em convenção das partes, ou em fundamento previsto na lei (cfr. Art.º 432.º n.º 1 do C.C.), nomeadamente por não estar sustentada em incumprimento definitivo e culposo da parte contrária (v.g. Art.º 801.º n.º 2 do C.C.), traduz-se num ato ilícito, correspondente a uma forma de incumprimento do contrato, determinando a responsabilidade contratual do autor dessa declaração, que assim responderá pelos prejuízos que com esse ato tenha causado à parte contrária (vide, a propósito: Pedro Romano Martinez, in “Da cessação do Contrato”, 2.ª Ed., págs. 221 e ss.).
Sucede que, no caso do contrato de empreitada existe um regime jurídico especial, que afasta essas regras gerais, embora em termos tais que a acaba por as reiterar.
Em causa está, precisamente, a previsão do Art.º 1229.º do C.C., que permite ao dono da obra desistir da empreitada a todo o tempo, independentemente da invocação de causa justificativa, legal ou convencional, e mesmo que já tenha sido iniciada a sua execução, contando que indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveio que poderia tirar da obra.
A desistência por parte do dono da obra é uma faculdade discricionária, não carece de fundamento para o seu exercício, sendo insuscetível de apreciação judicial, não carecendo de aviso prévio ou forma especial, determinando a extinção do contrato com eficácia ex nunc (cfr.: Pedro Romano Martinez in “Cessão do Contrato”, 2.ª Ed., pág. 566; Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil”, Vol. XII, pág.s 989 a 990; Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, Vol. III, 3.ª Ed., pág. 565).
A ratio legis deste preceito resulta da consideração que o dono da obra possa ter perdido interesse no resultado pretendido, não se justificando que continue vinculado àquele negócio, seja porque se alterou a sua vida, seja porque se alterou a sua situação económica, o que pode também passar pela consideração de pretender que a obra seja realizada por outro empreiteiro, porque perdeu confiança naquele que contratou inicialmente (vide: Pedro Romano Martinez in “Cessão do Contrato”, 2.ª Ed., pág. 565).
Ora, parece que esta figura é a que melhor se adapta ao que é descrito na matéria de facto (v.g. factos provados 15 a 17) como tendo ocorrido no caso concreto. O A. perdeu interesse (subjetivo) na prestação do R., porque não quis que a obra fosse concluída, perante a constatação da evolução dos valores que seriam necessários à pretendida reparação da sua viatura, pondo assim termo ao contrato por sua iniciativa, sem invocar qualquer fundamento legal, nomeadamente sustentado em qualquer incumprimento da parte contrária (que, como vimos, não existia).
Em face do exposto, concordamos com o enquadramento jurídico feito na sentença recorrida sobre os termos em que foi efetivamente estabelecido o fim da relação contratual que vinculava as partes, com recurso à figura da desistência pelo dono da obra, no quadro legal do Art.º 1229.º do C.C..
Assim, tendo o contrato de empreitada sido extinto por iniciativa unilateral do dono da obra, importa verificar quais as consequências daí advenientes, tendo em atenção os concretos pedidos formulados pelo A. nesta ação.
Em primeiro lugar, temos de considerar as questões relacionadas com a entrega do veículo.
Perante o desacordo verificado, o A. exigiu de imediato a entrega do veículo no estado que se encontrava, mas na condição do turbo ser montado e o preço que havia pago fosse devolvido (cfr. facto provado 16). Por sua vez, o R. aceitou por termo aos trabalhos e disse que o A. podia levar o veículo consigo, mas recusou-se a montar o turbo, justificando essa recusa com o problema no motor, com os custos dos trabalhos de montagem que não estavam cobertos pelo preço já pago e por se sentir lesado, uma vez que já tinha pago uma segunda reparação do motor, por sua iniciativa (cfr. facto provado 17). Como o A. recusou receber o veículo nessas condições, o R. colocou a viatura na rua, colocando as peças do motor no seu interior, naturalmente por montar (cfr. facto provado 18). O que veio a permitir que o mesmo tivesse sido vandalizado (cfr. facto provado 19), tendo o A. diligenciado posteriormente pelo reboque da viatura, já sem bateria, puxador da porta de correr e sem mecanismos de abertura elétrica (cfr. facto provado 20).
Visto isto, no caso, o contrato de empreitada implicou a entrega da viatura ao empreiteiro com vista à realização da obra acordada. Consequentemente, subordinado ao contrato de empreitada, foram convencionadas prestações acessórias típicas de um contrato de depósito, ficando o empreiteiro obrigado a cumprir as obrigações de guarda e restituição da coisa (cfr. Art.º 1185.º do C.C.). (vide, neste sentido: Ac. do TRP de 18/4/2000 (Relator: Oliveira Gonçalves) in C.J. Tomo 2, pág. 219 a 221).
