Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8312/19.3T8ALM.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: ARRENDAMENTO
ABUSO DE DIREITO
INDEMNIZAÇÃO
LOGRADOURO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: I) A relação jurídica processual do recurso deve satisfazer determinadas condições de existência (o tribunal e as partes do recurso e o ato processual constitutivo da relação processual) e condições de validade (a aptidão do requerimento de recurso e o recurso não assentar em ato simulado de recorrente e recorrido).
II) Mostrando-se o recurso, em abstrato, apto a colocar em crise a decisão recorrida e verificando-se que nas alegações de recurso, para além da motivação expressa e das conclusões expendidas, a recorrente termina pedindo, no provimento do recurso, seja modificada a decisão recorrida, com as legais consequências, não existe ineptidão recursória.
III) A reapreciação da matéria de facto não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa, pelo que sempre que se conclua que a reapreciação pretendida é inútil – seja porque a decisão sobre matéria de facto proferida pela primeira instância já permite sustentar a interpretação do direito aplicável ao caso nos termos sustentados pelo recorrente, seja porque ainda que proceda a impugnação da matéria de facto, nos termos requeridos, a decisão da causa não deixará de ser a mesma – a reapreciação sobre matéria de facto não deve ter lugar, por constituir um acto absolutamente inútil, contrariando os princípios da celeridade e da economia processuais - art.ºs 2.º, n.º 1, 130.º e 131.º do CPC.
IV) A ausência de alguma menção no auto de inspeção que alguma das partes considere relevante, face ao disposto no artigo 493.º do CPC, tem de ser arguida no próprio ato onde se encontraram presentes ou nos 10 dias seguintes, em conformidade com o previsto no artigo 199.º, n.º 1, do CPC.
V) Não ocorre abuso do direito dos autores a exigirem a indemnização que peticionaram, se não resultou demonstrado que os autores desencadearam na ré alguma expectativa no sentido de que prescindiriam de utilizar a garagem – espaço relativamente ao qual, inclusive, tinham antes litigado com a ré – para a sua finalidade de guarda de veículos, o que não se infere da circunstância de terem os autores aí depositados outros bens e de o portão da garagem se encontrar vedado com um material que impede a abertura desse portão, sem que seja previamente retirado tal material, não se tendo, ademais, apurado que tenha existido qualquer ligação da garagem ao restante imóvel dos autores.
VI) A impossibilidade de utilização da garagem pelos autores para aí colocarem veículos, em razão de a ré ter colocado um veículo no único caminho de acesso à entrada de tal garagem, que ali mantém, constitui um dano indemnizável decorrente da aludida impossibilidade de os autores acederem de tal modo ao bem de sua propriedade, não se tendo demonstrado que o logradouro se mostre incluído no arrendamento de que a ré é inquilina.
VII) No caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, em princípio o devedor constitui-se em mora desde a citação – cfr. artigo 805.º, n.º 3, do CC -, só assim não acontecendo se o devedor estiver nessa altura em mora, por a falta de liquidez lhe ser imputável ou se a obrigação já se tornou líquida.
VIII) Não tendo a ré impedido ou inviabilizado a determinação quantitativa do direito indemnizatório dos autores, a iliquidez não é imputável à ré, pelo que, a indemnização deverá contabilizar-se desde a data da citação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

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1. Relatório:

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1. CR e MR, identificados nos autos, intentaram contra MS, também com os sinais dos autos, a presente ação declarativa, com processo comum, pedindo a condenação da ré:
a) no reconhecimento do direito de propriedade dos AA. sobre o logradouro do prédio sito na Rua …, nº …, Costa da Caparica, concelho de Almada;
b) na restituição desse espaço aos AA., com a consequente remoção do veículo de matrícula …-…-…, que ali permanece estacionado;
c) no pagamento de indemnização, nos termos do art.º 483º do CC, no valor de €53.100,00, pela privação de uso desse espaço.

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2. Citada, a ré contestou por exceção - invocando a exceção dilatória de litispendência – e por impugnação, tendo ainda requerido a condenação dos autores como litigantes de má fé.

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3. Procedeu-se ao saneamento da causa, tendo sido julgada improcedente a exceção da litispendência, e fixou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

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4. A ré apresentou articulado superveniente, o qual foi rejeitado.

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5. Realizou-se a audiência de julgamento, com produção probatória, após o que, em 27-11-2022, foi proferida sentença, que julgou parcialmente procedente a ação, nos seguintes termos:
a) Declarando que os autores são os proprietários do prédio sito na Rua …, nº …, Costa da Caparica, descrito na 2º Conservatória do Registo Predial de Almada, sob o nº …, e inscrito na matriz predial da freguesia da Costa da Caparica, concelho de Almada, sob o artigo …;
b) Condenando a ré a restituir aos autores o logradouro do aludido prédio, livre e devoluto, devendo retirar o veículo que aí se encontra estacionado;
c) Condenando a ré no pagamento aos autores de uma indemnização pelos prejuízos causados com a ocupação do logradouro, contabilizada desde 19.12.2016 até à efetiva restituição do mesmo, livre e devoluto, à razão mensal de €250,00; e
d) Absolvendo os autores do pedido de condenação por litigância de má fé.

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6. Não se conformando com a referida sentença, dela apela a ré, tendo formulado as seguintes conclusões:
“I - A Apelante entende que o Tribunal ad quo não procedeu, no despacho saneador/sentença, a uma análise crítica bastante das provas carreadas para os presentes autos, nomeadamente os factos que nem tão pouco foram contestados pelos Recorridos, retirou ilações sem qualquer sem qualquer suporte ou prova. Existe contradição entre os pontos 16. e 17. da matéria de facto dada com provada e o ponto d) da matéria de facto dada como não provada, violando, assim, o preceituado no art.º 659°, n.°s 2 e 3, do C.P.C.. Mais entende, ainda, a Apelante que a parte da sentença aqui objeto de recurso, deve ser objeto de ampliação de matéria de facto, justificando-se tal ampliação por estarmos numa situação em que não foram valorados factos que revelam, verdadeiramente, para a solução jurídica do caso, por terem todo o interesse para a decisão da causa, além de enfermar de erros no julgamento da matéria de direito, pelo que carece, com o devido respeito, de ser substituída por outra conforme à lei e aos intentos da ora Apelante.
II - É que não é por o logradouro do lado direito do prédio dos Recorridos, onde se encontra a entrada para o 1° andar arrendado, não constar do contrato de arrendamento, que se pode considerar, em termos de direito, que o mesmo não faz parte do contrato de arrendamento, até porque, salvo declaração em contrário, deve entender-se que um prédio é sempre transmitido com todas as suas pertenças e acessórios e partes integrantes, por ser essa a situação que melhor corresponde à intenção normal das partes contratantes.
III - Por isso, resultando da matéria de facto provada, que existe uma afetação material do logradouro ao 1° andar arrendado pela Recorrente e tendo-se, ainda, alegado que esta sempre usou logradouro, especificando, o concreto uso que de sempre lhe deu - nomeadamente de ali colocar viaturas -, e desde quando, dever-se-iam apurar tais factos.
IV- Em face do que referiu a testemunha ME, que a Recorrente sempre usou o logradouro, inclusive para ali colocar carros, impunha-se decisão diversa, ou seja, impunha-se dar como matéria de facto dada: “ O logradouro do lado direito do prédio dos AA. foi sempre usado pela R. para ela ali colocar viaturas, para colocar o lixo, para ali ter a garrafa de gás, onde tem uma torneira para regar as plantas que ali se encontram”.
V- E tendo em conta este ponto da matéria de fato dada como provada deveria ter sido dado como provado que o logradouro pertence ao contrato de arrendamento.
V - Na motivação da douta sentença, a Digníssima Julgadora referiu que a conduta da Recorrente denotou que nunca quis entregar as chaves, ora tal motivação e o facto d) dado como não provado, estão em completa contradição com os factos 16. e 17. dados como não provados.
VI - Assim, no entender da Recorrente deveria era ter sido dado como provado que a Recorrente quis receber a chave do portão do logradouro e o Recorrido é que não a quis receber (ponto 16. e 17. dos factos dados como provados).
VII - Por isso nunca a Digníssima Julgadora, poderia extrair dos factos apurados, a ilação que retirou de que a Recorrente nunca quis entregar a chave do portão do logradouro, quando há prova de que o Recorrido CR é que não a quis receber (pontos 16.e 17. da matéria de facto provada).
VIII- Violou, assim, a sentença o art.º 659°, n°2 e n° 3 do C.P.C., uma vez que retirou ilações e formou a sua convicção tomando em consideração que a Recorrente nunca quis entregar a chave do portão do logradouro, ilação essa, sem qualquer correspondência com a realidade e contrariada com a matéria de facto dada como provada.
VII - O portão da garagem está selado à volta, por dentro e por fora, tendo-se mostrado impossível abrir a porta.
VIII - A Recorrente deixou ali o seu carro no logradouro, pois sabia que não ia por em causa o uso da garagem - pelo menos enquanto o portão se mantivesse selado ou betumado, além de que não tendo pretendido receber as chaves só podia ser porque pretendiam continuar a usar a garagem apenas pelo lado de dentro do prédio urbano.
IX - A conduta dos Recorridos terá de funcionar como um ato de neutralização do seu direito, por abuso de direito, pois tendo verificado a Recorrente que aqueles abriram uma porta para aceder pela garagem pelo lado de dentro do imóvel, passaram a usar a garagem pelo lado de dentro, para ali colocarem os seus pertences, não mais tendo aberto o portão da garagem e tendo-o até selado, e não tendo recebido a chave do logradouro da solicitadora que contratou para o efeito, criou-lhe a expectativa, ou convicção justificada, que não estava a impedir o uso da garagem, o que a levou a manter o carro no logradouro.
X - Por isso a atitude dos Recorridos é imbuída de má fé, pois embora tenham selado o portão da garagem, por terem decidido usarem-na apenas para guardar os seus pertences, e por isso se recusaram a receber a chave do portão do logradouro, fez com que a Recorrente deduzisse desse comportamento que na realidade não iriam utilizar a garagem através do acesso ao logradouro, mas sim, por dentro do imóvel, não tendo direito a ser indemnizados, pois é um comportamento que se qualifica como de venire contra factum proprium, que se traduz no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento anterior assumido.
XI-Em face de na inspeção judicial ao local, a Digníssima Julgadora ao ter verificado que o portão da garagem se encontrava selado, com materiais como cimento e silicone, à volta do portão, deveria ter ampliada a matéria de facto, da seguinte forma.:
1. “Na Inspeção ao local não se entrou para a garagem pelo portão da garagem, mas sim pelo interior do prédio dos Recorridos”;
2.“Na inspeção ao local os AA. não abriram o portão da garagem”;
3.“Na inspeção a local verificou-se que a garagem estava a ser usada pelos AA. como armazenamento de diversos bens”.
XII -Todavia ainda que o tribunal ad quem considere que a Recorrente terá de liquidar uma indemnização aos Recorridos, o que só por mera hipótese académica aqui se coloca, a indemnização a atribuir, com base na equidade (art.º 566°, n° 3 do CC), pode funcionar como critério de referência o valor locativo do imóvel, porém neste caso em concreto a mesma teria de ser inferior ao valor locativo, considerando todas os comportamentos dos Recorridos que se qualificam como de venire contra factum proprium, e que se traduziram no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento anterior assumido.
XIII - Além do mais, a referida indemnização tem de ter em conta que os Recorridos sempre estiveram a utilizar a garagem para colocação de diversos bens que ali se encontram guardados, por isso, no mínimo ter-se- á de ter em conta a diferença entre o valor daquele espaço para arrendamento de armazém a descontar do valor em termos de arrendamento para garagem, isto porque, os Recorridos não se viram privados do uso da garagem, (pois que a usam como armazém), quanto muito, viram-se privados, segundo alegam, de não poderem usar aquele espaço como garagem.
XIV- Considerando, in casu, que a garagem nunca deixou de ser utilizada pelos Recorridos, que desde 1992 nunca mais abriram a porta da garagem, entrando e utilizando o seu espaço como armazém, pelo interior da fração correspondente ao 1° andar, e considerando que a Recorrente lhes quis entregar as chaves - conforme se infere pelos factos 16. e 17. dados como provados -, perante tal circunstancialismo, e com recurso à equidade, mesmo que se considere que a Recorrente deve pagar uma indemnização, o valor atribuído é muito exagerado, afigurando-se como mais adequado o valor de € 80,00 mensais
XV- O tribunal ad quo violou, assim, a sentença o art.º 659°, n°2 e n° 3 do C.P.C., uma vez que retirou ilações e formou a sua convicção tomando em consideração as declarações do Recorrido, sem qualquer correspondência sequer com alguma sua alegação e ao avesso da matéria de facto dada como provada e de documentos junto aos autos e não impugnados”.

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7. Os autores contra-alegaram, pugnando pela nulidade do recurso e, caso assim não se entenda, pela manutenção da decisão recorrida, pedindo a condenação da ré como litigante de má fé a pagar indeminização, nomeadamente os honorários do advogado dos autores que estimam em 5.000€, concluindo, em suma, que:
- O recurso tem por objeto factos diversos dos apreciados em julgamento e extemporâneos ao caso concreto;
- O artigo 659.º, n.ºs. 2 e 3, do CPC não se aplica ao caso vertente.

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8. Nos termos do despacho proferido em 07-03-2023 foi admitido o requerimento recursório, como apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos, com efeito devolutivo.

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9. Foram colhidos os vistos legais.

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2. Questões a decidir:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
Em face do exposto, identificam-se as seguintes questões a decidir:

I) Questão prévia:
A) Se o recurso padece de nulidade face ao disposto no artigo 644.º do CPC?

II) Da impugnação da decisão de facto:
B) Se existe motivo para a rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto relativa a meios probatórios objeto de gravação, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC?
C) Se deve ser dado como provado que: “O logradouro do lado direito do prédio dos AA. foi sempre usado pela R. para ela ali colocar viaturas, para colocar o lixo, para ali ter a garrafa de gás, onde tem uma torneira para regar as plantas que ali se encontram”?
D) Se deve ser incluído no rol dos factos provados que “Na inspeção ao local não se entrou para a garagem pelo portão da garagem, mas sim pelo interior do prédio dos Recorridos”, que “Na inspeção ao local os AA. Não abriram o portão da garagem” e que “Na inspeção a[o] local verificou-se que a garagem estava a ser usada pelos AA. como armazenamento de diversos bens”?

III) Da impugnação da decisão de direito:
E) Se ocorreu abuso de direito dos recorridos?
F) Se a indemnização deverá calcular-se à razão de €80,00 mensais?
G) Se o termo inicial da indemnização deve corresponder ao da definição judicial de que o logradouro não faz parte do contrato de arrendamento?
H) Se deve a ré ser condenada como litigante de má fé?

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3. Fundamentação de facto:

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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. Está inscrita, pela Ap. 3, de 30.08.1962, a aquisição, por compra, a favor dos AA., ambos divorciados, do prédio sito na Rua …, nº …, Costa da Caparica, descrito na 2º Conservatória do Registo Predial de Almada, sob o nº …, e inscrito na matriz predial da freguesia da Costa da Caparica, concelho de Almada, sob o artigo ….
2. Por contrato de arrendamento, lavrado em 01.11.1975, MJR deu de arrendamento o 1º andar do prédio aludido a EN, destinando-se a parte arrendada à habitação do arrendatário.
3. Por óbito de EN, sucederam-lhe no arrendamento GS e MS, e por óbito de GS, sucedeu-lhe no arrendamento MS.
4. O arrendamento ainda se mantém.
5. Os AA. e MJR intentaram ação declarativa contra GS e MS, o qual correu termos sob o nº …, na 1ª secção do 1º Juízo do Tribunal de Almada, na qual foi proferida sentença, em 14.06.1991, transitada em julgado, onde se condenaram os RR. a reconhecerem os AA. como proprietários da garagem do prédio em causa e a entregá-la aos AA., livre e devoluta.
6. Em 22.04.1992 foi lavrado o auto de entrega da garagem.
7. A R. ocupa o espaço exterior do prédio, correspondente ao seu logradouro, com uma viatura.
8. O que faz contra a vontade dos AA..
9. Essa ocupação impede o acesso dos AA. à sua garagem.
10. O valor médio de arrendamento de uma garagem idêntica àquela que existe na moradia, na zona da Costa da Caparica, é de € 250,00 por mês.
11. O prédio em causa é composto de 1º andar e rés-do-chão.
12. O 1º andar tem saída para a rua através do logradouro ao fundo do qual se encontra a garagem.
13. Esse logradouro tem um portão.
14. Em 14.12.2016, os AA. enviaram uma carta à R., através da sua Advogada, solicitando que seja dado de imediato acesso total à garagem, bem como que sejam facultadas as chaves da mesma ou seja deixado o portão aberto.
15. Em 01.04.2019, os AA. enviaram nova carta à R., renovando a solicitação do acesso à garagem e da entrega da chave do portão.
16. A 08.04.2019, a R. respondeu aos RR. que faria a entrega da chave em data a agendar, e a 01.05.2019 a R. informou a Senhora Solicitadora indicada pelos AA. que estaria ausente da sua residência entre 27 de abril e 20 de maio, mas que no seu regresso entregaria a chave no seu escritório.
17. A Senhora Solicitadora deu conhecimento à R. que os AA. não aceitavam que aquela recebesse as chaves.

