Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | MARGARIDA RAMOS DE ALMEIDA | ||
Descritores: | RESISTÊNCIA E COAÇÃO A FUNCIONÁRIO ESTADO DE EMERGÊNCIA ACTO ISOLADO PRISÃO PREVENTIVA | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/24/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | O arguido encontra-se indiciado pelo crime de resistência e coação sobre funcionário que viabiliza a imposição da medida coativa de prisão preventiva por se integrar no conceito de criminalidade violenta. Os factos ocorreram num momento temporal específico da declaração do estado de emergência. Dentro desse quadro legal, houve lugar à suspensão do exercício de direitos constitucionais como o direito de liberdade de reunião, previsto no artº 45 da CRP. O arguido e outras pessoas não acataram a ordem de dispersão, dando antes uma resposta violenta com arremesso de diversas pedras de calçada e outros objetos na direcção dos agentes de autoridade. Tudo ocorreu num momento temporal singular e, espera-se, irrepetível, a bem de uma sociedade que se quer democrática e sob a égide do Direito pelo que há que concluir que se está, pese embora o carácter violento da resposta do arguido, perante um acto isolado e irrepetível pelo que não se justifica aplicação de prisão preventiva. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na 3ª secção Criminal deste Tribunal: * I–RELATÓRIO 1.– Na sequência do primeiro interrogatório judicial do arguido A_________, realizado em 28 de Abril de 2020, durante a fase de inquérito, o Mº JIC proferiu despacho determinando a imposição a este arguido da medida coactiva de prisão preventiva. 2.– O arguido interpôs recurso desse despacho, pedindo a revogação de tal medida e a sua substituição por outra menos gravosa, designadamente OPHVE. 3.– O MºPº junto do tribunal de 1ª instância pronunciou-se no sentido de o recurso dever ser considerado improcedente. 4.– Neste tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto proferiu parecer em idêntico sentido. II–QUESTÃO A DECIDIR. Alteração da medida coactiva imposta. III–FUNDAMENTAÇÃO. Alteração da medida coactiva imposta. 1.– A matéria factual que se mostra indiciada é a seguinte: 1.-Desde o dia 18 de Março de 2020 que foi decretado estado de emergência em Portugal, o qual, renovado, se manterá até pelo menos o próximo dia 1 de Maio de 2020. 2.-Entre as 23H15M do dia 27 de Abril de 2020 e as 001115M do dia 28-04-2020, na Rua ... ..., em Casal de Cambra, Sintra, área desta comarca, e no qual estava integrado o aqui arguido, encontrava-se uni grupo de indivíduos, em numero não concretamente apurado, mas não inferior a 20 (vinte) cujas identidades, para além do arguido A_________Semedo, ainda não se lograram de apurar, a consumir bebidas alcoólicas e a fazer ruido. 3.-Por esse motivo deslocou-se ao local a Equipa de Intervenção Rápida da P.S.P., na qual estava integrado B________, agente da P.S.P.. 4.-Chegados ao local os agentes da P.S.P., devidamente uniformizados e identificados, foram os referidos indivíduos juntamente com o arguido, abordados por aqueles agentes de autoridade os quais, entre o mais, solicitaram-lhes que abandonassem o local e cessassem de imediato com o ruído. 5.-De imediato, o arguido e dos demais indivíduos, cujas identidades não se logrou de apurar até ao momento, em voz alta e perceptível, disseram que não abandonavam o local e ainda disseram, entre o mais, o seguinte: "nós é que mandamos aqui cabrões", "Vão embora daqui" (sie). 6.-Perante tal os agentes da P.S.P. presentes no local, uma vez mais, em tom audível e perceptível disseram ao arguido e aos outros indivíduos para abandonarem o local e cessarem com o ruído. 7.-O que o arguido e aqueles outros indivíduos se recusaram novamente em fazer. 8.-Foi-lhes, então, ainda, dito, entre o mais, que não podiam estar na via pública a consumir bebidas alcoólicas e muito menos estarem num aglomerado composto por cerca de 20 (vinte) pessoas, e que lhes estavam a dar uma ordem e que se não acatassem a mesma incorreriam na prática de um crime de desobediência. 9.-Não obstante, o arguido e os outros indivíduos mantiveram a sua postura, sendo que o arguido não se afastou dos outros nem saiu do local. 10.