Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6/22.9GDCTX-C.L1-9
Relator: BRÁULIO MARTINS
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIDA PELO ARGUIDO
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Diz a lei que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Comprovar provém do latim comprobare “confirmar”, e significa demonstrar alguma coisa, apresentando provas, certificados … para o efeito, verificar ou demonstrar a veracidade de um facto a partir de evidências – cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, Vol I, pág. 895.
Segundo o dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa, da Porto Editora, comprovar significa confirmar, provar.
Assim, desde logo, a letra da lei inculca que a instrução tem por finalidade a verificação judicial do acerto da decisão final do inquérito, atentos os elementos disponíveis nos autos e/ou mediante o concurso de outros, entretanto fornecidos por quem pediu a abertura desta fase processual. Portanto, o pedido que é dirigido ao juiz de instrução é o de apreciar o que existe nos autos e/ou a estes é aportado e pronunciar-se sobre o seu acerto.
Nestes termos, resulta da lei  que a finalidade da instrução corresponde a um direito das pessoas afetadas pela decisão do detentor da ação penal de pedir a um juiz que verifique, que demonstre, que confirme, que (ou se) a dita decisão está certa, pois a lei, à semelhança do que se passa em muitos outros países em que vigora o Estado de Direito, reconhece a essas pessoas o direito de verem tal decisão comprovada judicialmente antes de serem submetidas a julgamento ou de verem a sua pretensão punitiva definitivamente arquivada.
E é esta atividade que é considerada, tal como acima se referiu, um “(…) direito das pessoas (…)” e uma “(…) garantia do processo penal (…)”, constitucionalmente assegurados, e, portanto, insuscetível de qualquer estreitamento, seja por razões de celeridade processual, seja por razões de interpretação lata de conceitos processuais, seja por quaisquer outras visões do tema.
E é precisamente por isso, por se tratar de uma garantia, que a lei apenas permite a rejeição do requerimento de abertura da instrução por ser extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
Assim, não configura a previsão de inadmissibilidade legal da instrução o requerimento de abertura desta fase processual apresentado pelo arguido que não contenha a súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, prevista no art.º 287.º, n.º 2, do CPP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I
RELATÓRIO

1
No processo de inquérito com o n.º 6/22.9GDCTX foi proferido despacho de acusação contra A pela prática como autor material e em concurso real de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º nº 1 al. b) e nº 2 al. a), nº 4 e nº 5 do Código Penal,  e de um crime de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153º n.º1 e 155º, al. a) do Código Penal.
Regularmente notificado da acusação, veio a referido arguido requerer a abertura de instrução, tendo o respetivo requerimento sido rejeitado com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 286.º, n.º 1, 287.º, n.ºs 2, a contrario sensu, e 3 do Código de Processo Penal.

2
Não se conformando com a decisão, dela interpôs o arguido o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1-  O requerimento apresentado pelo arguido não configura qualquer das causas de rejeição descritas no nº 3 do art.º 287 do CPP.
2-  Não se está perante um processo especial, sumário, abreviado ou sumaríssimo, ou ainda em casos em que não existe acusação.
3- O despacho recorrido entendeu que se trata de inadmissibilidade legal, quando, não é o caso, de rejeição, independentemente do mérito do requerimento de abertura de instrução e do resultado do debate instrutório e arguição de nulidades.
4-  A inadmissibilidade legal, não se pode confundir com a antecipação do despacho de pronúncia, ou seja, com o mérito do que visou o arguido.
5-  A instrução é uma fase complementar do inquérito, com averiguação, podendo o juiz ir mais além do que o inquérito para apurar com profundidade os factos, imputação subjectiva e enquadramento criminal.
6-  O juiz pode sempre investigar autonomamente os factos, porque cabe ao juiz, também, uma investigação criminal nesta fase.
7-  Com todo o respeito por opinião diversa, a construção apresentada na decisão para a demonstração da impossibilidade legal, vem na esteira de alguma jurisprudência, em que verdadeiramente se pretende acabar com a figura da instrução em processo penal
8-  E é o que tenta fazer o despacho recorrido, quando de modo apressado entende que o arguido não censura a acusação do MºPº.
9-  O arguido visou não ser submetido a julgamento pois afirmou no sei RAI não concordar de facto e de direito com a acusação, e queria demonstrar pelas diligências pedidas que haviam factos que impediam a sustentação da acusação e por isso de qualquer responsabilidade criminal.
10- Aquando do pedido de abertura deverá antes do mais Mtº Juiz de Instrução sindicar todo o processo.
11- Bastaria tal, para verificar que o mesmo nasce de uma queixa do ora recorrente e da "retaliação" da ofendida e do seu namorado.
12- O recorrente prestou declarações por mais de uma vez, onde expressou a clara negação dos factos ora imputados.
13- Mais, tomou posição em requerimento autónomo, sobre o arquivamento da queixa por si apresentada contra a aqui ofendida.
14- Entende o Mtº Juiz de Instrução que deveria agora uma vez mais vir expressar a razão da sua discordância no requerimento de abertura de Instrução.
15- Ora, não tendo referido, por estratégia, o nome de testemunhas que pusessem em causa as afirmações da queixosa e não só, (até por receio de eventual coação das mesmas), só lhe restava no momento próprio e a fim de evitar gravame desnecessário (ir a julgamento) requerer a abertura de instrução e aí sim lançar as suas razões.
16- Entende o recorrente, que por um lado negou a factualidade que lhe foi imputada durante o inquérito e que em sede de debate instrutório, após a sua audição e das testemunhas por si indicadas no requerimento de abertura de instrução demonstraria a inverdade do que foi escrito no despacho acusatório.
17- Aquilo que o MTº Juiz de Instrução Criminal pretendia, sendo exequível, é em nosso entender um acto inútil, pois o que conta é aquilo que as testemunhas indicadas viessem a dizer e não o texto explicativo da discordância. (fundamentação da discordância) do recorrente.
18- Veríamos a seguir a linha defendida pelo JIC, um requerimento de abertura de instrução em que para além de se dizer que não se concordava com o despacho acusatório em razão da matéria de facto e consequentemente de direito, se acrescentaria: acreditando o arguido que com o que já declarou e com a prova que pretende ver produzida, provará que não se justifica sua ida a julgamento.
19- A nosso ver acrescento perfeitamente inócuo.
20- Anteriormente à rejeição do requerimento de abertura de instrução, devia o recorrente ser convidado a aperfeiçoá-lo.
21- É inconstitucional a norma resultante da conjugação do nº 2 e nº 3 do art.º 287 do CPP, segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo arguido que não contenha algum ou alguns dos requisitos previstos no nº2 do art.º 287 do CPP.
Normas jurídicas violadas
. art.º 286 e 287 do CPP
. art.º 32 da C.R.P.
 