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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
a) Os valores médios de arrendamento de garagens idênticas à existente na moradia, na zona da Costa da Caparica, são os seguintes:
1992 a 2000 ___________100 € / mês
2000 a 2008 ___________150 € / mês
2009 a 2015 ___________200 € / mês
b) O arrendamento da casa de habitação incluiu o logradouro.
c) Os AA. betumaram a garagem e uniram a mesma ao edifício.
d) Quando a R. pretendeu entregar a chave ao A. CR, exigiu uma declaração da sua receção, que este se recusou a passar, tendo sido essa a razão pela qual a R. não lhe entregou a chave.

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4. Fundamentação de Direito:

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I) Questão prévia:

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A) Se o recurso padece de nulidade face ao disposto no artigo 644.º do CPC?
Consideram os recorridos que se verifica “nulidade do recurso, nos termos do artigo 644.º SS do CPC” (cfr. artigo 22.º das contra-alegações), porque o recurso interposto pela ré tem por objeto factos diversos dos apreciados em sede de julgamento e extemporâneos face ao caso concreto, sendo que o artigo 659.º, n.º 2, do CPC não se aplica ao caso vertente (cfr. artigos 16.º e ss. das mesmas contra-alegações). Aludem os recorridos ainda a uma falta de respeito ao tribunal sobre a forma como se refere a sentença e que, apesar de a recorrente invocar a questão indemnizatória, não presta caução, nem invoca tal direito, o que prejudicaria, na perspetiva dos recorridos, o invocado pela ré (cfr. artigos 19.º a 21.º das contra-alegações).
Conforme salienta Rui Pinto (Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 172), “[p]ese, embora, constituir uma instância processual a se, o incidente recursório apresenta uma característica: o caso julgado da decisão (acórdão) que julga o incidente não se apresenta com autonomia, pois que, dado o seu objeto ser uma decisão (viciada), transitará como decisão final da respetiva ação. Dito de outra forma, os efeitos da decisão recursória destinam-se a serem absorvidos como efeitos da decisão recorrida”.
No seu plano objetivo, a relação processual de recurso concretiza-se num procedimento-padrão de actos processuais – o seu objeto imediato. Este procedimento tem por objeto certa causa de pedir e certo pedido de recurso.
“Trata-se do objeto mediato da instância, o qual pode ser designado, em termos simples, como o objeto do recurso” (assim, Rui Pinto; Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 179).
Conforme refere Rui Pinto (Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, pp. 180-181), a relação jurídica processual do recurso, deve satisfazer determinadas condições de existência e de validade: “A falta desse preenchimento em nada tange a existência e validade da ação e quem foi proferida a decisão.
As condições de existência são: o tribunal e as partes do recurso (i.e., os sujeitos da relação processual) e o ato processual constitutivo da relação processual.
Assim, não há instância de recurso sem o ato processual de interposição do recurso por requerimento (cf. artigo 637.º n.º 1), porquanto será com o seu recebimento pela secretaria do tribunal a quo que o mesmo se considerará pendente, por força da regra geral do artigo 259.º n.º 1.
Por outro lado, não há relação processual sem sujeitos: não se pode ter por pendente como recurso civil aquele que seja recebido pela secretaria de um tribunal extinto ou deduzido por recorrente despido de personalidade judiciária.
Repete-se: na falta de alguma destas condições a instância tem-se por inexistente; não, por nula. Essa inexistência não pode, pois, ser sanada”
Para além das condições de existência, o recurso comporta condições de validade – sendo que, na sua ausência, a instância recursória padecerá de vícios graves que comportam a nulidade de todo o processo – a saber:
“A primeira condição de validade de um recurso é uma condição de validade positiva: a aptidão do requerimento de recurso, decorrente a contrario do artigo 186.º e do artigo 577.º al. b) (…). Naturalmente que se impõe algumas adaptações à realidade recursória, nomeadamente à existência dos ónus de alegar, concluir e especificar, nos termos dos artigos 637.º nº 2, 639.º e 640.º (…)” (cfr., Rui Pinto; Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 180).
Assim, se faltar o pedido de alteração ou anulação da decisão, o recurso será inepto, o mesmo sucedendo, se o pedido for contraditório com as conclusões ou se forem deduzidos pedidos de alteração ou anulação da decisão que sejam substantivamente incompatíveis.
A ineptidão do recurso determinará causa de nulidade processual (cfr. artigo 186.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo de sanação, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 186.º do CPC.
“A segunda condição de validade de um recurso é uma condição de validade negativa: o recurso não assentar em ato simulado de recorrente e recorrido, como decore dos artigos 612º 669º al. g)” (cfr., Rui Pinto; Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 181).
Ora, revertendo estas considerações para o caso dos autos, vemos que nenhuma das circunstâncias invocadas pelos recorridos, a respeito da alegação da apelante, determina a nulidade do recurso, mostrando-se o mesmo, em abstrato, apto a colocar em crise a decisão recorrida, sendo que, nas alegações de recurso, para além da motivação expressa e das conclusões expendidas, a recorrente termina pedindo, no provimento do recurso, seja modificada a decisão recorrida, com as legais consequências.
Não se verifica, pois, causa de ineptidão recursória, não se colocando, para além do mais, em questão – atenta a divergência entre as partes – alguma situação de simulação processual.
De outro passo, não se encontra no artigo 644.º do CPC, admitido que foi o requerimento recursório, sem que se mostre que a decisão tomada deva ser objeto de alteração, algum fundamento onde se sustente a nulidade arguida relativamente ao recurso apresentado pela ré.
Assim, de acordo com o exposto, conclui-se que nenhuma das circunstâncias invocadas pelos recorridos comporta a nulidade do recurso, a qual não se verifica.

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II) Da impugnação da decisão de facto:

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B) Se existe motivo para a rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto relativa a meios probatórios objeto de gravação, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC?
Nas conclusões recursórias, a apelante entende que o Tribunal recorrido “não procedeu, no despacho saneador/sentença, a uma análise crítica bastante das provas carreadas para os presentes autos, nomeadamente os factos que nem tão pouco foram contestados pelos Recorridos, retirou ilações sem qualquer suporte ou prova. Existe contradição entre os pontos 16. e 17. da matéria de facto dada com provada e o ponto d) da matéria de facto dada como não provada, violando, assim, o preceituado no art.º 659.º, n.ºs. 2 e 3, do C.P.C.”, mais entendendo que, a decisão “deve ser objeto de ampliação de matéria de facto, justificando-se tal ampliação por estarmos numa situação em que não foram valorados factos que revelam, verdadeiramente, para a solução jurídica do caso, por terem todo o interesse para a decisão da causa, além de enfermar de erros no julgamento da matéria de direito (…)” (cfr. conclusão I).
Nas demais conclusões do recurso, a recorrente tece considerações sobre:
- Não ser por “o logradouro do lado direito não constar do contrato de arrendamento, que se pode considerar, em termos de direito, que o mesmo não faz parte do contrato de arrendamento (…)” (cfr. conclusão II);
- Resultar “da matéria de facto provada, que existe uma afetação material do logradouro ao 1° andar arrendado pela Recorrente e tendo-se, ainda, alegado que esta sempre usou logradouro, especificando, o concreto uso que de sempre lhe deu - nomeadamente de ali colocar viaturas -, e desde quando, dever-se-iam apurar tais factos” (conclusão III);
- Que “a Recorrente sempre usou o logradouro, inclusive para ali colocar carros, impunha-se decisão diversa, ou seja, impunha-se dar como matéria de facto dada: “ O logradouro do lado direito do prédio dos AA. foi sempre usado pela R. para ela ali colocar viaturas, para colocar o lixo, para ali ter a garrafa de gás, onde tem uma torneira para regar as plantas que ali se encontram”, o refere “em face” do depoimento da testemunha ME (cfr. conclusão IV), o que, determinaria que deveria ter sido dado como provado “que o logradouro pertence ao contrato de arrendamento” (cfr. conclusão V);
- Existir uma contradição entre a motivação da sentença – de que a conduta da Recorrente denotou que nunca quis entregar as chaves - e o facto d) dado como não provado, com os factos 16. e 17. dados como não provados (cfr. conclusão V, assim numerada em 2.º lugar, atenta a repetição de números), considerando que “deveria era ter sido dado como provado que a Recorrente quis receber a chave do portão do logradouro e o Recorrido é que não a quis receber (ponto 16. e 17. dos factos dados como provados)” (cfr. conclusão VI);
- Que o Tribunal não podia “extrair dos factos apurados, a ilação que retirou de que a Recorrente nunca quis entregar a chave do portão do logradouro, quando há prova de que o Recorrido CR é que não a quis receber (pontos 16.e 17. da matéria de facto provada)”, violando a sentença o art.º 659°, n°2 e n° 3 do C.P.C. (cfr. conclusões VII e VIII);
- Que “[o] portão da garagem está selado à volta, por dentro e por fora, tendo-se mostrado impossível abrir a porta” tendo a recorrente ali deixado “o seu carro no logradouro, pois sabia que não ia por em causa o uso da garagem - pelo menos enquanto o portão se mantivesse selado ou betumado, além de que não tendo pretendido receber as chaves só podia ser porque pretendiam continuar a usar a garagem apenas pelo lado de dentro do prédio urbano” (cfr. conclusões VII e VIII, indicadas em 2.º lugar, atenta a repetição de números);
- Que a “conduta dos Recorridos terá de funcionar como um ato de neutralização do seu direito, por abuso de direito, pois tendo verificado a Recorrente que aqueles abriram uma porta para aceder pela garagem pelo lado de dentro do imóvel, passaram a usar a garagem pelo lado de dentro, para ali colocarem os seus pertences, não mais tendo aberto o portão da garagem e tendo-o até selado, e não tendo recebido a chave do logradouro da solicitadora que contratou para o efeito, criou-lhe a expectativa, ou convicção justificada, que não estava a impedir o uso da garagem, o que a levou a manter o carro no logradouro” (cfr. conclusão IX), entendendo que a atitude dos recorridos é imbuída de má fé (cfr. conclusão X);
- Que “na inspeção judicial ao local, a Digníssima Julgadora ao ter verificado que o portão da garagem se encontrava selado, com materiais como cimento e silicone, à volta do portão, deveria ter ampliada a matéria de facto, da seguinte forma.:
1. “Na Inspeção ao local não se entrou para a garagem pelo portão da garagem, mas sim pelo interior do prédio dos Recorridos”;
2. “Na inspeção ao local os AA. não abriram o portão da garagem”;
3. “Na inspeção a local verificou-se que a garagem estava a ser usada pelos AA. como armazenamento de diversos bens”” (cfr. conclusão XI);
No mais, a recorrente pronuncia-se sobre a indemnização fixada (cfr. conclusões XII, XIII e XIV) e na conclusão XV reitera que: “O tribunal ad quo violou, assim, a sentença o art.º 659°, n°2 e n° 3 do C.P.C., uma vez que retirou ilações e formou a sua convicção tomando em consideração as declarações do Recorrido, sem qualquer correspondência sequer com alguma sua alegação e ao avesso da matéria de facto dada como provada e de documentos junto aos autos e não impugnados”.
A recorrente pretende colocar em crise a matéria de facto selecionada pelo Tribunal recorrido.
Vejamos se, atentas as invocações da recorrente, existe motivo para a rejeição liminar do recurso:
Prescreve o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No que toca à especificação dos meios probatórios, “quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Pº nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, rel. ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no artigo 639.º, n.º 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, rel. MANUEL BARGADO).
A cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art.º 640.º do CPC (a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso»), não funciona automaticamente, devendo o Tribunal, se se patentear a falta de indicação das passagens exactas da gravação, a convidar o recorrente a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (cfr. Ac. do STJ de 26-05-2015, P.º n.º 1426/08.7CSNT.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art.º 640.º (de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
De todo o modo, ao invés, a apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art.º 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Ora, no presente caso, a alegação da apelante, na parte relevante e atinente à matéria de facto, desenvolveu-se nos seguintes termos:
“(…) A) De não ter sido dado como provado que o arrendamento do rés do chão do prédio dos AA inclui o logradouro - fato b) dado como não provado.
(…) 3.O Tribunal ad quo deu como não provado que tenha sido dado de arrendamento o logradouro do lado direito do prédio dos Recorridos. Na motivação sobre o fato b) dado como não provado, refere-se que lido o contrato de arrendamento, verifica-se que o mesmo consta apenas a referência ao 1° andar, não se aludindo a qualquer outra área do prédio. cfr. pg. 7 da douta sentença.
4. Ora, com tal entendimento não se pode conformar a Recorrente, até porque tratando-se de um negócio formal, não pode a declaração das partes contratantes "valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso", a menos que esse sentido corresponda "à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” (art.º 238° do Cód. Civ.).
Assim, salvo declaração em contrário deve até entender-se que um prédio é sempre transmitido com todas as suas pertenças, acessórios e partes integrantes, por ser a situação que melhor corresponde à intenção normal das partes contratantes, vide Ac. Trib. da Relação de Guimarães de 17.12.19 no proc. n° 6844/18.0T8GMR.G1.
Analisado o texto do contrato, no que diz respeito ao objeto do arrendamento, retiramos que as partes fizeram o presente contrato de arrendamento relativo ao 1° andar do prédio urbano na Rua Manuel Agro Ferreira, n° 67, Costa da Caparica. O que quer dizer que o texto do contrato, não exclui que o sentido da declaração das partes seja que o arrendamento abrange todo o prédio, pelo que nestes casos é admissível a produção de prova testemunhal para apurar se o real sentido dessa declaração vai de encontro à tese da Recorrente, de que o que as partes quiserem celebrar foi um contrato de arrendamento que teve por objeto também o logradouro do prédio (art.º 394º do Cód. Civ. a contrario). Isto porque, o objeto da locação de um imóvel é constituído, não só pelo espaço dado de arrendamento - objeto expresso -, como também por aqueles espaços que são necessários ao pleno gozo do primeiro - objeto implícito.
Ora, o que aconteceu em 1975, aquando da realização do contrato de arrendamento, foi que os AA. deram uma parte do seu prédio de arrendamento. E, nessa altura, porque o prédio dos Recorridos é constituído por dois andares, cada um, com um logradouro por onde se entra para cada andar, o logradouro do lado direito do prédio onde se encontra o 1° andar que a Recorrente arrenda e a garagem ao fundo do logradouro sempre foi usado por ela.
5. Assim, embora o logradouro do lado direito do prédio dos Recorridos não constasse do contrato de arrendamento, resultando da matéria de facto provada, que existe uma afetação material do logradouro ao 1° andar arrendado pela Recorrente e tendo-se ainda alegado que esta sempre usou logradouro, que especificou o concreto uso que sempre lhe deu - nomeadamente de ali colocar viaturas -, e desde quando, dever-se-ia apurar tais factos, pois em face do que referiu a testemunha ME, e impunha-se decisão diversa.
6. Veja-se que o que diz a testemunha ME quando questionada sobre o uso do logradouro por parte da Recorrente: 11:11min. Advogada: "Que formas de uso é que aquele logradouro teve ao longo destes anos?"
Testemunha: "Aquele logradouro, para por o carro, as crianças brincavam, faziam-se hortinhas naquele jardim ao lado,
Advogada: “Que utensílios ou equipamentos estão dentro do logradouro? Testemunha: "Caixote do lixo, as botijas, os vazinhos, a mangueira para regar, (...) essa mangueira que serve para lavar o logradouro e as plantas que lá se punham."
7. Assim, deverá ser ampliada a matéria de facto e dar-se como provado o seguinte fato: “O logradouro do lado direito do prédio dos AA. foi sempre usado pela R. para ela ali colocar viaturas, para colocar o lixo, para ali ter a garrafa de gás, onde tem uma torneira para regar as plantas que ali se encontram”.
8. Ora tendo em conta o que foi dito pela testemunha relativamente ao uso do logradouro por parte de Recorrente - e que não foi contestado por qualquer outra -, não se vê como pode ter sido considerado que o logradouro não faz parte do contrato de arrendamento.
A isto acresce que ficou provado que os AA. "sempre" se opuseram a que a R. ali colocasse o carro. Porém, o citado advérbio não abrange a altura da celebração dos contratos. Abrange sim, a partir de 1992, altura em que a garagem passou, por decisão judicial, a não fazer parte do contrato.
9. Entende, assim, a Recorrente que mesmo que o logradouro não conste, explicitamente, do contrato de arrendamento, de acordo com a prova produzida, deverá ser ampliada a matéria de fato no sentido de através da prova testemunhal se poder provar o uso do logradouro por parte da Recorrente, para considerar provados ou não provados os factos constantes dos artigos 48° e 51° da contestação, pois o tribunal deverá pronunciar-se sobre eles, uma vez que são considerados para a boa decisão da causa.
10. Assim, deverá haver ampliação da matéria de facto por ter sido omitida dos termos da prova matéria de fato alegada pelas partes que se revelou essencial para a resolução do litígio (art.º 662°, al. c) do CPC.
11.É que na realidade a lei não define logradouros, pátios ou jardins.
12. Lê-se a propósito no AC da R.L de 18-01-2001 (CJ t.1, p. 89) “Para Moutinho de Almeida, pátio é a área sobrante do edifício, citando Giuseppe Branca; e jardim é o pátio ajardinado (in Propriedade Horizontal, 2°ed. p. 49), aquele com a função principal de fornecer ar e luz ao edifício e, secundariamente, pode servir de acesso ao prédio ou para estacionamento de viaturas e este tem uma função decorativa e de lazer (Sandra Passinhas, ob cit, p. 38).
Para esta autora, o logradouro de um prédio mais não é se não o "terreno não edificado que circunda o prédio, podendo servir fins diversos: estacionamento, delimitação do prédio, entrada, base de edificações secundárias, entre outros”.
13. No modesto entender da Recorrente, existe erro na aplicação do direito quando a douta sentença refere que não decorre do contrato de arrendamento que tenha sido assegurada ao arrendatário, para além, da habitação, também a disponibilidade de um espaço para o seu veículo, vide último parágrafo de pg. 7 da douta sentença,
14. Porquanto, não é por não constar do contrato de arrendamento, que o logradouro não fará parte do arrendamento.
15. Além do mais se a ocupação do logradouro é ilícita porque o mesmo não faz parte do arrendamento, só agora com esta decisão judicial é que tal questão é apreciada na ordem jurídica, pelo que antes dela não poderia tal ocupação ser ilícita, pois a Recorrente não tinha ausência de causa justificativa para usar o logradouro.
16. Na verdade, toda a invocação dos Recorridos se alicerça na existência de um contrato de arrendamento com a Recorrente e que o mesmo não se alarga ao logradouro. Todavia, a Recorrente não se apoderou, ilicitamente, do logradouro, não se tratando, assim, de um qualquer terceiro sem qualquer causa fundadora da ocupação do logradouro, que abusivamente, passou a usá-lo e a frui-lo”.
Relativamente a este segmento recursório, a recorrente identifica qual o ponto de facto a que se dirige a sua impugnação: A alínea b) dos factos não provados.
Também indica a recorrente, qual a decisão de facto que, em concreto, deveria ser proferida: Dar-se como provado que: “O logradouro do lado direito do prédio dos AA. foi sempre usado pela R. para ela ali colocar viaturas, para colocar o lixo, para ali ter a garrafa de gás, onde tem uma torneira para regar as plantas que ali se encontram”.
E, igualmente, indicou a recorrente qual o meio de prova que, em seu entender, justifica uma tal decisão: O depoimento de ME (tendo extratado, com indicação do momento em que tal testemunho teve lugar, um segmento do referido depoimento).
Em face do exposto, mostram-se, neste segmento, suficientemente observados pela recorrente os ónus de impugnação a que se reporta o artigo 640.º do CPC, pelo que, neste conspecto, inexiste motivo para a rejeição da impugnação, a respeito da impugnação deduzida relativamente à alínea b) dos factos não provados.
Noutro segmento das alegações de recurso, alegou a recorrente o seguinte:
“A) Da entrega ou não da chave do portão do logradouro
17. Sobre a entrega da chave do portão do logradouro, o Tribunal ad quo deu como não provado que no ano 2019 quando a Recorrente pretendeu entregar a chaves ao Recorrido CR, tendo exigido uma declaração da sua receção, que este se recusou a passar, tendo sido essa a razão pela qual a R. não lhe entregou a chave., cfr. fato d) da matéria de fato dada como não provada.
18. Na motivação da douta sentença, a Digníssima Julgadora referiu que a conduta da Recorrente denota inequivocamente que nunca quis entregar as chaves., cfr. penúltimo parágrafo da pg. 9 da douta sentença.
19. Ora com tal motivação não se pode conformar a Recorrente, tanto mais que esta motivação e o facto d) dado como não provado, estão em completa contradição com os factos 16. e 17. dados como não provados.
20. Assim, o tribunal ad quo deu como provado o fato 16, tendo atendido aos documentos de fls. 38-v a 39, constatando-se que um documento se refere a uma carta datada de 01.04.2019, onde uma Solicitadora se dirige à ora Recorrente a solicitar que não seja vedado acesso de pessoas e viaturas à garagem,
E em resposta à mesma, a Recorrente respondeu:
"Em resposta à sua carta (...) venho informar o seguinte:
(....)
2°- Nunca houve oposição da minha para ao uso e fruição da garagem em causa pelos seus proprietários.
3°- Em resposta ao requerimento referido no n° anterior, o mandatário do Sr. CR e outros AA nos autos do P. n° 8842/A 1° Juízo - 1- seção A 17.06.1992 rejeitaram a o recebimento da chave do portão do logradouro quer dá acesso à garagem, reivindicando a posse do mesmo conforme (Doc. 3) que se junta.
5° - Estando ciente do direito de passagem pelo logradouro de acesso à garagem em causa para utilização da mesma (viaturas) por parte dos proprietários, não obstante os mesmos terem betumado o portão da referida garagem e , aberto uma porta lateral para o uso da mesma, mais uma vez, passados 30 anos, aceito a marcação de dia e hora para entrega da chave do portão do logradouro que, fecha e protege os utensílios (gás, água, contentores municipais) estritamente necessários a qualquer residência, bem como o acesso à porta de entrada da qual sou inquilina, pelas razões acima referidas o portão deverá permanecer fechado por motivos de segurança."
E no dia 01.05.2019, a ora R., como iria estar ausente da sua casa por uns dias, enviou, ainda, um mail à solicitadora Z, contratada pelos AA., onde referiu:
“Venho por este meio comunicar que por motivos imprevistos relacionados com a minha vida pessoal, encontro-me ausente da minha residência desde o dia 27 abril até ao dia 20 de maio.
Ciente da entrega de uma chave do portão do logradouro para acesso a garagem pelos senhorios da qual sou inquilina, vou honrar o referido compromisso.
Quando regressar irei ao seu escritório para entregar a referida chave, fazendo de si fiel depositária, caso aceite tal situação
Aconteceu, quando a ora Recorrente se deslocou ao escritório da Sr.ª solicitadora Z. quis entregar a chave, porém a Sr.ª solicitadora deu conhecimento à Recorrente que os Recorridos não aceitavam que aquela recebesse as chaves. cfr. ponto 17° da matéria de fato provada.
Sublinhe-se que este ponto 17. da matéria de fato provada o tribunal teve em consideração as declarações de parte do Recorrido, CR e ainda da Recorrente.
21. Ora, em face da Digníssima Julgadora ter dado como provados os factos constantes dos pontos 16. e 17. da matéria de fato, como pode na motivação da sentença dizer que estava convicta que a Recorrente nunca quis entregar as chaves, quando deu como provado que a mesma quis entregar as chaves do portão do logradouro à solicitadora contratada para o efeito pelos Recorridos e aquela não as recebeu porque o Recorrido CR não aceitou que aquela as recebesse?
Como pode dizer: "Esta conduta da R. denota, inequivocamente, que nunca pretendeu entregar as chaves, pelo que não julgámos credível a sua versão dos factos.”?
22. Dos factos ocorridos retira-se, sumariamente, que:
a) por carta de 01.04.2019 os Recorridos pedem a chave do portão do logradouro, vide doc. nº 10 junto com a contestação;
b) por carta de 08.04.2019, a Recorrente responde a dizer que aceita e para marcarem dia e hora para entregar a chave, vide doc. 11 junto com a contestação;
c) Em virtude dos Recorridos não terem respondido à carta, a Recorrente envia um mail no dia 01.05.2019 (vide doc. 12 junto com a contestação) a dizer que irá estar fora de casa uns dias e que quando vier vai ela ao escritório da solicitadora;
d) a Recorrente vai ao escritório e a solicitadora diz que os Recorridos não querem que ela seja fiel depositária da chave;
e) no dia 02.12.2019 os Recorridos apresentam a presente ação em tribunal alegando que a Recorrente não quer entregar a chave do logradouro.
23. Por tais factos, não se conforma a Recorrente com o teor da douta sentença quando refere que nunca se quis entregar a chave, pois os factos revelam precisamente o contrário, isto é, os Recorridos é que nunca a quiseram receber. E não a quiseram receber das mãos da solicitadora que contrataram.
24. Além do mais, são os Recorridos que no seu requerimento de 17.06.1992 quando vão pedir a posse do logradouro ao tribunal, referem taxativamente, naquele documento através do seu mandatário no fim do seu requerimento:
“ (…)
6.- Não há assim lugar ao recebimento de qualquer chave do portão que dá acesso à garagem dos AA. mas outro sim à imediata desocupação daquele espaço por parte dos RR no prazo que V. Exa. determinar, como se requer!", vide doc. n° 3 junto com a contestação.
25. Assim, no entender da Recorrente deveria era ter ficado esclarecido no tribunal que os Recorridos é que nunca quiserem de facto receber as chaves - como eles disseram claramente no doc. n° 3 ao tribunal, e não que foi a Recorrente que nunca as quis entregar.
26. Portanto, se foi dado como provado, os fatos constantes do ponto 16. e 17. da matéria dada como provada), ou seja, se foi dado como provado que o Recorrido CR não quis que a solicitadora Z recebesse as chaves e ficasse delas fiel depositária, nunca a Digníssima Julgadora, poderia extrair dos factos apurados, a ilação que retirou de que a Recorrente nunca quis entregar a chave do portão do logradouro, quando há prova de que o Recorrido CR é que não a quis receber.
27. Na verdade, como pode o tribunal acreditar na versão do Recorrido CR, quando nas suas declarações diz que a Recorrente entregou até a chave da garagem errada, e que tiveram de chamar os bombeiros para abrir a garagem, quando não há notícia depois o “Auto de Entrega” da garagem que ocorreu em 08.04.1992 (vide doc. n° 2 junto com a contestação) de que não tenham sido entregues as chaves da garagem.
É que se tal tivesse ocorrido, obviamente que o advogado dos AA, teriam ido a tribunal dizer que afinal não se tinha entregue a chave da garagem. Mas não foi.
Mais, como se pode acreditar em tal versão de que não foi entregue a chave da garagem correta, quando os então AA, através do seu mandatário, em 17.06.1992- dois meses depois do Auto de Entrega da chave da garagem - , fazem um requerimento a pedir o logradouro, vide doc. n° 3 junto com a contestação e não dizem que foi entregue uma chave errada da garagem?
28. Como pode o tribunal acreditar na versão estapafúrdia do Recorrido que veio dizer que nem a chave da garagem lhe foi entregue?
29. Pelo contrário em face do ponto 17. da matéria de facto dada como provada, deveria a Digníssima Julgadora, na motivação da douta sentença, considerar que os Recorridos não quiseram receber a chave do logradouro.
30. Assim, nunca a Digníssima Julgadora, poderia, extrair dos factos apurados, a ilação que retirou, contrariando, assim, a matéria de facto provada. (sublinhe-se que os pontos 16. e 17. da matéria de facto provada, foram provados com as declarações de parte da Recorrente e do Recorrido CR as quais foram coincidentes).
31. Violou, assim, a sentença o art.º 659º, nº 2 e nº 3 do C.P.C., uma vez que retirou ilações e formou a sua convicção tomando em consideração que a Recorrente nunca quis entregar a chave do portão do logradouro, ilação essa, sem qualquer correspondência com a realidade e contrariada com a matéria de facto dada como provada”.
Ora, tendo em conta toda esta alegação da recorrente e passadas em revista as conclusões recursórias, se é certo que, a recorrente indica qual o ponto de facto que pretende colocar em crise, não é menos certo que, todavia, não indica, nem qual a decisão que, em alternativa, deveria ter sido proferida sobre o aludido ponto (sendo certo que, entrega e recebimento não são realidades equivalentes), nem, igualmente - apesar das considerações em torno da motivação da convicção levada a efeito pelo Tribunal recorrido e da alusão à prova realizada sobre os factos provados em 16) e 17) (que refere estar em contradição com o consignado na mencionada alínea d) dos factos não provados), e ainda dos meios de prova em que estes factos se fundaram e das questões que problematiza – os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da que teve lugar.
A recorrente, efetuando diversas considerações sobre a formação da convicção acerca da matéria de facto selecionada pelo Tribunal a quo, sobre os termos em que este Tribunal formou a sua convicção, certo é que, não identifica quaisquer segmentos ou partes da prova gravada (ainda que procedendo à transcrição dos excertos respectivos) ou quaisquer outros meios de prova, nos termos que lhe são impostos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
Conforme refere Abrantes Geraldes, (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pp. 199-200) impõe-se a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto”, designadamente quando se verifique “(…) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; (…) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); (…) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação (…)”, concluindo que, a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Ora, a impugnação em questão, embora significando uma declaração de vontade da apelante no sentido da discordância com a matéria de facto aquilatada pelo Tribunal recorrido, por não observar os ónus de impugnação consignados nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, não passa de “mera manifestação de inconsequente inconformismo”, sobre o resultado probatório alcançado pelo Tribunal.
Na medida em que a recorrente não deu cumprimento ao preceito legal acima mencionado, não cuidando de indicar os meios de prova que impunham a alteração da decisão, nem qual a concreta decisão que deveria ser proferida, em alternativa, há lugar à rejeição imediata do recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto quanto à alínea d) dos factos não provados, por inobservância do disposto nas alíneas b) e c), do n.º 1, do artigo 640.º do CPC.
No mais, inexiste motivo para a rejeição do recurso referente à impugnação da matéria de facto.
Em face do exposto, conclui-se:
- Rejeitar o recurso de impugnação da matéria de facto relativamente à alínea d) dos factos não provados, por inobservância dos ónus de impugnação a que se referem as alíneas b) e c), do n.º 1, do artigo 640.º do CPC; e
- Inexistir motivo para a rejeição do recurso quanto às restantes questões objeto da impugnação da matéria de facto.