-Perante tal os agentes da P.S.P., por mais do que uma vez, em tom audível e perceptível reiteraram as ordens já descritas e advertiram o arguido e os demais presentes que, se não acatassem a mesma incorreria o arguido e os outros na prática de um crime de desobediência. 11.-Seguidamente o arguido e os outros indivíduos que o acompanhavam arremessaram várias pedras e outros objectos, ainda não concretamente apurados, na direcção dos corpos dos agentes da P.S.P. que naquele momento ali se encontravam. 12.-Perante tal foi solicitado reforço policial. 13.-Tendo ali chegado elementos policiais de uma patrulha da 86.ª Esquadra de Casal de Cambra e ainda de uma patrulha da 66.ª Esquadra do Cacem, da Divisão de Sintra bem como da Equipa de Intervenção Rápida e de dois carros patrulhas da 60ª Esquadra de Casal de São Brás, começaram a acercar-se daquele primeiro grupo de 20 indivíduos, outros indivíduos, em número não concretamente apurado, mas não inferior a 30, e cujas identidades, para além do arguido, são por ora desconhecidas. 14.-De imediato, o arguido e os outros cerca de 30 indivíduos, cuja identidade, até ao momento, não se logrou de apurar, começaram em voz alta, séria e perceptível, a dizer entre o mais, "vamos fazer-lhes frente", "não saímos daqui", filhos da puta" (sic). 15.-Tendo ainda o arguido, e os demais indivíduos, de forma contínua, persistido nas suas condutas arremessando com força pedras e outros objectos na direcção dos agentes de autoridade que ali se encontravam no local, 16.-Vindo, por via disso, a atingir o corpo de alguns dos agentes da Polícia de Segurança Pública ali presentes. 17.-Perante tal, uma vez que o arguido, bem como os outros indivíduos, não parava de proferir expressões como por exemplo 'filhos da puta (...) vão-se embora daqui (...) cabrões, isto é nosso, nós é que mandamos aqui", 18.-e de, em simultâneo, continuar o arguido (e os outros) a arremessar diversas pedras de calçada e outros objectos na direcção dos agentes de autoridade, para defesa da sua própria integridade física/vida, os agentes da Polícia de Segurança Pública, tiveram que fazer uso de bastões policiais e ainda de arma de fogo Shotgun, com munições de baixa potencialidade letal, 19.-Vindo assim a lograr, momentaneamente, de fazer cessar a conduta do arguido e dos demais, tendo sido detido o arguido. 20.-Foram ainda manietados dois outros indivíduos, cuja identidade não se logrou de apurar, porquanto foram os agentes da P.S.P. que os seguraram de imediato alvo de variados arremessos com pedras de alçadas, fruta, loiça, entre outros, provindos também de pessoas que se encontravam nos andares superiores dos prédios, e tiveram de se refugiar por temer pela sua segurança / vida e /ou integridade física. 21.-Tendo todos os demais indivíduos, à excepção do arguido, logrado encetar fuga para local incerto. 22.-Por força das condutas do arguido anteriormente descritas e assumidas em comunhão de esforços e intentos com os demais indivíduos em número não inferior a 30 (trinta) cujas identidades, por ora, não se lograram de apurar: i)- o Agente Principal Rosa foi atingindo, pelo menos uma vez, por uma pedra de calçada na zona do peito, o que, como consequência directa e necessária, lhe causou fortes dores na zona atingida e dificuldades respiratórias, pelo que o mesmo se viu na necessidade de receber tratamento hospitalar, tendo par ao efeito se deslocado ao Hospital Prof. Dr. Fernando da ; ii)- o agente Principal , foi atingido com um soco na zona do peito e com um pontapé na perna, tendo, como consequência directa e necessária, lhe causado dores nas zonas atingidas e escoriações, tendo ainda tido necessidade de receber tratamento hospitalar, tendo par ao efeito se deslocado ao Hospital Prof. Dr. Fernando da ; iii)- o agente Ferro sofreu impactos no corpo, designadamente nos dedos da mão esquerda, um corte e hematoma na zona frontal da cabeça e escoriações diversas na perna direita, o que, como consequência directa e necessária, lhe causou dores e incómodos nas zonas atingidas; iv)- o agente B________ foi atingido por urna pedra na zona das costelas do lado frontal direito, sofrendo, como consequência e directa, fortes dores e incómodos. 23.