Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1860/21.7T8SXL.L1-8
Relator: CARLA SOUSA OLIVEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PERDA TOTAL DO VEÍCULO
COMUNICAÇÃO À CRA E DGV
REPARAÇÃO PELO PROPRIETÁRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - As comunicações previstas no art.º 15º, nº 1, do DL 44/2005, de 23.02 só são obrigatórias para a companhia de seguros e só se justificam quando o veículo sinistrado é alienado a terceiro adquirente e na qualidade de salvado (art.º 13º, do citado diploma) e não quando o mesmo já foi reparado pelo proprietário/lesado em momento anterior ao do pagamento da respectiva indemnização pela dita seguradora.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. Relatório
R…, intentou a presente acção declarativa com processo comum contra F…, Companhia de Seguros, SA, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização, no valor global de €5.105,27 (sendo €1.605,27 a título de danos patrimoniais e €3.500,00, a título de danos não patrimoniais), acrescida de juros de mora, a contar da citação e até integral pagamento.
Alegou, para tanto e em suma, que a ré agiu ilicitamente ao comunicar ao IMT e à CRA, de forma unilateral e sem informar a autora, a situação de perda total do veículo desta, provocando-lhe danos patrimoniais e não patrimoniais que computou na quantia global acima referida.
Regularmente citada, a ré veio contestar, pugnando pela improcedência da acção.
Realizada uma tentativa de conciliação, sem sucesso, foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador, bem como despacho a fixar o objecto do processo e a enunciar os temas da prova.
Veio a efectivar-se a audiência final com a prolação de sentença que julgou totalmente improcedente a acção.
Inconformada, apelou a autora da sentença concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“1. O Tribunal Recorrido entendeu que “no caso referido nestes autos a Ré nunca alterou o carácter da avaliação inicial que a sua congénere (L…) havia efectuado, tendo as negociações entre Autora e Ré sido firmadas nesse pressuposto e que segundo a perspectiva do sentido de um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, “(...) o acordo extrajudicial obtido teve como pressuposto a circunstância de a Ré considerar o carácter de perda total do veículo – sendo tal circunstância do conhecimento da Autora.”
2. Esta posição do Tribunal “a quo” resulta alicerçada, essencialmente, na matéria inserta nos pontos 6), 7), 9) e 10) dos factos provados e na resposta negativa ao facto da alínea a) dos factos não provados, supra transcritos.
3. Resulta do teor dos documentos n.ºs 2 e 3 juntos com a Petição inicial, assim como emerge do documento n.º 7 junto à contestação, a clara posição da Apelante em opor-se à declaração de “Perda Total” do veículo sinistrado, matéria que, inclusive, está vertida no ponto 6) dos factos assentes.
4. A Apelante aceitou firmar acordo com a Apelada para efeitos exclusivamente indemnizatórios, tendo resultado afastado qualquer declaração ou entendimento de aceitação em relação à declaração de perda total (cfr. Depoimento da testemunha S… - acta de julgamento de 09/06/2022 – passagens do depoimento gravado: 00h03m50s-00h04m08s; 00:04:09-00:10:36; 00:10:37-00:13:37 e depoimento da testemunha J… - cfr. acta de julgamento de 07/07/2022 – passagens do depoimento gravado: 00h09m00s- 00h10m14s).
5. O referido acordo foi celebrado, exclusivamente, através de troca de comunicações por correio electrónico, não sendo formalizado qualquer acta transaccional em que expressamente resulte declarado que a Apelante, proprietária do veículo sinistrado, aceitasse a perda total do veículo (cfr. depoimento da testemunha S… - cfr. acta de julgamento de 09/06/2022 – passagens do depoimento gravado: 00:04:09-00:10:36).
6. Através dos e-mails trocados entre as partes, o entendimento que tem de resultar é o de que as partes afastaram a questão respeitante à perda total em consideração ao entendimento firmado para efeitos indemnizatórios (cfr. e-mail junto à PI sob documento n.º 2).
7. À Apelante não foi transmitida a circunstância prevista no artigo 41.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto, que, ademais, somente foi do conhecimento da Apelada por via da informação que lhe foi prestada pela sua congénere L…, após ter sido paga a indemnização à Apelante e firmado o respectivo acordo de pagamento (cfr. factos assentes n.ºs 9) e 13).
8. Também foi somente após o acordo firmado entre as partes é que a Apelada interpelou a sua congênere L… a fim de aferir se as condições de segurança do veículo tinham resultado afectadas (cfr. depoimento da testemunha S… - cfr. acta de julgamento de 09/06/2022 – passagens do depoimento gravado: 00:14:30-00:16:25).
9. Foi a informação respeitante às condições de segurança do veículo, circunstância prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 41.º do Decreto Lei n.º 291/2007 que motivou a comunicação da parte da Apelada às entidades referidas no ponto 12) dos factos provados (cfr. depoimento da testemunha S… - cfr. acta de julgamento de 09/06/2022 – passagens do depoimento gravado: 00:14:30-00:16:25), mas não a circunstância respeitante ao valor do veículo prevista no alínea c) do referido artigo ou a consignada na alínea b) do artigo 13.º do decreto-Lei n.º 44/2005 de 23 de Fevereiro e referida no aresto recorrido (cfr. depoimento da testemunha S… - cfr. acta de julgamento de 09/06/2022 – passagens do depoimento gravado: 00:16:26-00:21:40).
10. Os circunstancialismos previstos na alínea c) do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 e na alínea b) do artigo 13.º do decreto-Lei n.º 44/2005 de 23 de Fevereiro, não se tiveram por preenchidos.
