Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
403/20.4T8CHV-A.L1-8
Relator: RUI MANUEL PINHEIRO DE OLIVEIRA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
CHEQUE
ASSINATURA A PEDIDO DO CÔNJUGE
EXCEPÇÕES OPONÍVEIS
MEIOS DE DEFESA DO CÔNJUGE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(veis) de ter relevância jurídica, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito;
II – A emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento a um banco a favor de um terceiro, constituindo, também, o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação ao portador;
III – A assinatura de um cheque pelo executado/embargante, a pedido do seu cônjuge, para pagamento de parte do preço de serviços relacionados com o tratamento da dependência de álcool e consumo abusivo de fármacos contratados por esse cônjuge sem intervenção do executado/embargante, traduz, com segurança, um comportamento deste concludente da prestação do seu consentimento à dívida contraída pelo seu cônjuge, para os efeitos dos art.ºs 1690.º, n.º 1 al. a) e 1695.º do CC;
IV – Nesse caso, ao executado/embargante, apenas, é lícito opor à exequente as excepções ou meios de defesa fundados no seu consentimento, por ser essa a causa ou razão de ser da emissão/assinatura do cheque;
V – Mas, já não lhe é lícito opor à exequente os meios de defesa pessoais do seu cônjuge, fundados no contrato por este celebrado com a exequente, nomeadamente, os vícios da vontade desse cônjuge ou a violação de deveres de informação e esclarecimento de cláusulas contratuais;
VI – Compete ao executado/embargante a prova das excepções que lhe é lícito opor à exequente, beneficiária/portadora do cheque (cfr. art.º 342.º, n.º 2 do CC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. A e B vieram, mediante embargos de executado, deduzir oposição à execução sumária para pagamento da quantia de €6.025,22, que lhes moveu C, Lda., e que tem por base dois cheques datados de 11.08.2019 e 11.09.2019 e assinados pelo primeiro executado, no valor de € 2.900,00 cada um, sacados sobre uma conta de ambos os executados são contitulares.
Para tanto, alegaram, em síntese, que:
- a relação cambiária, relativamente ao cheque emitido em 11.08.2019, já se encontrava prescrita à data da entrada da execução;
- o cheque emitido em 11.08.2019, enquanto título executivo, é inválido e não produz efeitos quanto ao executado/embargante, porque a relação subjacente invocada pela exequente não lhe diz respeito, ou seja, o cheque não pode valer como título executivo, porquanto não contém reconhecimento de qualquer dívida;
- os dois cheques dados à execução não configuram uma declaração de dívida por parte do executado/embargante, pois que este nada deve à exequente, nem é responsável pelo pagamento da dívida invocada (nunca solicitou à exequente a prestação de qualquer serviço ou tarefa que esta lhe tenha, efectivamente, prestado, nem assinou ou interveio de qualquer forma na relação subjacente à emissão dos cheques);
- os referidos cheques foram passados pelo executado/embargante da conta conjunta de ambos os executados (que à data eram casados entre si), a pedido da executada/embargante, porque não se encontrava em condições de proceder à sua emissão, devido ao alcoolismo;
- o executado/embargante apenas emitiu os cheques, da conta conjunta, a pedido da executada/embargante, porque temeu a reacção desta, dado o estado psicológico incontrolável em que se encontrava, uma vez que a mesma também sofria de Transtorno de Borderline, que se caracteriza por mudanças de humor bruscas, e um comportamento impulsivo, movido por emoções violentas de raiva e sofrimento interior;
- caso se venha a concluir pela existência da dívida, a mesma foi contraída sem o consentimento do executado/embargante e não se destinava a ocorrer aos encargos da vida familiar nem em proveito comum do casal;
- a executada/embargante não se encontrava em condições de perceber o verdadeiro sentido do clausulado, aquando da assinatura do contrato, nem o mesmo lhe foi transmitido e esclarecido como se impunha (ocorrendo vício da vontade);
- o contrato foi previamente elaborado pela exequente e apresentado à executada/embargante, a quem foi entregue para assinar, sem que pudesse ter qualquer influência no seu conteúdo e sem que lhe tivesse sido dada a informação correcta e adequada sobre as respectivas cláusulas contratuais;
- o contrato contém cláusulas ambíguas e contraditórias, violadoras do princípio da boa-fé e do regime das cláusulas contratuais gerais, devendo prevalecer o sentido mais favorável ao aderente;
- a exequente não cumpriu o contrato, pois não prestou os serviços adequados às necessidades da executada/embargante.
Terminam pedindo a extinção da execução e a condenação da exequente em multa e indemnização, por litigância de má-fé.
1.2. A exequente contestou, defendendo que os embargantes não alegaram nenhum fundamento de oposição previsto no art.º 729.º do CPC e propugnando pela improcedência da arguida excepção da prescrição e dos embargos, alegando, em suma, que:
- os cheques foram emitidos pelo executado/embargante para pagamento de serviços prestados pela exequente, no âmbito de um contrato de prestação de serviços celebrado com a executada/embargante;
- tais cheques, porque assinados pelo executado/embargante, importam o reconhecimento da dívida em causa por sua parte;
- a executada/embargante assinou o contrato de forma livre e esclarecida e com perfeito conhecimento do teor das suas cláusulas;
- a exequente cumpriu as obrigações para si decorrentes do contrato, tendo sido a executada/embargante que desistiu do tratamento, sem alta médica.
Termina pedindo, também, a condenação dos embargantes em multa e indemnização, por litigância de má fé.
1.3. Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, que absolveu a executada B da instância executiva, por ilegitimidade, e julgou procedente a excepção peremptória da prescrição e falta de título quanto ao cheque emitido em 11.08.2019, declarando extinta a execução nessa parte (decisão confirmada por acórdão desta Relação de 07.12.2021 – apenso B).
1.4. Mo mais, foi fixado o objecto do litígio e enunciando-se os temas da prova, sem reclamações.
1.5. Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que concluiu da seguinte forma: «julgam-se os embargos de executado procedentes, extinguindo-se a execução.  Absolve-se a exequente do pedido de condenação por litigância de má fé. Custas pela exequente».
1.6. Inconformada, apelou a exequente/embargada, pedindo que «deve a sentença recorrida ser revogada, substituindo-a por outra que determine a procedência do presente recurso», formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«1. Por sentença proferida a 14/12/2022 com a referência 421429413, o douto Tribunal a quo julgou os embargos de executado procedentes, com a consequente extinção da execução, absolvendo a Exequente do pedido de condenação por litigância de má fé, daí a oportunidade do presente recurso que versa tanto sobre matéria de facto como sobre matéria de direito.
2. Da sentença proferida ressaltam erros notórios na apreciação e decisão da matéria de facto, por incorretamente julgados, sendo manifesto o erro na sua apreciação, assim como é manifesto ter o douto Tribunal feito uma incorreta interpretação e aplicação do direito ao caso em apreço, nomeadamente por violação dos artigos 53.º, n.º 1 e 703.º, ambos do Código de Processo Civil, artigo 458.º do Código Civil e artigo 11.º da Lei Uniforme do Cheque.
3. A Recorrente entende que o douto Tribunal a quo deveria ter julgado a contestação aos embargos totalmente procedente, por provada, e, em consequência, ter julgado a petição de embargos totalmente improcedente, por não provada,
4. Com base nas declarações de parte do legal representante da Recorrente, D, o qual consta gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 27/09/2022, com duração total de 25,02 minutos, com relevo para este recurso de [00:00:00] a [00:05:00]; [00:07:00]; [00:10:00] a [00:15:00]; e [00:18:00] a [00:19:00].