-O arguido ao agir como agiu nos moldes descritos, em comunhão de esforços e intentos com outros indivíduos em número não inferior a 30 (trinta) em execução de um plano que conjuntamente formulou e aderiu com esses indivíduos, com recurso à força física e procurando evitar que os agentes da P.S.P. o identificasse e fiscalizasse, actuando pois com intenção de não permitir que os agentes de autoridade, no exercício legítimo das suas funções procedesse a actos inerentes a essas mesmas funções, sabendo que os mesmos eram agentes da Polícia de Segurança Pública, que se encontravam devidamente uniformizados, exerciam funções públicas e que actuavam ao abrigo dos poderes legais que lhe são atribuídos, nomeadamente, os decorrentes estado de emergência decretado em Portugal. 24.-Ao assim agir perante os referidos agentes da Polícia de Segurança Pública, o arguido quis desencadear oposição violenta ao desempenho funcional do mesmo, com a intenção de os impedir de praticar ato legítimo relativo ao exercício das suas funções. 25.-Ao actuar como descrito o arguido actuou, em comunhão de esforços e intentos com os outros indivíduos, com o propósito de assim molestarem fisicamente o agente Principal Rosas, o agente Principal , o agente Ferro, e o agente B________ , todos da Polícia de Segurança Pública, causando-lhes as lesões anteriormente descritas quanto a cada um deles bem como dores e incómodos, o que representou, quis e conseguiu. 26.-O arguido ao actuar da forma descrita, ao proferir aquelas expressões sabia que se dirigia a agentes de autoridade no exercício das suas funções e por causa delas, bem sabendo que as mesmas eram aptas a lesar a honra e consideração pessoal e profissional daqueles e que não correspondiam à realidade, o que representou, quis e logrou conseguir. 27.-Mais, o suspeito ao não afastar-se do aglomerado de pessoas em número não inferior a 30 (trinta) e ao não sair do local para se dirigir à sua habitação para cumprimento do dever geral de recolhimento domiciliário conforme ordens lhe foram sendo dirigidas pelos agente de autoridade, e cuja advertência do seu não acatamento entendeu, agiu de forma livre e com o propósito concretizado de não obedecer às ordens que lhe foi transmitidas, apesar da obrigação aludida, pondo em causa a autoridade subjacente à mesma, o que representou. 28.-No circunstancialismo de tempo e lugar melhor descritos em 2. do presente, não tinha o arguido qualquer justificação nem fundamento para permanecer a conviver socialmente na via pública com mais de 20 a 30 pessoas e para assim não estar recolhido na sua habitação. 29.-Ao actuar da forma descrita, ciente da obrigatoriedade de não estar em convívio social com cerca de 20 a 30 indivíduos em plena via pública e de sobre o mesmo recair o dever de ficar na sua habitação, e, bem assim, das consequências de ato omissivo, teve o arguido o propósito concretizado de não acatar uma ordem formal e substancialmente legitima, regularmente comunicada e emanada de autoridade competente para o fazer. 30.-Agiu, pois, sempre o arguido em todas as ocasiões descritas de forma livre e voluntária e consciente, com pleno conhecimento que tais condutas eram proibidas por lei e penalmente punidas e não obstante não se coibiu de as praticar. 2.–Os ilícitos cujo cometimento foi imputado ao arguido são os seguintes: a)- um crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo art..° 347º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal b)- quatro crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 145, n.º 1, alínea a) e n. 2 por referência ao art.º 132º, n.ºs 1 e 2, alínea I), ambos do Código Penal) — porque, em concreto, os factos violam bens jurídicos de natureza pessoal, não se trata de concurso aparente mas sim de concurso real e efectivo, por referência a cada ofendido. c)- quatro crimes de injúria agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 181 n.º1, 184º por referência ao art.º 132º, n.ºs 1 e 2, alínea I), todos do Código Penal; e, d)- um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 348º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e art.ºs 5º, 32º, n.º 1, als. b) a d) do Decreto n.º 2-A/2020, de 20-03 e artigo 7º da Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro. 3.