Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10022/17.7T8SNT.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: MEIOS DE PROVA
PROVA ILÍCITA
DOCUMENTOS
JUNÇÃO AOS AUTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-Num contexto processual em que uma parte vem, em fase de julgamento, requerer a junção de um documento e a contraparte requere o desentranhamento de tal documento com fundamento em que o documento foi obtido mediante crime violação de correspondência tratando-se, por isso, de prova nula, haverá que aplicar por analogia o regime dos Artigos 446º a 449º do Código de Processo Civil tendo em vista determinar se o documento é atendível por ser licitamente obtido ou se, pelo contrário,  não é atendível por ter sido obtido de forma ilícita.
II-Uma vez que a Ré se limitou a insinuar e não deu corpo à insinuação na medida em que não indicou meios de prova a produzir no intuito de corroborar a alegação (cf. Artigo 449º, nº1, e Artigo  91º, nº1, do Código de Processo Civil), não cabia ao tribunal prosseguir com a apreciação de uma questão votada inexoravelmente  ao insucesso pela inexistência de qualquer meio de prova a apreciar nesse âmbito (cf. Artigo  130º do Código de Processo Civil ).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Em 15.3.2019, foi proferido despacho saneador contendo o seguinte segmento:
«Objeto do litígio: Saber se a Autora tem direito ao reconhecimento da propriedade e à consequente restituição da parte do imóvel que reivindica/indemnização pela utilização abusiva; ou se a Ré adquiriu tal parte do
imóvel por usucapião, na sequência da sua doação
verbal/dos gastos que efetuou na construção aí erigida (arts. 593°, n° 2, al. c) e 596°, n° 1, ambos, do citado C.P.Civil).
*
Temas da prova (art. 596°, n° 1, do C.P.Civil)
Por referência à factualidade alegada pela Autora e pela Ré
A
Da cedência temporária e gratuita, pela Autora à Ré, da habitação existente nos prédios indicados nos autos.
B
Do termo final desse período, coincidente com a residência da Ré, na Suíça e com o decurso de um ano concedido pela Autora para que a Ré retirasse da habitação, os bens que aí deixara.
C
Da declaração de doação, pela Autora à Ré, em 1 de maio de 1991, de lote de terreno situado nos prédios acima referidos em que se encontrava edificado um barracão, para que a Ré nele habitasse e iniciasse a sua vida de casada.
D
Da utilização dessa concreta parcela de terreno, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém (com inclusão da Autora) pela Ré; e com a convicção de que era sua proprietária.
E
Da transformação, pela Ré, do sobredito barracão, numa moradia de R/C e 1° andar, com inclusão de garagem, muros, portões e gradeamentos.
F
Do gasto, pela Ré, de cerca de 150 000, 00 euros nessas construções.

G
Do pleno conhecimento da Ré, de que, tão só, existiu, empréstimo da habitação, pela Autora à Ré.»
*
Na ata da sessão de julgamento de 24.3.2022, ficou a constar o seguinte:
«Atentas as declarações da ré, no sentido de esclarecer melhor a verdade, dado o que foi afirmado pela mesma, a autora vem nos termos do art.° 423, n° 3 do C.P. Civil, requerer a junção os autos dos seguintes documentos:
1- Certidão de casamento da ré S… com L…, 1° marido, a qual data do ano 1993.
2- Extrato de remunerações dos vencimentos que a autora pagava à ré dos quais eram feitos os respetivos descontos para a Segurança Social.
Com isto, pretende a autora clarificar que a ré não se casou em 1991 conforme afirmou neste tribunal, mas sim em 1993.
Por outro lado, também contrariamente ao que foi referido, descontou para a segurança social e tinha uma remuneração paga pela autora.
Mais entende por pertinente a autora, ainda para esclarecimento cabal das declarações da ré, juntar a certidão de casamento da ré com FRP, reportando-se este período à sua ida para a Suíça, na qual a ré afirmou como sendo sua residência habitual a Rua das (...), n° 10, (...), e não na Rua do (...), em (...).
Atenta a importância do aqui referido, requer-se V Exa, Mma Juiz, que o mesmo seja deferido.
Dada a palavra ao Ilustre mandatário da ré, pelo mesmo foi dito: Ainda que nunca prescinda de prazo para tomar posição em relação aos documentos, quando os mesmos venham a ser admitidos, pretenderá na sua instância, confrontar as testemunhas a inquirir com os escritos, cuja junção ora se requer. Quando o tribunal venha a admitir a sua junção, requer, pois, a interrupção dos trabalhos de modo a melhor preparar as inquirições que se seguem, agora em função dos escritos que a parte contrária pretende juntar.
Há muito que, no regime processual civil atual, as provas são oferecidas com os articulados. Quando assim não possa suceder, e quando a parte tenha protestado juntá-los, ou quando surja pertinência superveniente, deverá a parte oferece-los, no máximo, até 20 dias antes da realização do julgamento.
Tais prazos, encontram-se, há muito, ultrapassados. Tais documentos serão todos, muito anteriores à data da entrada da própria ação, não se vislumbrando que a autora possa ter tido dificuldades em apresentá-los em momento processual anterior. Termos em que, se opõe a ré / reconvinte à junção dos identificados documentos. Quando o tribunal assim não entenda, e sem prejuízo da eventual sanção pecuniária que ao caso caiba, a ré reconvinte nunca conseguirá prescindir do prazo mínimo de 10 dias para uma tomada de posição, o que motivará quando sejam admitidos e de modo a evitar a pratica de atos inúteis e até à repetição da inquirição das testemunhas, que se designe para a inquirição daquelas, data que leve em conta o prazo de que não prescinde para uma tomada de posição adequada.
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De seguida, dada a palavra à Ilustre mandatária da autora para se pronunciar quanto à segunda parte do requerimento anterior, a mesma disse não se opor.
*
Após, pela Mma Juiz foi proferido o seguinte:
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Despacho
Os documentos, cuja junção ora se requer, muito em particular o extrato de remunerações, mostram-se pertinentes perante o teor das declarações de parte da ora ré. Assim, ao abrigo do art.° 423, n° 3 do C.P. Civil, bem como ao abrigo do art.° 411 do mesmo código, considerando-se que tais documentos podem contribuir para o cabal apuramento dos factos e boa decisão da causa, vai admitida a sua junção aos autos.
Naturalmente, será acautelado o prazo para exercício do contraditório quanto a tais documentos, mais se considerando perfeitamente pertinente, a posição processual ora assumida pelo Ilustre mandatário da ré / reconvinte quanto à necessidade de audição da prova a produzir em data posterior à do prazo para o exercício do contraditório quanto a tais documentos.
Após conciliação de agendas com os Ilustres mandatários, designa-se para continuação da presente audiência de julgamento o próximo dia (…)».
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Em 4.4.2022, a Ré formulou o seguinte requerimento:
«Notificada do teor dos documentos juntos pela Autora, na anterior sessão de Julgamento, BB, vem impugná-los e à respetiva força probatória, por não terem a virtualidade de demonstrar quais factos controvertidos alegados pelas partes e por não permitirem abalar a credibilidade das declarações da Ré-Reconvinte.
Extrato de remunerações contendo carreira contributiva da Ré.
Tratando-se de uma carta destinada à Ré, que a Autora terá aberto, violando correspondência daquela, sendo nula a prova obtida através da prática de crime, não tendo a Ré, nunca, autorizado que a Autora abrisse as cartas que eram dirigidas à filha, contendo tal correspondência dados pessoais da Ré protegidos por segredo, deverá ordenar-se o seu desentranhamento, com as legais consequências;
Quando assim se não entendesse, a morada de destino da identificada correspondência (dirigida à Ré, em envelope fechado) e a morada dos assentos juntos na anterior sessão de julgamento, foi a mesma que a própria Autora utilizou até instaurar esta ação e foi a mesma que a Autora impôs aos filhos (cf. doc que se junta), que utilizassem como morada pessoal, fiscal, de envio de correspondência e para todos os demais efeitos, por temer que, a associação da mãe (Autora) e dos filhos (Ré e o irmão EE) à moradia e às demais construções edificadas no prédio dos autos (todas elas habitações clandestinas), pudesse levantar problemas (coimas, embargos e demolições) perante as entidades camarárias que fiscalizam as questões urbanísticas.
E, ainda que resultem descontos para a SS, alegadamente feitos pela entidade empregadora (Autora), tais registos eram totalmente desconhecidos da Ré que, não recebido salários de sua mãe, nunca imaginou (nem tinha a obrigação de imaginar) que tivessem sido feitos quaisquer descontos.
Ainda hoje, a Ré e a filha JJ, não indicam nem identificam (nem mesmo quando requisitam cartões de identificação nem em parte alguma) nenhum das moradas da (...) (nem a Rua …, para onde terá sido enviado o extrato de remunerações ) nem a morada dos autos (da moradia objeto deste processo), por já saberem com o que contam: violação de correspondência (cf.- documento pessoal da Ré, junto pela Autora em Julgamento).
O próprio irmão da Ré, que reside, há muito, no prédio dos autos, em moradia distinta da que se discute neste processo, continua a indicar a fazer constar em documentos oficiais, designadamente junto da segurança social que reside na tal Rua das (...), Viv …, 10, (...), em estrita obediência ao determinado pela Autora, mãe de ambos (cf. documento que se junta para prova do aqui alegado)
Para prova dos factos alegados aqui, no requerimento constante da ata do julgamento e nos articulados, a respeito do requerido pela A (e do verdadeiro calibre da Autora e do irmão da Ré EE), requer a junção aos autos das decisões judiciais condenatórias proferidas em processos-crime em que aqueles dois foram condenados pela pratica de factos ilícitos, protestando juntar documentos que fazem parte de processo judiciais arquivados (que atestam que a Autora sempre se referiu - em processos judiciais - à moradia destes autos, como sendo a casa da Ré), designadamente o processo 88/17.5GDSNT - (identificado na consulta destes autos que o DIAP de (...) cf. pedido com a refa10692557, em 21.09.2017).
Requer ainda se notifiquem os serviços do cartão de cidadão, da segurança social, da AT e cartão de eleitor, para que indiquem quais as moradas da Autora, do irmão EE (nascido em 11-12-1977, NIF …, BI: … NISS: …) nas respetivas bases de dados, desde 1991, até hoje.
Para prova dos mesmos factos aqui alegados, sugere-se a requisição, a título devolutivo, para consulta por este Tribunal, dos processos: 64/17.8GDSNT, 158/17.0GDSNT, 371/16.7GDSNT, 88/17.5GDSNT, 671/16.7GDSNT, 116/18.7GDSNT, 1880/16.3PBCSC, todos pendentes / arquivados no edifício do Tribunal de (...).
Requer se levante a confidencialidade do Apenso A (providência cautelar há muito transitada em julgado), de modo a que possa ser livremente consultado pelos mandatários, através do Citius (sem necessidade de deslocações ao tribunal).»
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 Em 15.4.2002, foi proferido o seguinte despacho [impugnado]:
« Do requerimento da Ré/Reconvinte de 4-4-2022:
Em sede de contraditório relativo aos documentos cuja junção fora requerida pela Autora e admitida em audiência final de 24-3-2022, a Ré/Reconvinte vem agora alegar que a Autora terá aberto carta destinada à Ré, violando correspondência desta, sendo nula a prova obtida através da pratica de crime, não tendo a Ré, nunca, autorizado que a Autora abrisse as cartas que eram dirigidas à filha, contendo tal correspondência dados pessoais da Ré protegidos por segredo, termos em que, defende, deverá ordenar-se o seu desentranhamento.
Decidindo.
Em sede de contraditório, quanto à junção de documentos, a parte contrária pode reconhecer expressa ou tacitamente, como verdadeira, a letra e a assinatura ou só a assinatura; ou impugnar a veracidade por meio de simples impugnação ou pela arguição de falsidade (cf. arts. 444° a 447°, do C.P.Civil) ou, numa interpretação mais lata do preceito, apreciar o documento junto pela parte contrária, sendo-lhe lícito deduzir requerimento pronunciando-se quanto à sua admissibilidade, autenticidade e força probatória.
No caso dos autos, logo em sede de audiência final, a Ré/Reconvinte entendeu pronunciar-se quanto à admissibilidade de junção do documento ora em causa (extratos da Segurança Social) invocando, nessa sede, tão só, a intempestividade da sua junção e logo avançando que pretendia confrontar as testemunhas a ouvir com o teor de tal documento, o que levou a que se desse sem efeito a produção da prova testemunhal agendada para essa data.
Assim, a junção de tal documento veio a ser expressamente admitida em sede da tal audiência final.
Por outro lado, a Ré/Reconvinte limita-se a afirmar agora que “a Autora terá aberto carta destinada à Ré”; o que corresponde a uma possibilidade e, assim, não corresponde a uma afirmação segura.
A isto acresce que o extrato das remunerações comunicadas à Segurança Social pelo empregador não corresponde a “dados pessoais da Ré protegidos por segredo,” perante o próprio empregador, que, no caso, é a Autora; e, por isso, conhece o conteúdo do extrato de remunerações que a própria terá comunicado à Segurança Social.
Nestes termos, por falta de fundamento, vai indeferido o requerido desentranhamento do documento.
O mérito probatório do documento será apreciado no momento próprio que é o da motivação da decisão da matéria de facto.
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Dos novos meios de prova requeridos pela Ré/Reconvinte
Os meios de prova do réu devem ser apresentados nos momentos processuais prevenidos pelo art. 572°, al. d), do Código de Processo Civil; no caso ora em apreço, com a contestação; e, tendo havido reconvenção, caso o autor replique, ao réu, é ainda admitido alterar o requerimento probatório inicialmente apresentado, no prazo de 10 dias a contar da notificação da réplica.
O requerimento probatório pode, ainda, ser alterado na audiência prévia quando a esta haja lugar, conforme art. 598°, n° 1, do Código de Processo Civil.
Admite-se, ainda, a possibilidade de apresentação de novos meios de prova no prazo geral de 10 (dez) dias subsequentes à notificação do despacho saneador com temas da prova em que se dispensou a realização de audiência prévia.
E os documentos, se não forem juntos com o respetivo articulado; ou até 20 dias antes da audiência final, só são admitidos se a sua presentação não foi possível até esse momento; ou se a sua apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior - art. 423°, n° 3, do Código de Processo Civil.
Por outro lado, em sede substantiva ou de pertinência da junção, os meios de prova destinam-se à prova ou contraprova dos factos controvertidos juridicamente relevantes para a resolução do litígio, a saber, dos factos integrantes da causa de pedir do pedido ou da causa de pedir do pedido reconvencional formulados; da matéria de facto alegada nos articulados, integrante de exceção perentória (impeditivos, modificativos ou extintivos); ou de matéria de facto integrante de impugnação motivada (ou para prova da genuinidade de documentos - art. 444°/445°, do Código de Processo Civil).
No caso dos autos, conforme o seu requerimento de 4-4-2022, a Ré/Reconvinte requer: “Para prova dos factos alegados aqui, no requerimento constante da ata do julgamento e nos articulados, a respeito do requerido pela A (e do verdadeiro calibre da Autora e do irmão da Ré EE), requer a junção aos autos das decisões judiciais condenatórias proferidas em processos-crime em que aqueles dois foram condenados pela pratica de factos ilícitos”; e, “para prova dos mesmos factos aqui alegados” ainda sugere a requisição de processos judiciais.
Nestes termos, parece-nos evidente que o requerido pela Ré/Reconvinte se mostra processualmente inadmissível.
O momento processual para juntar prova quanto ao alegado nos articulados, mostra-se, há muito, ultrapassado; o requerimento em apreço, sequer, é a sede própria para alegar quaisquer factos; pois que, este, se destina apenas a exercer o contraditório quanto a documentos juntos aos autos; termos em que não tem cabimento pretender requerer prova para factos alegados neste requerimento; e em ata também não ocorreu alegação de factos.
A isto acresce que “o verdadeiro calibre da Autora” não corresponde a matéria de facto controvertida objeto de julgamento; muito menos, se justificando tal tipo de prova quanto ao “irmão da Autora” que sequer é parte nestes autos.
Quanto ao requerimento da Ré/Reconvinte no sentido de que se notifiquem os serviços do cartão de cidadão, da segurança social, da AT e cartão de eleitor, para que indiquem quais as moradas da Autora e do irmão EE, volta a dizer-se que o momento processual para requerer prova do alegado nos articulados se mostra ultrapassado; a morada da Autora não constitui factualidade controvertida objeto de julgamento; e o irmão da Autora não é parte nestes autos.
Pela mesma razão (o irmão da Autora não é parte nestes autos) não é admissível o documento “extrato” relativo a este cuja junção aos autos a Ré/Reconvinte pretende.
Pelo exposto, indefere-se ao requerimento probatório formulado pela Ré/Reconvinte, determinando-se que se desentranhem dos autos (físicos) tais documentos que aí se mostram incorporados; documentos que, consequentemente, não serão considerados na decisão de mérito a proferir.
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Quanto ao requerimento da Ré/Reconvinte de que se levante a confidencialidade do Apenso A (providência cautelar há muito transitada em julgado), de modo a que possa ser livremente consultado pelos mandatários, através do Citius (sem necessidade de deslocações ao tribunal), importa que se diga que, efetivamente, tais autos não se mostram confidenciais, a, eles, podendo ter acesso, ambas as partes; termos em que deverá providenciar-se em conformidade com o requerido.»
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Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
1. Por Despacho 25.04.2022, o Tribunal recorrido: i) Indeferiu o requerido desentranhamento de documento junto pela Autora; - ii) Indeferiu o requerimento probatório formulado pela Ré/Reconvinte, determinando que se desentranhem dos autos (físicos) tais documentos que aí se mostram incorporados; documentos que, consequentemente, não serão considerados na decisão de mérito a proferir.
2. Ao ter admitido os documentos pela Ré, ao não ter ordenado o desentranhamento de documentos juntos pela Autora (obtidos através da pratica do crime de violação de correspondência, ao não ter admitido a junção, pela Ré, de documentos essenciais para a descoberta da verdade face à matéria alegada, ao objeto do processo dos temas de prova e às declarações prestadas pelas partes em Julgamento e ao ter indeferido o requerimento probatório da ora recorrente, nas condições em que o fez, o Tribunal recorrido violou os princípios da igualdade, do contraditório, da aquisição processual e da descoberta da verdade material e o disposto nos artigos 1°, 2°, 3°, 4°, 5°, 6°, 7° 8°. 9° e a 9°-A, 193, 411, 417, 423, e seguintes todos do CPC, tendo interpretado tais preceitos e princípios em violação grosseira do disposto nos artigos 1°, 2°, 13° e 20° da Constituição da República Portuguesa e dos princípios constitucionais do contraditório, da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da confiança e do acesso ao direito.
3. O Tribunal recorrido deveria ter interpretado os princípios da igualdade, do contraditório, da aquisição processual e da descoberta da verdade material e o disposto nos artigos 1°, 2°, 3°, 4°, 5°, 6°, 7° 8°. 9° e a 9°-A, 193, 411, 417, 423, todos do CPC, em conformidade com o disposto nos artigos 1°, 2°, 13° e 20° da Constituição da Republica Portuguesa e dos princípios constitucionais da igualdade, do contraditório, da dignidade da pessoa humana, da confiança e do acesso ao direito, determinando o desentranhamento da prova documental obtida através da pratica do crime de violação de correspondência e a determinando a admissibilidade do requerimento de prova suplementar formulado pela Ré (e que apenas se justificou, em sede de contraditório).
Pedidos:
Termos em que, fazendo-se a correta interpretação dos elementos dos autos e a melhor aplicação dos princípios e das normas legais invocadas, deve o Despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que Determine:
A) O Desentranhamento do extrato (da Ré) junto pela Autora em audiência, por ser manifesto que foi obtido pela Autora, através da prática do crime de violação de correspondência, consubstanciando, prova nula;
B) A admissibilidade do requerimento probatório formulado pela Ré em 04.04.2022, por ser manifesto que foi apresentado, em sede de contraditório (na sequência dos documentos juntos pela A em audiência) e por se revelar imprescindível à descoberta da verdade material.»
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Contra-alegou a apelada, propugnando pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Indeferimento do pedido de desentranhamento de documento;
ii. Indeferimento do pedido de junção de documentos pela ré.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a apreciação de mérito é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Indeferimento do pedido de desentranhamento de documento
Na sessão de julgamento de 24.3.2022, após as declarações de parte da ré, a autora requereu a junção do extrato de remunerações dos vencimentos que a autora pagava à ré dos quais eram feitos os respetivos descontos para a Segurança Social.
Fundamentando tal pedido, alegou que, ao contrário do que foi dito pela Ré, a Autora descontou para a segurança social e tinha uma remuneração paga pela autora.
Dada a palavra ao mandatário da Ré, pelo mesmo foi tido que não prescindia de prazo para tomar posição em relação aos documentos, bem como foi arguida a intempestividade da sua junção. Mais afirmou que, sendo admitida a junção dos documentos, pretendia confrontar as testemunhas com os mesmos.
Nessa sequência, a Mma Juíza admitiu de imediato a junção dos documentos, argumentando que o extrato de remunerações se mostra pertinente perante o teor das declarações de parte da ré. Do mesmo passo, declarou que «será acautelado o prazo para exercício do contraditório quanto a tais documentos».     
Em 4.4.2022, a Ré veio formular requerimento em que impugna os documentos em causa e a respetiva força probatória, mais arguindo, no que tange ao extrato remuneratório, que «Tratando-se de uma carta destinada à Ré, que a Autora terá aberto, violando correspondência daquela, sendo nula a prova obtida através da prática de crime, não tendo a Ré, nunca, autorizado que a Autora abrisse as cartas que eram dirigidas à filha, contendo tal correspondência dados pessoais da Ré protegidos por segredo, deverá ordenar-se o seu desentranhamento (…)».
Sobre esse segmento do requerimento, recaiu despacho de indeferimento, radicando o raciocínio neste âmago:
«No caso dos autos, logo em sede de audiência final, a Ré/Reconvinte entendeu pronunciar-se quanto à admissibilidade de junção do documento ora em causa (extratos da Segurança Social) invocando, nessa sede, tão só, a intempestividade da sua junção e logo avançando que pretendia confrontar as testemunhas a ouvir com o teor de tal documento, o que levou a que se desse sem efeito a produção da prova testemunhal agendada para essa data.
Assim, a junção de tal documento veio a ser expressamente admitida em sede da tal audiência final.
Por outro lado, a Ré/Reconvinte limita-se a afirmar agora que “a Autora terá aberto carta destinada à Ré”; o que corresponde a uma possibilidade e, assim, não corresponde a uma afirmação segura.
A isto acresce que o extrato das remunerações comunicadas à Segurança Social pelo empregador não corresponde a “dados pessoais da Ré protegidos por segredo,” perante o próprio empregador, que, no caso, é a Autora; e, por isso, conhece o conteúdo do extrato de remunerações que a própria terá comunicado à Segurança Social.»
É de acompanhar o raciocínio expendido pelo tribunal a quo, sem prejuízo dos aditamentos que seguem.
Em primeiro lugar, a Ré não arguiu que o documento em causa foi obtido através de crime de violação de correspondência (o que só faz nas alegações de recurso), limitando-se a insinuar essa conjetura : “que a Autora terá aberto”. Assim, não cabe ao tribunal assumir asserções que a parte não se atreveu a fazer, sendo ainda certo que não estamos no âmbito de um processo de inquérito criminal em que caiba ao tribunal agir oficiosamente, sendo que o crime de violação de correspondência (Artigo 194º do Código Penal) é semipúblico, dependendo a investigação da formulação de queixa (Artigo 198º do Código Penal).
Mesmo que a Ré tivesse arguido, de forma atendível, a existência de crime de violação de correspondência, caber-lhe-ia indicar meios de prova para sustentar tal asserção. Com efeito, num contexto processual em que uma parte vem, em fase de julgamento, requerer a junção de um documento e a contraparte requere o desentranhamento do documento com fundamento em que o documento foi obtido mediante crime violação de correspondência tratando-se, por isso, de prova nula, haverá que aplicar por analogia o regime dos Artigos 446º a 449º do Código de Processo Civil tendo em vista determinar se o documento é atendível por ser licitamente obtido ou, pelo contrário, se não é atendível por ter sido obtido de forma ilícita.
Não havendo norma específica sobre o modo de arguição da prova ilícita nesta fase, haverá que integrar tal lacuna com aplicação analógica (Artigo 10º, nº1, do Código Civil; cf. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, pp. 73-74, defendendo a aplicação geral do Artigo 10º do Código Civil).
Ora, a Ré limitou-se a insinuar e não deu corpo à insinuação na medida em que não indicou meios de prova a produzir no intuito de corroborar a alegação (cf. Artigo 449º, nº1, e Artigo  91º, nº1, do Código de Processo Civil). Não tendo a ré requerido a produção ad hoc de prova, não cabia ao tribunal prosseguir com a apreciação de uma questão votada inexoravelmente  ao insucesso pela inexistência de qualquer meio de prova a apreciar nesse âmbito (cf. Artigo  130º do Código de Processo Civil ).
Termos em que nada há a alterar quanto ao decidido neste circunspecto.
Indeferimento do pedido de junção de documentos pela ré
No mesmo requerimento de 4.4.2022, requereu ainda a Ré a junção de documentos nestes termos:
« Para prova dos factos alegados aqui, no requerimento constante da ata do julgamento e nos articulados, a respeito do requerido pela A (e do verdadeiro calibre da Autora e do irmão da Ré EE), requer a junção aos autos das decisões judiciais condenatórias proferidas em processos-crime em que aqueles dois foram condenados pela pratica de factos ilícitos, protestando juntar documentos que fazem parte de processo judiciais arquivados (que atestam que a Autora sempre se referiu - em processos judiciais - à moradia destes autos, como sendo a casa da Ré), designadamente o processo 88/17.5GDSNT - (identificado na consulta destes autos que o DIAP de (...) cf. pedido com a refa10692557, em 21.09.2017).»
Tal requerimento foi indeferido nestes termos:
«O momento processual para juntar prova quanto ao alegado nos articulados, mostra-se, há muito, ultrapassado; o requerimento em apreço, sequer, é a sede própria para alegar quaisquer factos; pois que, este, se destina apenas a exercer o contraditório quanto a documentos juntos aos autos; termos em que não tem cabimento pretender requerer prova para factos alegados neste requerimento; e em ata também não ocorreu alegação de factos.
A isto acresce que “o verdadeiro calibre da Autora” não corresponde a matéria de facto controvertida objeto de julgamento; muito menos, se justificando tal tipo de prova quanto ao “irmão da Autora” que sequer é parte nestes autos.»
Apreciando.
Nos termos do Artigo  443º, nº1, o juiz não deve admitir a junção de documentos que sejam impertinentes ou desnecessários.
Conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 554:
«Documento impertinente é o que diz respeito a factos estranhos à matéria da causa, a factos cuja prova seja irrelevante para a sorte da ação. De um modo abrangente, pode afirmar-se que um meio de prova será pertinente desde que se pretenda provar com o mesmo um facto relevante para a resolução do litígio, seja de um modo direto, por se tratar de um facto constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo, seja de um modo indireto, por se tratar de um facto que permite acionar ou impugnar presunções das quais se extraiam factos essenciais ou ainda por se tratar de facto importante para apreciar a fiabilidade de outro meio de prova.
São desnecessários os documentos que, atento o estado da causa, sejam insuscetíveis de acrescentar um elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide, ou por dizerem respeito a factos que já se mostram devidamente comprovados, ou por respeitarem a factos que não constam do elenco a apurar na causa, ou ainda por já constar do processo documento de igual ou superior relevo.»
Ora, conforme bem sinalizou o tribunal a quo, “o verdadeiro calibre da autora” e a situação do seu irmão (que não é parte na causa) não integram a matéria de facto relevante para a apreciação de mérito dos autos,  a qual foi definida nos temas da prova. Dito de outra forma, é de afastar a pertinência da junção de documentos para a pretendida prova de factualidade espúria e marginal, insuscetível de – mesmo a provar-se – interferir na apreciação final de mérito da ação e da reconvenção.
O requerimento em causa só se compreende num contexto de elevada litigiosidade, como é o caso, em que as partes litigam já sem capacidade de discernir entre o essencial e o que é meramente emulativo e ufano.
Argui a apelante que, ao decidir da forma que o fez, o tribunal a quo violou grosseiramente o disposto nos Artigos 1º, 2º, 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa.
Todavia, esta alegação genérica de inconstitucionalidade não está concretizada nem especificamente fundamentada.
Com efeito, a questão da inconstitucionalidade tem de ser colocada de forma atempada, clara e percetível para que o tribunal saiba que questão tem para resolver – cf. Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, Breviário de Direito Processual Constitucional, 2ª ed., p. 47.
Conforme se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 242/2007:
«Para além de não se apontar aqui para a violação de qualquer norma ou princípio constitucional, não se especifica uma determinada interpretação normativa em termos de o Tribunal a poder vir a enunciar numa decisão. Ora, quando “se suscita a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa (ou de certas) normas jurídicas, necessário é que se identifique essa interpretação em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os destinatários delas e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa (ou essas) normas não podem ser aplicadas com um tal sentido” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 106/99, não publicado).»
A apelante limita-se a arguir genericamente a inconstitucionalidade sem propor um concreto enunciado interpretativo que, a ser acolhido, possa integrar um dispositivo de declaração de inconstitucionalidade.
Por outro lado, o juízo de inconstitucionalidade só é formulável sobre interpretação normativas e não sobre decisões. Com efeito, o juízo de constitucionalidade é formulável sobre normas e interpretações legais e não sobre decisões judiciais condenatórias de per si. Na síntese clara do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 62/2017:
«(…) sublinhamos corresponder a um traço identitário do nosso sistema de controlo da constitucionalidade a respetiva incidência normativa, com o sentido funcional, de há muito cimentado na jurisprudência do Tribunal Constitucional, de abranger normas e interpretações normativas, considerando o Tribunal, “[…] que a sua apreciação e a sua decisão não têm de respeitar necessariamente à norma «on its face» e em toda a sua dimensão, mas bem podem (e devem) muitas vezes circunscrever-se a uma sua certa interpretação – sendo só essa interpretação (a estabelecida pelo tribunal recorrido) que o Tribunal, consoante o que sobre ela vier a entender, avalisará ou cassará” [José Manuel Cardoso da Costa, “Justiça Constitucional e Jurisdição Comum (Cooperação ou Antagonismo)”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, Vol. II, Coimbra, 2012, p. 203]. Com efeito, ao contrário de outros sistemas que consagram a possibilidade de um controlo jurisdicional diretamente dirigido às decisões dos restantes tribunais, como é o caso do sistema espanhol (através do recurso de amparo) e do sistema alemão (por via da queixa de constitucionalidade dirigida ao Tribunal Constitucional), no sistema português a fiscalização incide – e só incide – sobre normas, estando excluída a apreciação pelo Tribunal Constitucional de recursos que questionem, mesmo que o façam numa perspetiva de conformidade a regras e princípios constitucionais, os concretos atos de julgamento expressos nas decisões dos outros Tribunais. Julga este Tribunal, pois, na fase final de controlo concentrado que lhe está cometida, a desconformidade ou não desconformidade, face à Constituição, de normas jurídicas – com o sentido antes referido – aplicadas no tribunal a quo» (sublinhado nosso).
Assim sendo, não se aprecia a arguida inconstitucionalidade porquanto a mesma não foi suscitada com observância dos requisitos exigidos pelo Artigo  70º, nº1, al. b), da Lei nº 28/82, de 15.11.
Termos em que, sendo desnecessárias outras considerações, deverá também improceder o recurso nesta parte.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 14.7.2022
Luís Filipe Sousa
José Capacete
Carlos Oliveira
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).