5. E ainda com base no depoimento da testemunha P, o qual se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 27/09/2022, com duração de 14,00 minutos, com relevo de [00:02:00] a [00:05:00]; [00:07:00]; e [00:08:00].
6. E, dessa forma, os factos dados como provados sob os números 5, 7 (última parte: “… sem antes consultar a opinião do Executado, a quem deu conhecimento da situação após a decisão estar tomada,”), 9, 10, 11 e 15 (última parte: “… o que a mesma fez sem ler, confiante nas explicações que lhe tinham dado por telefone.”), deveriam ter sido dados como não provados.
7. Ao passo que os factos dados como não provados sobre os últimos dois pontos, que convertemos em alíneas para melhor perceção e correspondente às alíneas v) e w), deveriam ter sido dados como provados, atendendo à prova produzida e incorretamente apreciada pelo Tribunal a quo.
8. A Recorrente dedica-se à atividade de acolhimento, apoio, aconselhamento e reabilitação do alcoolismo e toxicodependência, tendo sido nesse âmbito celebrado um contrato de prestação de serviços, em que B entregou dois cheques à Recorrente, sacados sobre a Caixa de Crédito Agrícola, cujo titular é B e emitidos pelo co-titular A, mas que, apresentados a apagamento pela Recorrente foram devolvidos na Compensação do Banco de Portugal de Lisboa..
9. Após determinação do Tribunal, a execução prosseguiu apenas quanto ao cheque n.º 0300000081, datado de 11.09.2019, no valor de €2.900,00.
10. Os cheques foram subscritos pelo Recorrido A e foram entregues por B à Recorrente para pagamento do preço de €8.700,00, devido pelo contrato no âmbito da atividade da exequente, contrato esse assinado por B de forma livre e esclarecida.
11. Os cheques foram entregues à Recorrente para pagamento das obrigações decorrentes do contrato e foram assinados pelo Recorrido, importando o reconhecimento de dever as quantias pecuniárias aí inscritas.
12. Alega B não ter percebido o verdadeiro significado do clausulado, mas depois assina o contrato de prestação de serviços, emite cheques pré-datados e paga a primeira prestação de 2.900,00€ no dia 12.07.2019, na data de admissão e depois, passado um mês, sem que nada o fizesse prever, desiste do programa de livre e espontânea vontade, sem alta médica, pretendendo reaver esses valores.
13. Como bem refere a testemunha F, de [00:01:00] a [00:03:00]; e [00:05:00] a [00:06:00] do seu depoimento, enquanto terapeuta, nunca por B foi partilhado algum sentido de desagrado relativamente ao tratamento que estava a receber.
14. O que igualmente foi confirmado pelo Recorrido, em sede de audiência de julgamento, quando questionado se tinha ido visitar B à clínica, e ao que respondeu em sentido afirmativo – facto confirmado pela testemunha P, em [00:04:00] do seu depoimento – e quando questionado se ela alguma vez tinha desabado no sentido de não estar agradada com o tratamento que recebia.
15. Ora, quanto ao contrato de prestação de serviços em discussão, resulta evidente, após uma leitura atenta das cláusulas 4ª e 5ª, que, apesar de terem ambas a mesma epígrafe (“abandono do programa”), a cláusula 4ª refere-se caso o residente seja dispensado do programa, ou seja, com alta médica, ao passo que a cláusula 5ª refere expressamente ao caso de abandono sem alta programada.
16. B assinou o contrato de forma livre e esclarecida, com perfeito conhecimento do teor das cláusulas que compunham o mesmo, tanto que, pelo menos por duas vezes lhe foi dito e devidamente explicado (tanto pelo legal representante da Recorrente antes da sua admissão, por telefone, como pela testemunha P, administrativa da Recorrente, que, no momento da admissão leu e explicou o contrato que ambas tinham à sua frente).
17. B, à data da sua admissão, acompanhando a leitura e a análise do contrato, nunca levantou qualquer tipo de dúvidas sobre o contrato, sobre o processo de reabilitação, modos de pagamento, duração, nem nunca pediu quaisquer esclarecimentos que fossem aceitando todas as condições que lhe foram propostas.
18. Mais, nunca B ou o Recorrido solicitaram uma cópia do contrato, talvez por terem ficado perfeitamente esclarecidos, mas certo é que a Recorrente, caso isso acontecesse, não teria problema nenhum em facultar cópia do contrato.
19. É inequívoco o teor da clausula 5ª quando refere expressamente que: “Caso o paciente venha a desistir sem alta programada não haverá direito a devoluções” – o que sucedeu in casu – mais certo sendo que nunca B pediu esclarecimentos quanto a estas cláusulas, nem o próprio Recorrido que, aquando do contacto telefónico que estabeleceu com o legal representante da Recorrente, não questionou, nem pediu explicações quanto a estas possibilidades de abandono do programa.
20. B ficou perfeitamente ciente do contrato que estava a assinar, dos serviços que lhe iriam ser prestados, bem como das formas de pagamento e das eventuais devoluções, consoante se verificasse o abandono do programa com alta médica ou sem alta médica.
21. Ficou mais do que demonstrado, pelas declarações de parte do legal representante da Recorrente, bem como das testemunhas por si arroladas, que B veio a desistir do programa, por sua livre e espontânea vontade, no dia 12.08.2019, sem alta médica.
22. Contrariamente ao que o Recorrido e B fizeram parecer crer, tanto nos embargos deduzidos como em sede de audiência de julgamento, não ocorreu qualquer incumprimento contratual por parte da Recorrente, mas antes parte do Recorrido (e de B) ao ter impedido a boa cobrança dos cheques dados à execução.
23. O Recorrido ao assinar os cheques, nos termos em que o fez, bem sabendo que era intenção de B submeter-se a tratamento na clínica do legal representante da Recorrente, reconheceu que nas referidas datas apostas nos cheques manifestou a intenção de pagar as quantias lá constantes.
24. Sendo entendimento pacífico que qualquer pessoa que aponha a sua assinatura num cheque, ainda que como representante duma outra pessoa, fica obrigado no pagamento (art.º 11.º da LUC).
25. Quase se poderá alegar que o Recorrido auxiliou B para que esta tivesse o tratamento que necessitava, pois que bem sabendo da situação de dependência em que se encontrava B, e se tinha assim tanto receio da reação da mesma, “dado o estado psicológico incontrolável em que se encontrava, temendo que esta ficasse violenta”, “convinha” ao Recorrido que B ingressasse na clínica aqui Recorrente.
26. Posto isto, o Recorrido emitindo os cheques, da conta conjunta com B, assumiu a obrigação de pagamento dos serviços que seriam e foram efetivamente prestados àquela.
27. Ora, toda a execução tem de ter por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva (fins esses que, como previsto na lei, podem consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo – vide n.º 5 e 6, do art.º 10º).
28. O objeto da execução tem de corresponder ao objeto da situação jurídica acertada no título e é também pelo título que se determina a quantum da prestação.
29. Pela execução a que foi deduzida a competente oposição, o Recorrente visa, pois, obter o pagamento coativo de crédito, estando assim perante uma ação executiva para pagamento de quantia certa e em que o título executivo que serve de base à presente execução é um cheque, sendo este um título de crédito que enuncia uma ordem dada por uma pessoa (sacador) a um banco (sacado) para que pague determinada quantia por conta de fundos lá depositados - cfr. art.ºs 1.º e 2.º, da Lei Uniforme Sobre Cheques, doravante designada, abreviadamente, LUC.
