Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10104/18.8T8LSB-B.L1-2
Relator: VAZ GOMES
Descritores: POSSE
ABANDONO
PRESCRIÇÃO AQUISITIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-O abandono, como uma das causas da perda da posse, a que alude a alínea a) do n.º1 do art. 1267º do CC, exige um acto material, praticado intencionalmente, de rejeição da coisa ou do direito, não se confundindo com inacção do titular que não cuida da casa ou do prédio ou no caso concreto das coisa móveis que lá se encontravam.
II- Para que se verifique o abandono, é necessário ainda que que haja intenção, por parte do proprietário, de demitir de si o direito que tem sobre ela (animus derelinquendi).
III- Não há abandono quando se perde ou esconde a coisa, ou quando é a própria coisa que sem intervenção do dono se escapa à detenção deste.
IV- A prescrição aquisitiva do direito de propriedade sobre bens móveis, nos termos dos art.ºs 1267/1/a, por ocupação 1316, 1317/d, 1318, 1299 in fine do CCiv dá-se ao fim de seis anos  sem título e independentemente da boa fé ou com justo título e de boa fé ao fim de três.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I-RELATÓRIO
APELANTE/EXEQUENTE: CAIXA GERAL de DEPÓSITOS S.A. APELADO/EXECUTADO: G…
Valor da execução: 205.478,30 euros (indicado no requerimento executivo)
I.1. A exequente aos 17/4/2018, via Citius, apresentou requerimento executivo para entrega de coisa certa que cumulou com a execução para pagamento de quantia certa se dignasse determinar a execução coactiva do acórdão proferido no processo 6407/15.1t8lsb do Juízo Central de Lisboa, que confirmou a sentença que condenou o executada a reconhecer a exequente o direito de propriedade desta sobre a fracção autónoma designada pela letra L correspondente  a moradia n.º 1 com acesso pelo n.º 112-b, r/c e 1.º andar Páteo e jardim, com 3 lugares de estacionamento na 1.ª cave com os n.ºs 16, 17, 18 e arrecadação na 1ª cave com o n.º 11 fracção autónoma designada pela letra AE correspondente a terceira cave com o n.º 42  e entrada pelo n.º 112-A da fracção com as letras AV, correspondente a terceira cave estacionamento com o n.º 21 com entrada pelo n.º 112-A do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na rua … Lisboa , e ainda condenou o executado no pagamento à exequente de uma indemnização pro privação do uso das fracções referidas cujo capital é de 193.313,42 euros mais juros de mora à taxa legal para as operações civis desde 14/2/2017.
I.2. No âmbito da referida execução foi efectuada a entrega das fracções em causa no dia 14/7/2020 conforme auto de entrega de 14/7/2020 elaborado pela senhora agente de execução mas não obstante as fracções se encontrarem livres de pessoas não se encontravam livres de bens móveis.
I.3 Aos 27/8/2020 a senhora agente de execução citou o executado nos termos do art.º 626/3 do CPC conjugado com o art.º 859 e ss do mesmo diploma legal para em 20 dias deduzir oposição à execução mediante embargos de executado tendo sido concedido ainda o prazo de 30 dias ao executado para retirara do imóvel todos os bens ali existentes.
I.4 Com  data de 9/11/2020 para a morada pelo mesmo indicada cita na Quinta … a exequente enviou carta ao executado onde dá conta de não obstante o executado ter retirado parte dos móveis, não obstante a solicitação para a retirada dos restantes não o tendo feito o executado, ela própria retirou parte dos bens móveis existentes nos imóveis já entregues tendo eles sido removidos para deposito devendo o executado contactar certa pessoa da exequente a fim de agendar o levantamento e pagamento dos custo de remoção e armazenamento, o que não tendo tido resposta nem acção levou a que a CGD requeresse ao tribunal aos 13/12/2021 viesse requerer ao Tribunal a notificação do executado para proceder ao levantamento dos bens em 15 dias a contar da notificação, prazo findo o qual  sem que o levantamento tenha sido feito leva a que ao exequente possa fazer seus os bens e dar-lhes o  destino que entender, condenando-se o executado no pagamento das despesas efectuadas com a remoção e recolha dos móveis até à data no montante e 1.214,62 euros e vincendas até total levantamento dos bens pelo executado e ainda numa sanção pecuniária compulsória de 100,00 euros até que se cumpra o ordenado e caos assim o executado não venha a proceder sejam os bens em causa declarados abandonados e adquiridos por ocupação pela exequente nos termos do art.º 1318 do CCiv.