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C) Se deve ser dado como provado que: “O logradouro do lado direito do prédio dos AA. foi sempre usado pela R. para ela ali colocar viaturas, para colocar o lixo, para ali ter a garrafa de gás, onde tem uma torneira para regar as plantas que ali se encontram”?
Cumpre apreciar, desde logo, a impugnação deduzida a respeito à alínea b) dos factos não provados, por forma a determinar se deve ser incluída no rol dos factos provados a factualidade acima referenciada.
De acordo com a recorrente, deverá dar-se como provado que “O logradouro do lado direito do prédio dos AA. foi sempre usado pela R. para ela ali colocar viaturas, para colocar o lixo, para ali ter a garrafa de gás, onde tem uma torneira para regar as plantas que ali se encontram”, o que, em seu entender, resulta do depoimento da testemunha ME, matéria que justificaria, por isso, a eliminação do consignado na alínea b) dos factos não provados (que “b) O arrendamento da casa de habitação incluiu o logradouro”).
Resta saber se este meio de prova convocado pela apelante “impõe” a preconizada alteração.
Especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que “o recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art.º 640º do C.P.C.)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, rel. MARIA JOÃO MATOS).
O artigo 607.º, n.º 4, do CPC impõe ao julgador que na fundamentação da sentença declare “quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
“A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS).
Lebre de Freitas (A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil, 3.ª ed., p. 315) refere, a este respeito, que: “No novo código, a sentença engloba a decisão de facto, e já não apenas a decisão de direito. Na decisão de facto, o tribunal declara quais os factos, dos alegados pelas partes e dos instrumentais que considere relevantes, que julga provados (total ou parcialmente) e quais os que julga não provados, de acordo com a sua convicção, formada no confronto dos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador; esta convicção tem de ser fundamentada, procedendo o tribunal à análise crítica das provas e à especificação das razões que o levaram à decisão tomada sobre a verificação de cada facto (art.º 607, n.º 4, 1.ª parte, e 5) ”.
Conforme se sublinhou no já citado Acórdão do STJ de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS): “Sendo os temas da prova enunciados de maneira sucinta, ainda que pressuponham ampla matéria de facto, a exigência de fundamentação desta justifica-se, de modo mais acentuado, porquanto não acontece, como no passado, quando a análise da peça processual onde se respondia aos quesitos permitia, em regra, saber de modo discriminado (os quesitos eram enumerados) o que tinha ficado provado e não provado e a fundamentação, que sempre se reputou não ter que ser exaustiva, mas devendo dar a conhecer os meios de prova em que acentuou a convicção quanto à prova submetida a julgamento”.
Por seu turno, refere Francisco Manuel Lucas de Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, pp. 350-351) que: “A estatuição do citado nº 4 do art.º 607º (1º- segmento) é, contudo, meramente indicadora ou programática, não obrigando o tribunal a descrever de modo exaustivo o iter lógico-racional da apreciação da prova submetida ao respectivo escrutínio; basta que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para a análise crítica dos factos e a razão da sua eficácia em termos de resultado probatório. Trata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio. Deve, assim, o tribunal enunciar os meios probatórios que hajam sido determinantes para a emissão do juízo decisório, bem como pronunciar-se: - relativamente aos factos provados, sobre a relevância deste ou daquele depoimento (de parte ou testemunhal), designadamente quanto ao seu grau de isenção, credibilidade, coerência e objectividade; - quanto aos factos não provados, indicar as razões pelas quais tais meios não permitiram formar uma convicção minimamente segura quanto à sua ocorrência ou convencer quanto a uma diferente perspectiva da sua realidade ou verosimilhança […].Não impõe, contudo, a lei que a fundamentação das conclusões fácticas decisórias seja indicada separadamente por cada um dos factos, isolada e autonomamente considerado (podendo sê-lo por conjuntos ou blocos de factos sobre os quais a testemunha se haja pronunciado)”.
Conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2020 (Pº 258/18.9T8PNF-A.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA): “Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do litígio (pedido e respetiva causa de pedir e matéria de exceção); Havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são os temas da prova formulados, densificados pelos respetivos factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) – v. art.ºs 410º, do CPC e 341º e seguintes, do Código Civil e, ainda, artigo 5º, daquele diploma legal”.
Nesta linha é, pois, crucial que seja feita a indicação e especificação dos factos provados e não provados e a indicação dos fundamentos por que o Tribunal formou a sua convicção acerca de cada facto que estava em apreciação e julgamento, de acordo com os temas da prova fixados.
Conforme referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436), para que um facto – sujeito a livre apreciação do julgador - se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida”.
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
Importa considerar que, em termos substanciais, a impugnação da matéria de facto traduz-se no meio de sindicar a decisão que sobre ela proferiu a primeira instância, procurando-se que a Relação reaprecie e responder os elementos probatórios produzidos, averiguando se a decisão da primeira instância relativa aos pontos de facto impugnados se mostra conforme às regras e princípios do direito probatório, impondo-se se proceda à apreciação não só da valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios, da sua consistência e coerência, à luz das regras da normalidade e da experiência da vida, mas também da sua valia extrínseca, ou seja, da sua consistência e compatibilidade com os demais elementos.
Como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 127): “Consistindo o processo jurisdicional num conjunto não arbitrário de actos jurídicos ordenados em função de determinados fins, as partes devem deduzir os meios necessários para fazer valer os seus direitos na altura/fase própria, sob pena de sofrerem as consequências da sua inactividade, numa lógica precisamente assente, em larga medida, na autorresponsabilidade das partes e, conexamente, num sistema de ónus, poderes, faculdades, deveres, cominações e preclusões”.
Assim, ressalvadas as modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido que, de motu proprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova sujeitos a livre apreciação e valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova.
Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar, desde logo, o que o recorrente - no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto - indicou nas respetivas alegações e cujo âmbito tem a função de delimitar o objeto do recurso.
O ordenamento processual probatório português combina o sistema livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, dado que, “a partir da prova pessoal obtida e da análise do teor dos documentos existentes nos autos ou doutra fonte probatória relevante, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-10-2016, Pº 1306/12.1TBSSB.E1, rel. JOSÉ TOMÉ DE CARVALHO).
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efetuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação, partindo da análise e ponderação da prova disponibilizada (cfr. Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 435-436).
Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.
A prova não visa “(...) a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (...)”, mas tão só, “(...) de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (assim, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 419 e 420).
A apreciação das provas resolve-se, assim, na formulação de juízos, que assentam na elaboração de raciocínios que surgem no espírito do julgador “(...) segundo as aquisições que a experiência tenha acumulado na mentalidade do juiz segundo os processos psicológicos que presidem ao exercício da actividade intelectual, e portanto segundo as máximas de experiência e as regras da lógica (...)” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 245).
Nessa atividade de livre apreciação da prova deve o tribunal especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida (art.º 607.º, n.º 4, do CPC), permitindo, dessa forma, que se “possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Teixeira de Sousa; Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348) e exercer um controle externo e geral do fundamento de facto da decisão.
A “prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência, de 21-06-2016, Pº 2683/12.0TJLSB.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE).
Neste enquadramento, a credibilidade firmada em torno de um específico meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum, que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objetiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjetiva da sua realidade.
Todas estas circunstâncias deverão ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo atuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
Mas, não deverá esquecer-se que a função da Relação não é a de realizar um novo julgamento de facto: “Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017, Processo 1426/15.0T8BGC-A.G1, relator ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA).
Neste sentido, “não estando em causa formalidades especiais de prova legalmente exigidas para a demonstração de quaisquer factos e assentando a decisão da matéria de facto na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal e documental e pericial que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª instância na apreciação dessas provas. O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas, note-se, excluindo este. Em caso de dúvida sobre o sentido da decisão, face às provas que lhe são apresentadas, a 2ª instância deve fazer prevalecer a decisão da 1ª instância, em homenagem à livre convicção e liberdade de julgamento. A garantia do duplo grau de jurisdição em caso algum pode subverter o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto e, por isso, o objecto do recurso não pode ser nem a liberdade de apreciação das provas, nem a convicção que presidiu à matéria de facto, mas esta própria decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2011, Processo 334/07.3TBASL.E1, relatora MARIA ALEXANDRA A. MOURA SANTOS).
É que, na verdade, como escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 234): “… existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador. O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiamo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos”.
Em suma: Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que a prova pessoal produzida se pronuncie sobre os factos num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
O julgamento dos factos, na sua valoração, mormente quando se reporta a meios de prova produzidos oralmente, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida.
Aplicando estas considerações à impugnação de facto em questão, importa referir que, na decisão recorrida, a respeito da mencionada alínea b) dos factos não provados, o Tribunal recorrido enunciou a seguinte motivação da convicção que formou:
“(…) - Facto b): Lido o contrato de arrendamento, verifica-se que do mesmo consta apenas a referência ao 1º andar, não se aludindo a qualquer outra área do prédio.
Aliás, no Processo nº 8842 considerou-se que a garagem não era abrangida pelo contrato de arrendamento.
Sublinhe-se que este prédio urbano é composto de um edifício de rés-do-chão e 1º andar possuindo um logradouro do lado esquerdo e outro do lado direito.
A garagem constitui uma dependência externa ao edifício, situada ao fundo do logradouro situado do lado direito de quem entra no prédio.
Pretende a R. que o logradouro justifica uma abordagem distinta da garagem, na medida em que a R. necessita de o atravessar para chegar ao portão da rua.
Contudo, ter a necessidade de atravessar o logradouro é diferente de o ocupar com um automóvel.
Na realidade, o que resultou da audiência foi que a R., quando se viu despojada da possibilidade de usar a garagem do prédio, por força da Sentença proferida no Processo nº 8842, entendeu fazer do logradouro a sua garagem, em substituição daquela.
Todavia, não decorre do contrato de arrendamento que tenha sido assegurada ao arrendatário, para além da habitação, também a disponibilidade de um espaço para guardar o seu veículo automóvel, nem a prova produzida em audiência apontou nesse sentido.
Aliás, é muito comum, no âmbito do mercado de arrendamento, estes dois aspetos mostrarem-se dissociados, existindo contratos puramente habitacionais e outros que o são apenas de garagens.
Ou seja, não podemos considerar, à luz das regras da experiência comum, que o arrendamento de um espaço habitacional implique necessariamente a disponibilidade, no âmbito desse arrendamento, do espaço de garagem que eventualmente exista no prédio.
É certo que das declarações da R. parece decorrer que esta tem a convicção de que o Tribunal de Almada decidiu, em 1991, reconhecer-lhe o direito a ocupar o logradouro, mas isto não corresponde de todo à verdade.
O Tribunal de Almada limitou-se a dizer que o pedido que os AA. fizeram nessa ação só dizia respeito à garagem e não também ao logradouro, pelo que o Tribunal não podia pronunciar-se sobre algo que não lhe foi expressamente pedido, até porque quando esta questão foi colocada ao Tribunal, já havia Sentença transitada em julgado.
Não julgámos provado, deste modo, que tenha sido dado de arrendamento o logradouro adjacente ao edifício.”.
O trecho transcrito pela apelante, reportado ao depoimento da testemunha ME, reporta-se a realidade diversa daquela a que se reporta a alínea b) dos factos não provados, onde se questionava se do arrendamento fazia parte, estava incluído o logradouro.
Tal factualidade tinha sido, aliás, alegada pela ré (cfr. artigos 14.º, 18.º e 58.º da contestação).
É certo que, na economia dessa factualidade, a demonstração de que o logradouro era utilizado pela ré – para ali colocar viaturas, colocar o lixo, a garrafa de gás e para regar as plantas – pode considerar-se consubstanciar uma factualidade instrumental de tal inclusão.
A ré alegou utilizar o logradouro (cfr. artigos 30.º, 42.º, 43.º, 48.º e 51.º da contestação), utilização que, como decorre da motivação da decisão recorrida, foi ponderada na aferição probatória realizada pelo Tribunal (“Pretende a R. que o logradouro justifica uma abordagem distinta da garagem, na medida em que a R. necessita de o atravessar para chegar ao portão da rua. Contudo, ter a necessidade de atravessar o logradouro é diferente de o ocupar com um automóvel”), que concluiu no sentido de que não se logrou provar a inclusão de tal espaço – ainda ponderada a utilização levada a efeito pela ré - no arrendamento de que a ré é beneficiária.
O artigo 607.º do CPC dispõe – em termos semelhantes aos que o fazia o anterior artigo 659.º, n.ºs. 2 e 3 do CPC anterior ao publicado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho - quais as regras a que obedece a elaboração da sentença, dispondo, em particular, que “a sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, e enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer”, seguindo-se “os fundamentos”, onde o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final” (n.ºs. 2 e 3).
De acordo com o n.º 4 do mesmo artigo 607.º do CPC, “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”, devendo também tomar “ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”.
Por fim, lê-se no nº 5 do mesmo artigo 607.º que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, não abrangendo, porém, aquela livre apreciação “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão da partes”.
Reafirma-se, assim, em sede de sentença, a obrigação imposta pelo art.ºs 154.º do CPC, aliás, na decorrência do dever fundamental do juiz fundamentar as suas decisões, constante do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (não o podendo fazer por “simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”, conforme dispõe, nesse sentido, o n.º 2 do mencionado artigo 154.º do CPC).
Na realidade, sendo função e finalidade da decisão judicial, a de resolução de um “conflito de interesses” (cfr. n.º 1 do artigo 3.º do CPC), a paz social só será efectivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 348).
Neste sentido, é a fundamentação da decisão que assegurará aos visados o respectivo controlo e, simultaneamente, permitirá ao Tribunal de recurso a sindicância do acerto ou desacerto do decidido.
“A motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível (…) de garantia do direito ao recurso” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29-04-2014, Pº 772/11.7TBBVNO-A.C1, rel. HENRIQUE ANTUNES).
Logo, conforme se sublinha no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04-10-2018 (Pº 4981/15.1T8VNF-A.G1, rel. MARIA JOÃO MATOS) “e em termos de matéria de facto, impõe-se ao juiz que, na sentença, em parte própria, discrimine os factos tidos por si como provados e como não provados (por reporte aos factos oportunamente alegados pelas partes, ou por reporte a factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respectiva natureza).
Impõe-se-lhe ainda que deixe bem claras, quer a indicação do elenco dos meios de prova que utilizou para formar a sua convicção (sobre a prova, ou não prova, dos factos objecto do processo), quer a relevância atribuída a cada um desses meios de prova (para o mesmo efeito), desse modo explicitando não só a respectiva decisão («o que» decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram («o porquê» de ter decidido assim).
A explicitação da formação da convicção do juiz consubstancia precisamente a «análise crítica da prova» que lhe cabe fazer (art.º 607.º, n.º 4 do CPC): obedecendo aos princípios de prova resultantes da lei, será em função deles e das regras da experiência que irá formar a sua convicção, sobre a matéria de facto trazida ao respectivo julgamento”.
E, de facto, apreciar livremente a prova (cfr. artigo 607.º, n.º 5 do CPC) não equivale a uma apreciação da prova arbitrária, liberta de qualquer regra ou desregrada.
O Juiz tem, ao invés, o dever de objetivar e exteriorizar o modo como formou a sua convicção, impondo-se a “identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador”, e ainda “a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (assim, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655).
Como evidencia Paulo Pimenta (Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325): “É assim que o juiz explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)”.
“Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2.ª Instância” (assim, Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, p. 591).
A fundamentação exerce, pois, uma dupla função: “(…) facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e (…) reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional” (cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2013, p. 281).
Relativamente ao modo de evidenciação ou de exteriorização na decisão de facto, pelo julgador, do iter que levou à formação da convicção sobre a matéria de facto, não estabelece a lei uma modulação inflexível, podendo a motivação ser concretizada por formas diversas.
Isso mesmo foi referenciado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-04-2019 (Pº 963/13.6TJLSB.L1-7, rel. JOSÉ CAPACETE) onde se concluiu que:
“1. O relatório é a parte inicial ou cabeçalho da sentença, de matriz expositiva, em que, de forma sintética, são identificadas as partes e o objeto da causa e se fixam ou enunciam as questões que cumpre ao tribunal apreciar e decidir, não podendo, por isso, limitar-se a identificar as partes e a transcrever os pedidos formulados.
2. O teor dos enunciados de facto correspondentes aos juízos probatórios deve ser depurado de referências aos meios de prova ou às respectivas fontes de conhecimento, que devem, quando muito, constituir argumento probatório, a consignar na motivação, para fundamentar um juízo afirmativo ou negativo, pleno ou restritivo, do facto em causa.
3. Apesar de decorrer da 1ª parte do nº 5 do art.º 607º do CPC, que a regra é a da motivação facto a facto, nada impede, no entanto, antes pelo contrário, que a motivação possa incidir sobre um conjunto ou bloco de factos sempre que tal o justifique ou aconselhe, o que ocorrerá, por exemplo, quando um bloco de factos respeite a um determinado tema de prova e o seu encadeamento ou sequência lógica seja tal que se justifique a sua motivação conjunta e simultânea, em vez de fragmentada”.
Nos termos do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC a “Relação deve (…), mesmo oficiosamente (…), anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que (…) permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (…)”.
Assim, quando se verifique que a decisão sobre a matéria de facto omitiu a “pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, tem uma “natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa”, ou patenteia “incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”, deve o Tribunal da Relação, oficiosamente, anulá-la, quando não lhe seja possível suprir tais vícios (assim, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 239 e 240).
Todavia, não poderá esquecer-se que, “o regime consagrado entre nós para os recursos ordinários é de (…) reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-05-2015, Pº 416/13.2TBCBR.C1, rel. ISABEL SILVA).
Conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2004 (Pº 03B4354, rel. LUCAS COELHO) integram a estrutura jurídica das presunções judiciais os seguintes elementos: “a denominada base da presunção, constituída pelo facto ou factos conhecidos, isto é, provados através de outros meios de prova; os elementos de racionalidade lógica e técnico-experiencial actuando por indução sobre os mesmos factos; e o facto ou factos presumidos mediante estas operações intelectuais”, sendo, “pois, imperativo do artigo 349.º que a base da presunção esteja provada, que os respectivos factos integradores - revestidos dos atributos de seriedade, precisão e concordância - sejam conhecidos, possuindo o julgador acerca deles o grau de ciência que as provas podem proporcionar, uma exigência garantística elementar contra o risco de arbítrio no exercício da actividade jurisdicional”.