30. Os títulos de crédito, mais do que documentos probatórios da existência de certa obrigação, consubstanciam a própria obrigação, a obrigação cambiária, já que esta se incorpora nos títulos e se torna independente da obrigação subjacente que lhe deu origem, não existindo, o direito cambiário se não existir título, o que não significa que a obrigação subjacente não se mantenha, pois são autónomas.
31. O cheque é, pois, um meio de pagamento, resultando da sua emissão que o sacador assume dispor de fundos para o pagamento no prazo estabelecido, de tal forma que, por virtude do efeito cartular, se o tomador ou o portador não puder satisfazer-se através do banco, o seu direito dirige-se contra o sacador.
32. O cheque supõe quantias disponíveis em poder do sacado, pois só assim poderá desempenhar as suas funções de meio de pagamento.
33. A emissão de um cheque consiste no seu preenchimento por parte do titular da provisão e posterior entrega ao tomador, sendo neste momento, quando o sacador preenche o cheque e abre mão dele, transferindo-o para a posse do beneficiário, que segundo a melhor doutrina, surge o complexo de direitos e obrigações nele incorporados.
34. O entendimento jurisprudencial de que a subscrição de títulos de crédito faz presumir a existência de uma relação causal subjacente é uniforme em relação às letras e livranças, na medida em que nelas se contém a constituição ou confissão de uma dívida.
35. Já em relação aos cheques, sendo estes uma ordem de pagamento dada a um banco determinado e é entendido da jurisprudência maioritária que a emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento dada a uma instituição bancária a favor de um terceiro,
36. Pois que constitui, também, o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação a esse terceiro, pois, na verdade, ao ser dada uma ordem de pagamento a uma instituição bancária se está a reconhecer uma obrigação pecuniária, na qual o titular da conta está a reconhecer uma obrigação pecuniária em relação, ao portador, das quantias nele mencionadas.
37. O Recorrido emitiu os cheques da conta conjunta com B, para esta dar a pagamento à Recorrente aquando da sua admissão na clínica, como efetivamente o fez, daqui decorrendo a legitimidade do Recorrido para a presente execução, tendo presente o disposto no art.º 53.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, já que a execução foi instaurada contra a pessoa que no título tem a posição de devedor – o Recorrido.
38. Desta forma, a cláusula 5ª do contrato em discussão (que em nada é contraditória ou ambígua quando comparada com a cláusula 4ª), não admite a devolução das prestações vincendas em caso de desistência, sem alta médica.
39. Pelo que, não poderá ser admitida a devolução dos cheques correspondentes aos períodos restantes do tratamento, porquanto B, passado um mês, decidiu, por sua livre vontade, abandonar o programa, a meio dos tratamentos e sem alta médica».
1.7. O executado/embargante não apresentou contra-alegações.
1.8. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Decorre do disposto nos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, as questões essenciais a decidir consistem em saber:
a) se deve ou não ser alterada a matéria de facto;
b) se existe ou não causa ou relação subjacente à emissão do cheque dos autos;
c) se o executado demonstrou ou não excepções fundadas nessa relação que obstem ao pagamento do cheque.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1. A sentença sob recurso considerou provada a seguinte matéria de facto:
«1) A Exequente é portadora de dois cheques, apresentados com o requerimento executivo, que se dão por reproduzidos:
- Cheque n.º 1200000080, datado de 11.08.2019, no valor de €2.900,00;
- Cheque n.º 0300000081, datado de 11.09.2019 no valor de €2.900,00.
2) Os referidos cheques, sacados sobre a Caixa de Crédito Agrícola, cujo titular é B, foram assinados e emitidos pelo co-titular A.
3) B entregou os mesmos cheques à Exequente, os quais se destinavam ao pagamento devido pela prestação de serviços à primeira, no âmbito da atividade da exequente de acolhimento, apoio, aconselhamento, reabilitação do alcoolismo e da toxicodependência.
4) Entre a exequente e B foi celebrado o “contrato de prestação de serviços”, apresentado como documento n.º 2 com a contestação, que se dá por reproduzido.
5) O embargante nunca solicitou à exequente a prestação de qualquer serviço ou tarefa que esta lhe tenha efetivamente prestado, não assinou nem interveio de qualquer forma no aludido contrato.
6) Foi B quem contactou a exequente, tendo em vista tratar-se da dependência de álcool e consumo abusivo de fármacos, de que sofria.
7) Para tanto, entrou em contacto telefónico com a exequente numa quarta-feira, dia 10 de julho de 2019, após pesquisa efetuada na internet e solicitou informações acerca do tratamento, ao qual decidiu de imediato submeter-se, sem antes consultar a opinião do Executado, a quem deu conhecimento da situação após a decisão estar tomada.
8) Dois dias depois, numa sexta-feira, dia 12 de julho de 2019, B apanhou uma camioneta para Vila Real, para se apresentar nas instalações da embargada.
9) O executado não teve qualquer intervenção, nem opinião sobre o assunto, apenas passou os cheques da conta conjunta dos Executados, a pedido de B.
10) O executado não contactou com a exequente, nem esta contactou aquele, antes de B dar entrada nas instalações da embargada.
11) A única vez que o executado e a exequente estabeleceram contacto, foi no dia 12 de agosto de 2019, quando B manifestou que queria desistir do programa.
12) À data em que assinou o contrato com a exequente, B e o Executado encontravam-se em negociações extrajudiciais para processo de divórcio.
13) O embargante apenas emitiu os cheques, da conta conjunta, a pedido de B, porque temeu a reação desta, dado o estado psicológico incontrolável em que se encontrava, temendo que esta ficasse violenta.
14) B, decidida a tratar-se dos seus problemas de dependências, encontrou referências sobre a exequente via internet, sendo que logo após ter falado telefonicamente com os seus representantes, decidiu fazer-se à estrada sozinha e por sua conta, para Vila Real, onde chegou às instalações da embargada, dois dias após o primeiro contacto.
15) Ao chegar às instalações da exequente, foi dado a B o contrato para assinar, o que a mesma fez sem ler, confiante nas explicações que lhe tinham dado por telefone.
16) B entregou à exequente os dois cheques acima referidos, que levava preenchidos.
17) B já tinha feito um primeiro pagamento por depósito bancário, no valor de €2.900,00.
18) Foi-lhe dito que o tratamento englobava assistência médica, psicológica e psiquiátrica, como consta do nº 2 da Cláusula 1ª do contrato.
19) Em 12 de agosto de 2019, B decidiu que não ficava mais tempo no Centro de Tratamento da exequente.
20) Antes de B deixar o Centro de Tratamento da exequente, o responsável pelo Centro de Tratamento da exequente falou telefonicamente com o executado.
21) Nesse mesmo dia, B saiu do Centro de Tratamento da Exequente e regressou a casa.
22) Conforme refere a Cláusula 3ª do contrato, «o custo do tratamento é de €8.700,00, pago antecipadamente mediante a entrega de três cheques, no valor de €2.900,00 cada, os quais serão descontados da seguinte forma: a) €2.900,00 no ato da admissão; b) €2.900,00 no 29.º dia a contar da admissão; c) €2.900,00 no 37.º dia a contar da admissão».
