Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
733/21.8PALSB.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: DELINQUENTE IDOSO
REGIME ESPECÍFICO
PRISÃO PREVENTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: –Em relação a delinquente idoso o nosso sistema penal não prevê qualquer regime específico, ao contrário do consagrado em relação aos jovens delinquentes;~

–O decurso do tempo é sentido de forma diversa ao longo da vida, um ano em prisão preventiva não é o mesmo para quem aos 20 anos tem uma longa esperança de vida e para aquele que já tendo atingido o estatuto de octogenário é constantemente relembrado pelas debilidades físicas e psicológicas que o fim pode estar próximo;

–Sendo o arguido cidadão octogenário, fisicamente debilitado por dificuldades de locomoção e carente de apoio na higiene diária, com um percurso de vida marcado pela inserção social e profissional, após experiência de reclusão em prisão preventiva pelo período de quase um ano, por crimes de violência doméstica e violação de proibições e interdições, devem reconhecer-se como mitigadas as exigências de prevenção especial e suficiente a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:


Iº–1.-No Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº733/21.8PALSB, da Comarca de Lisboa (Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 6), o Ministério Público acusou N …, imputando-lhe um crime de violência doméstica (art.º 152º, n.º 1, als. a) e c) e n.ºs 2, al. a), 4 e 5 do Código Penal), um crime de violência doméstica (artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e c) e n.º 2 a), do Código Penal) e um crime de violação de imposições, proibições ou interdições (art. 353º do Código Penal).

Após julgamento, por acórdão de 12 de julho de 2022, o tribunal decidiu:
“…
A.–Absolver o arguido N… da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, nº 1, als. a) e c) e n.º 2, a) do Código Penal.
B.–Condenar o arguido N… pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de:
um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas a) e c), 2, alínea a), e n.º 4, do Código Penal, na pessoa de M…:
- Na pena principal de 4 (quatro) anos de prisão.
- Na pena acessória de proibição de contacto com a vítima M…, com efectivo afastamento da sua actual residência, bem como qualquer outra em que venha a habitar, pelo período de 5 (cinco) anos;
- Na pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica – esta integrada em contexto prisional, face à efectividade da pena única de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão aplicada.
um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º, do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão.
Operar o cúmulo jurídico das penas de prisão aplicadas e condenar o arguido  N… na pena única de 4 (quatro) anos e 4  (quatro) meses de prisão efectiva.

C.–Arbitrar a M…, na qualidade de vítima da prática do crime de violência doméstica, o montante de € 3000,00 (três mil euros), a título de indemnização reparatória a suportar pelo arguido N… - artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal e artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.

….”.