Daqui decorre que o depositário tem a obrigação de restituir a coisa depositada (Art.ºs 1187.º al. c) e 1192.º do C.C.), devendo a restituição ocorrer, em caso de silêncio das partes sobre esse assunto, no lugar em que, segundo o contrato, tiver o depositário de a guardar, correndo as despesas com a restituição ao cargo do depositante (Art.ºs 1195.º e 1196.º do C.C.). Ou seja, a restituição deveria ocorrer na oficina onde a viatura foi entregue para reparação, sendo as despesas com o levantamento do veículo a cargo do A..
Sucede que, o A. condicionou o cumprimento da obrigação de entrega da viatura à montagem do turbo e à devolução do preço pago.
No que se refere à devolução integral do preço pago, essa exigência era ilegítima, desde logo porque não houve resolução do contrato fundada em incumprimento definitivo do contrato pelo empreiteiro (cfr. Art.ºs 801.º n.º 2 ou 1222.º do C.C.) com efeitos retroativos (cfr. Art.º 434.º n.º 1 do C.C.). O que houve, sim, foi desistência da obra pelo dono, nos termos do Art.º 1229.º do C.C., que tem efeitos apenas para o futuro (ex nunc). Nessa medida, não havia obrigação de restituição de tudo o que havia sido prestado (cfr. Art.º 434.º e 289.º do C.C.), embora pudesse ter de existir um encontro de contas entre o custo dos trabalhos efetivamente realizados e o preço antecipadamente pago por conta deles, nos termos do Art.º 1229.º, 2.ª parte, do C.C..
Ora, ficou claro que pelo menos foi cumprida pelo empreiteiro a obrigação de entregar o veículo em casa da especialidade com vista ao recondicionamento do turbo, o que importou em €400,00 (cfr. facto provado 8), o que foi aceito pelo A. (cfr. factos provados 7 e 9). Pelo que, pelo menos, €400,00 dos €500,00 pagos pelo A. (cfr. facto provado 11), sempre seriam devidos ao R..
A tal acresce que, entretanto, foram feitas outras obras, como a desmontagem do cárter, com autorização do A., para detetar a origem do problema verificado (cfr. facto provado 14), cujo custo não foi concretamente apurado. Pelo que, no mínimo, fica a dúvida sobre se os €500,00 cobririam a totalidade das despesas que o R. teve com esta empreitada.
No que se refere à obrigação de montagem do turbo, a questão é um pouco mais complexa, porque originariamente essa era a obrigação inicialmente estabelecida entre as partes quando resolveram contratar (cfr. facto provado 6). Embora, no final, a desmontagem e montagem do turbo tenha ficado incluída na obra relativa ao orçamento de €300,00, que incluía o arranjo do punho da porta lateral da viatura, a substituição das pastilhas e a verificação do óleo dos travões (cfr. factos provados 9 e 10). Só que, por força da desistência do dono da obra, nos termos do Art. 1229.º do C.C., nenhuma dessas obras foram efetivamente realizadas. Sendo que, extinto dessa forma o contrato, essa obrigação deixou de ser exigível cumprir no quadro da empreitada.
Por outras palavras, a recusa da receção da viatura pelo A., com fundamento na falta de cumprimento da obrigação de montagem do turbo, perante a desistência do contrato pelo dono da obra, nos termos do Art.º 1229.º do C.C. seria ilegítima.
Colocada a questão em termos de prestação acessória decorrente de contrato de depósito, temos de realçar que, ao contrário do que sucede, por exemplo, com o contrato de locação (v.g. Art.º 1043.º n.º 1 do C.C.), no contrato de depósito não existe a obrigação legal específica de entrega da coisa nos precisos termos em que a mesma foi depositada, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização. O que sucede, nesse caso, é que o depositário responderá por todos os danos verificados durante o cumprimento da obrigação de guarda da coisa, que lhe sejam diretamente imputáveis, ou que fossem por si evitáveis no quadro do cumprimento da sua obrigação de guarda (Cfr. Art.ºs 798.º, 799.º, 1187.º al. a) e 1188.º do C.C. – vide, a propósito: Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, Vol. III, 3.ª Ed., pág. 490). Mas, a existência de eventual direito a indemnização por danos causados na viatura durante o período de guarda da mesma pelo empreiteiro não justificaria a recusa pelo credor do cumprimento pelo devedor da obrigação de entrega da coisa, por não haver qualquer correspetividade entre as prestações.
Dito isto, verificava-se efetivamente uma situação de mora do credor, quando o A. recusou rececionar a viatura no estado em que a mesma se encontrava (cfr. Art.º 813.º do C.C.). Nessa medida, mesmo que se considere que o devedor ainda estava vinculado à obrigação de entrega da viatura, passou a correr pelo credor o risco pela responsabilidade da impossibilidade superveniente de realização da prestação devida (cfr. Art.º 815.º n.º 1 do C.C.).