I.5. É então proferido o despacho de 9/3/2022 que indeferiu o requerido em suma sustentado na inexistência de fundamento legal para a notificação do executado nos termos peticionados e para a condenação do executado nos pagamento de quaisquer quantias que não sejam as resultantes da conversão da execução prevista no art.º 876, conversão que já não poderá ocorrer na medida em au o imóvel já foi entregue à exequente, não prevendo a alei para extras execução o arbitramento der sanção pecuniária compulsória.
I.6 Inconformada com o despacho a exequente apelou em cujas alegações conclui:
1. O presente recurso é admissível, nos termos do art. 644º, n.º 2 al h) do CPC (aplicável ex vi do art. 852º do CPC), dado que cabe ainda recurso de apelação das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil.
2. Na acção executiva a decisão final terá de entender-se como sendo a decisão de extinção da execução, pelo que, extinguindo-se a execução, a Recorrente deixará de poder fazer valer o pedido em causa, o qual só poderá desenvolver-se no decurso da pendência da presente execução.
3. O executado foi declarado insolvente e o protelar da decisão quanto aos bens móveis que se encontravam nos imóveis em causa, apenas onera a Recorrente com o custo do respetivo armazenamento, sem perspetiva de ressarcimento, pois o executado, que não colabora, não tem quaisquer bens, para além destes de valor diminuto, que permitam o pagamento da despesa em que incorre a Recorrente.
4. Assim, a retenção do presente recurso tem um efeito material irreversível sobre o conteúdo do decidido, inutilizando o efeito útil da decisão que vier a ser proferida pelo tribunal ad quem, pois seja qual for a solução que vier a ser dada pelo tribunal superior se não for tomada agora será completamente inútil.
5. Ademais, nada mais há a decidir na presente execução, que apenas aguarda a decisão dos embargos de executado.
6. Pelo exposto, a retenção do presente recurso de apelação tornaria absolutamente inútil a decisão que o tribunal de recurso viesse a proferir.
7. Termos em que o presente recurso deverá ser admitido, nos termos do art. 853º, n.º 4 do CPC, com subida em separado e efeito devolutivo, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 644º, n.º 2 alínea h) do CPC, aplicável por força do art. 852º e art. 853º, n.º 2 al. a) do CPC.
8. A Recorrente instaurou a presente execução com diversas finalidades, cumulando a execução para entrega de coisa certa e a execução para pagamento de quantia certa.
9. O título executivo consubstancia-se numa sentença de condenação proferida no âmbito do proc. 6407/15.1T8LSB do Juízo Central de Lisboa - Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, nos termos da qual o executado foi condenado a reconhecer a Recorrente como legítima proprietária de diversas frações, bem como a entregá-las à Exequente livres e devolutas de pessoas e bens (conforme Doc. 1, junto com o requerimento executivo)
10. Conforme se pode constatar da sentença, que constitui o título executivo, o executado foi condenado a entregar as frações em causa “livres e devolutas de pessoas e bens” e a Recorrente pediu a entrega das frações em causa livre e devolutas de pessoas e bens.
11.O pedido formulado pela Recorrente no requerimento executivo consta da sentença executada, pelo que atento o disposto no art. 10º, n.º 5 do CPC, tendo o executado sido condenado na entrega das frações em causa livres e devolutas de pessoas e bens, e tendo a Recorrente deduzido o respetivo pedido no requerimento executivo, a questão dos bens móveis deixados nas frações é objeto da presente execução.
12. Deste modo, é na presente execução que se têm de conhecer as questões relacionadas com os bens móveis que o executado não levantou oportunamente das frações em causa.
13. Atento o disposto no art. 91º, nº 1 do CPC (aplicável por força do disposto no art. 551º, n.º 1 do CPC), “O tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.”
14. Não tem, assim, a Recorrente de instaurar nova ação contra o executado, relativamente a tais bens, uma vez que mesmo que se entendesse que esta questão não seria objeto da execução, sempre seria questão incidental, para a qual o tribunal recorrido é competente para conhecer.
15. Decidindo diversamente, a sentença recorrida violou o disposto no art. 10º, n.º 5 e 91º ambos do CPC.
16. No âmbito da referida execução foi efetuada a entrega das frações em causa, no dia 14/07/2020 (conforme auto de entrega de 14/07/2020 elaborado pela Sra. Agente de Execução, junto ao processo executivo).