NESTES TERMOS, DEVEO PRESENTE RECURSO OBTER PROVIMENTO, E SUBSTITUÍDO O DESPACHO RECORRIDO POR OUTRO QUE ADMITA O REQUERIMENTO DE INSTRUÇÃO APRESENTADO PELO ARGUIDO.

3
O Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu, pugnando pelo não provimento do recurso.

4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, tendo sido apresentada resposta.

6
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

II

FUNDAMENTAÇÃO


1
Objeto do processo:
O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido pode ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, caso não contenha uma súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação?

É inconstitucional o entendimento de que não é admissível a formulação de convite ao arguido para aperfeiçoar o referido requerimento?
*
2
Requerimento de abertura da instrução

Exmo. Senhor Juiz de Instrução Criminal
A, arguido no processo à margem cotado notificado que foi do douto despacho de acusação prolatado pelo Digno Representante do MP e não concordando com o mesmo quer de facto quer de direito, vem ao abrigo do disposto no art.º 287 do CPP requerer a abertura de instrução desejando para o efeito de sejam realizadas as seguintes.
Que se tomem declarações complementares ao arguido sobre toda a matéria do despacho acusatório.
Requer-se a audição da testemunha ..., residente na ... Santarém, que deve responder às seguintes questões.
1- Conhece o Sr. A?
2- Em caso afirmativo prestou-lhe alguns serviços? Quais e em que datas?
3- Conhece a Sra. D. ...?
4- Em caso afirmativo conviveu com o Sr. A e com a Sra. D. ...?
5- Alguma vez assistiu a qualquer discussão entre ambos, com ameaças?
6- Em caso afirmativo quem ameaçava quem? E em que datas?
7- Alguma vez viu alguma arma em casa do Sr. A?
Requer-se a audição de ..., comerciante, morador na ...Alenquer., que deve responder à seguintes questões:
1- Conhece o Sr. A?
2- Conhece a Sra. D. ...?
3- Em caso afirmativo conviveu com o Sr. A com a Sra. D. ...?
4- Alguma vez assistiu a qualquer discussão entre ambos, com ameaças?
5- Em caso afirmativo quem ameaçava quem? E em que datas?
6- Alguma vez viu alguma arma em casa do Sr. A.?
7- Alguma vez almoçou com o ... no restaurante "Oficina dos sabores"?
8- Em caso afirmativo, desde quando? E com que frequência?
Requer-se a audição de ..., residente na ...  Apelação, que deve responder às seguintes questões:
1- Conhece o Sr. A?
2- Desde quando?
3- A pedido deste fez alguns trabalhos para ele?
4- A partir de que momento e porquê?
5- Conhece a Sra. D. ...?
6- Em que circunstancias de modo tempo e lugar?
7- Conviveu com o Sr. A e com Sra. D. ...?
8- Alguma vez assistiu a qualquer discussão entre ambos, com ameaças?
9- Em caso afirmativo quem ameaçava quem? E em que datas?
10- Alguma vez viu alguma arma em casa do Sr. A?
11- Em caso afirmativo em que datas?
Requer-se a audição de ...morador na ... Aveiras de Cima que deve responder à seguintes questões:
1- Conhece o Sr. A?
2- Conhece a Sra. D. ...?
3- Em que circunstancias de modo tempo e lugar?
4- Conviveu com o Sr. A e com Sra. D. ...?
5- Alguma vez assistiu a qualquer discussão entre ambos, com ameaças?
6- Em caso afirmativo quem ameaçava quem? E em que data?
Requer-se a audição de ..., morador na ... Aveiras de Cima que deve responder à seguintes questões:
1- Conhece o Sr. A?
2- Conhece a Sra. D. ...?
3- Em que circunstancias de modo tempo e lugar?
4- Conviveu com o Sr. A e com Sra. D. ...?
5- Alguma vez assistiu a qualquer discussão entre ambos, com ameaças?
6- Em caso afirmativo quem ameaçava quem? E em que data?
7- Ia com o Sr. A ao restaurante "Oficina dos sabores"?
8- Em caso afirmativo desde quando e com que frequência?
9- Sabe se o Sr. A teve armas apreendidas em anterior processo?
10- Qual o destino das mesmas?
11- Depois disso viu mais alguma arma em casa do Sr. A?
Requer-se a audição de ..., residente no ... , através de carta rogatória ao Tribunal competente da República da Guiné Bissau que 'seja inquirida sobre seguintes questões:
1- Conhece o Sr. ...?
2- Conhece a Sra. D. ...?
3- Em que circunstancias de modo tempo e lugar?
4- Conviveu com o Sr. A e com Sra. D. ...
5- Alguma vez assistiu a qualquer discussão entre ambos, com ameaças?
6- Em caso afirmativo quem ameaçava quem? E em que data?
7- Houve utilização de facas por algum deles?
8- O que se passou?