11. O Tribunal Recorrido, contrariamente ao que decorre vertido na Sentença, não pode vincular a Apelante à mera consideração da Ré em aludir à perda total do veículo, uma vez que tal circunstância tem de ser expressa e definitiva e não constituir uma simples consideração vaga ou previsível.
12. Na posição de um declaratário normal, o Tribunal Recorrido tinha de concluir que não resultou qualquer acordo/convenção entre as partes que tivesse como pressuposto a circunstância de resultar expressamente declarada e aceite o carácter de perda total do veículo.
13. O ponto 7) dos factos assentes deve ser modificado, uma vez que não resulta demonstrado que a Apelada, aquando do acordo firmado com a Apelante, tenha mantido o carácter de avaliação inicial de perda total do veículo, conforme resulta dos depoimentos das testemunhas S… e J… e do teor dos documentos n.ºs 2 e 3 juntos à PI e documento n.º 7 junto à contestação.
14. O ponto 7) dos factos provados deve passar a ter a seguinte redacção:
7) Após negociações, resultou firmado entre Autora e Ré acordo extrajudicial nos termos do qual esta assumiu o pagamento de indemnização correspondente ao valor da reparação paga pela Autora (7.800€) e, ainda, 1800€ a título de compensação pela privação do uso do veículo.
15. Com base em tais elementos de prova, o teor da alínea A) dos factos não provados deve passar a constar no rol dos factos provados.
16. A fundamentação do Tribunal “A Quo” relativamente à prova do facto inserto no ponto 11) dos factos provados, padece de erro de apreciação dos meios de prova apresentados em julgamento.
17. O depoimento da testemunha M… contraditou o depoimento da testemunha RR...
18. O depoimento da testemunha M… assumiu particular importância, uma vez que foi o mesmo que supervisionou a reparação realizada no veículo sinistrado.
19. Chamado a pronunciar-se sobre o estado do veículo após a ocorrência do sinistro, a Testemunha M… declarou que os danos ocorridos não afectaram os órgãos fundamentais do carro (cfr. depoimento da Testemunha M… - acta de julgamento de 07/07/2022 – Registo de gravação HMS: 00:00:00-00:24:45 - passagens do depoimento gravado: 00h03m13s-00h05m00s).
20. Acrescentou que a reparação do veículo implicou a substituição de amortecedor, reparação do triângulo de suspensão de um semi-eixo, rótula axial da caixa de direcção (cfr. acta de julgamento de 07/07/2022 – Registo de gravação HMS: 00:00:00-00:24:45 - passagens do depoimento gravado: 00h05m13s- 00h08m25s).
21. Afiançou esta testemunha que o veículo mantinha as condições de segurança para circular, não padecendo de danos estruturais e que, não obstante a caixa de direcção ter sido retirada, a mesma não padecia de danos relevantes susceptíveis de afectar a circulação do veículo (cfr. acta de julgamento de 07/07/2022 – Registo de gravação HMS: 00:00:00-00:24:45 - passagens do depoimento gravado: 00h09m47s-00h13m45s e 00:22:30-00:24:38).
22. Adiantou ainda que, contrariamente à previsão de danos aludida pelo perito da Apelada (cfr. depoimento da testemunha RR… - acta de julgamento de 09/06/2022 – Registo de gravação HMS: 00:00:00-00:26:40 - passagens do depoimento gravado: 00h09m30s-00h12m08s e 00:12:09-00:13:40), os danos ocorridos na parte inferior do pilar à esquerda dianteira do veículo, não configuravam quaisquer danos estruturais, uma vez que não haviam ocorrido danos no chassis ou nas longarinas do carro (cfr. depoimento da testemunha M… - acta de julgamento de 07/07/2022 – Registo de gravação HMS: 00:00:00-00:24:45 - passagens do depoimento gravado: 00h05m30s-00h08m25s).
23. O Tribunal Recorrido devia ter relevado o depoimento da testemunha M…, uma vez que foi através da oficina desta testemunha e mediante a sua supervisão que se procedeu à reparação do veículo e foi este que confirmou os danos, a respectiva extensão dos mesmos e a eventual afectação das condições de segurança do veículo, circunstâncias assaz relevantes para se apurar a eventual condição de perda total prevista no artigo 41.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto, e que, conforme afiançou esta testemunha, não se verificou.
24. A testemunha M…, atenta a sua razão de ciência, é aquela que melhor está habilitada para se pronunciar sobre os reais danos que afectaram o veículo, e a própria testemunha RR… reconhece que, na dúvida, tem que dar a indicação da existência de danos mecânicos e que os danos projectados por via da avaliação que realizou têm sempre de ser confirmados aquando do acto da reparação do veículo (cfr. depoimento da testemunha RR… - acta de julgamento de 09/06/2022 – Registo de gravação HMS: 00:00:00-00:26:40 - passagens do depoimento gravado: 00h09m30s-00h12m08s).
25. Por conseguinte, atento o depoimento destas duas testemunhas resulta à evidência que não resultaram afectadas de forma grave as condições de segurança do veículo.
26. Contrariamente ao sufragado no aresto recorrido, o ponto 11 dos factos provados deve ser modificado e o seu teor ser o seguinte:
11) O veículo sinistrado tinha afectado a suspensão e direcção do veículo da Autora, danos que não afectaram as condições de segurança do veículo.
27. Da prova produzida que serviu de base aos factos assentes nos pontos 14), 16), 17), 18), 19), 20), 21), 22), 23) e 24) e do depoimento da testemunha J… (cfr. acta de julgamento de 07/07/2022 – passagens do depoimento gravado: 00h27m20s-00h28m25s), é patente que sobreveio uma desvalorização do preço do veículo, sendo que em 23/03/2021 a Apelante somente logrou vender o mesmo por € 7 000,00.