–O teor do despacho proferido, determinativo da aplicação da medida coactiva imposta, é o que a seguir se transcreve: VI — Perigos indiciados -Na presente vigência do estado de emergência os cidadãos deverão estar mais conscientes da necessidade de estrito respeito pela ordem e tranquilidade públicas, assim como pelo respeito devido às forças de segurança que se encontram no legítimo desempenho das respectivas funções. O arguido sabia que vigorava esse estado de emergência, que por via desta situação de excepção, a reunião em que participava na via pública era ilegal e que era legítima a ordem transmitida pela Polícia de Segurança Pública de que deveria cessar a reunião e que os respectivos participantes deveriam recolher às suas residências; -Aliás, o arguido e comparticipantes, não só estavam em situação de violação da obrigação de confinamento como ainda se encontravam a causar distúrbios e ruído que perturbavam o sossego dos demais cidadãos. -A intervenção policial apenas surge devido à manifesta perturbação da tranquilidade pública em que participava o arguido. -Mas ao receber a ordem de dispersão e recolhimento, o arguido não só não obedeceu a ordem como ainda se predispôs a atacar de modo violento o corpo policial que lhe transmitiu a ordem legítima. -O corpo policial que inicialmente abordou o grupo em que se encontrava inserido o arguido viu-se na contingência de pedir reforços para repor a ordem. -Contudo, o aparecimento de elementos policiais com equipamento antimotim não foi suficiente para dissuadir o arguido. Pelo contrário, perante o crescimento da força policial o arguido muniu-se de pedras que atirou contra esses elementos policiais... - Perante estas circunstâncias é evidente a forte energia criminosa com que actuou o arguido, manifestando um carácter violento, capaz de persistir na prática de ilícitos mesmo que lhe seja oposta legítima e musculada intervenção policial, o que torna o perigo de continuação da actividade criminosa intolerável para a comunidade em geral, sobretudo num período de incerteza e de redobrado esforço para que se mantenha a tranquilidade pública. -Este carácter violento patente nos factos praticados pelo arguido não é compatível com a personalidade calma e conscienciosa que se esforçou por transmitir ao tribunal em sede de interrogatório judicial — declarando-se "arrependido". -Pelo contrário, denota que o arguido tem frieza de ânimo necessária para adoptar todos os comportamentos que julgue necessários para obviar à sua responsabilização após a prática de ilícitos, o que mais agrava o perigo de continuação da actividade criminosa — a circunstância de o arguido não possuir registo criminal, no presente contexto factual, não se apresenta como ilustrativo do seu padrão de comportamento. -A intensidade com que se manifestam os perigos de continuação da actividade criminosa e para a tranquilidade e ordem públicas, bem como as respectivas consequências é, por isso, intolerável para a comunidade em geral. VII — Medida de coacção proposta pelo Ministério Público e posição manifestada pela defesa Prisão preventiva promovida pelo Ministério Público. Oposição da defesa nos termos registados em áudio. VIII — Medida de coacção adequada Face aos crimes fortemente indiciados, o avultado perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, bem como as circunstâncias de facto acima enunciadas, apenas uma medida detentiva revela-se proporcional, necessária e adequada ao caso concreto. Uma medida de apresentações periódicas é manifestamente insuficiente pois o arguido demonstrou que a proximidade das instâncias policiais ou de controlo não o intimidam nem influenciam. Contrariamente ao disposto no artº 193º, nº 3, do CPP, a obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica também não satisfaz as necessidades cautelares já que teria de ser executada no meio familiar e social que não se apresenta minimamente contentor. O estado de emergência em que nos encontramos demanda a adopção das medidas necessárias à manutenção da ordem pública, de defesa de valores pessoais relevantes como a integridade física (neste caso de forças policiais em desempenho das respectivas funções), o que torna manifesto que a única medida de coacção adequada e eficaz ao caso concreto é a de prisão preventiva — artº 7º, nº 2, da Lei 9/2020, de 10/04. (…) Pelo exposto, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva — artºs 191º, 193, 202, nº 1, al. d), 1º, j), 204, al. c), todos do CPP e artº 7º, nº 2, da Lei 9/2020 de 10/04. 4.–O recorrente pretende impugnar a validade de tal despacho, afirmando a este propósito, em sede conclusiva: 1.