*
3
Decisão recorrida.

Nos presentes autos foi deduzida acusação em Processo Comum e com intervenção de Tribunal Singular contra A imputando-lhe a prática como autor material e em concurso real de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º nº 1 al. b) e nº 2 al. a), nº 4 e nº 5 do Código Penal e um crime de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153º nº 1 e 155º al. a) do Código Penal.
Regularmente notificada veio a referido arguido requerer a abertura de instrução conforme decorre do requerimento de fls. 441 e segs dos autos.
O Tribunal é competente e o arguido tem legitimidade para requerer a abertura de instrução sendo o seu requerimento tempestivo e estando a mesma dispensada do pagamento prévio de taxa de justiça.
Estabelece o art.º 287º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal que a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação.
Refere o nº 2 do citado preceito que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º.
A instrução é uma fase facultativa de algumas formas de processo criminal, cuja abertura depende de requerimento que pode ser formulado apenas por determinados sujeitos processuais e nas circunstâncias legalmente previstas.
Conforme refere o artigo 286º do Código de Processo Penal a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito.
O âmbito desta discussão é, assim, limitado pelo objectivo que a lei estabelece para esta discussão.
Na fase de instrução está em causa e ao que nos interessa a comprovação da objectiva legalidade da acusação, pela verificação da reunião de material probatório demonstrativo da existência de crime e do seu autor e pela formulação do juízo de prognose de forte probabilidade de condenação do arguido suspeito.
Trata-se, assim, de verificar se se confirma o acerto da decisão de acusar, se a acusação é a decorrência lógica dos elementos recolhidos no inquérito e aí analisados pelo Ministério Público.
Tal comprovação só pode realizar-se sob o horizonte do conjunto de razões de facto e de direito de discordância em relação, neste caso, à decisão do Ministério Público vertidas no requerimento de abertura de instrução apresentado e a sua finalidade é a realização de um juízo sobre se se verificam os pressupostos legais para a submissão, ou não, da causa, ou uma sua parte a julgamento - neste sentido, vide Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Janeiro de 2014, Juíza Desembargadora Relatora, Maria do Carmo Silva Dias, processo 1878/11.8TAMAI.P1, espelhando o entendimento de Pedro Anjos Frias, apud Revista Julgar n.º 19 (Janeiro - Abril de 2013) no artigo intitulado "Um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução".
Assim, no requerimento de abertura de instrução, terá de ser exposto um conjunto de razões que espelhe o desacerto do juízo indiciário que foi consequente na decisão de  deduzir acusação, i.e., as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação (...), bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito (...), de harmonia com o disposto no art.º 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Ora no caso vertente e compulsado o requerimento de abertura de instrução do arguido não se constata a existência de qualquer enunciação por mais singela das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação deduzida nos autos.
Com efeito, o que se constata é a indicação de testemunhas e a enunciação de quesitos a serem pelas mesmas respondidos sem que tal seja precedido de alegação de quaisquer razões de discordância.
O arguido não coloca em causa o juízo indiciário subjacente à decisão de acusar, não questiona os elementos probatórios recolhidos, não ataca a validade dos meios de prova ou a análise que o Ministério Público faz e tal ausência de exposição de razões de discordância obstaculiza a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar cuja materialidade é conformada pelo disposto no artigo 288.º, n.º4 do Código de Processo Penal que, justamente, remete para o supra citado n.º 2 do artigo 287.º do mesmo diploma legal.
Da análise do requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos, constata-se que não foi dado cumprimento ao imperativo legal supra enunciado, porquanto e, em bom rigor, não se invocam as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação.
Não se evidencia no referido requerimento a discordância crítica e concreta relativamente aos fundamentos factuais ou probatórios da acusação, não se analisam tais elementos, não se indica o desacerto da acusação, do inquérito, o que foi omitido, o que foi erradamente valorado.
O arguido não dirige qualquer crítica concreta à actividade lógico-dedutiva desenvolvida pelo Ministério Público, de molde a que seja possível delimitar o objecto da instrução.
Com efeito, o mesmo não apresenta quaisquer argumentos orientados a infirmar o juízo indiciário alcançado em sede de inquérito - designadamente, demonstrando não terem sido i) devidamente ponderados os elementos probatórios carreados aos autos, ii) considerados meios de prova com relevância para a decisão a proferir; ou iii) correctamente subsumidos os factos ao direito, de tal forma que não se justifique, em face da matéria de facto indiciada, a sua submissão a julgamento.
Acontece que a instrução tem um objectivo processual específico que não se confunde com outras fases processuais e o que a arguido faz não é uma discordância crítica que se subsuma ao disposto no n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, não reclamando, por isso, a prossecução da actividade judicial de comprovação da decisão, in casu, de acusar.
A instrução é uma fase facultativa e de objecto (de)limitado e o arguido não cumpre com o seu requerimento o ónus processual que sobre si impende e que não cabe ao Tribunal substituir.
Recorre-se mais uma vez à decisão recorrida e objecto do referido acórdão da Relação do Porto de 29/01/2014, que a manteve, e com a qual se concorda: "Assim, se o RAI apresentado pelo arguido não tem aptidão para fundar e firmar as finalidades da instrução, deve ser rejeitado, pois que, o mesmo é dizer, com e em tais condições não pode haver lugar à instrução e esta é legalmente inadmissível (...) Assim se respeitará, de um lado, a natureza da fase de instrução, de outro, a celeridade processual, de outro ainda, a proibição da prática de actos inúteis e, por último, acentuar-se-á o princípio da auto responsabilização do sujeito processual arguido"
Assim, e pelos fundamentos expostos, entende-se que o requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado pelo arguido é legalmente inadmissível - artigo 287º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do Código de Processo Penal.
Em face do exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução, por parte do arguido A com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 286.º, n.º 1, 287.º, n.ºs 2, a contrario sensu, e 3 do Código de Processo Penal.
Sem custas por não serem devidas.
Notifique e oportunamente remeta à distribuição ao Juízo Local Criminal territorialmente competente.
*
4
O direito.