28. Deve ser aditado aos factos assentes, o facto seguinte:
- Decorrente da não concretização da venda do veículo em Janeiro de 2021 pelo preço de € 7 500,00, a Apelada somente logrou proceder à sua venda em 23/03/2021 pelo preço de € 7 000,00, o que acarretou uma desvalorização de € 500,00.
29. À Apelante nunca foi transmitida a circunstância prevista no artigo 41.º, n.º 1, alínea b) do Decreto Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto, que, ademais, somente foi comunicada à Apelada por via informação que lhe foi prestada pela sua congénere L…, após ter sido paga a indemnização à Apelante e firmado o respectivo acordo de pagamento.
30. Os circunstancialismos previstos nas alíneas c), n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 e na alínea b) do artigo 13.º do decreto-Lei n.º 44/2005 de 23 de Fevereiro, não se tiveram por preenchidos à data da outorga do acordo entre as partes.
31. Se tal matéria resultasse evidente para a Apelada a mesma teria suscitado a celebração de acordo escrito onde consignaria a perda total do veículo, o que não sucedeu.
32. A Apelada violou, claramente, o seu dever de informação.
33. A declaração de perda total do veículo implica o imediato cancelamento da matrícula, por força da aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto e artigo 119.º do Código da Estrada, incumbindo à Companhia de Seguros, a recolha, junto do proprietário do veículo, do respectivo título de registo de propriedade, independentemente do salvado ficar ou não na posse desse mesmo proprietário.
34. Cabia à Seguradora informar o proprietário do veículo dos procedimentos necessários ao cancelamento da matrícula e dar cumprimento ao estatuído nos artigos 41.º, n.º 5 do decreto Lei 291/2007 de 21 de Agosto e 83.º, n.º 7 do Decreto-Lei 152-D/2017 de 11 de Dezembro (diploma legal que revogou o Decreto-Lei n.º 196/2003, de 23 de Agosto), dever de informação que a Apelada violou.
35. A Apelante, por sua iniciativa procedeu à reparação do veículo e somente à posteriori recebeu a indemnização da companhia que, integralmente, pagou o valor dessa reparação, acrescido de indemnização pelo período de paralisação.
36. A Indemnização pela privação de uso não é contemplada quando é atribuída a perda total.
37. Não resultou negociado o valor do salvado, atendendo a que o veículo foi integralmente reparado, pelo que o conceito de salvado nem sequer é aplicável ao aludido processo de sinistro, o que afasta o estatuído no artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 44/2005 de 23 de Fevereiro.
38. A conduta negocial das partes não se coadunou com a definição de perda total do veículo, não sendo expressamente acordado ou aceite tal consequência legal emergente do sinistro.
39. O carácter de perda total é susceptível de constituir matéria controvertida, pelo que não transcende a esfera jurídica das partes, contrariamente ao sufragado pelo Tribunal recorrido.
40. Para que o proprietário do veículo esteja ciente das consequências do carácter de perda total, tal conceito tem de ser por este aceite e ser-lhe expressamente comunicado pela Seguradora e não cair no âmbito de uma mera interpretação da declaração negocial conforme propugna o Tribunal “a quo”.
41. O Tribunal Recorrido devia ter pugnado pela não verificação da perda total do veículo sinistrado, por não verificação do estatuído na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do Decreto Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto e na alínea b) do artigo 13.º do Decreto Lei n.º 44/2005 de 23 de Fevereiro.
42. Também não se têm por verificadas as circunstâncias previstas nas alíneas b) do n.º 1 do artigo 41.ºdo Decreto Lei 291/2007 de 21 de Agosto ou na a) do artigo 13.º do decreto Lei n.º 44/2005 de 23 de Fevereiro, uma vez que o veículo sinistrado não sofreu danos que tenham afectado as suas condições de segurança.
43. Andou mal o Tribunal Recorrido ao afastar a ilicitude da conduta da Apelada no que respeita à comunicação que se encontra vertida no ponto 12 dos factos provados que, tão pouco, foi do conhecimento da Apelante (ponto 13 dos factos provados).
44. A conduta ilícita da Apelada acarretou as consequências que se encontram elencadas nos pontos 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 25 da matéria assente, resultando assim preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil.
45. A Sentença Recorrida está em clara oposição com o estatuído nos artigos 41.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 5 do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto, 13.º, alíneas a) e b) do Decreto-Lei n.º 44/2005 de 23 de Fevereiro, 83.º, n.º 7 do Decreto-Lei n.º 152-D/2017 de 11 de Dezembro, 236.º, n.ºs 1 e 2 e 238.º. n.ºs 1 e 2 e 483.º do Código Civil, disposições normativas que resultaram manifestamente violadas pelo aresto recorrido.
46. Atenta a matéria de facto que resultou provada, tanto por via da Sentença, como por via da modificação da matéria de facto promovida através do presente recurso, o Tribunal Recorrido devia ter julgado absolutamente procedentes os pedidos indemnizatórios formulados pela Apelante nestes autos.”.
A ré apresentou contra-alegações, sem conclusões, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido pelo tribunal a quo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente são as seguintes:
a) da modificação da decisão sobre a matéria de facto, mormente por via do erro no julgamento quanto aos pontos 7. e 11. do elenco dos factos provados e al. A. dos não provados; e
b) do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil da ré e da consequente obrigação de indemnizar a autora pelos danos apurados.