17. As frações não se encontravam livres de bens móveis, pelo que foi concedido o prazo de 30 dias para o executado retirar todos os bens móveis aí existentes
18. O Executado, durante os meses de setembro e outubro de 2020, retirou diversos bens do imóvel. Porém, não retirou todos os bens aí existentes e a partir do final de outubro de 2020, e deixou de atendera as chamadas telefónicas dos funcionários e colaboradores da Recorrente, bem como deixou de responder às mensagens por este enviadas.
19. A Recorrente, no início de novembro de 2020, retirou os restantes bens para depósito, tendo disso dado conhecimento ao executado por carta registada datada de 9/11/2020, solicitando contato urgente com a Exequente para agendar o respetivo levantamento e pagamento dos custos de remoção e armazenamento (conforme Doc. 2 junto com o requerimento apresentado em 13/12/2021)
20. O Executado não respondeu a tal carta, nem mais efetuou qualquer contacto junto da Recorrente. 21. A Recorrente suportou o custo de remoção dos bens móveis no valor de € 114,94 e tem suportado o custo do depósito dos bens, no valor de € 91,64, por mês, ascendendo, em 10 de novembro de 2021, à quantia de € 1.099,68.
22. Notificado, através de notificação eletrónica ao seu mandatário constituído, do requerimento apresentado pela Recorrente em 13/12/2021, o executado não deduziu qualquer oposição ou impugnação.
23. A Recorrente requereu que o executado, não obstante já ter sido notificado para o efeito através da citação efetuada pela Sra. Agente de Execução, fosse novamente notificado para proceder ao levantamento dos bens em causa, no prazo de 15 dias a contar dessa notificação; e que caso não procedesse ao levantamento dos bens, os mesmos se considerarão abandonados, pelo que a Exequente poderá fazer seus tais bens e dar-lhes o destino que entender, nos termos do disposto nos art. 1318.º do Código Civil.
24. A Recorrente invocou apenas um caso semelhante em que foi decidido que não teria aplicabilidade o art.15º do RAU, mas que não haveria necessidade de instaurar nova ação executiva para o efeito, mas com recurso às normas aplicáveis à execução para prestação de facto constantes dos art. 868º e seguintes do CPC obter decisão quanto ao destino dos bens móveis.
25. Tratam-se de coisas abandonadas, dado que o proprietário afastou-as da sua disponibilidade e com intenção de demitir de si o direito que detinha sobre as mesmas, pelo que nos termos do disposto no art. 1318º CC, não tendo o executado, pelo menos desde 9 de novembro de 2020, manifestado qualquer interesse ou intenção de recuperação de tais bens, tendo-os deixado nas frações e não tendo sequer reclamado os bens móveis em causa, junto da Recorrente, devem os mesmos ser considerados abandonados, podendo a Recorrente fazê-los seus.
26. Mas assim não se entendendo, sempre teria de ser aplicável o disposto no art. 1323º, n.sº 1 e 4 do CC e não tendo o Executado durante mais de um ano, reclamado os bens junto da Recorrente, os mesmos passam a ser imediatamente ocupados pela Recorrente.
27. Nestes termos, atendendo a que o executado foi condenado nos termos da sentença executada a entregar as frações livre de pessoas e bens, o que não fez, deverá o tribunal julgar que o executado abandonou os referidos bens, podendo a exequente dar-lhes o destino que entender, por os ter adquirido.
28. Decidindo diferentemente, a sentença recorrida violou 1318º e 1323º, n.º 1 e 4 todos do CC.
I.7 Questão a decidir:
Saber se ocorre na sentença recorrida erro de interpretação e de aplicação do disposto nos 1318º e 1323º, n.º 1 e 4 todos do CC devendo o tribunal julgar que o executado abandonou os referidos bens, podendo a exequente dar-lhes o destino que entender, por os ter adquirido.
II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
II.1.É do seguinte teor a decisão recorrida:
Req. de 13.12.2021:
O art 15  do Rau aplica-se no âmbito da entrega de um imóvel em sede do processo especial de despejo, não tendo, pois, aplicação nos presentes autos que correspondem a uma execução de sentença proferida em ação de reivindicação.
Não há, pois, fundamento legal para na presente execução para entrega de coisa certa (imóvel) se notificar o executado para remover os bens moveis encontrados sob pena de se estes consideraram abandonados e posteriormente serem adquiridos pela exequente.