Comecemos por indagar as normas jurídicas que estão diretamente em causa nos autos.

TÍTULO III
Da instrução
CAPÍTULO I
Disposições gerais
Artigo 286.º
Finalidade e âmbito da instrução
1 - A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
2 - A instrução tem carácter facultativo.
3 - Não há lugar a instrução nas formas de processo especiais

Artigo 287.º
Requerimento para abertura da instrução
1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
4 - No despacho de abertura de instrução o juiz nomeia defensor ao arguido que não tenha advogado constituído nem defensor nomeado.
5 - O despacho de abertura de instrução é notificado ao Ministério Público, ao assistente, ao arguido e ao seu defensor.
6 - É aplicável o disposto no n.º 14 do artigo 113.º

O regime processual penal anteriormente em vigor era o constante do Código de Processo Penal de 1929, o qual, pondo termo à vigência da Novíssima Reforma Judiciária e suas decorrências, marca um “ (…) retorno ao sistema inquisitório, na medida em que comete ao juiz de julgamento a competência para efetuar também  a instrução criminal,  (…) esta estrutura inquisitória foi limitada por um sistema acusatório formal, pois que se manteve ao ministério público a prerrogativa de formular a acusação.”  - cfr. José António Barreiros, Processo Penal I, Almedina, 1981, pág. 77 e segs.

Com as reformas de 1945/1954, a que deu seguimento a revisão constitucional de 1971 e legislação subsequente, o legislador “preocupou-se em subtrair ao juiz a competência que este anteriormente detinha para efetuar as diligências da instrução preparatória que, segundo o novo figurino, passaram a ser dirigidas pelo ministério público, salvo os casos em que esta entidade não fosse afastada em favor das Polícias Judiciária e P.I.D.E. (…) de facto, com este diploma de 1945, a instrução contraditória foi estruturada como um direito de defesa, de realização obrigatória nos processos de querela e articulável em qualquer caso com a instrução preparatória, ao contrário do que se passava na versão inicial do Código de Processo Penal de 1929.” – cfr. ob. cit., pág. 82 e 90. Note-se que a instrução contraditória (o equivalente à instrução atual), era obrigatória nos processos de querela – processos em que, como se sabe, eram julgados os crimes mais graves.

Paralelamente a estas medidas, outras foram sendo ensaiadas no sentido da jurisdicionalização da instrução criminal. (…) O objetivo reclamado pelos críticos mais acérrimos da atribuição da competência-regra instrutória ao ministério público era a adoção de um sistema em que a instrução fosse única e exclusivamente da competência de um juiz, que fosse impedido de intervir no julgamento do facto de cuja instrução se tivesse encarregado.” – ob. cit. pág. 91.

Recorde-se que, ao tempo, grosso modo, a instrução preparatória correspondia ao atual inquérito e a instrução contraditória correspondia à atual instrução.

A Constituição da República de 1976 veio estabelecer o seguinte:

Artigo 32.º
(Garantias de processo criminal)
(…)
4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
(…).

Sabemos, contudo, que com a entrada em vigor do atual Código de Processo Penal (que ocorreu em data posterior à aprovação da CRP, note-se), foi estabelecida a fase do inquérito, dirigida pelo ministério público,  e a fase da instrução, que é facultativa, dirigida pelo juiz (de instrução), o que foi considerado conforme com a lei fundamental, designadamente por causa da alteração estatutária do assim configurado titular da ação penal, que passou a dispor de uma verdadeira e plena autonomia e a reger-se por critérios de legalidade e objetividade, bem como através da separação rigorosa, pessoal e funcional, entre juízes de instrução juízes de julgamento. Do mesmo passo, a utilização no Código de Processo Penal do vocábulo instrução pretendeu, sem dúvida, dar satisfação, pelo menos formal, ao ordenado pela Constituição; veja-se, na sequência dos consabidos e intrincados debates a este respeito, a título de mero exemplo, o esforço argumentativo do Prof. Figueiredo Dias para, a final, compaginar a existência do inquérito naqueles moldes com o comando constitucional e, com o mesmo fito, afirmar a salvaguarda de uma instrução para garantir, pelo menos, a possibilidade da intervenção jurisdicional da fase preparatória do processo penal: “ o sentido jurídico-processual do termo instrução não está inscrito em qualquer lei natural ou natureza das coisas que permita decidir logo a partir dela o que é e o que não é instrução, podendo ter o sentido que lhe é dado no CPP de esclarecimento de um facto possível em vista de ser ou não submetido a julgamento; o caráter facultativo da instrução adequa-se perfeitamente à natureza, que segundo a Constituição lhe cabe, de direito das pessoas e de garantia do processo penal ,”, - Para uma reforma global do processo penal português”, citado por Maria João Antunes, in Direito Processual Penal, Almedina, 4.ª Edição, pág. 128. Curiosamente, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências, da Verbo, não lhe dá razão, nem do ponto de vista etimológico, nem do ponto de vista semântico, nem sequer do ponto de vista processual penal – cfr. pág. 2123. Mas isso serão outras Doutrinas.