23) A Cláusula 4ª do contrato, sob a epígrafe “abandono do programa”, dispõe no n.º 1, o seguinte: «Para efeitos de cálculo de valores a restituir, caso o residente seja dispensado do mesmo, deverá ter sempre em conta que o tratamento não é faturado ao dia, mas sim ao mês. Assim os montantes deverão ser os seguintes:
«a) Caso o paciente venha a desistir no decurso das primeiras 4 semanas, serão devolvidos dois cheques entregues, no valor de 2.900,00€.
«b) Caso o paciente venha a desistir até ao decurso entre a 4ª semana e a 8ª semana de tratamento, será devolvido um cheque entregue, no valor de 2.900,00€.
«c) Caso o paciente venha a desistir entre a 8ª e a 12ª semana, não tem direito a qualquer devolução».
24) Por sua vez, a cláusula 5ª, sob a mesma epígrafe, dispõe: «caso o paciente venha a desistir sem alta programada, não haverá direito a devoluções».
25) O Contrato de Prestação de Serviços, foi previamente elaborado pela Exequente e apresentado a B sem que esta pudesse ter qualquer influência no seu conteúdo.
26) A exequente não lhe forneceu uma cópia do contrato no momento da sua assinatura.
27) B saiu do tratamento sem alta médica».
3.2. A sentença sob recurso considerou não provada a seguinte matéria de facto:
«- B não se encontrava em condições para proceder à emissão dos cheques devido ao alcoolismo;
- À data em que assinou o contrato com a exequente, a conferência de divórcio de B com o executado já se encontrava agendada para 01/07/2020;
- A executada sofria de “Transtorno de Borderline”;
- Recebida nas instalações da exequente, enquanto preenchiam a papelada, perguntaram a B se pretendia beber um café, ao que a mesma respondeu que preferia cerveja;
- Foi-lhe dada cerveja a beber, por ser do regulamento da exequente, que enquanto o internamento não estivesse efetivado, lhe seria permitido o consumo de álcool, do qual se ia tratar;
- Quase decorrido o primeiro mês de tratamento, B ainda não tinha iniciado a terapia psicológica e psiquiátrica, apenas tinha tido consultas de clínica geral e tratamento de grupo, este orientado por ex-pacientes da exequente.
- B passava os dias sob o efeito de medicação, sem qualquer informação sobre o que lhe era prescrito e não se sentia enquadrada no grupo, pelo que passou a sofrer de grande ansiedade, sendo que à medida que o tempo passava ia questionando os responsáveis sobre o inicio da terapia psiquiátrica.
- No dia 7 de agosto de 2019, B deu conhecimento aos responsáveis da Exequente que pretendia ir-se embora uma vez que não se sentia melhor e estava a sofrer de grande ansiedade.
- Foi-lhe dito que não podia desistir, que era normal sentir-se assim, “era a doença dela a falar”, e convenceram-na a ficar com a promessa de que na sexta-feira dia 8, o mais tardar no sábado dia 9 de agosto, iria ser visitada por um psiquiatra.
- B acedeu contrariada e foi, então, encaminhada para uma consulta de clínica geral, tendo o médico questionado acerca das razões de querer desistir do tratamento e prescrito mais medicação, que a primeira se recusou a tomar sem que tivesse a primeira consulta de psiquiatria.
- Após uma grande discussão, B acabou por tomar a medicação, contrariada, sendo que logo a seguir caiu sobre o sofá, sem se conseguir mexer, a espumar pela boca, num estado quase catatónico.
- Tiveram de a levantar em braços, para a levarem para o quarto e deitarem na cama, onde ficou a alucinar, a gritar que o cortinado tinha pernas e vinha sobre si.
- Certo é que, sem saber o que lhe tinham dado a tomar, passou a noite aos gritos e com alucinações.
- No dia seguinte quis ir embora, mas estava tão debilitada que mal conseguiu sair da cama.
- Depois, apareceram no Centro de Tratamento, um psicólogo e um psiquiatra com quem falou simultaneamente, e tendo o psiquiatra analisado a prescrição médica, comentou para o psicólogo que tinha sido uma sorte não ter sido pior, pois o que tinha tomado “poderia ter dado mesmo mau resultado”.
- Imediatamente B decidiu que não ficava mais tempo no Centro de Tratamento da Exequente e exigiu que lhe fosse entregue uma cópia do contrato e os dois cheques pré-datados.
- Outros dois utentes juntaram-se a B, também com intenções de saírem, os quais foram retirados sob coação e agressão física, ficando aquela sozinha numa sala com o responsável pelo Centro de tratamento da Exequente, a tentar convencê-la a ficar, enquanto à porta estavam cinco monitores de prevenção, caso tentasse fugir.
- O responsável pelo Centro de Tratamento da Exequente, passou, então, a ameaçar que esta iria perder todo o dinheiro, que não havia nenhum mês de experiência, e que não lhe devolveria os cheques.
- Depois de ter testemunhado a forma como tinham sido tratados os outros dois pacientes, B temeu pela sua integridade física;
- Foi prestada a informação a B que o primeiro mês era considerado um mês experimental e no caso de desistência, ser-lhe-iam devolvidos os cheques;
- Se assim não fosse, atento o tempo de duração do contrato (12 meses) e o preço (€8.700,00), B não teria realizado o contrato;
- B assinou o contrato com perfeito conhecimento do teor das cláusulas que compunham o mesmo;
- Ao assinar os cheques, o executado reconheceu que nas referidas datas apostas nos cheques manifestou junto da exequente a intenção de pagar as quantias que nos mesmos constam».
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Comecemos pela impugnação da matéria de facto.
Como é consabido, o regime processual vigente restringe a possibilidade de revisão da matéria de facto a questões de facto controvertidas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, admitindo-se, apenas, a reapreciação de concretos meios probatórios relativos a determinados pontos de facto impugnados.
Rejeitaram-se, desta forma, quer soluções maximalistas que determinam a repetição de julgamentos ou a reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos, quer a possibilidade de recursos genéricos contra a decisão de facto (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 7.ª ed., 2022, p. 194 e segs.).
Com efeito, de acordo com o disposto no art.º 640.º do CPC, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões) e, fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos, devendo, ainda, consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos (cfr. Ob. Cit., p. 197 e 198).
No caso dos autos, o recorrente cumpriu, suficientemente, o ónus de impugnação previsto no art. 640.º do CPC, nada obstando à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Sucede que a apreciação da impugnação da matéria de facto não subsiste por si, assumindo um carácter instrumental face à decisão de mérito do pleito. Por isso, só se justifica nos casos em que da modificação da decisão possa resultar algum efeito útil relativamente à resolução do litígio no sentido propugnado pelo recorrente. Quando a modificação pretendida não interfere no resultado declarado pela 1.ª instância é dispensável essa reapreciação (cfr., neste sentido, os acórdãos do STJ de 23.01.2020 e 28.01.2020, in www.dgsi.pt).
Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(veis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (cfr., neste sentido, o acórdão da RC de 27.05.2014, in www.dgsi.pt, onde e escreveu que “se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de qualquer eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada”).
No caso dos autos, como se demonstrará infra, mostra-se inútil a reapreciação da matéria de facto, uma vez que os factos que a Recorrente pretende ver provados e não provados são irrelevantes para a decisão pela mesma preconizada, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito.
