Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
842/22.6GBPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ QUARESMA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONTACTOS
FISCALIZAÇÃO POR MEIOS TÉCNICOS DE CONTROLO À DISTÂNCIA
Nº do Documento: RP20240320842/22.6GBPNF.P1
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A fiscalização da pena acessória de proibição de contactos por meios técnicos de controlo à distância deve ser decretada sempre que se mostre imprescindível para a proteção da vítima impondo, como decorrência constitucional e para salvaguarda da reserva da vida privada e da liberdade pessoal, a necessidade de consentimento do arguido e das pessoas que com ele coabitem para a sua instituição, consentimento que pode ser afastado por via de decisão fundamentada do julgador a justificar tal opção.
II - A decisão de aplicação dos mecanismos de vigilância não deve ignorar, na medida do possível, os reflexos da sua implementação na vida pessoal e profissional do arguido. Porém, o vetor essencial a considerar na arquitetura da medida é o da necessidade de proteção da vítima, no caso especialmente vulnerável, impondo a vigilância quando esta for essencial para o predito fito preventivo.

(da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 842/22.6GBPNF.P1





Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I.

I.1
Nos autos de processo comum n.º 842/22.6GBPNF, que correu termos no Juízo Local Criminal de Penafiel – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, por sentença de 20.10.2023 foi o arguido AA condenado, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al. a) 2, 4 e 5, na pena de três anos de prisão, suspensa por igual período, “sujeita a regime de prova, cujo plano individual de readaptação social será elaborado pelos Serviços de Reinserção Socia que deve incluir a obrigação de afastamento do arguido da assistente, da sua residência e local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio durante o período da suspensão, com exceção das questões relacionadas com o exercício do poder paternal/regime de visitas dos filhos menores de ambos”.
Na mesma sentença foi ainda decidido, além do mais, condenar o arguido “na pena acessória de proibição de contactos com a assistente pelo período de três anos fiscalizada por meios de técnicos de controlo à distância”.
*

I.2
Inconformado, veio o arguido interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 9204151) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
1. O arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, para além do mais, na pena acessória de proibição de contactos com a assistente pelo período de três anos.
2. O presente recurso é interposto por se discordar da sua fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância, atentas as informações prestadas pela DGRSP.
3. O arguido é taxista de profissão na cidade de Penafiel e por força da aplicação do DIP, vulgo pulseira electrónica aquando do primeiro Interrogatório, em 17Setembro2022, ficou muito limitado nos seus giros profissionais – Centro de Saúde, Tribunal, Segurança Social, Serviços de Finanças, Farmácias, Loja do Cidadão, Escolas, etc. -, em virtude de não poder passar nem junto da habitação da assistente, localizada na avenida principal da cidade de Penafiel, nem junto do seu local de trabalho, Centro de Saúde, o que determinou que nos últimos 14 meses os seus rendimentos de trabalho diminuíssem drasticamente, colocando seriamente em causa a possibilidade de satisfação dos seus encargos.
4. As limitações e os constrangimentos manter-se-ão durante os próximos 3 anos, por força do método de fiscalização determinado.
5. Nunca o arguido procurou a ofendida em casa, no emprego ou em qualquer outro local, e nunca o arguido contactou a ofendida, pessoal ou telefonicamente, restringindo-se os contactos – sempre efectuados através de e-mail - a assuntos relativos aos filhos e nenhuma prova existe nos autos em sentido contrário.
6. A DGSTR, através da informação de 28.10.2022, Refª 8297479 e, mais recentemente, da informação de 10.10.2023, Refª 9094681, confirmou isso mesmo e, inclusivé, sugeriu um método de fiscalização alternativo - meios de teleassistência da responsabilidade da CIG.
7. Método de fiscalização que permitirá não só acautelar devidamente a necessidade de controlo de ausência de contactos do arguido com a assistente, mas também àquele desempenhar cabalmente a sua profissão e dela retirar os proventos necessários à satisfação de todos os seus encargos, nomeadamente as suas obrigações para com os seus dois filhos menores.
8. Impõe-se, pois, a revogação da decisão proferida no que ao método de controlo da ausência de contactos do arguido com a assistente respeita, substituindo a fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância por meios de teleassistência da responsabilidade da CIG.
JUSTIÇA!
*