Por outro lado, também não nos parece haver fundamento legal para, na presente execução para pagamento de entrega de coisa certa, se condenar o executado no pagamento de quaisquer quantias que não sejam as resultantes da conversão da execução prevista no art 867º do CPC, conversão que já nem poderá ocorrer por ter sido, entretanto, entregue o imóvel identificado na sentença.
Da mesma forma, na execução para entrega de coisa certa não prevê a lei qualquer arbitramento de sanção pecuniário compulsória.
Não existe, deste modo, fundamento legal para o requerido, devendo a requerente recorrer aos meios comuns para o efeito.
Assim, indefere-se o requerido. Notifique.”
II.2. No seu requerimento executivo “com diversas finalidades” o exequente alinhava os seguintes factos:
“1. Por sentença proferida no proc. 6407/15.1T8LSB do Juízo Central de Lisboa - Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi o executado condenado a reconhecer a Exequente como legítima proprietária da fração autónoma designada pela letra “L”, correspondente a moradia n.º 1, com acesso pelo n.º 112-B, rés-do-chão e 1º andar, páteo e jardim, com 3 lugares de estacionamento na 1ª cave com os n.ºs 16, 17 e 18 e arrecadação na 1ª cave com o número 11; da fração autónoma designada pelas letras “AE”, correspondente a terceira cave, estacionamento n.º 42, com entrada pelo n-º 112-A; da fração autónoma designada pelas letras “AV”, correspondente a terceira cave, estacionamento n.º 21, com entrada pelo n-º 112-A, todas do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …em Lisboa, descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o n.º …, freguesia da L… e inscrito na respetiva matriz sob o art. …, da freguesia da…, bem como a entrega-las à Exequente livres e devolutas de pessoas e bens (DOC. 1.)
2. Por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi ainda o executado condenado no pagamento à Exequente de uma indemnização por privação de uso das frações acima identificadas cujo capital se alcança a partir da taxa de juro supletiva para as operações civis a incidir sobre o valor do preço das frações - € 960.000,0 - e durante o período decorrente de 5/01/2012 a 13/02/2017, com juros de mora vencidos e vincendos sobre esse montante, à referida taxa, desde 14/02/2017 até integral e efetivo pagamento (DOC. 2)
3. O valor de capital é de € 196,313,42, a que acrescem juros de mora à taxa de juro supletiva para as operações civis desde 14/02/2017.
II.3 No título executivo que acompanha o requerimento executivo determina-se entre o mais a entrega dos bens imóveis livres de pessoas e bens.
II.4. Por requerimento dirigido ao Meritíssimo Juiz de direito do Tribunal recorrido datado de 30/4/2018 a senhora agente de execução dá conta que no âmbito do Processo 3944/14.9TBMTS da Comarca do Porto, Santo Tirso - Inst. Central - 1ª Sec.Comércio - J4 de Santo Tirso, o executado G…, NIF: …, foi Declarado Insolvente e que a execução deverá ser suspensa nos termos do nº 1 do artigo 88º do CIRE.
II.5. Por requerimento datado de 6/9/2019 a senhora agente de execução informa e requer o seguinte ao Tribunal recorrido: “No passado dia 06 de Setembro de 2019, fui informada pela ilustre mandatária da exequente que o Processo de Insolvência do executado já se encontrava encerrado, conforme comprovativo que anexo, para apreciação de V. Exa. Nessa conformidade solicito a V. Exa., que me seja autorizado a intervenção da força pública de segurança e arrombamento para a morada do executado sito Rua… em Lisboa, já requerida em 03 de Maio de 2018, conforme cópia que junto.”
II.6. Aos 14/7/2020 procedeu-se à entrega dos imóveis à exequente que se encontravam livres de pessoas, tendo no seu interior os móveis constantes do anexo ao auto junto aos autos.
II.7. Aos 9/11/2020 a ilustre advogada da exequente dirige ao executado carta de teor igual à junta aos autos onde informa que apesar de ter retidão parta dos bens móveis das fracções o executado ainda lá deixou outros, não obstante as solicitações da exequente para a sua retirada informando o executado do local para onde foram removidos os móveis, o contacto com vista ao agendamento para o seu levantamento e pagamento de custos de remoção e armazenamento.
II.8. Aos 13/12/2021 a exequente requereu ao Tribunal recorrido o seguinte:
1. Na presente execução para entrega de coisa certa, o imóvel foi entregue à Exequente em 14/07/2020.
2. Conforme consta do auto de entrega de imóvel, junto aos autos, não obstante o mesmo se encontrar livre de pessoas, não se encontrava livre de bens móveis.