-O arguido encontra-se indiciado pela prática de 1 crime de resistência e coacção sobre funcionário (em concurso aparente com 4 crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 145 nº 1, al. a) e n° 2 por referência ao art. 132 nos. 1 e 2, al. I do C.P.), p. e p. pelo art. 347 nos 1 e 2 do C.P., 4 crimes de injúria agravada, p.e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 181, no 1, 184o, por referência ao art. 132, nos 1 e 2, al. I, do C.P. e 1 crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 348 nos 1 e 2 do C.P. e arts. 50, 32o, no 1 als. b) a d) do Decreto no 2 A/2020 de 20/3 e art. 7° da Lei 44/86, de 30 de Setembro., os quais o arguido confessou parcialmente, mostrando consciência crítica em relação aos que diz ter praticado e verdadeiro arrependimento. 2.-O arguido tem 29 anos de idade, é primário e até ter sido preso era trabalhador efectivo do Continente. 3.-Estava a organizar a sua vida para receber na sua casa o seu filho de 5 anos, deficiente, que foi abandonado pela mãe e que se encontra na casa do Gil; 4.-É um cidadão exemplar que se encontrava socio-profissionalmente inserido, nunca tendo tido, até, então, qualquer contacto com a justiça; 5.-Estava no dia errado à hora errada e viu-se envolvido na situação e "passou-se", uma vez que não é, nem nunca foi uma pessoa violenta; 6.-Esta foi a única situação atípica e descontrolada em que se viu envolvido durante a sua vida e não soube lidar com a mesma; Porém, 7.-Demonstrou perante o Mmo. Juiz "a quo" consciência crítica quanto aos seus actos, e mostrou arrependimento, pelo que, a aplicação da medida de coacção de permanência na habitação sujeito aos meios de controle à distância é mais do que suficiente para acautelar qualquer perigo, nomeadamente de continuação da actividade criminal. 8.-O arguido é uma pessoa de bem e não um criminoso e pauta a sua conduta pelas regras que regem a sociedade. 9.-No que respeita aos crimes de que vem indiciado, os mesmos são punidos com pena abstracta máxima de 5 anos de prisão. 10.-Mesmo que se prove em julgamento que o arguido cometeu todos os crimes pelos quais está indiciado, o que só muito remotamente se conjectura, a pena a aplicar-lhe, mesmo em cúmulo jurídico, será certamente inferior a 5 anos de prisão, pelo que poderá o Tribunal optar pela suspensão da execução da pena de prisão. Por isso, 11.-Com o devido respeito pela opinião em contrário, a prisão preventiva não se justifica com a perspectiva de condenação do arguido, mas sim com base noutros circunstancialismos, nomeadamente: i) perigo de fuga, ii) perigo de continuação da actividade criminosa, iii) perigo de perturbação do inquérito. 12.-A medida de coacção de prisão preventiva aplica-se em casus extremis, isto é, quando se considerarem inadequadas ou insuficientes todas as outras medidas. 13.-No caso concreto, entende-se que ainda se poderia aplicar uma medida de coacção menos gravosa, nomeadamente a obrigação de permanência na habitação com pulseira electrónica. 14.-No nosso entendimento, a medida de coacção de prisão preventiva tem um carácter excepcional, subsidiário e não obrigatório, devendo o Tribunal dar prevalência à aplicação da medida de obrigatoriedade de permanência na habitação (art. 193, no 3 Código de Processo Penal) na senda do disposto nos artigos 270, no 3 e 280, no 2 da Constituição da República Portuguesa. 15.-A Constituição da República Portuguesa consagra no seu artigo 270 o direito à liberdade e à segurança e as restrições à liberdade constituem uma excepção ao princípio constitucional da presunção de inocência, pelo que, apresentam carácter excepcional e subsidiário. Assim, 16.-Qualquer restrição à liberdade para além de ter de estar fundamentada em lei tem que resultar de factos de tal ordem graves que coloquem em risco a sociedade em geral, o que não é o caso. Pelo que, 17.-A prisão preventiva só pode ser aplicada quando se verifique que nenhuma das outras medidas de colação é suficiente para acautelar o interesse dos cidadãos e da sociedade. 18.-Os fins subjacentes à prisão preventiva visam evitar a fuga ou perigo desta, o perigo de perturbação do inquérito ou o perigo de continuação da actividade criminosa e não uma condenação antecipada. 19.-No caso em concreto dos autos, não se verifica qualquer dos perigos supra enunciados e que fundamentam a prisão preventiva. 20.