I.3
Admitido o recurso, por tempestivo e legal, a assistente BB apresentou as suas alegações de resposta (Ref.ª 9270747), formulando as seguintes conclusões:
1.ª O arguido cometeu, com dolo intenso e um assinalável grau de sofisticação e empenho os crimes pelos quais foi condenado onde se inclui o de violência doméstica;
2.ª Os factos provados, que não vêm impugnados no recurso, admitem como necessários e por isso proporcionais os meios de fiscalização da pena acessória decididos na douta sentença;
3.ª Convém recordar que o arguido consentiu nesses meios aquando do seu interrogatório judicial e para a determinação da medida de coação aplicável;
4.ª Acresce que, além da factualidade provada está ainda fortemente indiciado nos autos que o arguido, estando sujeito às medidas de coação melhor descritas nos autos, por várias vezes as violou, tendo praticado factos contra a Ofendida em tudo idênticos àqueles pelos quais foi condenado nos presentes autos;
5.ª Correndo, pelo menos, um outro inquérito com o NUIPC 837/23.2GBPNF nos Serviços do Ministério Público, DIAP de Penafiel – veja-se o requerimento da Assistente de 6/10/2023 a fls. …; e
6.ª Sendo outro exemplo o requerimento a fls. … apresentado pela testemunha CC que relata não só ter sido ameaçado pelo arguido, dentro do Tribunal de Primeira Instância, como que este se dirigiu à Ofendida nas mesmas circunstâncias de forma injuriosa;
7.ª Tudo compaginado com a factualidade provada e os demais elementos dos autos nomeadamente com os relatórios da DGRSP a fls. … revelam uma perigosidade do arguido acima do que seria normal para um arguido confrontado com o Sistema Judicial;
8.ª Os relatórios da DGRSP apontam para a ocorrência de “vários alarmes relativos à aproximação entre as partes”, porém presumindo-se que o arguido é desconhecedor da proximidade da ofendida – sic- consideram-se tais aproximações involuntárias e/ou fortuitas, não se identificando comportamento persecutório, nem verificando perigo para a segurança da ofendida; porém nada no relatório ou nos autos admite esse tipo de presunção;
9.ª Aliás, caso se creia que as aproximações são fortuitas e resultam da actividade profissional do arguido, então como é bom de ver este não deixou de se deslocar por toda a cidade de Penafiel, seja próximo da residência da Ofendida, seja próximo do seu local de trabalho, pelo que nenhum prejuízo está a ter, designadamente patrimonial com a fiscalização, para já, do cumprimento da medida de coação;
10.ª É relevante para o tema do recurso assinalar que o arguido nas declarações que prestou em sede de audiência de discussão e julgamento confessou ter instalado um aparelho geolocalizador de madrugada, num fim de semana, enquanto todos dormiam e de forma dissimulada na viatura automóvel da Ofendida, - ouça-se o seu depoimento gravado, no excerto supra transcrito;
11.ª Comportamentos idênticos a este confessado pelo arguido não podem ser prevenidos de outro modo que não com os meios de fiscalização determinados na douta sentença recorrida;
12.ª Da mesma forma dos factos provados resulta que o arguido vigiou a Ofendida e deslocou-se aos locais pela mesma frequentados desde logo à sua residência, onde a esperou e de todos os factos provados decorre que o arguido terá sucessivas vezes controlado o local onde a Assistente se encontrava;
13.ª A sentença recorrida avaliou correctamente os factos, a perigosidade do arguido e aplicou correctamente a Lei e o Direito ao garantir o cumprimento da pena acessória com os meios idóneos e mais que isso absolutamente necessários;
14.ª Não é verdade, como resulta claro dos autos, que a Assistente viva na “avenida principal da cidade de Penafiel” conforme se escreve sucessivamente no recurso e que é a fonte primeira e principal de uma inexistente incapacidade do arguido desenvolver o seu trabalho;
15.ª O verdadeiro objecto do recurso interposto pelo arguido é permitir-lhe fazer toda a sua vida sem a preocupação de dar cumprimento à pena acessória em que foi condenado, propondo-se, além do mais a ir buscar e levar clientes ao local de trabalho da Ofendida, tornando a sua presença em tal local possível, constante e insindicavel;
16.ª Não merece, por tudo, qualquer censura a sentença recorrida, improcedendo assim totalmente o recurso do arguido;
TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, com as legais consequências, por ser esse o acto de inteira e sã Justiça;
Justiça.
*