3. Por tal motivo, foi solicitado ao Executado que retirasse tais bens do imóvel, no prazo de 30 dias (DOC. 1).
4. Em 24/09/2020, o Executado contatou a Agente de Execução, pretendendo retirar tais bens do imóvel em causa.
5. Durante os meses de setembro e outubro de 2020, com a total colaboração da Exequente, o Executado retirou diversos bens do imóvel.
6. Porém, não retirou todos os bens aí existentes.
7. A partir do final de outubro de 2020, o Executado deixou de atender as chamadas telefónicas dos funcionários e colaboradores da Exequente, bem como deixou de responder às mensagens por estes enviadas.
8. A Exequente pretende colocar o imóvel à venda, não o podendo fazer com tais bens no imóvel.
9. Pelo exposto, em novembro de 2020, a Exequente retirou os restantes bens para depósito, tendo disso mesmo dado conhecimento ao Executado, em 9/11/2020, solicitando que diligenciasse pelo contato urgente com a Exequente para agendar o respetivo levantamento e pagamento dos custos de remoção e armazenamento (DOC. 2)
10. O Executado não respondeu a tal carta, nem mais efetuou qualquer contacto junto da Exequente.
11. A Exequente suportou o custo de remoção dos bens móveis no valor de € 114,94.
12. Igualmente a Exequente tem suportado o custo do depósito dos bens, no valor de € 91,64, por mês, ascendendo, em 10 de novembro de 2021, à quantia de € 1.099,68.
13. Em situação em tudo paralela à dos autos, foi decidido pelo tribunal da Relação de Lisboa, no Ac. de 28/6/2018, Proc. 192/17.0T8LRS.L2-6 (www.dgsi.pt), que:
“Assim, restituída a posse do imóvel ao apelado, não há que declarar perdidos os bens móveis que a apelante ali deixou, devendo sim o apelado requerer ao tribunal que a prestação de remoção dos bens seja realizada por outrem, sem necessidade de se instaurar acção executiva para o efeito mas com recurso às normas aplicáveis à execução para prestação de facto constantes dos art. 868º e seguintes do CPC”.
Atento o exposto, requer-se que, em aplicação do previsto para a execução de prestação de facto, seja o Executado:
a) notificado para proceder ao levantamento dos bens em causa, no prazo de 15 dias a contar da notificação;
b) notificado que findo o prazo acima referido, sem que proceda ao levantamento dos bens, os mesmos se considerarão abandonados, pelo que a Exequente poderá fazer seus tais bens e dar-lhes o destino que entender;
c) condenado no pagamento das despesas efetuadas com a remoção e recolha dos bens móveis, vencidas, até esta data no valor de 1.214,62 €, e vincendas, até ao total levantamento dos bens pelo Executado;
d) condenado no pagamento de uma sanção compulsória de 100,00 € até que cumpra o ordenado.
e) Caso assim o Executado não venha a proceder, sejam os bens em causa declarados abandonados e adquiridos por ocupação pela Exequente, nos termos do disposto nos art. 1318.º do Código Civil.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
III.1. Conforme resulta do disposto nos art.ºs 608, n.º 2, 5, 635, n.º 4, 649, n.º 3, do CPC[1] são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso. É esse também o entendimento uniforme do nosso mais alto Tribunal (cfr. por todos o Acórdão do S.T.J. de 07/01/1993 in BMJ n.º 423, pág. 539.
III.2. Não havendo questões de conhecimento oficioso são as conclusões de recurso que delimitam o seu objecto tal como enunciadas em I.
III.3. Saber se ocorre na sentença recorrida erro de interpretação e de aplicação do disposto nos 1318º e 1323º, n.º 1 e 4 todos do CC, devendo o tribunal julgar que o executado abandonou os referidos bens, podendo a exequente dar-lhes o destino que entender, por os ter adquirido.