2.–Desta decisão recorre o arguido N…, formulando as seguintes conclusões:
1.–Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Tribunal Criminal de Lisboa, o qual, decidiu condenar o arguido numa pena efectiva pela prática, em autoria material, de:
-a)-de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, alínea a), do Código Penal, na pessoa de M…, a pena de 4 (quatro) anos de prisão.
-b)-de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º, do Código Penal, a pena de 10 (dez) meses de prisão.
2.–O que resultou na condenação, operado que foi o cúmulo jurídico, na pena única de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
3.–Foi decidido igualmente, arbitrar a M…, na qualidade de vítima da prática do crime de violência doméstica, o montante de € 3000,00 (três mil euros), a título de indemnização reparatória a suportar pelo arguido N… - artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal e artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
4.–Ora, por não se poder conformar com o douto Acórdão, quanto à medida da pena, que deveria ter sido suspensa na sua execução, face à contextualização dos factos e acima de tudo face à idade avançada do arguido de 87 anos de idade, acrescida do facto de ter várias limitações físicas e doenças que o preocupam agora na fase terminal da sua vida.
5.–Porquanto, se o arguido fosse uma pessoa que não fosse recuperável, em termos de reinserção social, ainda mesmo assim acharia que a pena aplicada tinha sido exagerada para o seu caso, mas a verdade é que não é o caso vertente.
6.–Ora vejamos, o arguido vinha acusado de dois crimes de violência doméstica e de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições.
7.–Realizado o julgamento, acabou por “cair” um dos crimes de violência doméstica, tendo sido condenado num crime de violência doméstica e um crime de violação de imposições e condutas.
8.–Contudo, aplicada que foi a pena, a mesma não foi suspensa na sua execução, apesar de o próprio MP ter sugerido essa possibilidade em sede de acusação e até em sede de alegações, (apesar de sabermos que o Colectivo não está vinculado a esse entendimento).
9.– Entende o Tribunal não ser possível alcançar ínfimo índice de juízo de prognose positivo que possa permitir conceber que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarão ainda de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Termos em que se eleva vigoroso que a suspensão da execução da pena única aplicada não cumprirá os objectivos punitivos que o caso reclama, impondo-se o seu cumprimento efectivo, entendimento esse que pugnamos como não consentâneo com a realidade do caso vertente.
10.–E baseado nesse entendimento, não se concedeu a suspensão da sua pena – como resulta de fls.28 e seguintes do Douto Acórdão - para o qual se remete e se dá por reproduzido para os devidos efeitos.
11.–Ora, o aqui Recorrente não pode deixar de discordar com tal entendimento, quando foi equacionada a hipótese de um possível internamento imediato num lar onde possa usufruir de vários tipos de apoio, incluindo médico e psicológico/psiquiátrico, como decorre de fls. 29 do douto Acórdão.
12.–Medida essa que seria o mais correcto e razoável no caso vertente dos autos, para uma pessoa que tem 87 anos de idade e, sejamos sinceros, que poucos mais anos de vida útil irá ter e, dizemos isto sem qualquer desconsideração pela Ofendida, mas mesmo aqui teremos que ver que não se trata de um caso típico de violência doméstica e, muito mais no contexto em que os factos se desenrolaram ...
13.–Mas que o Tribunal entendeu - erradamente na nossa perspectiva e salvo o devido respeito - que não se afigura contexto apto a fazê-lo corrigir-se como as exigências preventivas gerais e especiais do caso espécie reclamam.
14.–Ora, aqui é do nosso modesto entendimento, que essa seria a solução e pena correcta a aplicar ao caso vertente, e muito mais quando o arguido Recorrente tem 87 anos de idade e, está numa fase terminal da sua vida, que o Tribunal deveria ter tido em atenção
15.–Mas mesmo que o considerassem irrecuperável em matéria de arrependimento” - o que se contesta, uma vez que cada caso deveria ser um caso distinto, sem análises preconcebidas e limitadoras nas suas conclusões - nunca esperaria que o condenassem a uma pena efectiva de prisão.
16.–Assim sendo, pensa ser esta pena ora recorrida injusta e exagerada, quanto à grau da sua participação e até em comparação com outras penas de outros arguidos, sendo certo que o arguido demonstrou alguma incompreensão face à sua idade avançada, mas isso não pode nem deve ser entendido como falta de consciencialiazação e, apesar de o Meritíssimo Juiz ter considerado fundamental para a não suspensão da sua pena.
17.–Mais injusto se torna, a constatação de que esse entendimento foi considerado a base para a convicção do tribunal e, afinal o seu relatório social não teve qualquer repercussão na ponderação da sua medida da pena.
18.–Ora, parece-nos contraditório a conclusão que o arrependimento não é sincero e que foi determinante para a convicção do douto Tribunal,  quando havia outros elementos a ter conta, nomeadamente um possível internamento imediato num lar onde pudesse usufruir de vários tipos de apoio, incluindo médico e psicológico/psiquiátrico.
19.–PARECE – NOS INJUSTA ESTA CONSTATAÇÃO, em termos de medida da pena!
20.–Assim, com o devido respeito, há que pôr em dúvida a racionalidade e a coerência do juízo ou processo lógico indutivo que terá conduzido à convicção dos julgadores, ponderado que terá sido e admitimo-lo, nessa parte – o conjunto de toda a prova produzida, na estrita obediência – que ora não se questiona – ao mandamento do artº127 do CPP.
21.–Temos que valorar que o arguido face à sua idade avançada e à possibilidade que se afigura mais provável e razoável – o seu internamento num lar apropriado - nunca mais iria cometer qualquer crime e, isso devia ser um dos elementos a valorar para o prognóstico favorável que deveria ter sido feito.
22.–E podem crer V. Exas que muitas ilações retirou o Arguido deste período em que está privado da sua liberdade. Muito
23.–e sofre com a decisão imposta de prisão preventiva e, não sendo mentira que, durante este tempo:
24.– perdeu mais de 20 Kg. (quilos) de peso;
25.– já esteve internado vários meses na enfermaria do EPL;
26.– não tem o devido acompanhamento médico, para o seu estado clínico;
27. tem quedas constantes na sua cela e, necessita de ajuda dos outros reclusos;
28. o andar já é arrastado e, para não mencionar outras maleitas da sua idade avançada.
29. não tem ninguém que o visite no EPL – a não ser o seu mandatário - estando completamente vetado à mais total solidão.
30.Assim, pese toda a carga penal e consequências decorrentes dessa conduta irregular perante a Sociedade, o Arguido merece terminar a sua vida com alguma dignidade e, poderia fazê-lo com o seu internamento num lar, e tendo possibilidades económicas de o fazer, já que a sua pensão assim o permitiria..
31.Já  não representando qualquer perigo para a sociedade.
32.O arguido sabe que cometeu erros no passado, mas desde já se mostra arrependido e, espera do Douto e Venerando Tribunal uma oportunidade de poder refazer a sua vida de modo útil e sendo um sujeito activo e positivo para a Sociedade.
33.O arguido volta a frisar que não tem qualquer apoio familiar, e a situação presente dar-lhe a antever um futuro bastante incerto e inseguro, senão mesmo a antevisão da morte no cumprimento da pena;
34.A revogação da pena do arguido e consequente suspensão da mesma, seria de plena Justiça;
35.Atendendo aos princípios gerais de direito e à tão visada reinserção social, afere-se como excessivamente gravosa e, acima de tudo, contraproducente a não da pena aplicada ao ora requerente;
36.Salvo devido respeito, a própria condição pessoal do agente, é de molde a decidir-se por medida que contribua para a reintegração e não para a segregação, cumprindo-se assim o disposto no artº40 do CP e, isto sem querer diminuir a gravidade dos factos;
37.As circunstâncias e contornos que tomou o crime praticado pelo ora Recorrente e descritos no douto Acórdão, assim como as descritas condições pessoais do arguido constantes dos autos, deveriam ser consideradas como tendo um relevo especial, impondo-se uma suspensão da sua pena, tal previsto no artigo 50º do CP.
38.Seguindo o expendido raciocínio, é forçoso colocar a hipótese de suspensão da pena, ao abrigo do artº50 nº1 do CP, concluindo-se, como pugnamos, que a simples censura do facto e ameaça da prisão efectiva, aliadas a um rigoroso plano de prova e internamento num lar, realizam de forma adequada e suficientes as finalidades da punição, face á sua idade avançada – 87 anos – permitindo assim antever alguma dignidade nesta fase terminal da sua vida, porque não tem ilusões que não aguentará muitos mais anos de vida.
39.A este respeito, desde já se advoga que as normas constitucionais que se consideram violadas são as vertidas no nº1 do artº32º, nº6 do artº29º e nº4 do artº30º da Constituição da R. Portuguesa;
39.Igualmente se contesta o valor arbitrado a M…, na qualidade de vítima da prática do crime de violência doméstica, o montante de € 3000,00 (três mil euros), a título de indemnização reparatória, nos termos do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal e artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, por se entender exagerado para o caso vertente.
40.Crê-se que estão reunidas as condições de facto e de direito para uma efectiva suspensão da pena;
Nestes termos deve ser dado Provimento ao presente recurso, Revogando-se o acórdão recorrido e, sendo-lhe suspensa a sua pena e diminuída a indemnização arbitrada.

3.O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, a que respondeu o Ministério Público, concluindo pelo seu não provimento.

4.Neste Tribunal, a Exmª. Srª. Procuradora-geral Adjunta pronunciou-se pelo não provimento do recurso.

5.Realizou-se a conferência.

6.O objeto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à apreciação da medida da pena, suspensão da sua execução e indemnização civil.

*     *     *

IIºA decisão recorrida, no que diz respeito aos factos provados, não provados e respectiva fundamentação, é do seguinte teor:

A.Matéria de facto provada.

O tribunal, discutida a causa, deu como provados os seguintes factos:
Do acusatório e demais apurado em audiência de julgamento.
1.O arguido N… e a ofendida M… casaram um com o outro em 15 de Abril de 1967, sendo progenitores comuns de D…, nascido a 1 de Maio de 1970.
2.O filho do casal, D…, sofre de deficiência motora e cognitiva e encontra-se acolhido em Lar.
3.Desde 2016, o arguido vem agredindo a ofendida M… física e verbalmente, tendo em virtude disso, no âmbito do processo n.º 592/16.2SELSB do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 1, por decisão de 10 de Maio de 2021, transitada em julgado a 09 de Junho de 2021, sido condenado pela prática, em autoria material, de:
- um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1 alínea a) e nº 2 alínea a) do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão;
- um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1 d) e nº 2 alínea a) do Código Penal, na pena de dois anos de prisão;
Sendo, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de três anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos e três meses, sujeita a regime de prova mediante plano a elaborar pelos Serviços Reinserção Social, nos termos do disposto nos artigos 50.º e 53.º, do Código Penal, e, bem assim, na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida M… e com o filho, física ou por qualquer meio, pelo período de três anos e três meses, nos termos do artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do Código Penal.
Processo n.º 176/21.3PALSB
4.Ulteriormente à prática dos factos que conduziram à condenação apurada em 3., ao longo de todo o período compreendido entre Fevereiro de 2021 e 13 de Abril de 2021, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, no domicílio comum, o arguido apodou a ofendida de “PUTA, CABRA, VACA”, e declarou-lhe “ÉS A MINHA ESCRAVA”.
5.Nessas ocasiões, o arguido não se coibia de declarar à ofendida, de viva voz e com foros de seriedade, “UM DIA CORTO-TE OS CORNOS, MATO-TE À FACADA, AGORA TENHO-TE NA MÃO, POSSO DAR-TE COM UMA CAVACA COMO SE FAZ NA MINHA TERRA”, expressões de que a vítima ficou sempre bem ciente.
6.No dia 31 de Março de 2021, pelas 20H30, arguido e ofendida encontravam-se no domicílio comum.
7.Então, no contexto de discussão, o arguido apelidou a ofendida de “VACA, PUTA, CABRA”, e, com foros de seriedade, declarou-lhe que a matava à facada, expressões de que a vítima ficou bem ciente.
8.Nessa ocasião, o arguido desferiu ainda vários pontapés nas pernas da ofendida, assim lhe causando dores, e, bem assim, equimose na face lateral do terço médio da coxa direita, com 3 por 2 centímetros de maior eixo vertical, lesão que lhe fez demandar para cura oito dias de doença.
9.No dia 13 de Abril de 2021, pelas 20 horas, a vítima entrou em casa, constatando que a fechadura da porta do seu quarto fora arrombada.
10.O arguido declarou à ofendida que a Polícia estivera no local e arrombara a dita fechadura, mais dizendo que a vítima não podia ter fechadura e trincos de segurança na dita porta.
11.A vítima confrontou o arguido, dizendo que fora este que arrombara a fechadura.
12.Em resposta, o arguido apelidou a ofendida de “VACA, BRUXA” e disse para que a mesma fosse pedir ajuda aos seus amantes e à Polícia.
***

13.Em data não apurada, compreendida entre 2 de Junho de 2021 e 14 de Agosto de 2021, o arguido chegou a abandonar o até então domicílio comum, em que coabitava com a ofendida, sito na Avenida…, em Lisboa, passando a residir em diversas unidades hoteleiras, sendo a última o … Lisboa.
14.Porém, ignorando a condenação apurada em 3. e, nesta, concretamente a sujeição à pena acessória a que foi condenado, o arguido N… passou a utilizar o pretexto de recolher bens pessoais para se dirigir e entrar na habitação da ofendida M…, sita na Avenida…, Lisboa.
***

Processo n.º 733/21.8PALSB
15.Deste modo, no dia 15 de Novembro de 2021, cerca das 1h00, o arguido N…, com o pretexto de ir buscar pertencentes seus, entrou na habitação da ofendida M…, utilizando a chave da habitação que ainda conservava e de imediato dirigiu-se à ofendida M… e começou a chamá-la e a dizer-lhe: “ ÉS UMA VACA, ÉS AMANTE DE TODOS OS POLÍCIAS POR ISSO É QUE FUI CONDENADO, VOU-TE CORTAR OS CORNOS , NÃO VALES NADA, ÉS UMA ATRASADA MENTAL, CORTO-TE COM UMA FACA”.
16.De seguida, o arguido N… começou a desferir murros em ambos os braços da ofendida M….
17.Desta agressão, resultaram dores à ofendida M…
***

18.Ao agir da forma apurada, teve o arguido o arguido N… o propósito logrado e reiterado de humilhar e maltratar M…, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua mulher e mãe de seu filho, não se coibindo de assim proceder no domicílio comum.
19.Fê-lo querendo e conseguindo maltratar a sua mulher M…, ofendendo-a na sua saúde física e psíquica, fazendo-a viver em permanente sobressalto por força das agressões físicas, provocando-lhe necessariamente dores físicas, e expressões de cariz intimidatório, de forma séria, bem sabendo o arguido que aquela acreditava na seriedade das mesmas e que, por isso, lhe produziam, com produziram, profundo receio pela sua vida, integridade corporal e liberdade, humilhando-a, causando-lhe medo e inquietação permanente, angústia e ansiedade o que quis e logrou conseguir.
20.O arguido N… bem sabia que estava proibido de se aproximar da ofendida M… ou de a contatar por qualquer meio, e que ao aproximar-se daquela violava a pena acessória aplicada no processo referido em 3.
21.O arguido quis violar a proibição imposta naquele processo.
22.Em razão do apurado em 15. a 21., o arguido N… foi detido fora de flagrante delito em 25 de Novembro de 2021 e, submetido a primeiro interrogatório judicial, viu-lhe ser aplicada a medida de coação de prisão preventiva, à qual se encontra sujeito desde tal data.
23.Após tal facto, no mesmo dia 25 de novembro de 2021, o arguido voltou a contatar por telefone a ofendida M… e inscreveu-a no Estabelecimento Prisional, como visitante, bem sabendo que estava proibido de a contatar.
24.O arguido agiu sempre consciente e voluntariamente, bem sabendo que as suas condutas eram e são proibidas e punidas por lei penal e, não obstante, não se coibiu, nem coíbe de as praticar, actuando com o intuito de causar, como efetivamente causou, sofrimento e medo à ofendida, bem sabendo que a sua conduta global é adequada a causar tais resultados e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
***