I.4
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto (Ref.ª 9284586), pugnando pela improcedência do mesmo, aduzindo, em conclusão, o seguinte:
1. A pena de três anos de prisão, suspensa por quatro anos, foi sujeita a regime de prova, cujo plano individual de readaptação social será elaborado pelos Serviços de Reinserção Social nos termos do n.º 3 do artigo 494.º do Código de Processo Penal, que incluiu, nos termos do disposto no artigo 34.º B da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, o afastamento do arguido da ofendida, da sua residência e local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio durante o período da suspensão,
2. Considerando que o arguido, mesmo depois da coabitação com a ofendida ter terminado persistiu na perseguição à mesma através de telemóvel e fisicamente, e ao facto desta sentir medo efetivo das ameaças do arguido, o tribunal entendeu ser necessária a aplicação desta pena acessória, fixando-a em três anos (incluindo o seu cumprimento no plano de readaptação social), e, a nosso ver bem, sujeita a verificação por meios técnicos de controlo à distância pelo mesmo período (artigo 152.º, n.º 4 do C.P. e 35.º da Lei 112/2009, de 15 de Setembro).
3. O regime de prova fixado mostra-se perfeitamente adequado ao caso concreto e perfeitamente justificado face ao comportamento do arguido.
4. Não foram violadas quaisquer normas legais.
Termos em que se conclui sufragando a posição adoptada pela M.ª Juiz a quo na sentença sindicada, julgando-se o recurso interposto pelo arguido AA improcedente, como é de toda a justiça.
*

I.5
Neste Tribunal o Digno Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido do não provimento do recurso (Ref.ª 17611927), acompanhando as considerações expendidas em primeira instância.
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Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., tendo o arguido/recorrente exercido contraditório, mantendo a posição expressa em recurso e referindo que:
A Mma Juíz a quo fixou o método de fiscalização ao abrigo da sua prerrogativa, inquestionável, de decisão segundo a sua livre convicção.
Mas tal método poderá porventura, e é isso que se pretende, ser substituído por meios de teleassistência, método igualmente eficaz e que foi, aliás, sugerido pela DGRSP.
O qual satisfaria, por um lado, a necessidade de controlo da proibição de contactos do recorrente com a recorrida e, por outro, permitira ao recorrente, Taxista, voltar a movimentar-se nas principais artérias da cidade e recuperar alguns dos rendimentos que vem perdendo há 16 meses, e que continuará a perder por mais 3 anos agravando as imensas dificuldades económicas com que se vem debatendo, designada e concretamente para cumprir as suas obrigações (pensão de alimentos e comparticipação nas despesa escolares, de saúde e outras) perante os filhos menores.
*

Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
*

II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto da presente decisão apreciar da adequação da fiscalização por meios técnicos de controlo à distância no que tange à pena acessória de proibição de contatos com a assistente fixada na sentença.
*

III.
III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor da sentença posta em crise, na parte relevante para a presente decisão:
(…)

II – Fundamentação
A) Factos Provados
1. O arguido AA e a ofendida BB casaram no dia 12.09.2010, partilhando, desde essa data e até 10.06.2022, casa, leito e mesa, na residência sita na Rua ..., em ..., ....
2. Do relacionamento entre o arguido e a ofendida nasceram DD, a ../../2011, e EE, a ../../2016.
3. A partir de Outubro/Novembro o arguido começou a desconfiar que a assistente mantinha uma relação extra conjugal, tendo-a confrontado e a mesma negado.
4. Em data não concretamente apurada no final de Dezembro de 2021, na sequência de uma discussão ocorrida no interior da residência referida em 1., por a ofendida ter manifestado a intenção de se divorciar do arguido, este, dirigindo-se à ofendida, proferiu as seguintes expressões “tu és uma puta, sua vaca, passa-te ao caralho”, “tu para ires sair de casa é por outro motivo porque pelos nossos filhos tu sofrias a vida toda”.
5. Em data não concretamente apurada mas anterior a 14.04.2022, o arguido colocou, de forma dissimulada, na mala do veículo da ofendida um aparelho localizador “GPS”, que também era um aparelho audio, da marca “My Tkstar”, ligado a um isqueiro, com recurso ao qual, desde essa data até data não concretamente apurada no final de Junho de 2022, controlou as deslocações da mesma.