No preâmbulo do Código de Processo Penal em vigor dizia-se:

7. O que fica dito permitirá uma mais fácil identificação e explicação dos contornos mais salientes da arquitectura do processo penal previsto no presente Código. Três notas complementares ajudarão a evidenciar outros tantos aspectos que imprimem cunho ao sistema delineado.

a) A primeira nota tem a ver com a estrutura básica do processo. Por apego deliberado a uma das conquistas mais marcantes do progresso civilizacional democrático, e por obediência ao mandamento constitucional, o Código perspectivou um processo de estrutura basicamente acusatória. Contudo - e sem a mínima transigência no que às autênticas exigências do acusatório respeita -, procurou temperar o empenho na maximização da acusatoriedade com um princípio de investigação oficial, válido tanto para efeito de acusação como de julgamento; o que representa, além do mais, uma sintonia com a nossa tradição jurídico-processual penal.


b) Em segundo lugar, o Código optou decididamente por converter o inquérito, realizado sob a titularidade e a direcção do Ministério Público, na fase geral e normal de preparar a decisão de acusação ou de não acusação. Por seu turno, a instrução, de carácter contraditório e dotada de uma fase de debate oral - o que implicou o abandono da distinção entre instrução preparatória e contraditória -, apenas terá lugar quando for requerida pelo arguido que pretenda invalidar a decisão de acusação, ou pelo assistente que deseje contrariar a decisão de não acusação. Tal opção filia-se na convicção de que só assim será possível ultrapassar um dos maiores e mais graves estrangulamentos da nossa actual praxis processual penal. E esteia-se, por outro lado, no facto de que todos os actos processuais que contendam directamente com os direitos fundamentais do arguido só devem poder ter lugar se autorizados pelo juiz de instrução e, nalguns casos, só por este podem ser realizados. Refira-se ainda que, como decorrência directa da opção de fundo acabada de mencionar, os órgãos de polícia criminal são, na fase de inquérito, colocados na dependência funcional do Ministério Público.


De salientar este excerto:

Tal opção filia-se na convicção de que só assim será possível ultrapassar um dos maiores e mais graves estrangulamentos da nossa actual praxis processual penal.

Já naquela altura o caráter opcional da instrução era justificado com a necessidade de ultrapassar um dos maiores e mais graves estrangulamentos da nossa actual praxis processual penal. Não eram, portanto, razões de fundo, ou de ordem conceitual ou resultante da aplicação de princípios que determinavam esta feição facultativa da fase da instrução; eram razões de ordem pragmática, de eficiência ou de eficácia, apostando-se assim na sua menor ocorrência por ter de ser requerida para ter lugar, e, simultaneamente, dizemos nós, dar cumprimento, pelo menos parcial ao comando constitucional de que toda  a instrução é da competência de um juiz . E parece que essas razões de eficiência e eficácia se têm estendido ultimamente ao progressivo alargamento das causas de rejeição dos requerimentos de abertura desta fase processual, não obstante o teor das normas legais acima citadas.

Ora, diz a lei que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Comprovar provém do latim comprobare “confirmar”, e significa demonstrar alguma coisa, apresentando provas, certificados … para o efeito, verificar ou demonstrar a veracidade de um facto a partir de evidências – cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, Vol I, pág. 895.

Segundo o dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa, da Porto Editora, comprovar significa confirmar, provar.

Todavia, não podemos esquecer que, como adiante veremos novamente, quem pede a abertura da instrução está, simultaneamente, a contrariar a decisão com que terminou o inquérito, pelo que a pretensão do requerente será sempre a neutralização de uma acusação ou de um despacho de arquivamento, consoante os casos.

Assim, desde logo, a letra da lei inculca que a instrução tem por finalidade a verificação judicial do acerto da decisão final do inquérito, atentos os elementos disponíveis nos autos e/ou mediante o concurso de outros, entretanto fornecidos por quem pediu a abertura desta fase processual. Portanto, o pedido que é dirigido ao juiz de instrução é o de apreciar o que existe nos autos e/ou a estes é aportado e pronunciar-se sobre o seu acerto.

Assim, o que resulta da lei é que a finalidade da instrução corresponde a um direito das pessoas afetadas pela decisão do detentor da ação penal de pedir a um juiz que verifique, que demonstre, que confirme, que (ou se) a dita decisão está certa, pois a lei, à semelhança do que se passa em muitos outros países em que vigora o Estado de Direito, reconhece a essas pessoas o direito de verem tal decisão comprovada judicialmente antes de serem submetidas a julgamento ou de verem a sua pretensão punitiva definitivamente arquivada.