Também é certo que, nos termos do Art.º 1228.º n.º 1 do C.C., se por causa não imputável a qualquer das partes, a coisa perecer ou se deteriorar, o risco corre por conta do proprietário. Sendo que, por força do n.º 2 do mesmo preceito, em caso de mora por parte do dono da obra quanto à verificação ou aceitação da coisa, o risco também corre por conta dele.
Em face do exposto, a circunstância do veículo ter sido vandalizado nas condições referidas, só pode ser diretamente imputável ao A..
Em vista de tudo o que foi exposto, olhemos agora para os concretos pedidos formulados:
1. Quanto à restituição das chaves da viatura, o que se verificou foi uma recusa injustificada da receção da viatura na sequência do R. ter dito ao A. para levar o carro. Assim, a obrigação existe, mas há mora do credor. Em todo o caso, apesar da mora, tendo o A. pedido que o R. cumpra agora essa prestação, motivos não existem para deixarmos de condenar o R. nessa prestação, ainda que a responsabilidade pelo facto dessa obrigação não ter sido logo cumprida seja inteiramente do A..
2. Quanto à obrigação de reparação da viatura e entrega da mesma nos exatos moldes em que foi depositada nas instalações do R., perante a desistência do dono da obra, essa prestação não é exigível, porque a empreitada está finda, com os trabalhos realizados no estado em que se encontram.
3. Quanto à restituição em condições de utilização do turbo, sendo certo que o mesmo não foi montado, tal deveu-se fundamentalmente à desistência da obra pelo A., não sendo essa prestação exigível, tudo levando a crer que o turbo ainda se encontre no interior do veículo, onde o R. o deixou (cfr. facto provado 19).
4. Quanto à restituição em condições de utilização da bateria, do puxador da porta e mecanismo de abertura elétrico, essas situações verificaram-se depois da mora do credor (dono da obra) na receção da viatura, pelo que o R. não pode ser responsabilizado pelos mesmos, como deixámos consignado.
5. Quanto à reparação do vidro e dos riscos da viatura, não foram sequer provados esses danos (cfr. factos não provados na al. h).
6. Quanto ao pedido de pagamento do valor de €5.500,00, correspondente à reparação de todos os danos da viatura, também esse facto foi julgado por não provado na alínea j) da sentença recorrida, sendo que o R. não é responsável por esses danos, porque não praticou qualquer facto ilícito e porque os danos não lhe são sequer imputáveis.
7. Quanto à condenação a restituir o valor de €500,00, como se referiu não houve resolução do contrato com fundamento no incumprimento definitivo do R., mas desistência pelo dono da obra, não estando demonstrado que os €500,00 cheguem para cobrir as despesas tidas pelo R. com a execução efetiva dos trabalhos que lhe foram pedidos realizar.
8. Quanto ao pagamento do valor de €5.761,98€, correspondente ao pagamento do contrato de locação financeira relativo à viatura, não se provou semelhante valor, como consta da alínea k) dos factos não provados da sentença recorrida, para além de não se vislumbrar como é que o R. poderia ser responsável pelo pagamento de semelhante encargo.
9. Quanto ao pagamento da prestação mensal de €240,03 e de todas as rendas relativas ao contrato de locação financeira, a solução é precisamente a mesma da referida no ponto anterior.
Em suma, só nos resta concordar com a sentença recorrida, que deve ser mantida nos seus precisos termos, exceto quanto no que se refere ao pedido de condenação do R. a restituir as chaves da viatura, improcedendo todas as conclusões que sustentam posição contrária à exposta.
Resta fazer uma pequena apreciação em termos de responsabilidade por custas, considerando que a alteração da apreciação do mérito da ação feita pela procedência parcial da apelação arrasta consigo também uma alteração da responsabilidade tributária por custas, seja para efeitos da 1.ª instância, seja para efeitos da instância recursiva.
Efetivamente, verifica-se que o A. decaiu em grande parte nos pedidos que formulou, mas há que considerar que pelo menos procede o pedido de entrega das chaves da sua viatura, sendo que esse pedido foi impugnado pelo R..
Assim, considerando que a relevância económica dessa pretensão é baixa relativamente ao valor da causa, entendemos fixar o decaimento do R. em 1% do valor da ação.
Em conformidade, a responsabilidade por custas será na proporção de 1% para o R., aqui Recorrido, e 99% para o A., aqui Recorrente, atendendo ao disposto no Art. 527.º do C.P.C..
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente, por provada, condenando o R., J…, a restituir ao A., F…, as chaves da viatura, mas mantendo-se no mais a sentença recorrida nos seus precisos termos, sem prejuízo da alteração ordenada realizar à redação do ponto 17 dos factos provados.
- Custas por Apelante e Apelado, na proporção do respetivo decaimento, que é fixado em 99%, para o primeiro, e 1%, para o segundo (Art.º 527.º do C.P.C.), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido ao primeiro pela Segurança Social a fls. 134.
*
Lisboa, 14 de março de 2023
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva