Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9020/2007-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: INVENTÁRIO
CONTA CONJUNTA
CREDOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1 – É ao momento da abertura da sucessão que se deve atender para saber quais os bens existentes no património do autor da sucessão e qual o valor desses bens para efeitos do cálculo da porção legitimária.
2 – Sendo a conta bancária colectiva ou conjunta, cada um dos co – titulares tem plena liberdade de movimentação a débito e a crédito, não carecendo para tanto de autorização ou ratificação por parte do outro ou dos outros depositantes ou co – titulares até completa absorção do saldo.
3 – Assim, tendo sido aberta uma conta colectiva ou conjunta numa instituição bancária em nome da inventariada e de sua filha, tendo qualquer delas plena liberdade de movimentação a crédito e a débito, é irrelevante saber se a proprietária dos capitais depositados era apenas a inventariada, atendendo a que, à data da sua morte, não havia quaisquer importâncias depositadas.
4 – O depositante, como credor solidário, tem apenas um direito de crédito, isto é, o direito de exigir a entrega da importância do depósito mas esse direito não pode confundir-se com a propriedade da coisa depositada.
5 – A ter havido uma doação da importância reclamada aos netos da inventariada, por parte desta, tal importância não estará sujeita à colação, uma vez que, na data da liberalidade, a presuntiva herdeira legitimária era a mãe destes.
6 – Ainda que a doação tivesse sido feita à recorrida, o que teria de ser provado pelo reclamante, essa liberalidade estaria dispensada da colação por força da lei, já que estaríamos perante uma doação com “traditio rei”, sendo apenas imputável na quota disponível.
GF
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
No Inventário Judicial, a correr termos no 4º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e Juízos Cíveis de Sintra, em que é cabeça de casal [Maria] e interessado [José], tendo este sido notificado da relação de bens apresentada pela cabeça de casal, veio este reclamar, acusando a falta de relacionação de um alegado depósito bancário na titularidade da inventariada, no montante de € 31.726,32, constituído por depósito à ordem, aplicações de prazo fixo e fundos de investimento afectos à conta 5-2425807 do BPI.

Notificada para o efeito, a cabeça de casal apresentou a resposta constante de fls. 137 e seguintes, na qual afirma que a quantia que se encontrava depositada na conta 5-2425807 do BPI não pertencia na totalidade à inventariada, mas também à cabeça de casal, tendo a inventariada procedido ao levantamento da parte que lhe pertencia, a qual doou, em vida, aos seus dois netos.

Tendo em conta os elementos probatórios constantes dos autos, constatou o Exc. mo Juiz poder aferir-se da situação da aludida conta e verificar-se a existência de movimentos operados em datas anteriores ao falecimento da inventariada, sendo certo que, conforme informação prestada pelo Banco, não existia qualquer verba depositada nas contas em causa à data do falecimento da inventariada.
Assim, apreciada a prova documental mencionada, considerou o Exc. mo Juiz que a inventariada não era a única titular das contas em causa e que os aludidos movimentos foram realizados antes do respectivo falecimento, concluindo não existir nenhuma verba pertencente à herança, emergente dos depósitos anteriormente existentes no Banco, a relacionar no âmbito deste inventário.

Julgou, assim, improcedente a reclamação à relação de bens apresentada, na parte respeitante à falta de relacionação do referido depósito bancário.

Inconformado, recorreu o interessado [José], formulando as seguintes conclusões:
1ª – Foi apresentada pelo ora Recorrente reclamação contra a relação de bens por falta de relacionação do valor de € 31.726,32 resultante de um depósito bancário no BPI, cuja existência a Cabeça de Casal não confessou.
2ª – O Tribunal deve pronunciar-se sobre a existência do bem e sobre a pertinência da sua relacionação, depois de efectuadas as necessárias diligências probatórias, a requerimento das partes e até por sua própria iniciativa.
3ª – Contudo, o Tribunal não mandou produzir toda a prova oferecida, não tendo ouvido a testemunha arrolada pelo ora Recorrente.
4ª – E não tomou em conta toda a prova documental produzida, não tendo considerado dois documentos comprovativos de movimentos bancários, não impugnados pela Cabeça de Casal.
5ª – Foram, assim, violados os preceitos contidos nos n.º 3 do artigo 1349º e no n.º 2 do artigo 1344º, ambos do CPC.
6ª – Foi também violado o princípio do contraditório, uma vez que não foi dada ao ora Recorrente a possibilidade de expor cabalmente a sua posição.
7ª – E essa possibilidade foi-lhe negada em absoluto pois nem sequer foi ordenada a remessa para os meios comuns, prevista no artigo 1350º do CPC.
8ª – Foi ainda violado o artigo 515º do CPC que manda atender a todas as provas produzidas.
9ª – Mesmo que fosse possível nesta fase considerar-se a existência de uma doação, ainda assim a mesma deveria ser relacionada, nos termos dos artigos 1365º e 1367º do CPC e do n.º 1 do artigo 2162º e do artigo 2168º, ambos do Código Civil.
10ª – O despacho de que se recorre deve ser substituído por outro que se pronuncie sobre os documentos comprovativos dos movimentos bancários e que mande produzir a prova testemunhal oferecida.

Não houve contra – alegações.

O Exc. mo Juiz sustentou o despacho recorrido
2.
Com interesse para a causa, além dos factos constantes do relatório, acrescenta-se:
1º - O inventariado [Joaquim] faleceu em 27 de Fevereiro de 1985, no estado de casado com [Emília], sob o regime de comunhão geral de bens, em primeiras núpcias de ambos.
2º - A inventariada faleceu a 14 de Novembro de 2002, no estado de viúva do inventariado.
3º - A inventariada e a cabeça de casal [Maria] eram co - titulares da conta (...), não existindo, em 14/11/2002, (data do falecimento da inventariada) qualquer verba depositada na aludida conta.
3.
Nos presentes autos de inventário para partilha dos bens da herança aberta por óbito de [Joaquim] e de [Emília], a cabeça de casal [Maria] apresentou a relação de bens, de que o interessado [José] reclamou, considerando que deveria aditar-se à relação de bens, no que ora interessa, o valor de € 31.726,32, constituído por depósito à ordem, aplicações de prazo fixo e fundos de investimento afectos à conta (...), alegadamente pertencente à inventariada.

Após diligências ordenadas pelo Tribunal, o Banco informou que, à data de 14/11/2002, detectou nos ficheiros informáticos a existência da aludida conta, co – titulada pela inventariada e pela cabeça – de casal, não havendo quaisquer quantias depositadas nessas contas.

Pergunta-se, então, se, não obstante a conta se encontrar desprovida de qualquer quantia, ainda assim deveria o Tribunal a quo pronunciar-se sobre a existência do bem reclamado e sobre a pertinência da sua relacionação.

Tendo a inventariada falecido em 14/11/2002, a sucessão abriu-se nessa data (artigo 2031º, n.1 do Código Civil).

O momento da abertura da sucessão tem uma importância primacial por a lei lhe ligar diversas consequências jurídicas relevantíssimas. Desde logo, é a esse momento que se atende para saber quais os bens existentes no património do autor da sucessão e qual o valor desses bens para efeitos do cálculo da porção legitimária (cfr. artigo 2162º CC).

Ora, à data da abertura da sucessão, não havia quaisquer verbas depositadas na aludida conta, a qual era co – titulada pela inventariada e pela cabeça de casal, pelo que nada haveria a relacionar.
Perante isto, defende o recorrente que, embora a recorrida fosse co - titular da conta, a proprietária dos dinheiros depositados era a inventariada, motivo por que devia ser relacionada a importância reclamada.

Salvo o devido respeito, volta a não lhe assistir razão.

O depósito bancário é um contrato pelo qual uma pessoa entrega uma certa importância em dinheiro a um banco, que se obriga a restituir-lho em certo prazo ou quando lhe for exigido(1).

O depósito ou conta aberta num estabelecimento bancário tanto pode ser individual ou singular como colectiva ou conjunta.

Significa isto que, quer se trate de depósito à ordem ou a prazo, a conta de depósito pode ter como titular uma ou mais pessoas, tal como resulta do disposto nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 35º do DL 694/70, de 31 de Dezembro.

Acerca das pessoas que podem realizar depósitos, dispõe o citado preceito:
d) – Por marido ou mulher, seja qual for o regime de bens, à ordem de qualquer deles ou de ambos conjuntamente;
e) – Por duas ou mais pessoas, à ordem de qualquer delas ou de todas ou de algumas delas conjuntamente.

Sendo a conta colectiva ou conjunta, cada um dos co - titulares tem plena liberdade de movimentação a débito ou a crédito.

Encontra-se cada um numa situação privilegiada, quanto à liberdade de levantamentos ou depósitos, não carecendo para tanto de autorização ou ratificação por parte do outro ou dos outros depositantes ou co - titulares.

Há como que uma relação de solidariedade de representação entre os co - titulares, mercê da aceitação da abertura de conta em tais circunstâncias. Daí o designar-se a conta conjunta ou colectiva como conta solidária.

Na verdade, esta conta, denominada colectiva ou conjunta, não pode deixar de se regular pelos princípios que constituem a solidariedade activa, no Código Civil.

A este propósito escrevia o Dr. Coimbra Torres:
“Por conta conjunta entende-se a conta de depósito à ordem aberta num estabelecimento bancário em nome de duas ou mais pessoas e que pode ser livremente movimentada individualmente por cada um dos contitulares tanto a débito como a crédito. Isto é: cada um dos contitulares da conta pode em seu nome e sem necessidade de autorização ou ratificação dos outros depositar ou levantar quaisquer quantias até completa absorção do saldo.
(...).
“Pelo simples facto de concordarem na abertura de uma conta conjunta, os contitulares tacitamente aceitam uma ilimitada liberdade recíproca pela qual se sujeitam ao arbítrio de todos(2)”.

In casu, foi aberta, como ficou provado, uma conta colectiva ou conjunta no BPI, em nome da Inventariada e de sua filha, ora cabeça de casal, tendo qualquer delas a plena liberdade de movimentação a crédito e a débito.

Assim, neste circunstancialismo, saber se o proprietário dos capitais depositados era apenas a inventaria é absolutamente irrelevante, atendendo a que à data da morte da inventariada não havia quaisquer importâncias depositadas.

É certo que, o direito de crédito dimanado da relação obrigacional ou creditória, oriunda do contrato ou acordo de depósito, que pode ser exercido por qualquer dos titulares da conta ou depósito, sendo o estabelecimento bancário o devedor, distingue-se do direito real sobre a mercadoria, dinheiro, que fora depositado(3).

A relação jurídica que nasce da abertura da conta de depósito é uma relação jurídica de obrigação e não se confunde o direito de crédito desta emergente para os titulares da conta com a propriedade dos bens objecto do depósito, isto é, com o direito real sobre estes.

O depositante, como credor solidário, tem apenas um direito de crédito, isto é, o direito de receber a prestação a que está adstrito o devedor, o direito de exigir a entrega da importância do depósito.

Mas esse direito não pode confundir-se com a propriedade da coisa depositada.

Enquanto o direito de crédito é atribuído por igual a todos os titulares da conta, a importância do depósito pode pertencer a um só deles ou mesmo a um terceiro e é evidente que, na totalidade, não pode integrar-se no património ou constituir riqueza de todos(4)”.

Podendo, portanto, cada um dos titulares do direito de crédito movimentar livremente a conta, era necessária uma regra que indicasse, na falta de prova da sua participação na quantia depositada, qual a medida da respectiva quota.

Foi isso o que fez o artigo 516º do Código Civil, ao vir dispor, em geral, que, nas relações dos credores solidários entre si, se presume que estes comparticipam em partes iguais no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes ou que só um deles deve obter o benefício do crédito.

Nas contas colectivas, presume-se, assim, que a propriedade das quantias depositadas é pertença de todos os contitulares, em partes iguais.

Mas as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário (artigo 350º, n.º 2 CC).

Torna-se, assim, patente que poderia ter interesse o depoimento da testemunha para saber se a agravada era proprietária em partes iguais da aludida conta ou se, pelo contrário, a inventariada era a proprietária exclusiva do dinheiro, se à data da abertura da herança a conta aberta no Banco apresentasse um saldo positivo.