Da situação pessoal e condição sócio-económica do arguido.
25.N…, natural de S…, integrou uma fratria de cinco elementos de um casal de condição socioeconómica diferenciada. O sustento era assegurado pelo trabalho do pai como advogado, dedicando-se a mãe à gestão do quotidiano do agregado. A dinâmica familiar a que esteve sujeito ao longo do seu crescimento é avaliada pelo próprio como estruturante e securizante.
26.No domínio académico, após a conclusão do ensino secundário em Coimbra, cidade onde a família vivia, o arguido veio para Lisboa para dar continuidade aos seus estudos superiores no ISCSP – Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, tendo concluído pelos 28 anos a licenciatura de Ciências Sociais e Política.
27.Cumpriu quatro anos de serviço militar na Força Área, encontrando-se colocado em Portugal, junto à serra da Estrela, após o que voltou para Lisboa, indo residir para casa de uma irmã.
28.No plano profissional, desempenhou funções como técnico superior na…, tendo sido colocado em Moçambique, de onde regressou no ano de 1975, e manteve as sus funções em várias instituições estatais (e.g. Instituto António Sérgio, Instituto de investigação Científica Tropical), até à data da sua aposentação há aproximadamente 18 anos.
29.No domínio afectivo na relação com a ofendida, até à data dos factos, o arguido menciona uma dinâmica conjugal amistosa ao longo do casamento.
30.O filho do casal desloca-se em cadeira de rodas, tendo o arguido se esforçado por proporcionar uma vida equilibrada ao descendente, que estudou até ao 9.º ano de escolaridade e foi atleta paraolímpico. Por volta dos 20 anos de idade, o filho do casal foi institucionalizado, vindo passar os fins-de-semana e períodos festivos a casa.
31.A família residia na mesma habitação há aproximadamente 40 anos, em zona isenta de conotação com problemáticas de exclusão social, com um encargo mensal de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros). O casal despende € 300,00 (trezentos euros) com a instituição onde o filho se encontra – Casa….
32.Ao nível da saúde, o arguido sofreu no passado um enfarte que não deixou sequelas e sofre de hipertensão.
33.N… está aposentado, tendo chegado a viver períodos não concretamente apurados numa pensão na zona do Areeiro, em virtude da condenação apurada em 3..
34.Auferia uma pensão líquida de € 1600,00 (mil e seiscentos euros) que lhe permitira ter uma vida desafogada e com capacidade para pagar a pensão onde vivia.
35.O arguido atribui a origem das discussões entre o casal às dificuldades financeiras, assim como às divergências políticas.
36.Pese embora tenha beneficiado de consultas de psiquiatria, o arguido encontra-se, em meio prisional, sem acompanhamento do foro psiquiátrico.
37.M… carece de suporte e apoio do filho em comum.
38.O arguido e a ofendida encontram-se em situação de isolamento familiar e social, o que agrava a vulnerabilidade da vítima ao risco de repetição e/ou agravamento das situações apuradas, configurando-se essencial para a proteção da mesma um acompanhamento externo à dinâmica do agregado.
***

Dos antecedentes criminais registados.
39.Para além do apurado em 3., o arguido não tem antecedentes criminais registados.
***

B.Matéria de facto não provada.
Da discussão da causa, e com relevância para a boa decisão da mesma, não logrou provar-se qualquer outra factualidade.
***

C.Convicção do tribunal e exame crítico das provas.
Por força do estatuído no artigo 127.º, do Código Processo Penal «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

Nesta sede, rege o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova e, por outra banda, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal. Como defende Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, p. 111 “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.

Em tal ancoragem axiomática, o tribunal formou a sua convicção, sobre os factos imputados no teor acusatório global, com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, a qual se reconduziu, de modo essencial ao cotejo valorativo das declarações do arguido N… (incluso com abrangência ao primeiro interrogatório judicial de arguidos detido ocorrido a 25 de Novembro de 2021 – nos termos do disposto no artigo 141.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal), com os contributos depoimentais sequenciais de M… e J… e, bem assim, sob a matriz de todo o acervo probatório documental e pericial instruído nos autos, tudo ao lume das elementares regras da lógica, racionalidade e experiência comum, nos termos que se passam a expor.

C.I.Factos provados em 1. e 2.: derivaram da concordância do declarado pelo arguido, por M…, em confronto com a análise do acervo documental constituído por assento de nascimento n.º …, do ano de 2016, com respectivo averbamento n.º 1, de 21­09-2016, de fls. 156-157 e ficha de identificação civil de fls. …(constante do ora apenso A dos autos principais - Processo n.º 733/21.8PALSB).
C.II.Facto provado em 3.: brotou do confronto da certidão de fls. 73-88, nota de trânsito em julgado de fls. 113 (constantes do ora apenso A dos autos principais - Processo n.º 733/21.8PALSB) e certificado do registo criminal do arguido devidamente actualizado e junto aos autos.
C.III.Factos provados de 4. a 24.: com ancoragem no teor documental e pericial instruído nos autos, o Tribunal começou por examinar:

i)Com referência à prova instruída no pretérito processo n.º 176/21.3PALSB (ora Apenso A):
a)-auto de denúncia de fls. 2-4 – de onde se colhe a primeira aquisição noticiosa de crime, por banda da Polícia de Segurança Pública de Lisboa – 1.ª Divisão – com atinência ao pedaço de vida reportado a 31 de Março de 2021.
b)- prints de fls. 29-39 extraídos via habilus do processo apurado em 3. da matéria de facto provada e de onde se permite conceber a tramitação ocorrida no mesmo e a sua destrinça com respeito à matéria a que reporta os presentes autos.
c)-aditamentos de fls. 49-52, 57, 90, 105, 125, respectivamente referentes às datas de:
- 13 de Abril de 2021 – 21h50 – com nota de reporte dos danos causados pelo arguido no quarto de M… e, bem assim, do reencaminhamento desta para o Espaço Júlia da Polícia de Segurança Pública;
- 13 de Abril de 2021 – 23h30 – com renovada nota de aquisição de nova factualidade levada à prática por banda do arguido;
- 30 de Abril de 2021 – 22h45 – atinente a nova necessidade de deslocação policial à residência de M…, derivada de actuação do arguido, dando conta de aquela não lhe responder às suas investidas, em momento iminentemente precedente à audiência de julgamento ocorrida no processo apurado em 3.;
- 18 de Maio de 2021 – 11h30 – tangente a contacto policial com M… com respeito quer ao resultado da audiência de julgamento no processo apurado em 3. da matéria de facto provada, designadamente no que respeito contende à pessoa do arguido, quer à continuidade do sentimento de receio daquela, com respeito a este.
- 14 de Agosto de 2021 – 19h00 - atinente a nova necessidade de deslocação policial à residência de M…, derivada de solicitação do próprio arguido que, uma vez mais, se encontrava no exterior do local, por alegadamente pretender recolher vestuário, o que foi levado a efeito por intermédio dos agentes policiais presentes, com nota de encaminhamento do arguido para o Hotel …
relatório de exame pericial de fls. 54-55, datado de 03 de Abril de 2021, do qual se extraiu a observação, discussão e conclusões da examinação levada a efeito a M…, pelo Excelentíssimo Senhor Médico Especialista de Medicina Legal do INML, Dr…., e o qual corrobora o concretamente adquirido sob o facto 8. da matéria de facto provada.
Declarações prestadas por M… perante autoridade judiciária a fls. 101-102, com confirmação do teor já declarado a fls. 19-20 e narração fáctica de fls. 57, e que, ressalta a actuação verbal e física do arguido para com a declarante em momento ulterior à condenação apurada em 3. da matéria de facto provada, com foco essencial no período de Fevereiro de 2021 e 13 de Abril de 2021.
ii)Com referência à prova instruída no processo n.º 733/21.8PALSB (presentes autos principais):
- Auto de denúncia de violência doméstica, fls. 1-4 e sequente ficha de avaliação de risco – RDV-L1, a fls. 6-7 – de onde se vem a colher a sequencial aquisição noticiosa de crime, por banda da Polícia de Segurança Pública de Lisboa – 1.ª Divisão – com atinência ao pedaço de vida reportado a 15 de Novembro de 2021.
- Cópia do despacho de acusação proferido no processo n.º 176/21.3PALSB a fls. 12-16 – do qual se extrai a factualidade que erigiu o acusatório nesses mesmos autos.
- Assento de nascimento a fls. 29-30 – consentâneo com o já apreciado em C.I.
- Termo de Identidade e Residência prestado no processo n.º 176/21.3PALSB a fls. 34 – medida de coacção aplicada ao arguido.
- Cópia da sentença proferida no processo n.º 592/16.2SELSB do Juízo Local Criminal de Lisboa -Juiz 1 - Fls. 38-53 – consentâneo com o já apreciado em C.II.
- Auto de declarações para memória futura levadas a efeito, em 17 de Novembro de 2021, à pessoa de M… e constante de fls. 69-70 – de que ressalta a actuação verbal e física do arguido para com a declarante em momento ulterior à condenação apurada em 3. da matéria de facto provada, com ênfase no dia 15 de Novembro de 2021.
- Certidão do mandado de detenção a fls. 93 e auto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido ocorrido a 25 de Novembro de 2021 constante de fls. 110 a 118 – de onde se colheu designadamente o facto provado em 22.
- E- mail do EP de fls. 128 – de onde derivou concretamente o facto provado em 23.

- Aditamento n.º 2 de fls. 132 – atinente à elaboração de ficha de avaliação de risco RVD-2L. Ancorado na amplitude de tal acervo, o Tribunal veio a cotejar duas versões fundamentais em confronto:
i)-a preconizada pelo arguido N… (incluso com abrangência ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido ocorrido a 25 de Novembro de 2021 – nos termos do disposto no artigo 141.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal), numa linha essencialmente negatória da factualidade imputada, invocando um contexto vivencial agravado no período imediatamente subsequente à respectiva aposentação, com incremento de dificuldades relacionais com a sua esposa em virtude de maior frequência de convivência comum quotidiana, incluso com referenciação à delicadeza da saúde do filho de ambos, dificuldades económicas e desinteligências verbais mútuas tendo por mote “temas políticos”, admitindo meramente ter podido chamar “atrasada mental” à sua esposa, embora também tenha sido alegadamente ofendido por esta, ademais chegando a ser antes o próprio vítima do atirar de um sapato por banda daquela, que lhe acertou na zona do plexo solar, tendo-lhe causado falta de ar momentânea, resguardando-se, por um lado, no facto da sua educação não se coadunar com as expressões verbais imputadas, por outo, na linear rejeição de qualquer acto de agressão física perante a sua esposa, à qual, ademais, imputa ciúmes doentios. No mais, ciente da condenação sofrida no processo n.º 592/16.2SELSB do Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 1, ainda assim procurou deriva com respeito ao concebimento do respectivo trânsito em julgado como marco fundamental de observância do judicialmente imposto, não enjeitando fazer menção à impreparação de desenvolvimento e crescimento derivada da educação protectora dos pais, justificando as suas deslocações à residência da sua esposa, em virtude de necessitar de vestuário e, bem assim, dinheiro para se sustentar, uma vez que nomeadamente o cartão de movimentação de conta bancária havia quedado naquela mesma residência. Por fim, na senda de minorar a gravidade da factualidade imputada, rematou dando nota que concebe admissível o reatamento da relação com a sua esposa.
ii)-a evidenciada por M… que o Tribunal começou por percepcionar na particular sensibilidade consubstanciada no facto de, pese embora encontrar-se acompanhada por Excelentíssima Senhora Técnica da APAV e sapiente de o arguido se encontrar sujeito a prisão preventiva à ordem dos autos, ainda no presente apresenta ostensiva impressão e condicionamento face à presença do mesmo, razão pela qual veio a ocorrer com o afastamento do arguido da sala de audiências, ao abrigo do disposto no art.º 352º, n.º 1, al.ª a), sem prejuízo do disposto no n.º 7 do art.º 332º, ambos do Código de Processo Penal.

Deste modo, no enquadramento do manancial probatório documental e pericial supra citado, M… vem a revelar especial enfoque na factualidade reportada ao dia 15 de Novembro de 2021, explicitando com assaz lucidez, espontaneidade e lógica toda a actuação do arguido, perpassando o modo de entrada na residência (com chave própria que lhe não havia devolvido), sob o mote de necessidade de ir buscar pertences, esclarecendo acerca das verbalizações e actos físicos concretizados, não deixando de aludir ao que designou por obsessão do arguido com respeito ao munir-se de faca, incluso quando se sentava à mesa e se dirigia para o quarto, facto que, a par da acção agressiva, violenta e com fácies transtornada, a conduziu inexoravelmente a considerar com elevado foro de seriedade o anunciado pelo mesmo. De resto, tal atitude veio a ser sinalizada pela declarante como também do conhecimento do filho comum de ambos que, todos os dias, cerca das 7h00, estabelece contacto telefónica com esta para saber se se encontra bem.