Na verdade, por muito que visões mais idealistas ou vanguardistas o queiram contrariar, a submissão a julgamento criminal constitui sempre, pelo menos entre nós, situação de vida profundamente perturbadora e socialmente vexatória, não faltando, muitas vezes, se não também sempre, os juízos sibilinos de crítica difusa ou de indisfarçada condescendência em caso de absolvição, realidade social que é bem conhecida do legislador, que, por isso, traçou a finalidade e regime da instrução nos termos referidos. Igualmente, porque, em virtude do princípio da oficialidade, previsto no art.º 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e no art.º 48.º do CPP,  o detentor da ação penal (com exceção dos crimes particulares) é o Ministério Público (ao contrário dos regimes em que vigora o processo de tipo acusatório, em que a acusação tem também ou pode ter origem popular nos delitos públicos e particular nos delitos privados – v.g. Grã-Bretanha e EUA), igualmente, a lei prevê a possibilidade de, pelo menos, algumas pessoas (assistentes) poderem fazer idêntico pedido a um juiz quando são confrontadas com a decisão de arquivamento da sua pretensão punitiva pelo referido detentor da ação penal.

Trata-se, portanto, de uma atividade que pressupõe um controlo da decisão proferida pelo detentor da ação penal, mas tão só da decisão e não da atuação daquele ao longo da investigação – cfr. Maria João Antunes, ob. cit., loc. cit., pág. 126.

E é esta atividade que é considerada, tal como acima se referiu, um “(…) direito das pessoas (…)” e uma “(…) garantia do processo penal (…)”, constitucionalmente assegurados, e, portanto, insuscetível de qualquer estreitamento, seja por razões de celeridade processual, seja por razões de interpretação lata de conceitos processuais, seja por quaisquer outras visões do tema.

Aliás, consta, por exemplo, da exposição de motivos da Lei n.º 59/98, de 25/08 (que procedeu à revisão do CPP), que “na estrutura do Código, a instrução constitui o momento processual próprio para submeter a decisão final do Ministério Público no inquérito a controlo judicial, ou seja, para apreciação da prova indiciária por um juiz.” – cfr. Projeto de Revisão do Código de Processo Penal, Boletim do Ministério da justiça, 1998, pág. 25. Tão-só isto: apreciação da prova indiciária por um juiz, ou seja, direito à não conformação com a decisão unilateral do detentor da ação penal, direito (garantia) à intervenção jurisdicional para comprovar tal decisão.

E é precisamente por isso, por se tratar de uma garantia, que a lei apenas permite a rejeição do requerimento de abertura da instrução por ser extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

É certo que temos também de considerar o disposto no n.º 2 do art.º 287.º, que reza assim:

 O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.

Quid iuris, se isto não for observado?

Souto de Moura, insigne magistrado do Ministério Público durante décadas, e, igualmente, insigne Juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça na fase final da sua mui ilustre carreira, defendeu o seguinte:

“O requerimento da instrução é facultativo e é além disso condicionado. Em primeiro lugar, o n.º 2 do art.º 287.º [atual n.º 3 do preceito] estabelece as condições de admissibilidade do requerimento que são assim as condições da ocorrência da instrução. Mas porque a instrução se propõe contrariar a decisão com que terminou o inquérito, a pretensão do requerente será sempre a neutralização duma acusação, ou dum despacho de arquivamento, consoante os casos. Ora o mérito dessa pretensão dependerá da respetiva fundamentação, e por isso é que o n.º 3 do art.º 287.º [atual n.º 2] nos indica qual o conteúdo que o requerimento deve ter. Diga-se no entanto, que para além de não ser passível de vícios de forma porque não sujeito a formalidades especiais, o requerimento sem o conteúdo que o n.º 2  do art.º 287.º diz que deve ter, nem por isso deixará de ser aceite. Mais, em lado algum se considera nulo um requerimento que se dispense de carrear razões de discordância. Manifestamente, “um certo conteúdo” não foi arvorado em condição de admissibilidade do requerimento. O que já não ocorrerá em matéria de admissibilidade de recurso (cfr. art.º 412.º do NCPP).
 (…)
O n.º 2 do art.º 287.º parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta diretamente da finalidade assinalada à instrução: obter o controle judicial da opção do M.º P.º. Ora, se a instrução surge na economia do código com caráter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvair-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados”.”
(…)
E se o arguido requerer a instrução sem mencionar quaisquer factos sobre os quais pretende que essa instrução recaia? (…) parece-nos que neste caso nem por isso a instrução será inadmissível. Sempre que for possível extrair do requerimento uma discordância que se reporte à acusação, mesmo que considerada no seu conjunto, então estaria preenchido o pressuposto da legitimidade do arguido. O JIC disporia neste caso, apesar de tudo, dum campo delimitado de factos de que partir, e que seriam os factos da acusação.” – cfr. Souto de Moura, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, pág. 118,119 e121.