Deixa de ter qualquer relevância essa indagação, se, como se verificou, à data da abertura da sucessão, o saldo do depósito era nulo. Como qualquer das contitulares tinha uma ilimitada liberdade recíproca de movimentação da conta, sendo certo que nenhum movimento se operou depois da morte do de cujus, é irrelevante tentar saber se o capital depositado era da exclusiva pertença da inventariada.

Sustenta, finalmente, o recorrente que, conforme confissão da recorrida, a inventariada teria feito uma doação dessas quantias depositadas, pelo que se tornaria necessária a relação do aludido bem.

De facto, a agravada confessa que a inventariada doou metade da importância reclamada pelo agravante mas acrescenta que tal doação foi feita aos netos.

Qual a relevância desta confissão?

A confissão é uma declaração de ciência, pela qual uma pessoa reconhece a realidade dum facto que lhe é desfavorável – dum facto cujas consequências jurídicas lhe são prejudiciais e cuja prova competiria, portanto, à outra parte, nos termos do artigo 342º do Código Civil.

Mas a confissão é indivisível ou incindível, isto é, se a declaração confessória for acompanhada da afirmação de qualquer facto favorável ao confitente, o adversário só pode aceitar a declaração total, sendo embora admitido a fazer prova contra a parte que lhe é desfavorável (artigo 360º CC). Se não aceitar a confissão na sua totalidade, ela não valerá também na parte que lhe é favorável, tendo ele, portanto, de provar o próprio facto confessado.

Assim, ainda que se aceitasse a confissão da agravada, no sentido de que a inventariada doou metade da verba reclamada aos netos, sempre se dirá que nenhuma relevância teria tal doação para efeitos de colação, pelo que continuaria a ser desnecessária a relação dessa importância alegadamente doada aos netos.

Na verdade, dispõe o n.º 1 do artigo 2104º do Código Civil que os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este; esta restituição tem o nome de colação.

Mas logo acrescenta o artigo 2105 CC que só estão sujeitos à colação os descendentes que eram à data da doação presuntivos herdeiros legitimários do doador.

E, mesmo nesse caso, a colação pode ser dispensada pelo doador no acto da doação ou posteriormente (artigo 2113º CC), presumindo-se sempre dispensada nas doações manuais e nas doações remuneratórias (artigo 2113º CC).

Assim, para se verificar a colação é cumulativamente necessário que (i) haja doação ou certas despesas gratuitamente feitas pelo autor da sucessão a favor de descendentes que na data da liberalidade fossem seus presuntivos herdeiros legitimários; (ii) que tais liberalidades não estejam dispensadas da colação pelo autor da sucessão ou por força da lei; (iii) que se tenha aberto uma sucessão hereditária em que concorram efectivamente diversos descendentes, nomeadamente, descendentes beneficiados com aquela liberalidade ou seus representantes(5).

Desde logo, porque só estão sujeitos à colação os descendentes que eram à data da doação presuntivos herdeiros legitimários do doador (artigo 2105º CC), deduz-se, a contrario, que não estão sujeitas à colação as doações ou as despesas gratuitas feitas a netos se na data da liberalidade os presuntivos herdeiros legitimários forem seus pais(6).

Deste modo, a aceitar-se a confissão da recorrida, a doação teria sido feita aos netos, pelo que a liberalidade não estaria sujeita à colação.

Ainda que a doação tivesse sido feita à recorrida, o que teria de ser provado pelo agravante e em parte alguma tal prova é reclamada, essa liberalidade estaria igualmente dispensada da colação por força da lei, na medida em que estaríamos perante uma doação manual, sendo apenas imputada na quota disponível.

Parece-nos, assim, manifesto que o despacho recorrido nenhuma censura merece.
3.
Pelo exposto, negando provimento ao agravo, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo agravante.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2007.
Manuel F. Granja da Fonseca
Fernando Pereira Rodrigues
Fernanda Isabel Pereira
____________________
1 - Acórdão do STJ de 7 de Julho de 1977, BMJ, 269º, 136.
2 - R.O.A., Ano 8º, n. os 3 e 4, página 188.
3 - Acórdão do STJ de 25 de Fevereiro de 1981, BMJ, 304º, 444.
4 - Prof. Pinto Coelho, RLJ, 81º, 237.
5 - Capelo de Sousa, Sucessões, 2º, 263.
6 - Capelo de Sousa, Sucessões, 2º, 269.