Prosseguiu explicitando circunstanciadamente o facto de ter procurado munir-se de telemóvel para chamar a polícia, momento em que, apercebendo-se de tal, o arguido lho chegou a retirar, desferindo-lhe socos nos braços, provocando-lhe dores (facto que, pese embora não documental ou pericialmente comprovado, não afasta a credibilidade evidenciada ao discurso global da declarante), o que a fez começar a gritar, desencadeando fuga do arguido e alcance de intervenção policial posterior.

É, pois, no confronto de verbalizações, sensibilidades e razões assim permitidas tomar à imediação e oralidade com os declarantes, que a versão de M… se sobrepõe manifestamente à suavizada versão entendida declarar pelo arguido.

Com efeito, partindo desde logo do receio evidenciado a que o arguido seja, desde já, colocado em liberdade, assumindo ter chegado a questionar os serviços técnicos do Estabelecimento Prisional onde aquele se encontra se este já poderia beneficiar de saídas precárias, o medo e condicionamento de liberdade permitido percepcionar de viva voz, a sinalização de dois momentos capitais do seu quotidiano, sendo quando sai e quando entra em casa, na justa medida em que receia que o arguido se possa encontrar nas imediações, sendo particularmente delicado o momento em que a declarante assinala como estando de costas para o elevador quando coloca a chave à porta, tendo inclusive vindo a instalar sistema de alarme na habitação, tudo desagua na assunção de ter concebido vir a suicidar-se, tendo actual apoio psicólogo e psiquiatra.

É, pois, deste modo que tal credibilidade se observou estender à assunção da ocorrência de discussões, contudo não deixando de assinalar a dificuldade do arguido em aceitar o contraditório, ao esclarecimento atinente a ter-se prestado a acompanhar o arguido a procurar habitação (zonas de Paço d’Arcos e São Romão), ter-lhe notado alguma relutância, a sensibilizá-lo para as consequências do judicialmente decidido no processo da pretérita condenação, designadamente em razão da proibição de contactos imposta, às investidas do arguido em persistir deslocar-se à residência, já após o abandono da mesma, ao facto de o mesmo possuir cartão bancário multibanco passível de ser usado para o pagamento da sua subsistência e vivência quotidiana (facto que, sendo contrário ao declarado pelo arguido, melhor explicita como o mesmo tem vindo a conseguir sobreviver até ao momento da reclusão preventiva), tudo assim desaguando na sinalização pelo próprio arguido da respectiva detenção, ter chegado a procurar levar-lhe roupa ao estabelecimento prisional e de lhe ter inclusivamente ligado telefonicamente no dia de natal mas, de igual modo, ao facto de não pretender constar como visitante do mesmo em tal contexto.

Por fim, o contributo depoimental de J…, agente da Polícia de Segurança Pública em exercício de funções há cerca de dois anos, da 26.ª Esquadra – 4.ª Divisão Policial de Lisboa, corroborou os termos da intervenção policial levada a efeito em conjunto com o colega Jo…, tal qual documentado concretamente no processo n.º 733/21.8PALSB (presentes autos principais), dando devida nota de ocorrência à habitação de M…, onde já não se encontrava o arguido mas em que lhe foi possível percepcionar a presença desta, o estado desarrumado da casa e a quebra da porta do quarto da mesma, a qual não teria ocorrido na mesma data, dando ainda nota do encaminhamento para o Espaço Júlia e a alusão de M… ao ser agarrada nos braços pelo arguido, facto que não é totalmente dissonante com o declarado por esta na ilustração do contexto em que o arguido procurou manietá-la.

Na pacificação da factualidade assim adquirida, o caudal probatório é avassalador no postergar da versão entendida prestar pelo arguido, elevando concomitantemente a credibilidade da versão da verdadeira ofendida, M…, não consentindo a idade avançada de ambos e o adquirido quanto ao contexto pessoal e social de ambos laivo de justificação para a perversidade persistente evidenciada pelo arguido perante a sua, ainda, esposa.

Neste mote, cumpre aduzir que, concretamente quanto aos aspectos de ordem subjectiva, igualmente entende o Tribunal que se provaram nos justos limites do pacificado, na justa medida da conjugação de todos os elementos de prova já enunciados e relacionados entre si, bem como, com as regras de experiência comum, tudo emergindo de um elementar juízo de inferência lógica que, à luz das citadas regras da experiência comum, se estriba nos demais factos provados.
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C.II.Factos provados em 25. a 38.: atinentes à situação pessoal e condição social e económica do arguido, brotaram na análise ao teor integral do relatório social constante dos autos.
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C.III. Facto provado em 38., relevou o certificado de registo criminal do arguido actualizado e junto aos autos.
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IIIº1.-Condenado por um crime de violência doméstica e um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, o arguido/recorrente insurge-se contra a medida da pena de prisão, a não suspensão da sua execução e o montante da indemnização arbitrada à vítima.
Como refere a Ex.ma PGA no seu douto parecer, o recorrente não questiona a matéria de facto, limitando-se a apelar à sua idade e a razões humanitárias para fundamentar a sua pretensão.
Estamos, de facto, perante condenação em pena de prisão de um cidadão octogenário (nasceu em 25 de setembro de 1936, completando em breve 86 anos de idade), o que nos remete para uma reflexão sobre a delinquência na terceira idade.
A sociedade tem evoluído em relação à sensibilidade para a realidade e valoração do envelhecimento[1], o que no Direito Penal tem tido reflexo na justa proteção das vítimas indefesas que se encontram numa situação de especial fragilidade devido à sua idade avançada.
Contudo, não se podendo ignorar que a pessoa idosa também pode praticar crimes e ser confrontada com um processo crime e uma condenação penal na fase crepuscular da vida, o direito penal não adota em relação a ela qualquer regime específico, ao contrário do que acontece em relação aos jovens delinquentes (Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro)[2].
Face ao nosso direito penal a idade avançada apenas releva para definição das condições pessoais do agente, uma das circunstâncias relevantes na determinação da medida da pena (art.71, nº2, al.d, CP).