De todo o modo, não pode olvidar-se que, “o uso de presunções não se reconduz a um meio de prova próprio, consistindo antes, como se alcança do art.º 349º do Cód. Civil, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos). A presunção traduz-se e concretiza-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência, sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351º do Cód. Civil)” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-01-2017, Pº 841/12.6TBMGR.C1.S1, rel. ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA).
Como se referiu neste aresto, para ser colocado em crise o juízo presuntivo tem de ser comprovado: ou que o uso de presunções violou qualquer norma legal; ou que tal juízo carece de coerência lógica; ou ainda se, faltar a comprovação do facto-base da presunção, comprovando-se que a presunção assenta em factos não provados (cfr., no mesmo sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11-04-2019, Pº 8531/14.9T8LSB.L1.S1, rel. ROSA TCHING e de 24-11-2020, Pº 2350/17.8T8PRT.P1.S1, rel. ANA PAULA BOULAROT).
Em idênticos moldes, refere Luís Filipe Pires de Sousa (Prova por Presunção no Direito Civil; 3.ª ed., Almedina, 2017, pp. 128-129) que, “(…) a parte prejudicada pela utilização da presunção só poderá combatê-la (…) impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto invocando error in judicando (…), questionando quer a efetiva prova do facto-base quer a logicidade e atendibilidade do nexo lógico ou invocando mesmo que se encontra provada a inveracidade do facto presumido”.
No caso em apreço, o juízo alcançado pelo Tribunal recorrido não merece alguma censura, inculcando que, de facto, não ficou demonstrado que do arrendamento fizesse parte o logradouro.
A utilização do logradouro, alegada pela ré e que foi submetida às regras de contraditoriedade e prova, constitui, na alegação da ré, um estrito facto instrumental.
A testemunha – sobrinha da ré – ME referiu, de forma genérica – procurando situar a razão de ciência das suas declarações quer no conhecimento que lhe adveio pela ré, quer o resultante das deslocações que disse realizar “frequentemente” ao prédio em questão – referiu que a ré usa o logradouro (da forma que concretizou) desde que “lá está”, mas essa circunstância, por si só e na falta de outro elemento probatório, que não teve lugar, não é demonstrativa da inclusão do logradouro na relação jurídica de arrendamento.
Ora, conforme explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, pp. 32-33) “[q]uanto aos factos instrumentais (aqueles que permitem a afirmação por indução, de outros factos de que depende o reconhecimento do direito ou da exceção), não há ónus de alegação nem sequer qualquer tipo [de] preclusão, pelo que poderão ser livremente averiguados e discutidos na audiência final em torno da produção e valoração dos meios de prova atinentes aos temas da prova que tenham sido enunciados. Sobre os mesmos não tem de existir necessariamente uma pronúncia judicial, na medida em que apenas sirvam de apoio à formação da convicção acerca da restante factualidade, máxime quando, a partir deles, se possam inferir outros factos mediante presunções judiciais (art.ºs 607.º, n.º 4, e 5.º, n.º 2, al. a)), situações em que basta que sejam enunciados na motivação da sentença”.
Ou seja: “Quanto aos factos instrumentais, para além de não carecerem de alegação (aliás, o ónus de alegação respeita somente aos factos essenciais, isto é, àquele de cuja prova depende a procedência ou improcedência da ação ou da defesa), podem ser livremente discutidos e apreciados na audiência final (…). Consequentemente, atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a prova dos factos essenciais, para além de, em regra, não integrarem os temas da prova, nem sequer deverão ser objeto de um juízo probatório específico.
(….) Em termos gerais, o seu relevo estará limitado à motivação da decisão sobre os restantes factos (…)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 772).
Ora, foi precisamente essa a linha de raciocínio levada a efeito na decisão recorrida, aquilatando-se que, a necessidade de utilização do logradouro, não envolveu a demonstração de que a utilização de tal espaço se encontrava legitimada contratualmente no âmbito do contrato de arrendamento celebrado.
A reapreciação da matéria de facto não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa, pelo que sempre que se conclua que a reapreciação pretendida é inútil – seja porque a decisão sobre matéria de facto proferida pela primeira instância já permite sustentar a interpretação do direito aplicável ao caso nos termos sustentados pelo recorrente, seja porque ainda que proceda a impugnação da matéria de facto, nos termos requeridos, a decisão da causa não deixará de ser a mesma – a reapreciação sobre matéria de facto não deve ter lugar, por constituir um acto absolutamente inútil, contrariando os princípios da celeridade e da economia processuais – art.ºs 2.º, n.º 1, 130.º e 131.º do CPC (cfr., neste sentido, entre outros, os seguintes Acórdãos: do STJ de 13-07-2017, Pº 442/15.7T8PVZ.P1.S1, rel. FONSECA RAMOS e de 17-05-2017, proc. n.º 4111/13.4TBBRG.G1.S1, rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA; da Relação de Lisboa de 24-09-2020, Pº 35708/19.8YIPRT.L1, rel. INÊS MOURA e de 10-02-2022, Pº 7586/18.1T8ALM.L1-2, rel. LAURINDA GEMAS; da Relação de Guimarães de 10-09-2015, Pº 639/13.4TTBRG.G1, rel. MANUELA FIALHO e de 11-07-2017, P.º 5527/16.0T8GMR.G1, rel. MARIA JOÃO MATOS; da Relação do Porto de 07-05-2012, Pº 2317/09.0TBVLG.P1, rel. ANABELA CALAFATE e de 01-06-2017, Pº 35/16.1T8AMT-A.P1, rel. FILIPE CAROÇO; da Relação de Coimbra de 12-06-2012, Pº 4541/08.3TBLRA.C1, rel. ANTÓNIO BEÇA PEREIRA e de 13-09-2022, Pº 3713/16.1T8LRA.C3, rel. JOÃO MOREIRA DO CARMO).
Neste sentido, a pretensão de ampliação da matéria de facto para inclusão da factualidade invocada pela recorrente, já objeto de apreciação e de formulação de juízo probatório, a respeito de saber se o logradouro se incluía, ou não, no contrato de arrendamento, não apresenta alguma utilidade, porque não acarreta alguma alteração relativamente à factualidade essencial, a que se dirigiu o facto vertido na alínea b) dos factos não provados.
Assim, não se vislumbrando pertinência na impugnação da matéria de facto deduzida, soçobra, a gizada ampliação da matéria de facto nos termos preconizados pela recorrente.
*
D) Se deve ser incluído no rol dos factos provados que “Na inspeção ao local não se entrou para a garagem pelo portão da garagem, mas sim pelo interior do prédio dos Recorridos”, que “Na inspeção ao local os AA. Não abriram o portão da garagem” e que “Na inspeção a[o] local verificou-se que a garagem estava a ser usada pelos AA. como armazenamento de diversos bens”?
Entende ainda a apelante que “em face da inspeção ao local e da Digníssima Julgadora ter verificado que o portão da garagem se encontrava selado e que nem tão pouco foi aberto, tendo os Recorridos conduzido todos os intervenientes processuais através do interior do rés do chão do prédio urbano, deveria ter ampliado a matéria de facto e referir em outros três pontos da matéria de facto provada:
1. “Na Inspeção ao local não se entrou para a garagem pelo portão da garagem, mas sim pelo interior do prédio dos Recorridos”;
2. “Na inspeção ao local os AA. não abriram o portão da garagem”;
3. “Na inspeção a local verificou-se que a garagem estava a ser usada pelos AA. como armazenamento de diversos bens”” (cfr. ponto 38 da alegação de recurso).
Nos termos do artigo 662.º, n.º 1, do CPC, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Por seu turno, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, a Relação deve, ainda, oficiosamente:
“a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.”.
A respeito da ampliação da matéria de facto, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 861) que, relativamente a segmentos a decisão – imprescindíveis para a decisão da causa – que se revelem deficientes, obscuros ou contraditórios, a Relação poderá supri-los, desde que constem do processo (ou da gravação) os elementos em que o Tribunal se fundou. “Não sendo o caso, deve anular a decisão recorrida e remeter o processo para a 1.ª instância. Solução também prevista para os casos em que se mostre necessária a ampliação da matéria de facto que não possa ser de imediato assegurada. Quando estiver em causa a deficiente fundamentação da matéria de facto, a devolução do processo deve ser guardada para casos em que, além de serem efetivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova”.
No caso, na perspetiva da recorrente, está em questão a ampliação da matéria de facto, com a inclusão da matéria que indica, referente à inspeção ao local realizada em 09-06-2022.
Relativamente a essa diligência foi lavrado o auto que consta dos autos dando conta dos termos da diligência realizada.
A inspeção judicial tem por fim a perceção direta de factos pelo Tribunal, cujo resultado é por si livremente apreciado – cfr. artigos 390º e 391º do CC.
Sobre a finalidade da inspeção judicial estabelece o n.º 1 do artigo 490.º do CPC que:
“O tribunal, sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, e com ressalva da intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana, inspecionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, podendo deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando a entender necessária”.
A decisão de realizar uma inspeção judicial não constitui um poder discricionário, sendo suscetível de recurso (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03-11-2016, Pº 211/05.2TBARL-E.E1, rel. MÁRIO SERRANO), podendo a mesma ter lugar por iniciativa do juiz (o que “é expressão do poder-dever conferido ao juiz, em termos probatórios, genericamente consagrado no art.º 411º do mesmo normativo (com a epígrafe de “Princípio do inquisitório”)” – assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-10-2022, Pº 4322/21.9T8LRA-A.C1, rel. LUÍS CRAVO) ou na sequência de requerimento das partes para tal inspeção.
Nos termos do artigo 493.º do CPC, “Da diligência é lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para serem juntas ao processo”.
O auto de inspeção “deverá recolher o maior número possível de observações a serem consignadas pelo juiz, até mesmo porque não podem ser desconsiderados alguns fatores de excecional importância, sendo um deles o fato de que, para plena utilidade da sentença, convém, (e assim é pretensão da lei) que do auto lavrado conste tudo quanto for útil ao julgamento da causa, não devendo o juiz inspetor poupar informações por ele extraídas ao tempo da diligência. Por outro lado porque sempre terá que ser considerado que os fatos verificados também precisam de ser cientificados às partes, para que possam concordar ou discordar com o auto e com as conclusões judiciais (…)” (assim, Maria da Purificação Lopes de Carvalho; “A inspeção judicial: Contributos para uma melhor verificação ou interpretação dos factos”, in Datavenia – Revista Jurídica Digital, n.º 5, janeiro de 2016, p. 19, consultado em:
https://www.datavenia.pt/ficheiros/pdf/datavenia05.pdf).
No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-09-2018 (Pº 5547/16.4/8CBR.C1, rel. FALCÃO DE MAGALHÃES) abordou-se um caso em que teve lugar a inspeção judicial ao local, mas em que não foi realizado auto de tal inspeção. Teceram-se aí, a este propósito e do auto de inspeção, as seguintes considerações, cuja pertinência para a situação que nos ocupa, justifica a transcrição:
“(…) Este registo serve para as partes ficarem cientes daquilo que, na perspectiva do julgador, se pode constatar, ou não, no local inspeccionado, servindo, ainda, para relembrar o julgador, na ocasião em que procede à elaboração da decisão relativa à matéria de facto, daquilo que constatou na diligência, para o correlacionar com os restantes elementos probatórios, sendo, ainda, em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o elemento relativo a essa diligência que possibilita ao Tribunal “ad quem” aferir, em conjugação com os restantes elementos de prova, do acerto da valoração probatória de que resultou essa decisão.
A omissão do auto inspecção a que se reporta o art.º 493º do NCPC, ou dos elementos que esta disposição legal estabelece que nele fiquem registados, não tendo sanção especificamente expressa, integra a falta de observância de uma formalidade que a lei prescreve, consubstanciando, se tiver influência na decisão da causa, nulidade secundária submetida à regra geral do art.º 195º do CPC.
Não há dúvida que, realizada, como dão nota as actas das sessões de julgamento de 29-06-2017 e de 24-10-2017, a inspecção judicial, não se consignaram nessas actas os elementos que se tiveram como úteis à decisão da causa. E também é inquestionável que a Mma. Juiz do Tribunal a quo” entendeu existirem tais elementos e que estes assumiram relevo na decisão que proferiu quanto da matéria de facto, pois que neles estribou também essa decisão, como resulta da respectiva fundamentação.
Como se infere do disposto no referido art.º 493º, não substitui o “auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa” que a norma manda lavrar, as considerações que, sobre o observado na diligência, se teçam na motivação da decisão relativa à matéria de facto.
Concluindo-se, pois, que no caso em apreço, fundando, o observado através da inspecção, ainda que em conjugação com outras provas, a convicção que esteve na base da decisão proferida quanto à matéria de facto, a absoluta omissão do registo dos elementos a que se reporta o art.º 493º do NCPC, impossibilitando um cabal controlo da decisão de facto, assume clara influência na decisão da causa, consubstanciando, assim, como se disse já, a nulidade prevista no art.º 195º do NCPC.
Sob pena da respectiva sanação, a nulidade prevista no art.º 195º, n.º 1, do CPC, deve ser arguida pelo interessado, na ocasião em que seja cometida, caso este esteja presente (por si, ou pelo seu mandatário), ou no prazo de 10 dias a contar da data em que interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificado para qualquer termo dele, mas neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (art.ºs 195º, nº 1, 197º, nº 1, 199º, nº 1 e 149º, nº 1, do NCPC).
Aceita-se que não sendo habitual elaborar o auto de inspecção logo que terminada a diligência, às partes não fosse exigível arguir, nessa altura, a nulidade decorrente da aludida omissão. Contudo, seria normal que no decêndio subsequente a sessão de 24-10-2017, em que foram produzidas as alegações, os ilustres Mandatários das partes estivessem já em condições de verificar a omissão da acta de inspecção e, por conseguinte, de argui-la no prazo de 10 dias a contar dessa ocasião.
Porém, nem mesmo após ser-lhe notificada a sentença veio a Apelante, no aludido prazo de 10 dias ou, sequer, nas alegações do presente recurso, invocar tal nulidade, pelo que esta se sanou, não podendo deixar de se concluir, assim, que nada obsta à validade do contributo probatório da inspecção em causa, o que não significa que a omissão do registo que o art.º 493º manda fazer não deixe de ter repercussões processuais, como seja a da impossibilidade de esta Relação, por não ter acesso a todos os elementos de prova em que se fundou a convicção do Tribunal “a quo”, reapreciar o julgamento da matéria de facto.
Efectivamente, o entendimento acima expresso quanto à sanação da nulidade decorrente da falta de auto da inspecção judicial, que é, afinal, aquilo a que se reconduz a omissão, em auto, ou acta, do registo dos elementos a que se reporta o art.º 493º, não significa que a ausência desse auto seja inconsequente, já que a inacção das partes ao deixarem de reclamar a referida nulidade perante o Tribunal onde esta foi cometida - para que aí fosse possível suprir a omissão -, conduz a que, posteriormente, a Relação se veja impedida de proceder à cabal reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto (…)”.
De facto, como reafirmam, a respeito do “auto de inspeção”, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, pp. 593-594), “[a] omissão de tal auto ou a sua incompletude constituem nulidade secundária que deve ser arguida pela parte, sob pena de sanação (art.ºs 195.º, n.º 1 e 199.º, n.º 1; RC 1-4-20, 213/17, RP 18-2-19, 25/16 e RC 11-9-18, 5547/16). Sanada a nulidade, aquilo que o juiz declara ter observado in locu, na fundamentação da decisão de facto, valerá enquanto resultado da própria inspeção judicial (RP 2-12-08, 0826753)” (equiparando, no mesmo sentido, as situações de omissão do auto de inspeção e de omissão de inclusão no mesmo dos elementos úteis a que se refere o artigo 493.º do CPC, para além dos elementos referidos, vd. Maria da Purificação Lopes de Carvalho; “A inspeção judicial: Contributos para uma melhor verificação ou interpretação dos factos”, in Datavenia – Revista Jurídica Digital, n.º 5, janeiro de 2016, p. 20).
Ora, no caso em apreço, na inspeção judicial realizada pelo Tribunal, colheu-se um registo vídeo – com a elaboração de 4 vídeos – e elaborou-se auto de inspeção, que consta a fls. 86 e 87 dos autos.
A ausência de alguma menção no auto de inspeção que alguma das partes considerasse relevante tinha que ser arguida pelas partes no próprio ato onde se encontraram presentes ou nos 10 dias seguintes, em conformidade com o previsto no artigo 199.º, n.º 1, do CPC, o que, contudo não aconteceu, sendo certo que, pelo menos, com a notificação da sentença proferida, a ré tomou conhecimento ou poderia ter tomado conhecimento, agindo com a devida diligência, da falta de inclusão factual no auto de inspeção, o que afasta possibilidade de se conhecer de tal questão nesta sede.
De todo o modo, mesmo que assim não fosse, certo é que, visionados os vídeos realizados aquando da inspeção e tendo presente a motivação expressa na decisão recorrida, a respeito da alínea c) dos factos não provados, se verifica que inexiste algum motivo para incluir no rol dos factos provados, a matéria pretendida aí incluir pela recorrente.
É que, trata-se de matéria que não foi objeto de oportuna alegação pelas partes, não resultando dos articulados, respeitando, não, a qualquer facto essencial das pretensões das partes, mas sim, a factos decorrentes da diligência probatória efetuada, tendo exclusiva finalidade probatória.
Mas, mesmo que se considerasse que a aludida factualidade, decorrendo do conhecimento advindo ao Tribunal em virtude do exercício das respetiva funções – presidindo à diligência de inspeção que foi realizada – em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC – se encontra dispensada de prévia alegação pelas partes, ainda assim, o caráter meramente instrumental ou acessório de uma tal factualidade, não justifica, de algum modo, a ampliação da matéria de facto provada, por se estar perante um facto estritamente instrumental.
E, atenta a sua função – demonstrativa dos factos essenciais principais - dos termos em que foi expressa a motivação da decisão a respeito da alínea c) dos factos não provados, não se patenteia que, na decorrência da consideração da matéria pretendida ampliar pela ré, pudesse ser outra a conclusão alcançada pelo Tribunal a respeito da aludida alínea c), facto a que uma tal matéria se dirigia.
Refira-se, ainda, que o que ficou consignado na alínea c) dos factos não provados foi tão só a ausência de prova sobre duas circunstâncias: Terem os autores betumado a garagem e terem os autores unido a garagem ao edifício, circunstâncias que, de facto, não são postas em causa – ou seja, com sentido probatório demonstrativo de tal realidade – pela verificação de que não se entrou, na inspeção, para a garagem, pelo portão, nem foram demonstradas por qualquer outro meio de prova.
Em face do exposto, a impugnação de facto correspondente, soçobra, inexistindo motivo que justifique a ampliação da matéria de facto, nos termos preconizados pela recorrente.
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III) Da impugnação da decisão de direito:
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E) Se ocorreu abuso de direito dos recorridos?
Entende a recorrente (cfr. conclusão IX) das alegações de recurso) que: “A conduta dos Recorridos terá de funcionar como um ato de neutralização do seu direito, pois tendo verificado a Recorrente que aqueles abriram uma porta para aceder pela garagem pelo lado de dentro do imóvel, passaram a usar a garagem pelo lado de dentro, para ali colocarem os seus pertences, não mais tendo aberto o portão da garagem e tendo-o selado, e não tendo recebido a chave do logradouro da solicitadora que contratou para o efeito, criou-lhe a expectativa, ou convicção justificada, que não estava a impedir o uso da garagem, o que a levou a manter o carro no logradouro (…)”.
Considera a recorrente (cfr. conclusão X) das alegações de recurso) que a atitude dos recorridos é de má fé – “embora [os recorridos) tenham selado o portão da garagem, por terem decidido usarem-na apenas para guardar os seus pertences, e por isso se recusaram a receber a chave do portão do logradouro, fez com que a Recorrente deduzisse desse comportamento que na realidade não iriam utilizar a garagem através do acesso ao logradouro, mas sim, por dentro do imóvel, não tendo direito a ser indemnizados” – configurando um comportamento em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.
Vejamos:
Dispõe o artigo 334º do CC que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Comentando o referido preceito legal refere Almeida Costa (Direito das Obrigações; 5ª Ed., 1991, p. 65) que, “o nosso legislador aceitou a concepção objectiva do abuso de direito. Não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido. Basta que na realidade esse acto se mostre contrário. Exige-se, todavia, um abuso nítido: o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício. A lei refere-se ao exercício de direitos - o caso paradigmático de actuação do instituto. A sua letra, portanto, não abrange imediatamente quaisquer hipóteses de inércia ou omissão de exercício que possam também considerar-se abusivas. Mas parece que isso não deve constituir obstáculo insuperável, contanto que se encontrem soluções do segundo tipo clamorosamente ofensivas da boa fé, dos bons costumes ou do fim social e económico do direito (...)”.
Menezes Cordeiro (Da Boa-Fé no Direito Civil, 1997, pp. 717-718) sustenta que o artigo 334º do CC é o resultado codificado de uma série de regulações típicas de comportamentos abusivos, apreciados pela doutrina germânica.
Abordando de forma detalhada e completa o instituto do abuso de direito o mesmo Autor (no Tratado de Direito Civil Português; Vol. I, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 199 a 213) enuncia seis tipos característicos em que se pode manifestar o «abuso de direito», a saber:
- A “exceptio doli” (que permitia no Direito Romano deter uma posição jurídica do adversário, num caso, invocando o defendente a prática, pelo autor, de dolo no momento da formação da situação jurídica levada a juízo e, noutro, contrapondo o defendente o incurso do autor em dolo no próprio momento da discussão da causa);
- O “venire contra factum proprium” (ablação do brocardo latino “venire contra factum proprium nulli concidetur”, significando, que a ninguém é permitido agir contra o seu próprio acto, expressando a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assume comportamentos contraditórios);
- As “inalegabilidades formais” (consistente na alegação, em contradição com a boa fé, de invalidade derivada da inobservância da forma prescrita por lei para certos negócios);
- A “supressio” (posição jurídica que não tendo sido exercida durante certo tempo, não mais o pode ser, pois, tal exercício atenta contra a boa fé) e a “surrectio” (caso em que uma pessoa vê surgir na sua esfera jurídica, por força da boa fé, uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria);
- O “tu quoque” (expressão que visa cobrir os casos em que aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partida do violação exigindo, a outrem, o acatamento das consequências daí resultantes); e
- O “desequilíbrio no exercício” (ou seja, aquelas situações em que ocorre desequilíbrio no exercício de várias posições jurídicas, nos diversos casos em que tal desequilíbrio se pode manifestar: exercício danoso inútil; dolo agit qui petita quod statim redditurus est; e a desproporcionalidade).
O abuso do direito pressupõe a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto onde ele deve ser exercido (cfr. Castanheira Neves, Questão de Facto, Questão de Direito, I-513 e sgs.; Cunha de Sá, Abuso do Direito, Lisboa, 1973-451 e sgs.; A. Varela, Abuso do Direito, Rio de Janeiro, 1982 e Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., anot. ao art.º 334 CC; e Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3ª ed., p. 6).
O abuso do direito exige a alegação e prova de circunstâncias excepcionais relativas ao seu exercício, cujo ónus cabe ao demandado (art.ºs 334.º e 342.º CC).
O abuso de direito tem todas as consequências de um acto ilegítimo: Pode dar lugar à obrigação de indemnizar, à nulidade nos termos gerais do art.º 294.º do C.C., à legitimidade de oposição, ao alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade (cfr. Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 107.º, p. 25).
Antunes Varela sublinha que a condenação por abuso de direito “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado de aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, de direitos de certo tipo”, acrescentando que, a solução do art.º 334º do Código Civil só aponta para os casos de contradição manifesta (in R.L.J., Ano 128º, pág. 241).
Por seu turno, Castanheira Neves configura o abuso de direito como um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjectivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular que são ultrapassados (Questão-de-facto-questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade: ensaio de uma reposição crítica, Coimbra, 1968, p. 526, nota 46).
Segundo Coutinho de Abreu, “há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem” (Do Abuso de Direito, Almedina, Coimbra, 1999, p. 43).
Para Baptista Machado, o juiz tem de decidir primeiro a questão de saber se o direito invocado existe ou não e só no caso de concluir pela sua existência (não o caso inverso) lhe é lícito apreciar o exercício abusivo do mesmo direito (in Parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano IX, t. 2, p. 17).
Refere a recorrente que deduziu que os recorridos não iriam utilizar a garagem através do acesso ao logradouro (mas sim, por dentro do imóvel), porque os recorridos selaram o portão da garagem e passaram a utilizá-la para guardar os seus pertences, recusando-se a receber a chave do portão do logradouro.
Ora, cumpre referir que, ao invés do pressuposto pela recorrente, não resultou provado que os recorridos tenham “selado” (ou betumado) o portão da garagem, nem que, por outra parte, tenha ocorrido alguma união da garagem ao edifício (cfr. alínea c) dos factos não provados). Tal ausência de demonstração probatória, não permite, de algum modo, edificar a construção laboriosa em que a recorrente procura sustentar o abuso de direito da contraparte.
De facto, conforme se salientou, com integral clareza, na motivação da decisão de facto da decisão recorrida (a fls. 95vº dos autos), a ré tinha invocado que a garagem existente não estava a ser utilizada como tal, tendo até perdido aptidão para utilização como garagem, por estar afeta a finalidades habitacionais e se encontra betumada, o que foi contraditado pelos autores, designadamente, em face das declarações prestadas pelo autor CR, não se tendo, contudo, realizado que foi o julgamento de facto, apurado que a garagem se encontrasse afeta a finalidades habitacionais, nem que esteja “inapta para ser usada como garagem, uma vez que as massas vedantes sempre podem ser removidas”, aí se explicando a clara diferença entre utilização da garagem e interesse (aptidão ou possibilidade) na sua utilização para tal fim (“lugar coberto, geralmente fechado, que serve para abrigo de automóveis” – assim, "garagem", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/garagem) constituem situações diversas.
Por outro lado, conforme assinala (Manuel Carneiro da Frada; Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil; Almedina, 2007, p. 467), é indiscutível que “nas exigências de probidade, lisura e correcção de condutas que a boa fé traduz cabe a de não criar ou acalentar indevidamente exceptactivas de outrem, bem como prevenir a formação ou manutenção de representações falsas, temerárias ou infundadas em outrem (ou o respectivo risco). Nesta veste, a regra da boa fé credibiliza a formação e perduração das expectativas. Promove ou assegura espaços de confiança, pois determina precaver o sujeito do que não de ou não é curial esperar. (…).
A responsabilidade por violação desta vertente da boa fé não se traduz, em rigor, numa responsabilidade pela frustração de expectativas. Aquilo que se censura ao sujeito é apenas, propriamente, a criação ou manutenção indevida de uma confiança alheia (…)”.
Ora, no caso dos autos, nenhuma circunstância – nem a isso levando sequer a colocação de vedante (silicone) à volta do portão da garagem – poderia gerar na ré alguma fundada expectativa no sentido de que os autores jamais iriam utilizar o espaço da garagem para a finalidade a que mesmo se destina, isso não se podendo intuir da circunstância de aí presentemente – pelo menos, à data da realização da inspeção ao local – não terem os autores algum veículo e de aí se encontrarem diversos outros bens guardados na garagem.
Não resulta demonstrado, por qualquer modo, que os autores tenham desencadeado na ré alguma expectativa no sentido de que prescindiriam de utilizar a garagem – espaço relativamente ao qual, inclusive, tinham antes litigado com a ré – para a sua finalidade de guarda de veículos, o que não se infere da circunstância de terem os autores aí depositados outros bens e de o portão da garagem se encontrar vedado com um material que impede a abertura desse portão, sem que seja previamente retirado tal material, não se tendo, ademais, apurado que tenha existido qualquer ligação da garagem ao restante imóvel dos autores.
Também a factualidade provada em 14 a 17 não permite, por qualquer forma, fazer intuir que os autores renunciaram a utilizar a garagem e, muito menos, que, relativamente a um eventual impedimento da ré no acesso de veículos a tal espaço, os autores prescindiriam de exigir alguma indemnização relativamente à atuação da ré.
Conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2022 (Pº 6816/18.4T8GMR.G1.S1, rel. TIBÉRIO NUNES DA SILVA), “[a] privação do uso de um prédio urbano (…) de quem, não tendo título legítimo para o ocupar, persiste nessa actuação, mesmo depois de interpelado para o entregar, representa para os proprietários um dano autónomo. Do facto de não terem provado a vontade de arrendar o prédio não deve retirar-se que os autores não pretendam dele extrair, como bem entenderem, na qualidade de proprietários, as utilidades que aquele estará em condições de lhes facultar, não se tendo provado qualquer circunstância que, não fora a ocupação que se vem registando, revele que não o possam levar a efeito”.
Pode sintetizar-se o referido, formulando as seguintes proposições conclusivas:
- Não ocorre abuso do direito dos autores a exigirem a indemnização que peticionaram, se não resultou demonstrado que os autores desencadearam na ré alguma expectativa no sentido de que prescindiriam de utilizar a garagem – espaço relativamente ao qual, inclusive, tinham antes litigado com a ré – para a sua finalidade de guarda de veículos, o que não se infere da circunstância de terem os autores aí depositados outros bens e de o portão da garagem se encontrar vedado com um material que impede a abertura desse portão, sem que seja previamente retirado tal material, não se tendo, ademais, apurado que tenha existido qualquer ligação da garagem ao restante imóvel dos autores;
- A impossibilidade de utilização da garagem pelos autores para aí colocarem veículos, em razão de a ré ter colocado um veículo no único caminho de acesso à entrada de tal garagem, que ali mantém, constitui um dano indemnizável decorrente da aludida impossibilidade de os autores acederem de tal modo ao bem de sua propriedade, não se tendo demonstrado que o logradouro se mostre incluído no arrendamento de que a ré é inquilina.
Em suma, não se verifica qualquer exercício abusivo no direito dos autores exigirem a indemnização que peticionaram, pelo que, improcedem as conclusões aduzidas, em contrário, pela recorrente.
*
F) Se a indemnização deverá calcular-se à razão de €80,00 mensais?
Concluiu ainda a recorrente o seguinte:
“XII -Todavia ainda que o tribunal ad quem considere que a Recorrente terá de liquidar uma indemnização aos Recorridos, o que só por mera hipótese académica aqui se coloca, a indemnização a atribuir, com base na equidade (art.º 566°, n° 3 do CC), pode funcionar como critério de referência o valor locativo do imóvel, porém neste caso em concreto a mesma teria de ser inferior ao valor locativo, considerando todas os comportamentos dos Recorridos que se qualificam como de venire contra factum proprium, e que se traduziram no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento anterior assumido.
XIII - Além do mais, a referida indemnização tem de ter em conta que os Recorridos sempre estiveram a utilizar a garagem para colocação de diversos bens que ali se encontram guardados, por isso, no mínimo ter-se- á de ter em conta a diferença entre o valor daquele espaço para arrendamento de armazém a descontar do valor em termos de arrendamento para garagem, isto porque, os Recorridos não se viram privados do uso da garagem, (pois que a usam como armazém), quanto muito, viram-se privados, segundo alegam, de não poderem usar aquele espaço como garagem.
XIV- Considerando, in casu, que a garagem nunca deixou de ser utilizada pelos Recorridos, que desde 1992 nunca mais abriram a porta da garagem, entrando e utilizando o seu espaço como armazém, pelo interior da fração correspondente ao 1° andar, e considerando que a Recorrente lhes quis entregar as chaves - conforme se infere pelos factos 16. e 17. dados como provados -, perante tal circunstancialismo, e com recurso à equidade, mesmo que se considere que a Recorrente deve pagar uma indemnização, o valor atribuído é muito exagerado, afigurando-se como mais adequado o valor de € 80,00 mensais”.
Vejamos:
Invocaram os autores que a ocupação do espaço por parte da ré com a sua viatura, impedindo o acesso à garagem lhes causou prejuízos, que devem ser reparados pela condenação ao pagamento de uma indemnização correspondente ao valor de utilização da garagem, tendo calculado a indemnização de 1992 a 2019, no valor global de €53.100,00, sendo, nos anos de 1992 a 2000 à razão de €100,00 por mês, nos anos de 2000 a 2008 à razão de €150,00 por mês, nos anos de 2009 a 2015 à razão de €200,00 por mês e nos anos de 2015 a 2019 à razão de €250,00 por mês (cfr. artigo 16.º a 18.º da p.i.).
A decisão recorrida, apreciando a pretensão indemnizatória dos autores, concluiu o seguinte:
“2. Peticionam também os AA. a condenação da R. no pagamento de indemnização decorrente dos prejuízos sofridos pela ocupação ilícita do logradouro, que se traduzem no impedimento de utilização da garagem.
Foi salientado, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.11.1991 (in BMJ, 411, 559), que "na acção de reivindicação definida no art.º 1311º do CC pede-se o reconhecimento do direito de propriedade e a restituição da coisa, nada impedindo, no entanto, que ao abrigo das regras válidas no domínio do direito processual civil (art.º 470º do CPC) o autor junte aos dois pedidos referidos no art.º 1311º um pedido de indemnização".
Como refere Abrantes Geraldes (Temas da Responsabilidade Civil, I vol., Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2ª ed., pág. 55), ainda que não esteja demonstrado um prejuízo concreto, decorrente da privação do uso de imóvel, deve ser fixada indemnização, com base na mera circunstância do bem em causa ter estado indisponível, com base no princípio de que a simples privação do uso é “causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património”.
De igual modo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.11.2004 (Processo nº 1386/04, in http://www.dgsi.pt/) considerou-se que o dano da privação de uso não é um dano abstrato, pois é representado pela impossibilidade objetiva de fruição de um bem por determinado período de tempo, a qual é irreversível e não suscetível de reconstituição natural, sendo, por isso, indemnizável.
Esse ressarcimento deve ser feito, na situação em que não estejam provados prejuízos concretos, e não seja por isso possível averiguar o valor exato do dano, com base na equidade (art.º 566º, nº 3 do CC), podendo funcionar como critério de referência o valor locativo do imóvel.
Aliás, tal critério encontra um lugar paralelo no art.º 1045º do CC, onde se prevê que o arrendatário pague uma indemnização ao senhorio pela ocupação indevida do prédio, após a cessação do contrato de arrendamento, a calcular com base no valor das rendas, pelo facto deste corresponder ao valor de uso do prédio (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.06.1997, in CJ, 1997, II, 225).
Têm, pois, os AA. o direito a uma indemnização, por estar demonstrado que a ocupação que a R. tem vindo a fazer do logradouro impede a utilização da sua garagem.
Pese embora os AA. calculem essa indemnização com referência à data de 1992, na qual, judicialmente, se procedeu à entrega da garagem, atendendo a que nessa Sentença não se abordou especificamente o assunto do logradouro, entendemos que deve ser aqui considerada a data da primeira interpelação expressamente destinada a obter a desocupação do logradouro, o que nos remete para a carta dirigida à R. a 14.12.2016.
Assim, a indemnização deve ser estimada desde 19.12.2016, correspondente ao terceiro dia útil posterior ao envio da carta, no qua[l] se presume a sua receção (art.º 249º, nº 1 do CPC, por analogia), até à efetiva restituição da posse do logradouro aos AA..
Finalmente, atenta a matéria de facto provada a este respeito, deve a indemnização ser calculada à razão mensal de € 250,00.”.
Apreciando:
O artigo 483º do Código Civil estabelece que: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação”.
Depois, o art.º 563.º do mesmo Código refere que: “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
E, do artigo 562.º do Código Civil decorre que o obrigado deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Assim, o montante da indemnização deve corresponder aos danos causados, sendo que essa indemnização visa, em primeira linha, a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o resultado que obriga à reparação (reconstituição natural) ou, não sendo isso possível (não levar à reparação integral dos danos, ou tornar a reparação excessivamente onerosa), a indemnização deverá ser fixada em dinheiro (art.º 566º nº 1, do Código Civil).
Em caso de indemnização em dinheiro, deverá atender-se à medida que o artigo 566º, nº 2, do Código Civil estabelece: a da diferença entre a situação do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data, se não existissem danos, considerando, ainda, os demais critérios que os artigos 564º a 566º do Código Civil estabelecem.
O dano indemnizável compreende, nos termos do art.º 564.º do Código Civil, quer os danos emergentes (perda ou diminuição de valores já existentes no património do lesado) quer os lucros cessantes (acréscimo patrimonial que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito mas a que, ainda não tinha direito à data da lesão – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 8ª ed., 1994, p. 610).
Igualmente, são de atender quer os danos presentes quer os danos futuros (aqueles que ainda não existem à data da fixação da indemnização), mas estes, apenas se forem previsíveis; contudo se não forem determináveis a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (cfr. nº 2, do mencionado artigo 564.º do Código Civil).
Por outro lado, são também de atender, quer os danos patrimoniais (os que refletem interesses económicos), quer os danos não patrimoniais ou morais (que refletem interesses morais, espirituais ou ideais).
António dos Santos Abrantes Geraldes (Temas da Responsabilidade Civil, I Vol. – Indemnização do Dano da Privação do Uso; Almedina, Coimbra, 2ª Ed., 2005, p. 27 e ss.) aborda exaustivamente a questão do dano da privação do uso, enunciando as diversas posições doutrinárias e jurisprudenciais que sobre a temática têm sido consideradas:
1) A orientação que nega a autonomia do dano decorrente da privação do uso (integrando-o no âmbito dos danos de natureza não patrimonial – vd., v.g., o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-02-2000, in BMJ 494.º, p. 396);
2) A orientação que reconhece a autonomia do dano da privação do uso, mas que exige a prova efectiva da existência de prejuízos de ordem patrimonial (vd., neste sentido, o Acórdão do STJ de 18.11.2008, Pº 08B2732, relator PEREIRA DA SILVA; o Acórdão do STJ de 16-03-2011, Pº 3922/07.2TBVCT.G1.S1, relator MOREIRA ALVES; o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 03-05-2011, Pº 2618/08.6TBOVR.P1; o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-12-2012, Processo 132/04.6TBRMR.L1-6, relatora ANABELA CALAFATE; o Ac. do TRP de 25-02-2014, relator RUI MOREIRA; o Ac. do TRP de 19-12-2012, relator IGREJA MATOS; o Acórdão do STJ de 12-01-2012, relator FERNANDO BENTO; o Acórdão do STJ de 04-05-2010, relator SEBASTIÃO PÓVOAS; o Acórdão do TRC de 02-02-2010, relator GONÇALVES FERREIRA; o Acórdão do STJ de 19-11-2009, relator HÉLDER ROQUE; o Acórdão do TRC de 08-09-2009, relator ARTUR DIAS; e o Acórdão do STJ de 06-11-2008, relator SALVADOR DA COSTA); e
3) A orientação que reconhece o direito de indemnização com fundamento na simples privação do uso normal do bem.
O referido Autor (ob. Cit., pp. 72-73), depois da análise que efectua, elenca as proposições que refere extrair de tal análise, relativamente à indemnização por privação do uso de um bem, nos seguintes termos:
“a) Provando-se a existência de prejuízos efectivos decorrentes da imobilização de um veículo, designadamente por causa de actividades que deixaram de ser exercidas, de receitas que deixaram de ser auferidas ou de despesas acrescidas, terá o lesado o direito de indemnização de acordo com a aplicação directa da teoria da diferença, considerando não apenas os danos emergentes como ainda os lucros cessantes.
b) Tratando-se de veículo automóvel de pessoa singular ou de empresa utilizado como instrumento de trabalho ou no exercício de actividade lucrativa, a existência de um prejuízo material decorre normalmente da simples privação do uso, independentemente da utilização que, em concreto, seria dada ao veículo no período de imobilização, ainda que o veículo tenha sido substituído por outro de reserva;
c) Mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexista prova de qualquer utilização lucrativa, não está afastada a ressarcibilidade dos danos, tendo em conta a mera indisponibilidade do bem, sem embargo de, quanto aos lucros cessantes, se apurar que a paralisação nenhum prejuízo relevante determinou, designadamente, por terem sido utilizadas outras alternativas menos onerosas e com semelhante comodidade, ou face à constatação de que o veículo não era habitualmente utilizado;
d) Em qualquer das situações, sem prejuízo do recurso à equidade ou mesmo à condenação genérica, a quantificação tanto dos danos emergentes como dos lucros cessantes será feita tomando em consideração todas as circunstâncias que rodearam o evento, nomeadamente a natureza, o valor ou a utilidade do veículo, os reflexos negativos na esfera do lesado ou aumento das despesas ou a redução das receitas;
e) Em todos os casos serão sempre ponderados os princípios da boa fé, tal como o modo como o responsável e o lesado agiram na resolução do caso”.
Efectivamente, não custa compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património, que possa servir de base à determinação da indemnização.
Como propõe o referido Autor (ob. Cit., p. 57), nos casos em que a utilização de um veículo constitua um simples meio de transporte, para a efectivação de quaisquer deslocações, mesmo de lazer, não está afastada, à partida, a ressarcibilidade do dano emergente da privação do uso do veículo, havendo, quanto aos lucros cessantes que apurar se a paralisação determinou algum ou nenhum prejuízo, pela existência de alternativas menos onerosas ou com semelhante comodidade ou caso se demonstre que o veículo – danificado – não era habitualmente utilizado.
Com efeito, “(…) o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação do bem. Neste contexto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores da ajustada indemnização” (Aut. Cit.; ob. Cit., pp. 57-58).
Em igual sentido, Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, Volume I, 4.ª Edição, p. 317) refere que “o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano”.
Isso mesmo foi afirmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-12-2017 (processo 1817/16.0T8LSB.L1-2, relatora ONDINA CARMO ALVES): “A privação do uso de um veículo sinistrado constitui um dano patrimonial indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao seu proprietário optar livremente entre utilizá-lo ou não, porquanto a livre disponibilidade do bem é inerente àquele direito constitucionalmente consagrado no artigo 62.º da CRP e que pode ser economicamente valorizável, se necessário com recurso à equidade”.
Também, no acórdão do STJ de 12-01-2010 (Pº 314/06.6TBCSC.S1) se decidiu que: “O proprietário privado por terceiro do uso de uma coisa tem, por esse simples facto e independentemente da prova cabal da perda de rendimentos que com ela obteria, direito a ser indemnizado por essa privação, indemnização essa a suportar por quem leva a cabo a privação em causa.  A privação do uso do veículo constitui um dano indemnizável, por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao proprietário optar livremente entre utilizá-lo ou não, porquanto a livre disponibilidade do bem é inerente àquele direito constitucionalmente consagrado (art.º 62.º da CRP)
De igual modo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-02-2014 (Processo 889/11.8 TBSSB.L1-6, relator CARLOS MARINHO) se concluiu que:
“O dano pela privação de uso de veículo é indemnizável no caso de perda total do mesmo, tal como acontece quando há lugar à reparação. A simples privação do uso do veículo automóvel é suficiente para fundar o direito a indemnizar, pois trata-se de um dano autónomo com valor pecuniário, que priva o respectivo titular da disponibilização do mesmo, não sendo assim necessária a prova de quaisquer outros factos (nomeadamente a ocorrência de danos concretos ou o destino dado habitualmente ao veículo) e sendo, nesse caso, o montante indemnizatório fixado com recurso à equidade”.
Entende-se, na realidade, que a privação do uso de um bem é suscetível de constituir, por si, um dano patrimonial, visto que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que, de acordo com o preceituado no artigo 1305º do Código Civil, é lícito ao proprietário gozar, i.e., o uso e fruição da coisa.
A supressão dessa faculdade, impedindo o proprietário de extrair do bem, todas as suas utilidades, constitui, juridicamente, um dano que tem uma expressão pecuniária e que, como tal, deverá ser passível de reparação.
A jurisprudência, embora não unânime, como se viu, tem alinhado neste sentido. Vejam-se, exemplificativamente:
- Ac. STJ de 08-05-2013, relatora MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA;
- Ac. STJ de 12-01-2010, relator PAULO SÁ;
- Ac. STJ de 06-05-2008, relator URBANO DIAS;
- Ac. STJ de 05-07-2007, relator SANTOS BERNARDINO;
- Ac. STJ de 25-09-2018, Processo 2172/14.8TBBRG.G1.S1, relator ROQUE NOGUEIRA;
-Ac. TRL de 12-10-2006, Pº 6600/2006-6, relator OLINDO GERALDES;
- Ac. TRL de 21-05-2009, Pº 1252/08.3TBFUN.L1;
- Ac. TRL de 15-12-2011, Pº 1470/09.4TCNT-L1-8;
- Ac. TRL de 11-10-2012, Pº 3525/09.9TBCSC.L1;
- Ac. TRL de 29-09-2016, Processo 1108/08.0TBMTJ.L1.-2, relator JORGE LEAL;
-Ac. TRL de 13-10-2016, Pº 640/13.8TCLRS.L1-2;
- Ac. TRL de 11-05-2017, Pº 350/12.3TVLSB.L1-2;
- Ac. TRL 25-05-2017, Pº 12795/15.2T8ALM.L1-2;
- Ac. TRL de 27-02-2014, relator CARLOS MARINHO;
- Ac. TRL de 27-02-2014, relator TIBÉRIO SILVA;
- Ac. TRL de 06-12-2012, relatora MARIA DE DEUS CORREIA;
- Ac. TRL de 12-07-2018, processo 3.664/15.T8VFX.L1-6, relator MANUEL RODRIGUES
-Ac. TRC de 11-03-2008, relator VIRGÍLIO MATEUS;
-Ac. TRC de 24-06-2014, relator ARILINDO OLIVEIRA;
-Ac. TRC de 23-02-2010, relator CARLOS QUERIDO;
-Ac. TRP de 17-03-2011, relator FREITAS VIEIRA;
- Ac. TRP de 13-10-2009, Pº 3570/05.3TBVNG.P1;
-Ac. TRP de 30-06-2014, relator MANUEL DOMINGOS FERNANDES;
-Ac. TRP de 26-09-2013, relator ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA;
- Ac. TRP de 21-02-2018, Pº 1069/16.1T8PVZ.P1, relator FILIPE CAROÇO;
- Ac TRP de 14-05-2013, relatora ANABELA DIAS DA SILVA;
- Ac. TRG de 17-01-2013, relator ANTÓNIO SOBRINHO;
- Ac. TRG de 11-07-2013, relatora ROSA TCHING;
- Ac. TRG de 14-09-2010, relatora ISABEL FONSECA;
- Ac. TRE de 22-03-2018, pº 1234/17.4T8STB.E1, relatora ANA MARGARIDA LEITEÃO;
-Ac. TRE de 20-01-2010, relator ACÁCIO NEVES;
-Ac. TRE de 25-09-2008, relator PIRES ROBALO; e
- Ac. TRE de 21-06-2011, relator JOÃO GOMES DE SOUSA.
No caso vertente, provado ficou que a ré é arrendatária do 1.º andar do prédio sito na Rua …, n.º …, Costa da Caparica, Almada, destinando-se tal parte arrendada para habitação, arrendamento que se mantém (cfr. factos provados n.ºs. 1 a 4).
Mais se apurou que a ré ocupa o espaço exterior do prédio, correspondente ao logradouro do mesmo, com uma viatura, o que acontece contra a vontade dos autores, ocupação essa que impede o acesso dos autores à sua garagem (cfr. factos provados n.ºs. 7 a 9).
O valor locativo médio de uma garagem idêntica à dos autores é de € 250,00 mensais (cfr. facto provado n.º 10).
Ora, importa referir que o facto provado n.º 10 não foi, por qualquer modo, impugnado ou posto em causa pela recorrente, estando, pois, demonstrado o valor locativo médio mensal de uma garagem como a dos autos.
Coloca a recorrente em questão o valor indemnizatório fixado, dizendo que, não obstante se poder partir do valor locativo, em concreto, a indemnização teria que ser inferior (calculando o valor mensal da mesma em € 80,00) atendendo a:
a) “todas os comportamentos dos Recorridos que se qualificam como de venire contra factum proprium, e que se traduziram no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento anterior assumido”;
b) “que os Recorridos sempre estiveram a utilizar a garagem para colocação de diversos bens que ali se encontram guardados, por isso, no mínimo ter-se- á de ter em conta a diferença entre o valor daquele espaço para arrendamento de armazém a descontar do valor em termos de arrendamento para garagem, isto porque, os Recorridos não se viram privados do uso da garagem, (pois que a usam como armazém), quanto muito, viram-se privados, segundo alegam, de não poderem usar aquele espaço como garagem”; e
c) “que a garagem nunca deixou de ser utilizada pelos Recorridos, que desde 1992 nunca mais abriram a porta da garagem, entrando e utilizando o seu espaço como armazém, pelo interior da fração correspondente ao 1° andar, e considerando que a Recorrente lhes quis entregar as chaves”.
Vejamos:
Quanto ao argumento constante da alínea a), o mesmo não procede, pois, como se viu, não resultou demonstrado alguma situação de abuso de direito dos autores.
Quanto ao expendido na alínea b) acima referenciada, tal invocação não é igualmente procedente, pois, a utilização de uma garagem, se bem que possa (desde logo, tendo em conta a natureza ampla do espaço em questão) comportar a utilização (inclusão em depósito) de outros bens que não um veículo, certo é que, em primeira linha, se destina a guardar ou depositar um veículo (automóvel, motorizada, barco, etc.), utilização essa que, de facto, se encontra a ser impedida, por via da colocação/interposição do veículo automóvel da autora no logradouro de acesso à dita garagem.
Finalmente, do mesmo modo, o argumento expendido na alínea c) não é procedente, pois, embora os recorridos tenham alguns bens na garagem, certo é que, a interposição do veículo da ré no caminho de acesso à garagem, não permite aos autores usufruir, de modo pleno, das utilidades inerentes ao seu direito de propriedade sobre a garagem, nomeadamente aí colocando algum veículo, o que impossibilita a retirada dessas utilidades pelos autores.
É que, conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24-03-2022 (Pº 2924/20.0T8BRG.G1, rel. ANA CRISTINA DUARTE), “a perda da possibilidade de utilização do bem quando e como lhe aprouver tem valor económico devendo recorrer-se para o cálculo da correspondente indemnização à equidade, por não ser possível avaliar o valor exato dos danos”.
Apurada a privação de uso e bem assim o valor locativo de uma garagem de moldes semelhantes à dos autos, verifica-se que o juízo de equidade levado a efeito pelo Tribunal recorrido não se mostra desadequado, dado situar no valor médio de locação (critério que foi também o utilizado no referido Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24-03-2022) do espaço cuja utilização não foi proporcionada pela ré, o da compensação devida pelo prejuízo sofrido pelos autores, na decorrência de uma tal atuação.
Improcedem, pois, as conclusões em contrário tecidas pela ré.
*
G) Se o termo inicial da indemnização deve corresponder ao da definição judicial de que o logradouro não faz parte do contrato de arrendamento?
Na motivação das respetivas alegações de recurso, a recorrente conclui, ainda, que o início da contagem do valor devido a título de indemnização pela privação do não uso da garagem deve correspondente ao da definição judicial de que o logradouro não faz parte do contrato de arrendamento:
“57. Entende a Recorrente que se até à prolação da douta sentença nada no direito se poderia retirar que não tinha direito a usar o logradouro e que, o mesmo não fazia parte do contrato de arrendamento, qualquer decisão de indemnização teria de ter o seu início a partir do momento que fosse definido, judicialmente, que o logradouro não faz parte do contrato.
58. Além do mais nunca poderia ser desde 2016, pois em 2016 na carta enviada à Recorrente, os Recorridos não pediram a chave do portão do logradouro, mas sim a chave do portão da garagem que já tinham desde 1992”.
Considerando-se que este Tribunal não se encontra limitado nos seus poderes de cognição, quanto às alegações das partes, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. artigo 5.º, n.º 3, do CPC), importa aferir desde quando deve ser contabilizada a indemnização.
No caso dos autos, não obstante a decisão recorrida aludir a que “deve ser aqui atendida a data da primeira interpelação expressamente destinada a obter a desocupação do logradouro, o que nos remete para a carta dirigida à R. a 14.12.2016” e de o Tribunal recorrido ter presumido, por analogia, com o disposto no artigo 249.º, n.º 1, do CPC, que a referida carta foi rececionada pela ré em 19-12-2016, certo é que, se nos afigura que os elementos disponíveis nos autos não permitem concluir de tal forma.
Na realidade, conforme resulta do disposto no artigo 805.º do CC, o devedor só fica constituído em mora (situação que, nos termos do n.º 1 do artigo 804.º do CC, “constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor”), depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir (n.º 1).
A mora do devedor é independente de interpelação, nomeadamente, no caso de a obrigação provir de facto ilícito (cfr. artigo 805.º, n.º 2, al. b) do CC), o que sucede no caso em que está em questão responsabilidade civil por facto ilícito.
Todavia, de acordo com o n.º 3 do artigo 805.º do CC, se o crédito for ilíquido, não haverá mora enquanto o mesmo não se tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor, mas, tratando-se de responsabilidade por facto ilícito (ou pelo risco), o devedor entra em mora desde a citação (a não ser que já ocorra mora, nos termos da primeira parte do n.º 3 do artigo 805.º do CC).
“A primeira parte do n.º 3 vem reproduzir a regra in iliquidis non fit mora: perante a iliquidez do crédito, em virtude da indeterminação do seu conteúdo, estabelece este normativo que não há mora. O fundamento e acerto desta solução residem na consideração de que, sendo o crédito ilíquido, não se pode, em princípio, considerar o atraso imputável ao devedor por não ser razoável exigir-lhe «que ele cumpra, enquanto não souber qual o montante ou o objecto exacto da prestação que lhe cumpre realizar» (PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, 1997: 65)” (assim, Maria da Graça Trigo/Mariana Nunes Martins em anotação ao artigo 805.º do CC, no Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral; Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 1131).
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-01-2011 (Pº 2971/05.1TBCLD.L1-7, rel. MARIA DO ROSÁRIO MORGADO), “sendo o crédito ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, excepto se a falta de liquidez for imputável ao devedor.  A imputação em causa tem de ser apreciada caso a caso, podendo assentar em qualquer conduta demonstrativa da omissão das diligências adequadas à regularização do sinistro em prazo razoável, nomeadamente omissão de deveres principais ou acessórios tais como desinteresse ou falta de colaboração com o credor no sentido do apuramento dos contornos do sinistro e do montante da indemnização e, em geral, a negligência”.
Assim, no caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, em princípio o devedor constitui-se em mora desde a citação, só assim não acontecendo se o devedor estiver nessa altura em mora, por a falta de liquidez lhe ser imputável ou, evidentemente, caso o crédito já se tenha tornado liquido (cfr., Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03-10-2006, Pº 497/2000.C1, rel. GARCIA CALEJO).
Ora, no caso em apreço, muito embora não nos pareça que a conduta ilícita da ré tenha relação com a necessidade de definição que a mesma refere sobre a inclusão ou não do logradouro no contrato de arrendamento, certo é que, não se verifica que a iliquidez relativamente ao montante da indemnização seja imputável à ré, no sentido de a mesma ter impedido ou inviabilizado, de algum modo, a determinação quantitativa do direito indemnizatório dos autores, pelo que, neste ponto, mostra-se de proceder a apelação, devendo a indemnização contabilizar-se desde a citação da ré (ocorrida a 27-12-2019 – cfr. fls. 14) para a presente ação.
*
H) Se deve a ré ser condenada como litigante de má fé?
Finalmente, concluem os recorridos, em sede de contra-alegações, no sentido de que a fundamentação e as conclusões do recurso da apelante se mostram viciadas, revelando a ré “um total desrespeito do tribunal pelas ilações apresentadas devendo se ser condenada em má fé e pagar uma justa indeminização nomeadamente os honorários do advogado dos autores que se estima em 5.000€”.
Vejamos:
O artigo 8.º do CPC enuncia que “as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado” no artigo 7.º do mesmo Código.
“A litigância de má-fé surge (…) como um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais” (assim, Menezes Cordeiro; Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa «In Agendo», 2006; Almedina, 2006, p. 26, nota 2).
A particular gravidade que assume o abuso processual acontece porque lesa, não apenas a contra-parte, mas, devido ao carácter publicístico do processo, também e sobretudo, a própria administração da Justiça.
Nesta linha e conforme bem se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2021 (Pº 1255/13.6TBCSC-A.L1-A.S1, rel. LUIS ESPÍRITO SANTO), “a litigância processual exige responsabilidade, probidade e prudência, não sendo aceitável ou admissível a utilização desenfreada e sem critério de todos os meios e expedientes de que a parte se lembre para a prossecução e obtenção dos fins que a possam favorecer”.
O artigo 542.º do CPC censura três comportamentos substantivos contrários à boa fé e um comportamento processual do litigante violador da boa fé devida:
A conduta substantiva sancionável pode consistir:
1) Na dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento se não deva ignorar (artigo 542.º, n.º 2, alínea a));
2) Na alteração da verdade dos factos ou na omissão de factos relevantes para a decisão da causa (artigo 542.º, n.º 2, alínea b));
3) Na grave omissão do dever de cooperação (artigo 542º, n.º 2, alínea c)).
Em termos de atuação processual sanciona-se o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, por qualquer das partes, a fim de:
i) conseguir um objetivo ilegal;
ii) impedir a descoberta da verdade; ou
iii) protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (artigo 542, n.º 2. alínea d)).
A delimitação da responsabilização por litigância de má fé impõe sempre uma apreciação casuística sobre a integração dos comportamentos sinalizados no âmbito de alguma das previsões contidas no mencionado n.º 2 do artigo 542.º.
E, um dos aspetos mais relevantes na concretização dos tipos legais previstos no n.º 2 do artigo 542.º do CPC “encerra-se no facto de o tribunal, a fim de conhecer da má fé do litigante, atender, não a atos processuais isolados, mas à integralidade do comportamento da parte” (assim, Paula Costa e Silva; Responsabilidade por Conduta Processual; Almedina, 2022, p. 342).
A ilicitude pressuposta pela litigância de má-fé distancia-se da ilicitude civil (artigo 483º CC) não apenas porque se apresenta como um ilícito típico (descrevendo-se no artigo 542.º do CPC, analiticamente, as condutas que o integram), mas também porque, ao contrário do que sucede com o ilícito civil, se encontra dependente da verificação de um elemento subjectivo, sem o qual o comportamento da parte não pode ser tido como típico e, consequentemente, como ilícito, aproximando-se nesta medida muito mais do ilícito penal (assim, Paula Costa e Silva; A litigância de má-fé, Almedina, 2008, p. 620).
O litigante tem de atuar imbuído de dolo ou culpa grave. O elemento subjetivo será então considerado não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade.
Releva a má-fé subjetiva - quando a parte que atua de má-fé tem consciência de que lhe não assiste razão - e, em face das dificuldades em apurar a verdadeira intenção do litigante, essa consciência deve manifestar-se perante a violação ou inobservância das mais elementares regras de prudência.
Se o comportamento da parte preencher objetivamente a previsão de alguma das alíneas do artigo 542º, nº 2, do CPC, mas não se patentear o elemento subjetivo, o mesmo não poderá ser qualificado como litigância de má fé. Não haverá lide dolosa nem temerária.
Refira-se, a este propósito, que a reforma do processo civil de 1995-1996 (operada pelo Decreto-Lei n.º. 329-A/95, de 12 de dezembro, Lei n.º 6/96, de 29 de fevereiro e Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de setembro) veio alargar a figura da litigância de má-fé, passando a abarcar não só a lide dolosa, mas também, a lide temerária (esta última ocorrerá quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé são violadas com culpa grave ou erro grosseiro – assim, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto; Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pp. 194-195, dando conta de que a lide temerária constitui um “mais” relativamente à lide meramente imprudente, que se verifica quando a parte excede os limites da prudência normal, atuando culposamente, mas apenas com culpa leve).
A lide temerária pode, pois, ser sancionada como litigância de má fé.
Assim, “hoje (…), a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição “cuja falta de fundamento não devia ignorar”, ou seja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte como litigante de má fé, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão", pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização” (nesta linha, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-03-2014, Pº 1063/11.9TVLSB.L1.S1, rel. SALAZAR CASANOVA).
O dolo supõe o conhecimento da falta de fundamento da pretensão ou oposição deduzida – dolo substancial direto – ou a consciente alteração da verdade dos factos ou omissão de um elemento essencial – dolo substancial indireto – podendo ainda traduzir-se no uso manifestamente reprovável dos meios e poderes processuais (cfr. Menezes Cordeiro; Da Boa Fé no Direito Civil, 2ª Reimpressão, Colecção Teses, Almedina, 2001, p. 380).
Por seu turno, “há negligência grave, fundamentadora de um juízo de litigância de má-fé, quando o litigante procede com imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um” (assim, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2001, Processo 01A3692, rel. AFONSO DE MELO).
Finalmente, diga-se que “a lei processual castiga a litigância de má-fé, independentemente do resultado. Apenas releva o próprio comportamento, mesmo que, pelo prisma do prevaricador, ele não tenha conduzido a nada. O dano não é pressuposto da litigância de má-fé” (cfr. Menezes Cordeiro; Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa «In Agendo», 2006, p. 26, nota 2). Assim, a condenação não depende dos resultados com a conduta reprovável do tipo das referidas no artigo 542.º, n.º 2, do CPC, serem ou não atingidos (cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-05-2019, Processo 6646/04.0TBCSC.L1.S2, rel. CATARINA SERRA).
Contudo, o julgador deve ser especialmente cauteloso e prudente na aferição das situações passíveis de constituírem litigância de má fé, apenas devendo determinar a condenação se se patentearem as condutas típicas e, bem assim, o dolo ou a grave negligência na sua prática.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2018 (Processo 280/18.5T8OAZ.P1, rel. RITA ROMEIRA): “A responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; O autor deve ser condenado como litigante de má-fé se nega factos pessoais que vieram a ser declarados provados”.
Ou seja: “(…) a ousadia de apresentação duma determinada construção jurídica, julgada manifestamente errada, não revela, por si só, que o seu autor a apresentou em violação dos princípios da boa fé e da cooperação, havendo por isso que ser-se prudente no juízo a fazer sobre a má fé processual” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-11-2015, Processo 3067/12.5TBTVD.L1-2, rel. SOUSA PINTO).
No caso, não obstante a improcedência das posições jurídicas sustentadas pela recorrente, certo é que não se alcança na conduta da mesma algum desrespeito pelo Tribunal, nos moldes que lhe impunha o dever de cooperação com o Tribunal, nem a dedução de uma conduta consabidamente infundada ou que a ré não devesse ignorar, nem igualmente se regista alguma alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa.
A conduta da ré não configura, pois, litigância de má fé.
Improcede, pois, a pretensão dos recorridos, de condenação da ré/apelante como litigante de má fé.

*
A apelação procederá parcialmente, em conformidade com o exposto e, consequentemente, deverá revogar-se a alínea c) do dispositivo da sentença recorrida, que se substituirá por decisão que condene a ré no pagamento aos autores de uma indemnização pelos prejuízos causados com a ocupação do logradouro, contabilizada desde a citação e até à efetiva restituição do mesmo, livre e devoluto, à razão mensal de € 250,00, mantendo-se, em tudo o mais, a decisão recorrida.

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De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.
Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária inerente incidirá sobre a ré/apelante e sobre os autores/recorridos, atento o decaimento havido, o qual se fixa, na proporção de 9/10 e de 1/10, respetivamente – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.

*
5. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem o coletivo desta 2.ª Secção Cível, em na parcial procedência da apelação:
a) Revogar a alínea c) do dispositivo da sentença recorrida, que se substitui pela presente: “c) Condenar a ré no pagamento aos autores de uma indemnização pelos prejuízos causados com a ocupação do logradouro, contabilizada desde a citação e até à efetiva restituição do mesmo, livre e devoluto, à razão mensal de € 250,00”; e
b) Manter, em tudo o mais, a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante e dos apelados, na proporção de 9/10 e 1/10, respetivamente.
Notifique e registe.

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Lisboa, 11 de maio de 2023.
Carlos Castelo Branco
Orlando dos Santos Nascimento
João Miguel Mourão Vaz Gomes