Tal só assim não sucede com o último ponto dado por não provado:
«Ao assinar os cheques, o executado reconheceu que nas referidas datas apostas nos cheques manifestou junto da exequente a intenção de pagar as quantias que nos mesmos constam».
É que a matéria vertida neste ponto é, claramente, conclusiva, não constituindo matéria de facto, antes encerrando já um conteúdo normativo, pelo que o tribunal a quo não poderia pronunciar-se sobre a mesma, à luz do disposto no art.º 607.º, n.º 4 do CPC, declarando-a provada ou não provada.
Com efeito o “reconhecimento” em causa é uma mera ilação que poderá ou não ser retirada de outros factos provados, nomeadamente e no que ao caso dos autos respeita, no facto consistente na aposição da assinatura no cheque e sua entrega à exequente com a finalidade de servir de meio de pagamento de parte do preço de serviços por esta prestados.
Como refere Helena Cabrita, in A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, p. 106-107, «os factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a ação seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta».
Não desconhecemos que a mais recente jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a admitir a inclusão na decisão de facto de factos com alguma componente conclusiva, desde que tenham, ainda, um substrato relevante para o acervo dos factos que importam para uma decisão justa (cfr., neste sentido, por exemplo, o acórdão do STJ de 14.07.2021, in www.dgsi.pt), por se considerar ser praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados juízos conclusivos sobre outros elementos de facto.
Contudo, mesmo essa jurisprudência exige que se esteja perante realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, estando vedado ao julgador da matéria de facto a formulação de juízos sobre questões de direito.
Ora, dar por provado ou não provado que «Ao assinar os cheques, o executado reconheceu que nas referidas datas apostas nos cheques manifestou junto da exequente a intenção de pagar as quantias que nos mesmos constam» é, claramente, fazer um juízo sobre uma questão de direito e resolver, por esta via, um dos fundamentos dos embargos de executado, conforme ressalta, aliás, da seguinte passagem da sentença recorrida: «Nestas circunstâncias, não se reconhece na conduta do executado a intenção de cumprir uma obrigação alheia, nem a de assumir a responsabilidade pelo pagamento das obrigações contraídas por B no contrato, como uma assunção de dívida, sendo certo que não existe qualquer acordo estabelecido entre o executado e a exequente para esse efeito (art.º 595.º, n.º 1, al. b) do Código Civil). Aliás, resultou da fundamentação de facto como não provado que, ao assinar os cheques, o executado reconheceu junto da exequente a intenção de pagar as quantias que nos mesmos constam. Importa, pois, concluir que não existe qualquer causa ou relação subjacente à emissão do cheque em discussão pelo executado, pelo que procede o primeiro fundamento dos embargos» (sublinhado nosso).
Aqui chegados, concluímos que o tribunal recorrido decidiu mal ao julgar tal matéria como não provada, por ser conclusiva e dever ser extraída da realidade factual que lhe está subjacente (como se disse, a assinatura do cheque nas circunstâncias do caso concreto).
Impõe-se, pois, eliminar dos factos não provados a seguinte matéria «Ao assinar os cheques, o executado reconheceu que nas referidas datas apostas nos cheques manifestou junto da exequente a intenção de pagar as quantias que nos mesmos constam» e incluí-la na referência final feita na sentença recorrida: «Não se responde a articulados com conclusões ou meras alegações e argumentos de direito».
No mais, como se disse e verá, a apreciação da impugnação de facto é inútil, razão pela qual dela não se conhecerá.

4.2. Vejamos, agora, se, em face da matéria de facto provada, a sentença recorrida fez uma correcta aplicação do Direito.
Serve de fundamento à execução o cheque n.º 0300000081, com data de emissão de 11.09.2019, que não obteve pagamento, tendo sido devolvido, em 13.09.2019, pela compensação do Banco de Portugal por “falta ou vício na formação vontade” (cfr. documento junto com o requerimento executivo).
Nos termos do disposto no art.º 703.º, n.º 1 al. c) do CPC, podem servir de base à execução «os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo».
Como é consabido, o cheque constitui um título de crédito que enuncia um mandado/ordem dado por determinada pessoa (sacador) a um Banco (sacado), para efectuar determinado pagamento a um terceiro ou até a si próprio (mandante), por conta dos fundos que dispõe nessa instituição bancária (cfr. art.ºs 1.º, 2.º e 3.º da Lei Uniforme relativa ao Cheque, doravante, LUC).
A obrigação inicial é, assim, a do sacador e surge com a sua declaração cambiária, na forma de mandado de pagamento.
O regime do cheque, como título de crédito, é dominado pelos princípios da incorporação do direito no documento (o direito e o título constituem uma unidade: a aquisição do documento determina o direito de exigir a prestação, sendo que, sem o documento, o titular não pode exercer o seu direito), da literalidade, da abstracção e da autonomia.
A característica da autonomia, nas palavras de Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, III, 1966, p. 10, consiste no seguinte: «(…) o possuidor do título, o que o recebeu segundo a lei de circulação, adquire o direito nele referido de modo originário, isto é, independentemente da titularidade do seu antecessor e dos possíveis vícios dessa titularidade».
Desta forma, o portador do título está dispensado de demonstrar a razão subjacente à emissão desse título (obrigação abstrata), isto é, o negócio jurídico associado ao título e/ou o motivo pelo qual o título lhe foi transmitido, baseando a sua pretensão no direito cartular.
A autonomia do cheque afirma-se, com toda a nitidez, nas relações entre o devedor e terceiros, traduzindo-se na independência dos diversos e sucessivos possuidores do título em relação aos seus antecessores e concretizando-se, por exemplo, no princípio da inoponibilidade das excepções a terceiros portadores de boa fé. O adquirente do título adquire, pois, um direito ex novo ou originário, que não se afere pelo dos anteriores possuidores (o que diferencia a aquisição de um título de crédito da cessão de créditos regulada no direito comum, em que o cessionário adquire o mesmo direito do cedente e passa a ocupar, na relação obrigacional, a mesma posição que ocupava este, sendo também o mesmo o direito transmitido, o que explica que o devedor possa opor a qualquer cessionário as defesas ou excepções que, eventualmente, possua relativamente ao primitivo credor - art.º 585.º do CC).
Outra característica do cheque, enquanto título de crédito, é a abstracção: a obrigação decorrente do título surge com a aposição da assinatura no título e não se prende com a causa (fundamental) que lhe deu origem. Conforme salienta Pinto Coelho, in Lições de Direito Comercial, 2.º, II, p. 45, a obrigação cambiária é de natureza formal e abstracta e, portanto, independente de qualquer causa debendi, válida por si e pelas estipulações nela expressas, ficando o signatário vinculado pelo simples facto da aposição da sua assinatura no título.
Desta forma, ainda que a criação da obrigação cambiária ou cartular pressuponha uma relação jurídica anterior, que é a relação subjacente (compra e venda, mútuo, etc.), a mesma é independente da causa que lhe deu origem (a relação fundamental).
É o que decorre do art.º 22.º da LUC, onde se estabelece que «as pessoas accionadas em virtude de um cheque não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador ao adquirir o cheque tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor».
Portanto, nas relações mediatas o direito do portador legítimo e de boa fé não está sujeito às excepções fundadas em convenções extracartulares e às excepções causais, pois que os vínculos jurídicos incorporados no cheque constituem-se com a simples aposição da assinatura ou firma de qualquer dos intervenientes.