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III. Fundamentação
3.1. Os factos
O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos (destacando-se a negrito a matéria de facto ora impugnada):
A) FACTOS PROVADOS
1) No dia 22/06/2019, quando conduzia o veículo Renault Megane, matrícula …IZ, a Autora sofreu um acidente de viação, pelo qual foi responsável o condutor do veículo Renault Capture, matrícula …XL.
2) À data do acidente, a responsabilidade civil decorrente de danos causados pela circulação do veículo matrícula …XL estava transferida para a Ré, por contrato de seguro titulado pela Apólice Automóvel n.º ….
3) O acidente foi inicialmente regularizado ao abrigo da convenção CIDS, tendo a L… Companhia de Seguros, S.A., na qualidade de credora, diligenciado pela avaliação dos danos do veículo da Autora, …IZ e tendo-o considerado em situação de perda total.
4) Em 31/12/2019 a Autora, a expensas suas, ordenou que fosse realizada a reparação do veículo.
5) Em virtude da circunstância referida em 4), o processo de sinistro foi retirado da convenção CIDS e a Autora encaminhada para os serviços da Ré.
6) Para a regularização dos danos emergentes do sinistro rodoviário referido em 1), a Autora opôs-se à declaração de perda total da viatura, por entender que o valor da reparação, acrescido do valor do salvado, não era superior a 120% do valor venal do veículo.
7) Após negociações, a Ré manteve o caracter da avaliação inicial (perda total do veículo) tendo resultado firmado entre Autora e Ré acordo extrajudicial nos termos do qual esta assumiu o pagamento de indemnização correspondente ao valor da reparação paga pela Autora (7.800€) e, ainda, 1800€ a título de compensação pela privação do uso do veículo, conforme e-mails juntos aos autos a fls. 45, 45 verso e 13, que consideramos integralmente reproduzidos.
8) A Autora manteve-se na posse do veículo.
9) Em 5/5/2020, a Ré solicitou à L…, o envio de informação quanto às condições de segurança da viatura.
10) Tendo a L… remetido à Ré o boletim de Perda Total da viatura da Autora.
11) O sinistro tinha afectado a suspensão e direcção do veículo da Autora.
12) Em virtude do facto descrito em 11), em 12/5/2020 a Ré remeteu as comunicações de perda total do veículo da Autora ao IMT e à CRA.
13) A Ré não comunicou à Autora a circunstância referida em 12).
14) Em Janeiro de 2021, quando estava em vias de concretizar o negócio respeitante à venda do veículo matrícula …IZ, a Autora foi surpreendida pelo comprador com a informação de que em 11/01/2021 a viatura tinha sido declarada pela Ré, junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), como perda total, pelo que estaria com declaração de apreensão e impedida de circular.
15) Após o sinistro referido em 1), o veículo foi objecto de inspecção periódica em 22/02/2020, não tendo resultado registada qualquer deficiência.
16) A circunstância referida em 14) determinou a inibição da circulação do veículo, e implicou que fosse lavrado termo de apreensão emitido pelo Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.
17) O facto referido em 14), detectado pela Autora no acto da venda, impediu que a venda do veículo se concretizasse em Janeiro de 2021, pelo valor de 7.500€.
18) A Autora teve de devolver ao comprador o valor dos 7.500€ que já havia sido entregue.
19) E teve de providenciar pela devolução e transporte do veículo, que já se encontrava na posse do comprador, em Leiria, através de serviço de reboque, com o qual despendeu 12,20€.
20) E teve de diligenciar pelo cancelamento do registo de propriedade (decorrente da venda), tendo gasto o valor de 170€.
21) E teve de diligenciar pela preparação e submissão do veículo a uma inspecção de categoria B, com a qual despendeu o valor de 908,07€.
22) E teve de diligenciar, junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), pelo levantamento da apreensão da sua viatura, tendo pago o valor de 15,00€.
23) A Autora apenas conseguiu concretizar a venda do veículo em 23/03/2021, pelo preço de € 7 000,00.
24) Com as condutas da Ré, descritas em 14) e 15), a Ré criou a convicção junto do terceiro adquirente do veículo (em Janeiro de 2021), de que este estaria a negociar com pessoa de má índole, que havia ocultado a existência de ónus sobre o bem que estava ser transaccionado.
25) Todo esse circunstancialismo afectou a imagem, o bom nome e a reputação da Autora, tendo provocado nela vergonha e consternação.
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B) FACTOS NÃO PROVADOS
A. O acordo outorgado pelas partes não consignava a declaração de perda total do veículo.”.
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3.2. Da modificabilidade da decisão de facto
Conforme decorre do que deixamos acima exarado, a recorrente veio primordialmente impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada no código de processo civil actualmente vigente, nomeadamente nos seus art.ºs 640º e 662º.
Nos termos do disposto no art.º 662º, nº 1, do NCPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Todavia, é jurisprudência pacífica que a Relação não deve reapreciar a matéria de facto se a alteração pretendida não tiver qualquer relevância jurídica, isto é, se for inócua para a decisão da causa, se for insusceptível de fundamentar a sua alteração, sob pena de levar a cabo uma actividade processual inútil que, por isso, lhe está vedada pela lei (art.º 130º do NCPC).
Neste sentido, afirma-se o seguinte no ac. da nRC, de 16.02.2017 (processo nº 52/12.0TBMBR.C1, disponível em www.dgsi.pt): «Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente».
No mesmo sentido, afirma-se no ac. da RG, de 11.11.2021 (processo nº 671/20.1T8BGC.G1 e acessível in www.dgsi.pt) que «[n]ão se deve proceder à reapreciação da matéria de facto quando a alteração nos termos pretendidos pelos Recorrentes, tendo em conta as específicas circunstâncias em causa, não tenha qualquer relevância jurídica, sob pena de, assim não sendo, se estarem a praticar atos inúteis, que a lei não permite.».
Ainda no mesmo sentido se pronunciou este Tribunal da Relação de Lisboa, no seu ac. de 26.09.2019 (processo nº 144/15.4T8MTJ.L1-2 e também acessível in www.dgsi.pt).
Também o STJ sufraga esta jurisprudência, afirmando o seguinte no seu ac. de 14.07.2021 (processo nº 65/18.9T8EPS.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt): «Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo. O mesmo é dizer que só se justifica que a Relação faça uso dos poderes de controlo da matéria de facto da 1ª instância quando essa actividade da Relação recaia sobre factos que tenham interesse para a decisão da causa, ut art.º 130º do CPC. Quando assim não ocorre, a Relação deve abster-se de apreciar tal impugnação.».
É, precisamente, o que ocorre no caso vertente pois, como melhor decorrerá da exposição subsequente, independentemente da alteração pretendida, sempre teria o tribunal ad quem que concluir pela verificação dos pressupostos do direito de indemnização que a recorrente pretende ver tutelado e, consequentemente, pela procedência da acção.
Não obstante o que deixamos dito, o tribunal de recurso não só pode, como deve sanar oficiosamente e quando para tal tenha todos os elementos, os vícios de deficiência, obscuridade ou contradição da factualidade enunciada, tal como decorre do disposto no art.º 662º, nº 2, al. c) do NCPC.
Com efeito, na reapreciação da matéria de facto – vide nº 1 do art.º 662º do NCPC - a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão, levando, para tanto, em consideração, sem dependência da iniciativa da parte, os factos admitidos por acordo, os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito por força do disposto no art.º 607º, nº 4 do NCPC (norma que define as regras de elaboração da sentença) ex vi art.º 663º do NCPC (norma que define as regras de elaboração do acórdão e que para o disposto nos art.ºs 607º a 612º do NCPC remete, na parte aplicável).
Na verdade, e não obstante a redacção dada aos pontos 12 e 14 do elenco dos factos provados não ter sido impugnada, ressuma dos elementos coligidos nos autos, nomeadamente da posição expressamente assumida pela ré na contestação (cfr. artigos 16º e 17º, do aludido articulado), bem como e sobretudo dos documentos juntos com aquele articulado, não ser certo que a ré tenha comunicado ao IMTT e à conservatória do registo automóvel a perda total do veículo pertencente à autora.
Com efeito, declarada a perda total de um veículo, as empresas de seguros, por força do nº 5 do art.º 41º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08, e independentemente da hipótese aplicável (als. a), b) e c) do nº 1 do mencionado preceito legal), devem observar o art.º 119º do Código da Estrada (CE), respeitante ao cancelamento da matrícula.
Denote-se que, nos termos do disposto no art.º 119º do CE, na redacção da Lei 20/02 de 21.08 “1 - O proprietário deve requerer o cancelamento da matrícula, no prazo de 30 dias, quando o veículo fique inutilizado ou haja desaparecido, sem prejuízo de cancelamento oficioso nos mesmos casos.
(…)
5 - Se o proprietário não for titular do documento de identificação do veículo, o cancelamento deve ser requerido, conjuntamente, pelo proprietário e pelo titular daquele documento.
6 - Sempre que tenham qualquer intervenção em acto decorrente da inutilização ou desaparecimento de um veículo, as companhias de seguros são obrigadas a comunicar tal facto e a remeter o documento de identificação do veículo e o título de registo de propriedade às autoridades competentes.”.
Este diploma foi alterado pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23.02, sendo que no essencial se manteve o disposto na redacção anterior, ou seja a matrícula do veículo deve ser cancelada quando este fique inutilizado pelo acidente, sendo que o cancelamento deve ser requerido pelo proprietário inscrito, no prazo de 30 dias, ou conjuntamente, pelo proprietário e pelo titular daquele documento, incumbindo às seguradoras, nos termos do nº 8, a obrigação de comunicação de tal facto e a o envio do documento de identificação do veículo e do título de registo de propriedade, às autoridades competentes.
Ora, no caso, temos por evidente que a ré não promoveu o cancelamento da matrícula do veículo automóvel pertencente à autora (como a própria ora recorrente evidencia nas suas alegações de recurso), tendo antes e apenas a ré procedido às comunicações a que se alude no art.º 15º, do DL 44/2005, de 23.02, conforme resulta expresso dos documentos acima assinalados.
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Destarte, decide-se alterar oficiosamente a redacção dos pontos 12. e 14. do elenco dos factos provados, passando a constar dos mesmos o seguinte:
“12) Em virtude do facto descrito em 11), em 12/5/2020 a Ré remeteu ao IMT e à CRA as cartas que constituem os documentos nºs 13 e 14 juntos com a contestação e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo por assunto o art.º 15º, do DL 44/2005, de 23.02 e informando aquelas entidades da data do sinistro; que as condições de segurança do veículo ficaram afectadas e que o veículo ficou na posse da proprietária, constando ainda das aludidas comunicações os elementos identificadores do veículo e da sua proprietária.
14) Em Janeiro de 2021, quando estava em vias de concretizar o negócio respeitante à venda do veículo matrícula ...IZ, a Autora foi surpreendida pelo comprador com a informação de que em 11/01/2021 a Ré tinha procedido à comunicação prevista no art.º 15º, do DL 44/2005 de 23.02, junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), pelo que estaria com declaração de apreensão e impedida de circular.”.
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3.3. Do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil da ré e da consequente obrigação de indemnizar a autora pelos danos apurados.
Ante o acima exposto, importa agora averiguar da existência da invocada responsabilidade civil extracontratual da ré/recorrida.
Como é por demais consabido, para que se verifique a obrigação de indemnizar, é, em princípio, necessário que se verifiquem todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, previstos no art.º 483º, nº1, do CC: o facto ilícito, o nexo de imputação subjectivo do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade adequada entre aquele facto e este dano.
Assim, para além da voluntariedade do acto, exige-se que a conduta seja ilícita, na forma de violação de um direito de outrém ou de violação de lei que protege interesses alheios, o que implica averiguar se houve infracção de uma dessas normas, se a tutela de interesses particulares figura entre os seus fins e se o dano se verifica no circulo de interesses tutelado.
Mais se exige uma conduta culposa do agente, ou seja, que ele tenha actuado com dolo ou negligência, consagrando-se no art.º 487º, nº 2, do CC a tese da culpa em abstracto que tem como referência o comportamento de um “bom pai de família”, um homem normalmente cauteloso e zeloso.
E em princípio, quando não existe presunção de culpa é o lesado que tem o ónus de provar a culpa de lesante, nos termos do nº 1, da referida norma; havendo-a, inverte-se esse ónus, conforme a regra do art.º 344º, nº 1, do CC.
Finalmente impõe-se que ocorra um prejuízo, seja na esfera patrimonial, seja na esfera não patrimonial, o qual deverá ser consequência adequada do facto ilícito, já que a obrigação de indemnizar se limita aos danos efectivamente causados pelo lesante (art.ºs 562º, 563º e 564º, todos do CC).
Apurados os prejuízos ficará a cargo do autor do facto lesivo reconstituir a situação que existiria se não se tivessem verificado as consequências desse facto, devendo a indemnização, sempre que fixada em dinheiro, por ser impossível a restauração natural, medir-se pelos critérios da teoria da diferença - pela diferença entre a situação actual real do lesado e a situação hipotética em que se encontraria se não fosse o dano, atenta a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal.
Ora, em matéria de responsabilidade extracontratual, cabe ao lesado a prova do facto ilícito, da imputação do facto aos demandados, a título de culpa, do nexo de causalidade entre o facto e o dano (art.º 342º, nº 1 do CC).
Sendo tais pressupostos, como vimos, elementos constitutivos do direito de indemnização, a sua prova é, naturalmente, posta a cargo de quem invoca esse direito.
No caso, a autora/recorrente veio alegar que a ré seguradora procedeu indevidamente à comunicação de perda total do seu veículo.
Todavia, conforme já explicitamos acima, tal não é inteiramente correcto.
Com efeito, ressalta da facticidade apurada que, tendo a ré concluído que o veículo da autora/recorrente, em consequência do sinistro ocorrido em 22.06.2019, sofreu danos que comprometiam as suas condições de segurança remeteu, em 12.05.2020, as respectivas comunicações ao IMT e à CRA, com vista ao cumprimento do disposto no art.º 15º do DL 44/2005 de 23.02.
Vejamos, então se a ré estava efectiva e legalmente obrigada a proceder a tais comunicações – questão, aliás, também expressamente abordada na sentença recorrida.
Para a aquilatação de tal questão é necessário convocar o regime previsto nos art.ºs 13º a 15º, do referido DL 44/2005, de 23.02.
Nos termos do art.º 13º, citado diploma legal e para efeitos do disposto no mesmo, entende-se salvado o veículo a motor que, em consequência de acidente, entre na esfera patrimonial de uma companhia de seguros por força de contrato de seguro automóvel e:
- Tenha sofrido danos que afectem gravemente as suas condições de segurança; ou
- Cujo valor de reparação seja superior a 70% do valor venal do veículo à data do sinistro.
Nos termos do art.º 14º, do predito DL 44/2005, de 23.01, as companhias de seguros devem comunicar à Conservatória do Registo Automóvel e ao IMT todas as vendas de salvados de veículos a motor.
A comunicação é efectuada por carta registada, a remeter no prazo de 10 dias a contar da data da transacção, e deve identificar o adquirente através do nome, residência ou sede e número fiscal de contribuinte, bem como o veículo através da matrícula, marca, modelo e número do quadro, indicando ainda o valor da venda – cfr. nº 2, do aludido normativo.
Com esta comunicação devem ainda as companhias de seguros remeter à Conservatória do Registo Automóvel e ao IMT, respectivamente o título de registo de propriedade e o documento de identificação do veículo (cfr. art.º 12º, nº 3, do mesmo compendio legal).
Por fim, nos termos do art.º 15º, do aludido Decreto-Lei nº 44/2005, de 23.02:
“1- As companhias de seguros devem comunicar também à Conservatória do Registo Automóvel e à Direcção-Geral de Viação a identificação dos veículos e dos respectivos proprietários, com os elementos e nos termos referidos no n.º 2 do artigo anterior, sempre que esses veículos:
a) Se encontrem em qualquer das condições referidas nas alíneas a) e b) do artigo 13.º;
b) Sendo satisfeita a indemnização por companhia de seguros, aquela não se destine à efectiva reparação do veículo.
2 - A comunicação referida no número anterior deve ser feita igualmente por todos os proprietários de veículos nas condições previstas nas alíneas a) e b) do mesmo número que procedam à sua venda a outrem que não seja a respectiva empresa de seguros.
3 - Com a comunicação referida no número anterior, devem os proprietários dos veículos remeter à Conservatória do Registo Automóvel e à Direcção-Geral de Viação, respectivamente, o título de registo de propriedade e o documento de identificação do veículo.
(…).”.
Da análise conjugada destes normativos ressalta que as companhias de seguros devem comunicar à Conservatória do Registo Automóvel e ao IMT não só a identificação dos veículos e dos respectivos proprietários, mas devem fazê-lo através de carta registada, a remeter no prazo de 10 dias a contar da data em que o mesmo tiver sido vendido e, consequentemente, deve identificar o adquirente através do nome, residência ou sede e número fiscal de contribuinte, indicando ainda o valor da venda. Vide, neste sentido, António Augusto Tolda Pinto, Código da Estrada Anotado, 2ª ed., p. 327 a 329.
Veja-se ainda que a comunicação deve ser feita igualmente por todos os proprietários de veículos nas condições mencionadas no art.º 13º sempre que procedam à sua venda a outrem que não seja a respectiva seguradora, devendo nesse caso também remeter às entidades competentes o título de registo de propriedade e o documento de identificação do veículo.
Nestes termos, temos por certo que as comunicações previstas no art.º 15º só são obrigatórias para a companhia de seguros e só se justificam quando o veículo sinistrado é alienado a terceiro adquirente e na qualidade de salvado (cfr. art.º 13º) e não quando o mesmo é reparado pelo proprietário (lesado). E muito menos se justificam quando tal reparação foi efectivada ainda antes da seguradora ter procedido ao pagamento da indemnização à lesada, como sucedeu no caso presente (cfr. ponto 4. do elenco dos factos provados).
Não será despiciendo salientar ainda que, da facticidade apurada ressalta que a autora, ora recorrente, não só se opôs à declaração de perda total da viatura, por entender que o valor da reparação, acrescido do valor do salvado, não era superior a 120% do valor venal do veículo, como procedeu à reparação do mesmo, tendo, a ré, após negociações, firmado um acordo extrajudicial com aquela nos termos do qual assumiu o pagamento de indemnização correspondente ao valor da reparação paga pela autora (7.800€) e, ainda, 1800€ a título de compensação pela privação do uso do veículo. (cfr. ponto 7. do elenco dos factos provados).
De todo o modo, não se pode de forma alguma concordar com o tribunal a quo quando concluiu que «o sinistro em causa provocou no veículo da Autora danos que afectaram, de forma grave, as suas condições de segurança, na medida em que provocou alterações estruturais na suspensão e na direcção do veículo da Autora (facto 11) da matéria de facto provada), preenchendo a previsão da alínea a) do art.º 13.º do DL 44/2005, de 23/02 e a alínea b) do n.º 1 do art.º 41.º do DL 291/2007, de 21/08 e, como tal, sempre estaria numa situação de “perda total”.».
Ora, do ponto 11. do elenco dos factos provados apenas consta que o sinistro afectou a suspensão e direcção do veículo da autora, mas já não que tal sinistro provocou danos estruturais no veículo em causa.
Ou seja, não se pode extrair e muito menos extrapolar dos factos provados, como fez o tribunal recorrido, que no caso as condições de segurança do veículo ficaram gravemente afectadas em consequência do sinistro, como exige o aludido art.º 13º, do DL 44/2005, de 23.02.
De todo o exposto, ressalta que a ré procedeu sem fundamento às comunicações a que alude o art.º 15º, do DL 44/2005, de 23.02.
E, assim sendo, temos por verificada a existência do facto ilícito - ofensa dos direitos absolutos da autora, provocada pelo facto de a ré ter procedido de forma infundada às comunicações previstas no citado art.º 15º, do Dl 44/2005, de 23.02, levando a que a autora não pudesse dispor livremente do seu veículo por ter sido determinada a apreensão dos respectivos documentos -, bem como do dano - os prejuízos sofridos pela autora, designadamente, com a anulação da venda e regularização da viatura e a afectação da imagem, do bom nome e da reputação da autora - e do nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano sofrido - na verdade, os danos, resultaram, directa e necessariamente, do facto praticado pela ré.
Resta apurar da culpa da ré - o nexo de imputação subjectiva do facto ao lesante (que como já referimos é também um dos pressupostos da obrigação de indemnizar com base em factos ilícitos).
Cremos, porém, que no caso dos autos, é apodítico que a ré actuou, pelo menos, com negligência grave, dado ter procedido às ditas comunicações apesar de não poder desconhecer que a autora tinha já procedido à reparação do veículo (veja-se que a ré aceitou indemnizar a autora pelo valor correspondente ao que a mesma havia despendido com a reparação, conforme decorre do ponto 7. dos factos provados), e sem sequer saber se a autora pretendia transaccionar o aludido veículo, dado que procedeu às comunicações ao IMT e à CRA sem previamente informar a autora de tal circunstância (ponto 13. do elenco dos factos provados).
Constituiu-se assim a ré na obrigação de indemnizar a autora pelos danos por esta sofridos em consequência do evento e a estes vinculados por nexo de causalidade adequada.
De acordo com o disposto nos art.ºs 562º e 564º, do CC quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, compreendendo o dever de indemnizar não só o prejuízo causado como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.
Ao nível dos danos patrimoniais, importa considerar que em consequência da actuação ilícita e culposa da ré, a autora teve de suportar despesas no valor global de €1.105,27 (cfr. pontos 19. a 22. do elenco dos factos provados).
Tem, pois, a autora o direito de exigir da ré a referida quantia a título de danos emergentes, uma vez que não fora a descrita conduta da ré não teria aquele sofrido no seu património tal dispêndio.
Por outro lado, tem ainda o direito a exigir da ré o pagamento do valor de €500,00, a título de lucros cessantes (correspondente ao valor que a autora deixou de ganhar, em consequência da venda do veículo realizada em Janeiro de 2021 ter ficado sem efeito) – cfr. pontos 17., 18. e 23. do elenco dos factos provados.
Analisemos agora o pedido de indemnização relativamente aos danos não patrimoniais. Danos não patrimoniais são aqueles que não atingem os bens materiais do lesado ou que, de qualquer modo, não alteram a sua situação patrimonial – formulação negativa –, ou seja, aqueles danos que têm por objecto um bem ou interesse sem conteúdo patrimonial, insusceptível, em rigor, de avaliação pecuniária. A indemnização não visa propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido - ver De Cupis, Il Dano, Teoria Generale della Ressponsabilità Civile, Milano, 1966, p. 44 e seguintes, e Antunes Varela, Das Obriga­ções em Geral, 4ª edição, p. 560.
Segundo o art.º 496º, nº 1 do CC, na fixação da indemnização devem atender-se os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpa do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso – art.ºs 496º nº 3 e 494º do CC – e também aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência.
Com efeito, a indemnização por danos não patrimoniais deve ser fixada de forma equilibrada e ponderada, segundo critérios de equidade, atendendo em qualquer caso (quer haja dolo ou mera culpa do lesante) ao grau de culpabilidade do ofensor, à situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso, como por exemplo, o valor actual da moeda.
Como realçam Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, p. 501, “o montante de indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas de criteriosa ponderação da realidade da vida”. (No mesmo sentido, Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 4ª edição, p. 533).
A este propósito afirma-se no ac. do STJ, de 23.11.2011, processo nº 90/06.2TBPTL.G1.S1, acessível in www.dgsi.pt, «este recurso à equidade não afasta, no entanto, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso. Como se escreveu no acórdão de 25 de Junho de 2002 (www.dgsi.pt, proc. nº 02A1321), cumpre “não nos afastarmos do equilíbrio e do valor relativo das decisões jurisprudenciais mais recentes”.».
No que respeita ao quantum indemnizatório, a fixar segundo critérios de equidade, há que atender à extensão e gravidade dos danos, ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc. (cfr. Antunes Varela, in obra e loc. citada).
E ensina ainda Antunes Varela, ob. citada, p. 534, "A indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.”.
Conforme resulta provado a este propósito, com a sua conduta, a ré criou a convicção junto do terceiro adquirente do veículo (em Janeiro de 2021), de que este estaria a negociar com pessoa de má índole, que havia ocultado a existência de ónus sobre o bem que estava ser transacionado. E ainda que todo esse circunstancialismo afectou a imagem, o bom nome e a reputação da autora, tendo provocado nela vergonha e consternação.
Importa começar por apreciar se o dano sofrido merece a tutela do direito, já que os simples incómodos, arrelias e contrariedades não justificam indemnização por danos não patrimoniais, precisamente porque não têm suficiente gravidade para serem juridicamente tutelados (pelo menos, civilmente). Pensamos, todavia, ser por demais evidente que no caso não estamos perante simples arrelias ou contrariedades. A afectação da imagem, do bom nome e da reputação da autora e a vergonha e consternação por isso causado merece a protecção do direito, sendo assim o dano sofrido indemnizável (cfr. também o art.º 70º, do CC).
E tendo em conta as descritas consequências nos direitos de personalidade da autora, temos de considerar ser significativa a gravidade da lesão sofrida.
Atendendo a tais considerandos e aos padrões jurisprudenciais relativos aos montantes indemnizatórios atinentes a danos não patrimoniais, tendemos a fixar o montante compensatório de tais danos, com o subjectivismo sempre presente nas decisões que fazem apelo à equidade, em €3.500,00, conforme peticionado e, portanto, sem actualização a esta data.
Por conseguinte, a ambos os montantes – quer o fixado a propósito dos danos não patrimoniais, quer o montante fixado a título de danos não patrimoniais – serão acrescidos de juros de mora à taxa de 4% - art.ºs 569º, 804º, 805º, 2, al. b) e 806º do CC -, desde a citação e até integral pagamento. Cfr. neste sentido, entre outros, os acs. da RL 5.05.2021, da RP de 27.09.2018 e do STJ de 10.12.2019, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Procede, por isso, o recurso da autora, nos termos acima expostos.
As custas da acção e deste recurso são da responsabilidade da recorrida (art.º 527º do NCPC).
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SUMÁRIO (art.º 663º nº 7 do NCPC):
I - As comunicações previstas no art.º 15º, nº 1, do DL 44/2005, de 23.02 só são obrigatórias para a companhia de seguros e só se justificam quando o veículo sinistrado é alienado a terceiro adquirente e na qualidade de salvado (art.º 13º, do citado diploma) e não quando o mesmo já foi reparado pelo proprietário/lesado em momento anterior ao do pagamento da respectiva indemnização pela dita seguradora.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida que se substitui pela seguinte decisão: condena-se a ré F…, Companhia de Seguros, SA a pagar à autora R… a quantia no valor global de €5.105,27 (cinco mil, cento e cinco euros e vinte e sete cêntimos), sendo o montante de €1.605,27 a título de danos patrimoniais e o de €3.500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, a contar da citação e até integral pagamento.
As custas da acção e do recurso são da responsabilidade da recorrida.

Lisboa, 27.04.2023
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Rui Manuel Pinheiro Oliveira