III.3.1. O Tribunal recorrido indeferiu in totum o requerimento da exequente quer no que toca à notificação para o levantamento dos bens quer no que toca à condenação do executado no pagamento das despesas com a remoção e recolha dos bens móveis e sanção pecuniária compulsória. Relativamente ao indeferimento do requerimento de condenação do executado no pagamento das referidas quantias a exequente não ataca o despacho, o que significa que transita em julgado e pacificou (art.º 635/5). Sustenta a exequente que tão pouco se justifica como pretendia a notificação do executado para em certo prazo levantar os bens que a exequente removeu sob pena de se consideraram abandonados na medida em que tendo sido citado com a advertência de que deveria levantar todos os bens móveis no prazo de 30 dias a contar da citação, não o tendo feito, porque na execução para entrega de coisa certa se devem resolver todos os incidentes em torno da entrega dos bens como resulta do disposto nos art.ºs 10/5 e 91/1, estando por resolver a questão dos móveis que a executada deixou nos imóveis da exequente e que já lhe foram entregues em 14/7/2020, tendo decorrido um ano desde a citação e notificação para a remoção dos móveis pelo executado, não o tendo feito ao abrigo do disposto no art.º 1323/1 e 4, deve reconhecer-se à exequente o direito de fazer seus os referidos bens.
III.3.2. No nosso país, o direito de propriedade privada é um dos princípios estruturantes da Constituição da República Portuguesa e está consagrado no art. 62º, prevendo que “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou morte, nos termos da constituição”. A propriedade privada tem uma relevante função social, tendo em conta que é um meio com aptidão para a realização de objectivos colectivos. O direito de propriedade privada é o direito real máximo mas vem perdendo a sua plenitude, tendo vindo a surgir muitas limitações a este direito, como a expropriação por utilidade pública. Esta é admitida quando a lei o preveja e mediante o pagamento de uma justa indemnização. Nos termos do art. 1308º do CC, ninguém pode ser privado do seu direito de propriedade excepto nos casos fixados na lei, como é o caso das expropriações. Adianta-se que não se encontra, minimamente, evidenciada a perda da posse pelo abandono nos termos dos art.ºs 1267/1/a, subsequente aquisição desses bens pelo exequente por ocupação 1316, 1317/d, 1318, 1299 in fine (seis anos para a prescrição aquisitiva, sem título e independentemente da boa fé) do CCiv. Suporta-se a exequente agora em recurso no dispositivo no art.º 1323 relativo a animais e coisas móveis perdidas.
III.3.3. O abandono, como uma das causas da perda da posse, a que alude a alínea a) do n.º1 do art. 1267º do CC, exige um acto material, praticado intencionalmente, de rejeição da coisa ou do direito, não se confundindo com inacção do titular que não cuida da casa ou do prédio ou no caso concreto das coisa móveis que lá se encontravam.[2] Para que se verifique o abandono, é necessário ainda que que haja intenção, por parte do proprietário, de demitir de si o direito que tem sobre ela (animus derelinquendi)[3]. Não há, portanto, abandono quando se perde ou esconde a coisa, ou quando é a própria coisa que sem intervenção do dono se escapa à detenção deste (vide A. Varela, ob. cit., nota 4. ao artigo 1318º, pág. 125). No caso concreto não é possível falar em perda dos móveis por parta do executado que os deixou no imóvel que deveria entregar ao exequente, circunstância em que a ter lugar não levaria ao abandono que como causa de aquisição originária nos termos do art.º 1267/1/a do CCiv, que pressupõe uma intenção por parte do executado de se demitir do direito que tem sobre esses mesmos bens que no caso concreto tem de durar pelo menos 3 anos o que não ocorre. A questão da aquisição dos referidos bens pela exequente terá de ser dirimida noutra sede.

IV- DECISÃO
Tudo visto acordam os juízes em julgar improcedente a apelação e em consequência confirmam a decisão recorrida.
Regime da responsabilidade quanto a custas: as custas são responsabilidade da exequente que decai (art.º 527/1 e 2).

Lxa., 15-09-2022  
João Miguel Mourão Vaz Gomes
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
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[1] Na redacção que foi dada ao Código do Processo Civil pela Lei 41/2013 de 26/7, atenta a data da execução que é de 2018 e a data da decisão recorrida que é de 9/3/2022; ao Código referido, na redacção dada pela Lei 41/2013, pertencerão as disposições legais que vierem a ser mencionadas sem indicação de origem.
[2] Nesse sentido entre outros o AcRC de 17/6/2008 no processo 624/04.7tbalb, relatado por Ferreira de Barros e disponível no sítio www.dgsi.pt.
[3] Nesse sentido entre outros o AcRC de 24/4/2018 no processo 2033/16.6t8ctb.c, relatado por Moreira do Carmo e disponível no mesmo sítio informático.