Tais princípios da literalidade, abstracção e autonomia só deixam de funcionar no domínio das obrigações mediatas, se o portador e endossado tinham conhecimento de que não existia qualquer obrigação causal ou se o endosso a seu favor foi simulado e com vista, apenas, a impedir a invocação da inexistência da obrigação causal.
A característica da abstracção cede, no entanto, nas relações imediatas, isto é, nas relações pessoais entre o subscritor e o sujeito cambiário imediato. Nestas, o sacador pode opor ao portador as excepções fundadas nas relações pessoais de ambos.
Noutra perspectiva, no domínio da ação cambiária, o legítimo portador não tem que invocar ou demonstrar a relação subjacente à emissão do cheque, mas, estando-se no domínio das relações imediatas, esta possa servir de fundamento à oposição executiva.
Ora, no caso dos autos, a exequente é portadora e beneficiária do cheque dado à execução, sendo o executado/embargante o sacador, pelo que, não existindo qualquer endosso, estamos no domínio das relações imediatas.
E, por isso, o executado/embargante podia opor à exequente as excepções relacionadas com a relação da qual emerge a obrigação cartular, discutindo relevantemente essa obrigação subjacente.
Foi o que o executado/embargante fez, deduzindo os presentes embargos.
Certo é que cabia ao executado/embargante a prova das excepções que invocou, baseada nas relações pessoais que teve com a exequente, beneficiária/portadora do cheque (cfr. art.º 342.º, n.º 2 do CC).
Repare-se que não está aqui em causa a consideração de um título como mero quirógrafo (o que sucede quando o título de crédito não reúne os requisitos legais, nomeadamente, por não terem sido cumpridos os prazos para a apresentação a pagamento ou para a instauração da acção), pelo que não tem aplicação ao caso dos autos a jurisprudência que entende que «Quando a execução tiver por base títulos de crédito, na veste de meros quirógrafos, se o executado se opuser à execução com a alegação de que não existe a relação subjacente alegada, fica impugnada a exequibilidade dos títulos, cabendo ao exequente o ónus de provar tal exequibilidade, ou seja, o ónus de provar os factos constitutivos da relação subjacente» (v.g., acórdão da RC de 12.09.2017, in www.dgsi.pt) ou que «O exequente que propõe ação executiva fundada em quirógrafo da obrigação causal subjacente à emissão do cheque tem o ónus de alegar no requerimento executivo, em obediência ao estatuído na al. c), do nº 1, do art.º 703º, do CPC, os factos, essenciais, constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, sem valor como título de crédito nos termos da Lei Uniforme Sobre Cheques, quando dele não constem, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art.º 458º, do Código Civil, que consagra uma inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental (exceção ao regime geral de distribuição do ónus da prova consagrado no nº1, do art.º 342º, deste diploma), passando o devedor a ter de provar a falta da causa da obrigação inscrita no título ou alegada no requerimento inicial para ver os embargos proceder e a execução extinta» (v.g., acórdão da RG de 15.03.2018, in www.dgsi.pt).
Com efeito, o cheque datado de 11.09.2019, relativamente ao qual a execução prossegue, é válido como título de crédito e não está prescrito, pelo que a exequente não tinha que alegar e provar os factos constitutivos da relação subjacente.
Ao invés, tendo o executado/embargante arguido excepções fundadas na relação subjacente, era a si que as competia demonstrar, enquanto factos impeditivos ou extintivos do direito da exequente.
4.3. Vejamos, então, se o executado/embargante logrou provar as excepções que invocou, baseadas nas suas relações pessoais com a exequente.
Começa o executado/embargante por defender que o cheque em causa não configura uma declaração de dívida sua, pois que nada deve à exequente, nem é responsável pelo pagamento da dívida invocada (nunca solicitou à exequente a prestação de qualquer serviço ou tarefa que esta lhe tenha efetivamente prestado, nem assinou ou interveio de qualquer forma na relação subjacente à emissão dos cheques), tendo-se, limitado a emiti-lo a pedido da sua, então, mulher B, por temer a reacção desta.
Ora, provou-se que tal cheque foi assinado pelo executado/embargante (n.º 2 dos factos provados) e destinava-se ao pagamento de parte do preço de serviços (tratamento da dependência de álcool e consumo abusivo de fármacos) prestados pela exequente a B (n.ºs 3, 4 e 6 dos factos provados)
O cheque foi sacado sobre uma conta conjunta, de que eram contitulares o embargante e a referida B (n.ºs 2 e 12 dos factos provados), que, à data, eram casados entre si (n.º 12 a contrario dos factos provados).
Certo é, também, que o executado/embargante emitiu o cheque a pedido de B “porque temeu a reacção desta, dado o estado psicológico incontrolável em que se encontrava, temendo que esta ficasse violenta” (n.ºs 9 e 13 dos factos provados).
Finalmente, sabemos que o executado/embargante nunca contactou a exequente, não negociou nem interveio no contrato de prestação de serviços e não foi previamente consultado pela sua mulher sobre a intenção de se submeter a um tratamento (n.ºs 5 a 7, 9 e 10 dos factos provados).
Conforme supra se salientou, o cheque é um meio de pagamento e da sua emissão resulta que o sacador assume dispor de uma importância a favor de outrem, de tal forma que, por virtude do efeito cartular, se o tomador ou o portador não conseguir satisfazer-se através do banco, o seu direito dirige-se contra o sacador, que garante o pagamento (art.º 12.º da LUC).
Essa ordem de pagamento consubstancia-se na própria emissão do cheque, que consiste no seu preenchimento e entrega ao terceiro tomador, traduzindo a assinatura (do sacador) aposta no cheque a intenção de contrair uma obrigação cambiária.
Por isso, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a sustentar, com base no art.º 458.º do CC, que a subscrição de um cheque faz presumir a existência de uma relação causal subjacente na medida em que ele consubstancia um acto de reconhecimento/confissão unilateral de uma dívida (cfr., por exemplo, o acórdão da RG de 15.03.2018, in www.dgsi.pt., considerou que «A emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento a um banco a favor de um terceiro, constituindo, também, o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação ao portador»).
Com efeito, de acordo com o disposto o art.º 458.º, n.º 1 do CC, «Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário».
Ora, quando o cheque contém a identificação do beneficiário da ordem de pagamento, é de presumir, por referência a critérios de normalidade e às regras da experiência comum, que o mesmo contém, pelo menos implícito, o reconhecimento de uma dívida, pois esta é, lógica e cronologicamente, prévia à ordem de pagamento transmitida pelo cheque à entidade bancária sacada, sendo certo que, por regra, ninguém emite uma ordem nesses termos se não existe uma causa justificativa a fundamentá-la.
Conforme se escreveu no acórdão do STJ de 21.10.2010, disponível in www.dgsi.pt, «na realidade do comércio jurídico, a ordem de mobilização de fundos contida no cheque implicará normalmente, ao menos de forma tácita, a admissão da existência de um débito causal perante o respectivo titular, a saldar precisamente através da sua apresentação a pagamento; ou seja, embora a subscrição do cheque não contenha uma expressamente verbalizada confissão de dívida ou promessa de pagamento do sacador ao exequente, constitui um facto que, com toda a probabilidade, revela a existência e admissão pelo devedor de uma obrigação causal subjacente à respectiva emissão, delineada, nos seus elementos constitutivos essenciais, pelo credor no requerimento executivo».