Um pouco mais adiante neste estudo, o citado autor indica algumas das possibilidades que se abrem para resolver o problema – cfr. ob. cit., loc. cit., pág. 124 - da falta de cumprimento integral do disposto no art.º 287.º, n.º 3, do CPP., sendo certo que no que toca ao requerimento apresentado pelo assistente haverá atualmente que ter em conta o AUJ n.º 7/2005, de 12/05/2005, in DR, I-A, de 14/11/2005 – não há lugar ao convite ao assistente pra aperfeiçoar o requerimento de abertura da instrução, apresentado nos termos do art.º 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido. Em relação a esta jurisprudência obrigatória, que seguimos naturalmente, mais não seja por questões de harmonização e segurança jurídica, não deixaremos de notar a diferença de posição que assim surge, nesta fase do processo penal,  para as acusações públicas ou do assistente: as primeiras, caso se considerem nulas pelo incumprimento do disposto no art.º 283.º, n.º 3, poderão ser reapresentadas, devidamente corrigidas, até ao termo do prazo de prescrição do procedimento criminal; as segundas (ou seja, o requerimento imperfeito para abertura da instrução apresentado pelo assistente), caso sejam rejeitadas pela mesma causa, só poderão ser renovadas dentro do prazo para pedir a abertura da instrução, como propõe o Conselheiro Maia Costa, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1003, anotação 7, o que dependerá sempre do momento em que tal apreciação ocorra. Mas isso não nos interessa para o presente recurso, não obstante podermos afirmar que se insere numa tendência que dificulta ou restringe a possibilidade de existência da fase da instrução no processo penal – efetivamente, se o advogado contratado ou nomeado ao assistente cometer uma falha neste domínio, será rejeitada a pretensão do assistente, sem mais, não podendo apresentar novo requerimento fora do prazo inicial, o que, certamente, ocorrerá na generalidade ou até mesmo totalidade dos casos.

Mas o Conselheiro Maia Costa defende, igualmente, que se deve convidar o arguido a aperfeiçoar o requerimento de abertura da instrução se faltar algum dos seus requisitos -cfr. ob. cit., loc. cit., pág. 1003, anotação 7.

Tal dependerá ainda do deferimento da invocação de qualquer irregularidade a este respeito, ou da sua declaração oficiosa e subsequente reparação, tudo nos termos do art.º 123.º do CPP (cfr. Souto de Moura, ob., cit. loc. cit.), caso o juiz de instrução entenda que a simples discordância por parte do arguido da apreciação da prova indiciária feita pelo Ministério Público é insuficiente para abrir a fase da instrução – ora,  a nós parece-nos que, tendo em conta a natureza de direito e, mais ainda, de garantia, e com assento constitucional, da instrução que tal discordância é suficiente, e, caso não seja pedida e deferida a produção de outras provas, isso determinará, pelo menos, a análise jurisdicional da prova indiciária e a realização do debate instrutório, em ordem a controlar o acerto da decisão final proferida no inquérito. É certo que, como disso dá nota o Ministério Público na sua resposta, o Tribunal Constitucional tem entendido que não viola  a lei fundamental a não formulação de convite ao arguido para aperfeiçoamento do seu requerimento, mas não é menos certo que tal convite seria provavelmente votado ao insucesso caso o requerimento tivesse sido apresentado pelo próprio arguido e não por um profissional do foro – todavia, em nosso entender, já violará a garantia constitucional a rejeição do requerimento por inadmissibilidade legal da instrução por incumprimento do disposto no art.º 287.º, n.º 2, do CPP. Quantas acusações teriam sido arquivadas e quantos arquivamentos não teriam ocorrido se tivesse tido lugar uma instrução rigorosa e cuidadosa, assim como quantos despachos, sentenças e acórdãos são revogados em recursos por tribunais superiores, já que várias cabeças pensam sempre melhor que uma, seja ela singular ou colegial. Não há, portanto, que recear a instrução, e muito menos considerar que esta é ou pode ser uma engulho à celeridade processual, mas, bem pelo contrário, considerá-la como uma verdadeira garantia do Estado de Direito, e, no seu exercício, escrutinar com profundo critério a decisão de arquivar ou acusar, de modo até a combater  a perniciosa ideia instalada de que tal crivo crítico não é habitual nesta fase processual, e materializar as legítimas preocupações de celeridade em decisões concisas e assertivas, sem prolegómenos nem desnecessárias “densificações (como agora é moda dizer-se!), tudo em prol de uma justiça mais robusta, mais alicerçada, enfim, mais preparada e capaz de convencer os seus destinatários. Será interessante a este respeito o estudo sobre a intervenção jurisdicional na fase preparatória do processo penal em países tidos como guarda avançada da tutela dos direitos humanos para melhor compreender o que afirmamos, sendo certo que não é este o lugar adequado para tal exposição.

Além de tudo isto convém ainda ter em devida conta que, como já acima se aludiu, o requerimento de abertura da instrução pode ser apresentado pelo próprio arguido, tal como claramente resulta da conjugação dos números 1, alínea a), e 4, ambos do artigo 286.º do CPP – na verdade, se a lei impõe ao juiz de instrução que no despacho de abertura da instrução nomeie defensor ao arguido que não tenha advogado constituído nem defensor nomeado, é evidente que para apresentar o dito requerimento não precisa o arguido de estar acompanhado desse profissional do foro. Ora, impor ao arguido, enquanto tal, que muito provavelmente não terá instrução jurídico-processual, o cumprimento de ónus e deveres de alegação e narração, de facto e de direito, afigura-se como algo que a lei não pretendeu seguramente quando concretizou a garantia constitucional da, pelo menos, possibilidade de intervenção jurisdicional na fase preparatória do processo penal. E, obviamente, não deve distinguir-se se o requerimento é ou não subscrito por advogado, pois ubi lex non distinguit, nec interpres distinguere debet.