-O Tribunal fundou a sua decisão essencialmente no perigo de continuação da actividade criminosa, mas tal pode ser acautelado se ficar com obrigação de permanência na residência sujeito aos meios electrónicos. 21.-A medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido não é proporcional à gravidade dos factos, entendendo-se ser excessiva, não sendo a medida que melhor afasta o perigo que se visou tutelar — continuação da actividade criminosa. 22.-Numa altura em que devido à pandemia do Covid 19 se libertam reclusos, não se compreende a razão de ter sido aplicada ao arguido a prisão preventiva, quando na realidade a obrigação de permanência na habitação sujeito aos meios de controle à distância é mais do que suficiente para acautelar qualquer perigo. 23.-O contacto precoce com sistema prisional pode traduzir-se num contágio prisional e numa estigmatização, contrariamente ao que se pretende e não tem os efeitos ressocializadores positivos que se pretendem. Para além disso, 24.-Não se poderá deixar de referir que o sistema prisional acarreta custos elevadíssimos para o erário público, custos esses que no caso concreto podem ser evitados. Pois, 25.-O arguido pode ser sujeito à medida de coacção de permanência na habitação com vigilância electrónica, medida esta que acarreta custos substancialmente inferiores para o erário público. 26.-Atento o exposto, requerer-se a revogação do despacho que determinou a prisão preventiva e a sua substituição por outro que determine a obrigação de permanência do arguido na sua residência com vigilância electrónica, por esta medida ser suficiente para afastar o perigo de continuação da actividade criminosa. 5.–Apreciando. A questão proposta neste recurso resume-se a saber se a medida de coacção imposta ao arguido – prisão preventiva – se mostra desajustada e excessiva, face às circunstâncias do caso e se deve ser substituída por uma outra menos gravosa. Note-se que o arguido não questiona a verificação da existência de fortes indícios da prática dos factos que lhe são imputados, nem o seu respectivo enquadramento jurídico, assim como não questiona a existência dos perigos que o despacho invoca. Considera, tão-somente, que a medida imposta se mostra excessiva e desnecessária, pelo que requer a sua revogação e substituição. 6.–Apreciando. Cabe então averiguar se a medida imposta, face às circunstâncias indiciadas dos ilícitos, se mostra desajustada para prevenir os perigos que o artº 204 do C.P.Penal enuncia. 7.–Em primeiro lugar caberá notar que, dos crimes pelos quais o arguido se mostra indiciado (quatro crimes de ofensa à integridade física qualificada; quatro crimes de injúria agravada e um crime de desobediência), apenas um deles – o crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. pelo art..° 347º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal – por ter uma moldura penal de 1 a 5 anos de prisão, viabiliza a imposição ao arguido da medida coactiva de prisão preventiva, por se integrar no conceito de criminalidade violenta, consignado no artº 1º, al. f), do C.Penal (“as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos;) 8.–Assim, a prevenção dos perigos invocados no despacho, bem como as exigências cautelares do caso, terão de ser averiguadas atendendo-se, essencialmente, às circunstâncias respeitantes a este tipo de crime (uma vez que, face aos restantes, a medida coactiva de prisão preventiva não é sequer legalmente admissível). 9.–Como resulta da factualidade transcrita, o incidente que dá origem à indiciação do preenchimento do tipo do crime de resistência e coacção sob funcionário, ocorre num momento temporal específico (27 e 28 de Abril de 2020), designadamente durante a vigência da declaração do estado de emergência, que terminou no início de Maio de 2020. Dentro desse quadro legal, houve lugar à suspensão do exercício de direitos constitucionais (artº 19 nº1 da CRP), designadamente, no caso que ora nos importa, do direito de liberdade de reunião, previsto no artº 45 da CRP. 10.–Assim, o que dá origem a todo o ocorrido, foi a violação, por parte do arguido e de outras pessoas não identificadas, da determinação da suspensão do seu direito de liberdade de reunião – convívio entre algumas dezenas de pessoas, para comemorarem o nascimento do filho de um deles, que ocorreu no patamar de um prédio e no exterior do mesmo – com o consequente não acatamento da ordem de dispersão, bem como uma resposta violenta (arremesso de diversas pedras de calçada e outros objectos na direcção dos agentes de autoridade) à imposição de tal comando pelas forças da autoridade. 