2.No caso, como refere o acórdão recorrido, ao crime de violência doméstica praticado pelo arguido corresponde pena de prisão de dois a cinco anos e ao crime de violação de proibições e interdições, pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.
Em relação a este último crime, punido em alternativa com pena detentiva e pena não detentiva, o tribunal recorrido optou pela primeira, o que não é questionado e não merece censura, pois a condenação pouco antes por idêntico crime aponta para a insuficiência da pena de multa para satisfação das finalidades da punição.
Nas motivações (nº51), o recorrente afirma que o tribunal devia atenuar especialmente a pena, mas a idade avançada do recorrente só podia justificar essa atenuação caso tivesse a virtualidade de diminuir por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (art.72, nº1, CP).
No caso, os graus da ilicitude e da culpa são elevados e não pode ser reconhecida diminuição acentuada da necessidade da pena quando o recorrente praticou os factos dos presentes autos pouco depois de ter sido condenado por crimes de natureza idêntica[3].

3.Na determinação da pena concreta, o tribunal recorrido ponderou o grau elevado da ilicitude, com o que se concorda (atentos os bens jurídicos violados e a reiteração da atuação delituosa), assim como da culpa (agiu com dolo direto), a premência das necessidades de prevenção geral (como forma de dar uma sinal à comunidade afetada por frequentes notícias deste tipo de crimes em relação a pessoas vulneráveis, muitas vezes com consequências graves para as vítimas), assim como as necessidades de prevenção especial (atenta a reiteração da conduta delituosa).
Perante este quadro, considerando que o arguido pouco antes dos factos dos presentes autos foi condenado por dois crimes de violência doméstica, em relação à mesma vítima, em penas de prisão de dois anos e seis meses e dois anos, as penas de quatro anos de prisão para o crime de violência doméstica (um pouco acima do ponto médio da medida abstrata) e dez meses de prisão para o crime de violação de proibições e interdições (abaixo daquele ponto médio), apresentam-se proporcionais e adequadas, o mesmo se reconhecendo em relação à pena única de 4 anos e 4 meses de prisão (não muito acima do limite mínimo).

4.Admitindo a pena de prisão aplicada a possibilidade de suspensão da sua execução (art.50, CP), o tribunal recorrido afastou-a, considerando:
“…
Ora, no caso em apreço, considerando de antemão a gravidade apurada à conduta global do arguido, sopesando a postura evidenciada pelo mesmo em sede de audiência, enjeitando ou suavizando responsabilidades, plenamente incapaz de contrição face ao mal manifestamente praticado, as consequências nefastas da sua conduta para com a vítima M…, as quais se assinalam ainda persistentes no presente, mormente na evidência demonstrada pela sua presença em audiência de julgamento e perturbação psico-emocional, de igual modo, a predisposição manifestada pelo arguido para fazer tábua rasa plena das imposições judiciais a que vem ficado sujeito, não se lhe reconhecendo qualquer laivo de incapacidade de compreensão dos ditames fixados, antes pelo contrário mostrando assaz grau de intelecto acima do comum dos cidadãos, tudo ainda temperado pela concreta condição etária, de saúde e pessoal do mesmo, entende o Tribunal que a censura do facto e a ameaça da prisão não alcançam infimamente a realização de forma adequada e suficiente das finalidades da punição.
Com efeito, importa notar com particular ênfase, por consubstanciar elevado factor de risco, que o arguido mesmo encontrando-se preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de Lisboa, alocado na enfermaria, onde na sequência da sua idade avançada necessita de apoio na higiene diária, manifestando também muitas dificuldades de locomoção, com nota de evidencia que a sua prisão tem tido impacto no seu bem-estar ao nível psicológico, não deixa de persistir em assumir discurso desculpabilizante, não assumindo laivo de responsabilidade pelos comportamentos que levou a efeito.
Acresce que, de tal índice em diante, qualquer alvitrada receptividade para agora passar a acatar as decisões judiciais se evidencia plenamente afastada, porquanto não se crê que, sujeito a uma nova imposição de proibição de contactos com a ofendida, sob uma matriz de suspensão de execução da pena principal única a ponderar, o arguido não derive, uma vez mais, para contornar o judicialmente imposto e, desse modo sobremaneira, atente uma vez mais com renovada intensidade para o bem estar e condição psico-emocional e física da vítima, sem prejuízo da autoridade do Estado.
…”.

É certo que o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 9 de junho de 2021 (Pº592/16.2SELSB), por crimes da mesma natureza em pena de prisão suspensa na sua execução e em pena acessória de proibição de contactos com a ofendida, que não respeitou.

Contudo, antes de praticar os factos destes autos o arguido não tinha sofrido qualquer privação da liberdade, não podendo ser ignorado que neste momento se encontra em prisão preventiva desde há quase um ano, o que para um octogenário, sem qualquer condenação anterior a 2021 e com uma vida longa marcada pela inserção social e dedicação à família, não pode deixar de ter nele um forte impacto (o arguido casou com a ofendida em 1967, mantendo uma dinâmica conjugal amistosa ao longo do casamento, têm um filho em comum com deficiência, em relação a quem o arguido se esforçou por proporcionar uma vida equilibrada, completando o filho o 9º ano de escolaridade e sendo atleta paraolímpico, até que por volta dos 20 anos de idade foi institucionalizado, desde então passando fins-de-semana e períodos festivos em casa).

O decurso do tempo é sentido de forma diversa ao longo da vida, um ano não é o mesmo para quem aos 20 anos tem uma longa esperança de vida e para aquele que já tendo atingido o estatuto de octogenário é constantemente relembrado pelas debilidades físicas e psicológicas que o fim pode estar próximo.

Assim, não pode deixar de ser reconhecido que após quase um ano de prisão preventiva a ameaça da pena de prisão terá para o arguido um impacto muito diferente do que teve a anterior condenação em pena de prisão suspensa, quando ainda não tinha tido qualquer experiência prisional e a sua idade (85 anos) lhe podia ter turvado a compreensão do que realmente estava em causa com os presentes autos.