É consabido que a jurisprudência se tem dividido em relação a estas questões. Nós, na esteira de Souto de Moura, estamos ao lado da corrente, por assim dizer, minimalista, no que toca às exigências de “conteúdo” do requerimento de abertura da instrução. Ponto fundamental é que de tal requerimento se possa, pelo menos, inferir, que o arguido discorda da apreciação dos indícios levada a cabo pelo acusador, e que determinaram a decisão de requerer a sua submissão a julgamento, entendendo, portanto, que o processo deverá ser arquivado, pedindo, assim, a intervenção jurisdicional para que tal submissão só ocorra se aquela decisão for comprovada por um juiz - é por isso que a lei diz que a instrução tem por finalidade a comprovação judicial. Não se trata de uma indagação sobre as qualidades ou méritos do inquérito, nem de um julgamento antecipado ou sequer perfunctório, não obstante as várias alterações entretanto introduzidas no regime processual permitirem esta última deriva caso o juiz se demita de exercer uma férrea e rigorosa disciplina sobre que atos se devem praticar e na condução destes – sobre estas alterações desvirtuadoras do regime original, cfr. Maria João Antunes, ob. cit., loc. cit., pág. 127. E neste âmbito não pode deixar de afirmar-se com vigor, por exemplo, que a indicação de novos meios de prova na fase de instrução deve ser acompanhada de uma compreensível justificação de impossibilidade de anterior indicação (durante inquérito), sob pena de aí sim, se poder correr o risco de cedência à dilação, sendo certo que a justificação oferecida pelo arguido na sua motivação de recurso (estratégia) é absolutamente inaceitável e até profundamente censurável – na verdade, o arguido, ao abrigo do disposto, no art.º 61.º, n.º 1, alínea g), do CPP, tem o direito de intervir no inquérito, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurem necessárias (mas não se lhe reconhece qualquer direito a estratégias ou tacticismos), e, tendo já sido ouvido, e mais que uma vez, necessariamente na presença de defensor, dificilmente se compreenderá que deva ser ouvido de novo, salvo em situações excecionalíssimas. Ora, este tipo de exigências, acompanhado de rigorosa disciplina nos atos, conjugada com a formulação de decisões concisas e assertivas, mas rigorosas, fará necessariamente soçobrar qualquer espúria tentativa de entorpecimento processual, e assegurará em pleno a garantia constitucional da intervenção jurisdicional na fase preparatória do processo penal.

O requerimento que o arguido apresentou contém uma clara discordância com a decisão do Ministério Público de o acusar e de requerer o seu julgamento. Além disso, contém o pedido de realização de atos de instrução (interrogatório e arguido e inquirição de testemunhas, e perguntas a formular a estas) – se estes devem ou não ser levados a cabo, atento o objeto do presente recurso, é algo que só o juiz de instrução poderá decidir. Não existe qualquer norma que preveja que a instrução não pode ter lugar nestes autos. Assim sendo, o requerimento em causa não podia ter sido indeferido por inadmissibilidade legal - em sentido muito próximo, se não mesmo idêntico, podem referir-se, a título de mero exemplo, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de:
- 04/02/2015, proferido no proc. nº. 681/13.5PBMAI.P1, disponível em www.dgsi.pt, no qual se lê que “ não deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do nº 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal, um requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida em que esta se limita a apresentar uma versão dos factos diferente da que consta da acusação e indica testemunhas não inquiridas no inquérito
- de 25/06/2014, proferido no proc. 30/13.2PCPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt,  do qual consta que “respeita os requisitos legais o requerimento para abertura da instrução [RAI] apresentado pelo arguido em que apenas alega que não praticou os factos de que foi acusado pelo Ministério Público e arrola testemunha para serem inquiridas acerca disso.

Na verdade, e nisso o recorrente tem razão, é indiferente o arguido dizer não concorda com a acusação ou dizer que não praticou os factos que dela constam, pois da primeira afirmação é perfeitamente possível inferir a segunda. É certo que um requerimento de abertura da instrução assim tão enxuto terá muito menos possibilidades de sucesso do que um outro que contenha argumentação adequada e convincente, e ficará mais dependente de uma apreciação unilateral do juiz de instrução criminal, sendo certo que o espaço de discussão que o art.º 298.º do CPP atribui ao debate instrutório permite ainda aduzir, a final, aquela argumentação persuasiva, mas isso não afasta a natureza e finalidade da instrução tal como em nosso entender ela resulta da lei.

Quanto à suscitada questão da inconstitucionalidade, devemos recordar que o que aqui se decide é a impossibilidade de rejeitar o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido, por inadmissibilidade legal, caso não contenha uma súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação. Assim, o eventual convite ao aperfeiçoamento do dito requerimento depende da interpretação que o juiz de instrução fizer em relação a tal requerimento e ao disposto no art.º 123.º, n.º 2, do CPP, podendo fazê-lo ou não, sem que isso importe qualquer inconstitucionalidade, mas não podendo, de qualquer modo, deixar de prosseguir com a requerida instrução, nem que ela se resuma a inteirar-se a prova recolhida, levar  a cabo o debate instrutório e comprovar (ou não) a decisão do detentor da ação penal.

III

DISPOSITIVO
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso, e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que declare aberta a instrução, salvo se o requerimento dever ser rejeitado por outro qualquer motivo.

Sem tributação.

Notifique.

Lisboa, 11 de maio de 2023
António Bráulio Alves Martins
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Maria Manuela Barroco Esteves Machado