11.–Neste contexto, e tendo em atenção que o arguido tem 30 anos, não tem antecedentes criminais, tem emprego e entorno familiar, não cremos que se justifique a imposição de uma medida cautelar que implique a efectiva detenção do arguido (seja em estabelecimento prisional, seja em casa), enquanto aguarda julgamento, por se mostrar a mesma desproporcional aos perigos que se pretendem acautelar, nomeadamente os de continuação da actividade criminosa e perturbação da tranquilidade e ordem públicas. 12.–De facto, a situação de emergência já cessou, sendo certo que, no momento presente, o direito à liberdade de reunião deixou de poder estar legalmente suspenso (atento o fim do estado de emergência), embora ainda se encontra sujeito a condicionalismos que, pela sua própria natureza, se não podem entender como de carácter permanente. Isso não significa que as pessoas se possam reunir, perturbando a paz e o sossego dos outros ou que é aceitável atirar pedras a polícias e resistir, com violência, às ordens legítimas que as autoridades emanem. Óbvio que não. O que significa é que estamos perante um momento temporal singular e, espera-se, irrepetível, a bem de uma sociedade que se quer democrática e sob a égide do Direito. 13.–E se assim é, se atendermos ao contexto, às circunstâncias particulares do caso, bem como à personalidade que resultou do interrogatório do arguido (que o próprio juiz “a quo” caracterizou como calma e conscienciosa, tendo o ora recorrente declarado mostrar-se arrependido), resta-nos concluir, em sentido diametralmente oposto ao que consta no despacho exarado; isto é, que o incidente em questão, pese embora o seu carácter violento, não é demonstrativo, por si, de estarmos perante um cidadão com uma personalidade de tal modo impetuosa e violenta, que nada senão a sua detenção poderá assegurar a não repetição de um acto de resistência à polícia e de perturbação do sossego dos seus concidadãos. 14.–Efectivamente, o que resulta da análise do caso, é uma situação excepcional, em tempos também eles excepcionais. E, embora os perigos a que alude o despacho se verifiquem, a sua intensidade não é de molde a exigir a aplicação ao arguido das medidas mais gravosas previstas no nosso ordenamento legal. 15.–Cremos, pois, que tudo ponderado, os perigos mencionados no despacho ora alvo de crítica se mostrarão devidamente acautelados pela manutenção da imposição de TIR e pela obrigação consignada no artº 198 do C.P.Penal, de apresentação à autoridade policial competente, da área da sua residência. 16.–Assim, uma vez que a correlação destas duas medidas coactivas, se mostra adequada e suficiente para prevenir os perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação da tranquilidade e ordem públicas, a decisão de imposição da medida coactiva de prisão preventiva, porque desnecessária, desadequada e desproporcional, deverá ser revogada, tudo ao abrigo do disposto nos artos 191, 193 n° 2, 194, 196, 198 e 204, todos do C.P.Penal. IV–DECISÃO. Face ao exposto, acorda-se em considerar procedente o recurso interposto pelo arguido A_________ e, em consequência, revoga-se a medida coactiva de prisão preventiva, impondo-se (para além do novo TIR a prestar no momento da sua libertação, caso a sua morada de residência seja diversa da constante no TIR já prestado) a medida de apresentação semanal, às segundas-feiras, após horário laboral, na esquadra policial da área da sua residência. Sem tributação. Emita mandados de libertação imediata do arguido, advertindo que este deve prestar novo TIR, caso haja alteração de residência, face à que consta no já prestado. Dê imediato conhecimento ao tribunal “a quo” do teor do presente acórdão, cabendo à 1ª instância (assim que recebido o novo TIR ou a informação da manutenção da residência do arguido no mesmo local do TIR já prestado) a realização das diligências necessárias, de forma a assegurar o conhecimento do local onde o arguido se deve apresentar semanalmente e efectiva viabilização da mesma. Lisboa, 24 de Junho de 2020 Assinaturas digitais: Margarida Almeida – relatora Ana Paramés |