No contexto do caso concreto, em que ocorreu a emissão voluntária de um cheque, preenchido e assinado para ser entregue a um terceiro, a pedido do cônjuge, para pagamento de uma dívida por si contraída, faz todo o sentido que o emitente suporte o risco inerente a essa actuação, sendo responsável pelo pagamento da quantia titulada pelo cheque.
Não tem, pois, razão o embargante quando defende que o cheque dos autos não configura uma declaração ou reconhecimento de dívida por sua parte.
É certo que o sentido da alegação do embargante é o de que, pertencendo a dívida em causa a B (que foi quem celebrou com a exequente o contrato de prestação de serviços e beneficiou desses serviços) e destinando-se o cheque a pagamento de uma dívida da mesma, nunca poderia consubstanciar o reconhecimento de uma dívida própria do embargante.
Mas, mais uma vez, sem razão.
Não se coloca em causa, em face da matéria de facto provada, que a dívida foi contraída por B. No entanto, o cheque foi sacado pelo embargante, sobre uma conta de ambos, para pagamento de parte do preço dos serviços contratados, destinação essa que era conhecida do embargante (já que B lhe pediu para emitir o cheque, precisamente, para essa finalidade).
É certo que a mulher do executado/embargante não o consultou sobre a sua intenção de se submeter a um tratamento (n.ºs 7 e 9 dos factos provados). Todavia, o mesmo acedeu ao seu pedido para que emitisse um cheque de determinado valor, para cumprimento das obrigações que ela pretendia assumir.   
O que convoca, inevitavelmente, o art.º 1690.º, n.º 1 do CC, onde se dispõe que «São da responsabilidade de ambos os cônjuges: a) As dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro».
Saliente-se que, no caso dos autos, B entrou em contacto com a exequente, pela primeira vez, em 10.07.2019, sendo que ingressou nas suas instalações, dois dias depois, em 12.07.2019, data em que assinou o contrato e lhe entregou o cheque dos autos, que já leva preenchido, assinado e emitido pelo embargante (n.ºs 2, 7, 8, 15 e 16 dos factos provados).
Temos, pois, que o cheque dos autos foi preenchido e assinado pelo embargante, a pedido de B, na iminência da assinatura do contrato de prestação de serviços por parte daquela B (portanto, previamente à sua celebração) e com a finalidade de servir de meio de pagamento de parte do preço desses serviços, o que era do perfeito conhecimento do embargante.
Tal comportamento traduz, inequivocamente, a prestação, por parte do embargante, do seu consentimento à dívida contraída pelo seu cônjuge, pelo que é, também, responsável por ela.
Assim, e contrariamente ao defendido pelo embargante, houve, consentimento da sua parte à dívida contraída pelo seu cônjuge, concretizado na emissão e assinatura do cheque, traduzindo um comportamento concludente desse consentimento.
Note-se que a lei não exige qualquer formalismo para que o consentimento seja válido, pelo que deverá valer o princípio da liberdade de forma que consta do art.º 219.º do CC, sendo admissível o consentimento meramente consensual e até tácito.
Com efeito, para haver declaração tácita basta que o declarante tenha praticado factos dos quais se possa deduzir, com segurança, a vontade provável de emitir certa declaração. Portanto, o consentimento tácito é aquele que se deduz de factos que, com toda a probabilidade o revelam (art.º 217.º, n.º 1, 2.ª parte, do CC), traduzindo-se numa manifestação indireta da vontade, que se baseia num comportamento concludente do cônjuge que não contraiu a dívida e que será anterior à contração da mesma (cfr. Cristina Dias, in Responsabilidade por dívidas e compensação entre patrimónios, Revista Electrínica de Direito, Junho de 2020, n.º 2 (VOL. 22), FDUP, disponível em https://cij.up.pt/client/files/0000000001/2-cristina-dias_1606.pdf).
No caso dos autos, como se disse, a declaração de consentimento deduz-se dos factos mencionados, que permitem ao julgador entender que do comportamento do embargante se pode deduzir, de modo indirecto, mas com toda a probabilidade, essa vontade negocial.
Tal consentimento tornou-se eficaz logo que o cheque chegou ao poder da exequente e este dele se tornou portador, confiando, legitimamente, que a dívida se comunicou ao embargante, nos termos e para os efeitos do art.º 1695.º do CC.
Acresce, ainda, que o cheque dos autos foi sacado sobre uma conta bancária de que era contitular o embargante.
A este respeito, importa dizer que, nos factos provados fala-se em “conta conjunta” (n.ºs 9 e 13), mas, na verdade, ter-se-á pretendido dizer “conta colectiva”. É que, não só a expressão “conta conjunta” constitui uma qualificação jurídica decorrente do contrato de abertura de conta concretamente celebrado e do correspondente regime legal aplicável, como não se provou, de forma inequívoca, a modalidade ou regime dessa conta.
Tudo indica, aliás, que se tratava, isso sim, de uma conta solidária, uma vez que o cheque foi subscrito, exclusivamente, pelo embargante marido, sendo certo que nas contas conjuntas a movimentação requer a intervenção simultânea de todos os titulares (cfr., por exemplo, José Maria Pires, Direito Bancário, II, Rei dos Livros, p. 148 e segs.).
Seja como for, e como é consabido, são distintos o direito de crédito de que é titular cada um dos titulares da conta colectiva (que se traduz no poder de mobilização, movimentação ou disposição do saldo) e o direito real que recai sobre o dinheiro, que pode pertencer apenas a um ou alguns dos titulares da conta ou até a terceiro.
Na verdade, a relação jurídica que nasce da abertura de contas de depósito é uma relação jurídica obrigacional, da qual apenas emerge para os titulares da conta um direito de crédito (o direito a movimentar a conta a débito, nomeadamente, a exigir a entrega da importância do deposito) e que não se confunde com o direito de propriedade dos bens objecto do depósito. Esse direito de crédito pode ser atribuído a todos os titulares da conta, mas o direito de propriedade pode pertencer a um só deles (vide, por exemplo, o Acórdão da RL de 01.02.2007, in www.dgsi.pt).
No caso dos autos, não se provou de quem era a propriedade do dinheiro depositado na conta em causa, pelo que se tem que aplicar a presunção de contitularidade prevista no art.º 516.º do CC e decorrente do facto de a conta em apreço estar subordinada, quanto parece, ao regime da solidariedade.
E, assim, podemos concluir que o cheque em causa, embora assinado só pelo embargante, destinava-se a disponibilizar a terceiro dinheiro pertencente ao casal constituído pelo mesmo e por B, o que demonstra, por esta via também, o referido consentimento (e torna até sustentável o entendimento de que, in casu, estão, também, preenchidas as previsões das als. b) e c) do n.º 1 do art.º 1691.º do CC) e contraria a arguida falta de relação causal à emissão do cheque.
Não olvidamos que o executado/embargante alegou que emitiu os cheques a pedido da mulher, por temer a reacção desta, dado o estado psicológico incontrolável em que se encontrava, e por temer que a mesma ficasse violenta (o que se provou sob o n.º 13 dos factos provados), no que parece pretender invocar e prevalecer-se da suposta invalidade da obrigação cartular ou, pelo menos, do consentimento referido.
Dispõe o art.º 255.º do CC que «diz-se feita sob coação moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração», podendo a ameaça respeitar à pessoa, à honra ou à fazenda do declarante ou de terceiro.
A coacção moral constitui, como se sabe, um vício da vontade, traduzida no medo resultante da ameaça ilícita de um dano, originando a anulabilidade do negócio (cfr. art.º 256.º do CC).