Como referimos, o nosso sistema penal não prevê qualquer estatuto específico para o delinquente idoso, ao contrário do que prevê em relação aos jovens delinquentes, o que de jure constituendo deve merecer reflexão no sentido de saber se não devia a idade merecer adequada ponderação nestes casos, ao nível da determinação da pena aplicável, mas principalmente das penas de substituição, da suspensão da execução da pena ou de uma previsão mais alargada de execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação em relação à pessoa idosa, que no caso poderia dar suporte legal à pretensão do recorrente de internamento num lar.

Com tais soluções se evitaria que, em casos em que a idade conduz à eliminação ou atenuação das necessidades de prevenção especial, as prisões desempenhassem o papel de lar de idosos para que não estão vocacionadas.

O acórdão recorrido destaca o fator de risco em que se encontra a ofendida (nº38 dos factos provados), mas a situação física atual do arguido, que na prisão necessita de apoio na higiene diária e tem dificuldades de locomoção, indicia debilidade física que, aumentando naturalmente com o decurso do tempo, conduzirá à redução progressiva daquele risco.

Também o arguido está em situação de isolamento familiar e social (nº38 dos factos provados), mas isso não pode constituir argumento para afastar a suspensão da execução da pena, antes fará recair sobre os serviços competentes do estado social, para o que o arguido contribuiu ao longo de décadas de trabalho, a obrigação de lhe proporcionar a habitação e cuidados de que carece (art.72, da CRP).

Assim, ponderando as circunstâncias do caso, entende-se que as necessidades de prevenção especial estão mitigadas pela idade e situação física do arguido, sendo possível um juízo de prognose favorável sobre a sua conduta futura. Por outro lado, a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão, com regime de prova, que vigie o cumprimento das penas acessórias impostas e o apoie na obtenção de apoio social que lhe assegure uma velhice digna, apresentam-se como adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição, o que justifica a suspensão da execução da pena de prisão.

5.Quanto à indemnização arbitrada (3.000€), qualifica-a de exagerada.
Foi fixada, tal como pedido pelo Ministério Público, nos termos dos artigos 21°, n°1 e 2 da Lei n°112/2009, de 16.09, e 82°-A do Código de Processo Penal.
O citado art.21, nº2, determina que  há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser, o que não foi o caso.
O citado art.82-A, prevê o arbitramento de quantia a título de reparação dos prejuízos sofridos, quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.
No caso, considerando o padecimento prolongado no tempo da vítima por factos repetidos, com manifesta repercussão no exercício dos mais elementares direitos pessoais da vítima e no seu bem-estar enquanto ser humano, aceita-se a quantia arbitrada como adequada e proporcional.

6.Concluindo:
Em relação a delinquente idoso o nosso sistema penal não prevê qualquer regime específico, ao contrário do consagrado em relação aos jovens delinquentes;
O decurso do tempo é sentido de forma diversa ao longo da vida, um ano em prisão preventiva não é o mesmo para quem aos 20 anos tem uma longa esperança de vida e para aquele que já tendo atingido o estatuto de octogenário é constantemente relembrado pelas debilidades físicas e psicológicas que o fim pode estar próximo;
Sendo o arguido cidadão octogenário, fisicamente debilitado por dificuldades de locomoção e carente de apoio na higiene diária, com um percurso de vida marcado pela inserção social e profissional, após experiência de reclusão em prisão preventiva pelo período de quase um ano, por crimes de violência doméstica e violação de proibições e interdições, devem reconhecer-se como mitigadas as exigências de prevenção especial e suficiente a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão.
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IVºDECISÃO:
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, dando parcial provimento ao recurso do arguido, N…, acordam:
a)-Em suspender a execução da pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão em que o arguido foi condenado em 1ª instância, pelo período de cinco anos, com regime de prova direcionado a vigiar o cumprimento das penas acessórias impostas e a lhe permitir alcançar apoio social que lhe garanta uma velhice digna;
b)-Em confirmar o acórdão recorrido no restante;
c)-Sem tributação;
d)-Restitua o arguido, de imediato, à liberdade, caso não exista processo que imponha regime diverso.


Lisboa, 13 de setembro de 2022


(Relator: Vieira Lamim)
(1º Adjunto: Jorge Gonçalves)
(2º Adjunto: Maria José Machado)


[1]A título de exemplo, o Parlamento e a Comissão Europeia declararam 2012 como o Ano Europeu do Envelhecimento Ativo e da Solidariedade entre as Gerações, através da Decisão n.º 940(2011/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de setembro de 2011. O Conselho de Ministros (Resolução n.º 61/2011, DR, 1.º Série – n.º 244 – 24 de dezembro de 2011), o Ano Europeu do Envelhecimento Ativo e da Solidariedade entre as Gerações em Portugal no ano de 2012 para executar a nível nacional as políticas que lhe estão associadas. A Resolução da Assembleia da República n.º 61/2012, de 5 de abril de 2012, “Por um envelhecimento ativo” reconheceu o valioso papel das redes sociais e freguesias no apoio à população idosa isolada.
[2]Como refere o douto Acórdão do STJ de 7- 10-1999 (Relator Oliveira Guimarães, Pº 99P598, acessível em www.dgsi.pt) “… desde sempre inexistiu um regime abrangente e específico no concernente a delinquentes idosos, ao contrário do que por exemplo mereceram os jovens delinquentes (Decreto-Lei n. 401/82, de 23 de Setembro). Certo é que estamos perante realidades distintas: no caso dos jovens delinquentes abre-se todo um leque de perspectivas de reinserção social que urge não descurar, enquanto no caso dos delinquentes idosos a fase crepuscular aparenta-se incompatível com a premência da prevenção especial ressocializadora. Não é realmente possível escamotear que o significado de tal prevenção especial se vai esbatendo com o avançar dos anos: este tipo de prevenção carece de tempo para se auscultar do seu pragmatismo e eficácia, logo os percursos finais da viagem humana não são os que preferencialmente lhe importam.
[3]O citado Ac. do STJ de 07-10-1999, decidiu “… III - O facto do agente ter mais de 70 anos de idade legitimará, em princípio, a atenuação especial da pena, não porque se deva pressupor, necessariamente, diminuída a sua imputabilidade mas, sim, em virtude de, tanto do ponto de vista da prevenção geral como do da especial, ser substancialmente menor a necessidade da pena”, no caso, porém, a condenação sofrida pelo recorrente no Pº592/16.2SELSB em maio de 2021 não permite reconhecer a diminuição da necessidade da pena.