A doutrina (cfr., por exemplo, Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, p. 527 e segs., 4.ª ed., Coimbra, 2005) tem apontado as seguintes condições de relevância da coacção moral como motivo de anulabilidade:
- que a coacção seja essencial ou principal;
- que haja intenção de extorquir a declaração;
- que a ameaça seja ilícita (quer decorra esta da ilegitimidade dos meios empregues, quer da ilegitimidade do fim).
No caso vertente, analisada a matéria de facto provada, não se vislumbra qualquer indício de que a declaração negocial do embargante exarada no cheque dos autos e o consentimento à dívida da mulher - que, nos termos sobreditos, lhe está subjacente -, tenham sido determinados pelo receio de um qualquer mal.
Na verdade “pedir” que se emita/assine um cheque (e, por esta via, que se consinta na contração de uma dívida) não é “extorquir” ou infligir uma “ameaça”, tal como temer uma eventual ou hipotética “reacção” de alguém não é  “recear um mal”, tendo ficado por demonstrar, no caso, a existência de uma ameaça séria e actual, bem como o receio de um mal real e concreto.
A factualidade provada é, pois, vaga de mais para que se considere que o embargante agiu sob coação moral e que, por isso, a emissão do cheque e o seu consentimento sejam inválidos.
Como se escreveu já, em face das circunstâncias do caso concreto, faz todo o sentido que o emitente suporte o risco inerente à sua actuação (de ceder ao receio de hipotéticas reacções da mulher, em vez de contrariá-la, se era essa a atitude que julgava adequada), sendo responsável pelo pagamento da quantia titulada pelo cheque.
Aqui chegados, conclui-se que o executado/embargante não logrou demonstrar as excepções que alegou fundadas na causa subjacente à emissão do cheque (que foi, como se disse, a de prestar consentimento a uma dívida da sua mulher), pelo que, como sacador do cheque e nos termos dos art.ºs 12.º e 40.º da LUC, continua adstrito ao seu pagamento.
4.4. Na petição de embargos, vem, ainda, alegado, com a finalidade de extinguir a execução, que:
- B não se encontrava em condições de perceber o verdadeiro sentido do clausulado, aquando da assinatura do contrato, nem o mesmo lhe foi transmitido e esclarecido como se impunha (ocorrendo vício da vontade);
- o contrato foi previamente elaborado pela exequente e apresentado a B, a quem foi entregue para assinar, sem que pudesse ter qualquer influência no seu conteúdo e sem que lhe tivesse sido dada a informação correcta e adequada sobre as respectivas cláusulas contratuais;
- o contrato contém cláusulas ambíguas e contraditórias, violadoras do princípio da boa-fé e do regime das cláusulas contratuais gerais, devendo prevalecer o sentido mais favorável ao aderente;
- a exequente não cumpriu o contrato, pois que não prestou os serviços adequados às necessidades de B.
No que respeita a esta última questão (incumprimento do contrato de prestação de serviços por parte da exequente), tal como se escreveu na sentença recorrida, sem que tal tenha sido posto em causa por qualquer das partes, «não resultaram provados os factos que foram imputados à exequente como fundamento de incumprimento, nomeadamente a ausência de terapia psiquiátrica e psicológica (…)».
No que concerne às demais questões supra sumariadas, verifica-se que todas elas são baseadas no contrato celebrado entre a exequente e B, do qual o embargante não é parte, nem teve qualquer intervenção.
Tais questões constituem, por isso, excepções pessoais àquela B (com efeito, a opção entre a validade ou anulação/nulidade do contrato fundada em vícios da vontade de B, na violação deveres de informação ou na falta de esclarecimento de algumas das cláusulas, é facultada à parte que contratou e não a terceiro) por fundadas em vícios emergentes da relação estabelecida entre si e a exequente, traduzindo-se num meio de defesa pessoal.
Aliás, é o próprio embargante que considera que a relação entre si e a exequente subjacente à emissão do cheque não é o contrato de prestação de serviços, pois que afirma no art.º 9.º da petição de embargos que «O requerimento executivo, apenas refere que a Executada entregou os cheques à Exequente, para pagamento de serviços constantes de contrato de prestação de serviços assinado pela Executada e solicitados por esta à Exequente, mas nada é referido quanto à relação subjacente entre a Exequente e Executado».
De resto, analisada a petição de embargos apresentada, conjuntamente, pelos dois executados, percebe-se uma clara divisão nas respectivas defesas: o embargante marido defende-se com a falta de título quanto a si, por falta de relação subjacente; a embargante mulher, defende-se com o incumprimento e a invalidade do contrato.
Diga-se que, também o acórdão desta Relação de 07.12.2021, proferido no apenso B, considerou que o contrato de prestação de serviços celebrado entre a exequente e B não constitui a relação subjacente à emissão do cheque, ao escrever que «(…) a exequente alegou, sim, factos demonstrativos da existência de relação causal (contrato de prestação de serviços) com a executada - entre exequente e executada foi, a solicitação desta, celebrado contrato de prestação de serviços, tendo a executada entregue à exequente os cheques supra identificados, que se destinavam ao pagamento devido pela prestação de serviços no âmbito da atividade da exequente».
A relação subjacente ou fundamental à emissão do cheque, a que se estabeleceu entre o executado/embargante e a exequente, é, quanto a nós, a declaração de consentimento por parte do primeiro e a sua aceitação por parte da segunda, por ser esse o pressuposto da assinatura do cheque por parte do embargante e da sua detenção por banda da exequente, ou seja, por ser isso que explica, concretamente, a emissão do cheque.
E, por conseguinte, ao executado/embargante, apenas, era lícito opor à exequente as excepções ou meios de defesa fundados no seu consentimento à contração da dívida, que, como cremos, constitui a causa da emissão/assinatura do cheque.
Não sendo lícito ao executado/embargante opor à exequente os meios de defesa pessoais de B, fundados no contrato por esta celebrado com a exequente, fica demonstrada a sobredita inutilidade da apreciação da impugnação de facto deduzida pela exequente e o conhecimento das questões relativas aos vícios de vontade de B e à falta de comunicação e explicação das cláusulas desse contrato.
As excepções fundadas na prestação do consentimento por parte do embargante resultaram improcedentes, conforme decorre do supra exposto (ponto 4.3.), pelo que subsiste a obrigação cartular do mesmo, enquanto sacador (art.ºs 12.º e 40.º da LUC).
Destarte, conclui-se pela procedência total do recurso, impondo-se revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que, julgando os embargos de executado deduzidos por A improcedentes, determine o prosseguimento da execução quanto ao mesmo.
O recorrido suportará as custas do recurso, por ter ficado vencido (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
V – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar totalmente procedente a apelação interposta pela exequente/embargada e, em consequência:
a) revoga-se a decisão recorrida (com excepção da parte em que absolveu a exequente do pedido de condenação por litigância de má-fé);
b) julga-se totalmente improcedentes, por não provados, os embargos de executado deduzidos por A;
c) ordena-se o normal prosseguimento da execução, no que ao cheque datado de 11.09.2019 respeita, quanto a A;
d) condena-se o embargante A nas custas dos embargos de executado (sem prejuízo do já decidido no despacho saneador de 21.05.2021 quanto a custas da responsabilidade da exequente) e do presente recurso.
Notifique.

Lisboa, 25.05.2023
Rui Manuel Pinheiro de Oliveira
Teresa Pais
Rui Vouga