6. Pelo menos desde o início de Fevereiro de 2022, no interior da residência referida em 1. e na presença dos filhos DD e EE, o arguido, com frequência diária, dirigindo-se à ofendida, proferiu as seguintes expressões “tu és uma puta, sua vaca, tu passa-te ao caralho”.
7. Em data não concretamente apurada compreendida entre o final do mês de Maio e o início do mês de Junho, na sequência de uma discussão, no interior da residência referida em 1. e na presença dos filhos DD e EE, o arguido, dirigindo-se à ofendida, proferiu as seguintes expressões “tu és uma puta, sua vaca, tu passa-te ao caralho”, “provavelmente o EE já não é meu filho, é do compadre”.
8. Ato contínuo, o arguido com as mãos apertou os pulsos da ofendida e empurrou-a contra a parede enquanto proferia a expressão “eu esborracho-te contra a parede”,
9. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, a ofendida ficou com dores no corpo.
10. No dia 06.06.2022, o arguido, através do seu contacto telefónico com o número ...46, remeteu a FF, a GG e a outros indivíduos não concretamente identificados um print do telemóvel da ofendida relativo a uma troca de mensagens da mesma com outra pessoa, pretendendo transmitir a ideia de que esta manteria uma relação amorosa com outra pessoa.


11. A ofendida, no dia 10.06.2022, juntamente com os dois filhos, saiu da residência mencionada em 1., passando a residir na Rua ..., em ....
12. No dia 01.09.2022, pelas 18h00, o arguido contactou, por via telefónica, a menor DD que se encontrava com a ofendida e, dirigindo-se à mesma, proferiu as seguintes expressões “diz à puta da tua mãe que estou à espera dela para lhe esborrachar o focinho, que te obrigou a estar com o CC sem tu quereres”; “vai deixar de respirar”, “vou-a matar e a seguir vou ter com aquele filho da puta”.
13. A menor DD transmitiu à ofendida o teor das expressões que lhe foram dirigidas pelo arguido.
14. Após, o arguido contactou, por via telefónica, a ofendida e, dirigindo-se à mesma, proferiu as seguintes expressões, “vou-te matar”; “posso ir para a cadeia, mas tu não vais respirar mais e os miúdos vão para a segurança social”; “és uma puta, uma vaca”; “estou à tua espera em tua casa, posso ir para a cadeia, mas tu nunca vais ver os teus filhos, vais para debaixo da terra sua ordinária”, “tenho uma arma, vais aparecer morta num canto, vou-te esborrachar o focinho, és uma filha da puta, uma puta, uma vaca”.
15. No dia 01.09.2022, pelas 19h00, o arguido dirigiu-se às imediações residência da ofendida, e permaneceu aí por um período de tempo não concretamente apurado a vigiar a ofendida.
16. No dia 05.09.2022, o arguido contactou, por via telefónica, a menor DD que se encontrava com a ofendida e, por suspeitar que a ofendida mantivesse uma relação de namoro com o padrinho da filha DD, pediu-lhe que entregasse o telemóvel à ofendida.

17. Assim que a menor DD entregou o telemóvel à ofendida, o arguido, dirigindo-se à mesma, proferiu as seguintes expressões “vais para a puta que te pariu porque a DD não quer estar com o CC, porque é que a obrigaste?”; “acabou vou arrumar contigo minha vaca, acabou! Eu não ando a chatear ninguém tu andas a chatear os nossos filhos a dizer mal do pai, a dizer mal de mim a toda a gente”; “vais arrumar filha da puta, não vais respirar mais…grava aí para ficar gravado caralho”; “estou à tua espera e a seguir vou ter com o filho da puta”; “passa à tua filha sua puta que a puseste com ele”; “vamos ver o que os psicólogos dizem de tu a meteres à beira do padrinho que andas a pinar, e tribunal tu vais ver o que isso quer dizer”.
18. Nessa mesma data, por via telefónica, o arguido, dirigindo-se à menor DD, proferiu as seguintes expressões “diz à mãe que ainda lhe vai sair a sorte grande, que ela deve estar a gravar outra vez, pode ser que lhe saia a sorte grande ou o euromilhões”, “já lhe saiu o joker, um putanheiro, agora ainda lhe vai sair o euromilhões”.
19. A menor DD transmitiu à ofendida o teor das expressões que lhe foram dirigidas pelo arguido e descritas em 20.

20. No dia 14.09.2022, pelas 14h55, no interior de um armário da cozinha da sua residência, sita na Rua ..., em ..., ..., o arguido tinha na sua posse:
a. Uma arma de fogo curta, portátil, com cano, semiautomática e de percussão central, da marca F.N., de calibre 6,35 mm Browning, de cor prateada, com o número ...05, com cano estriado, com o número ...98, fabricada pela Fábrica National de Armes de Guerre, Herstal, na Bélgica;
b. Uma caixa contendo 19 (dezanove) munições de arma de fogo, constituídas por involucro metálico, carga propulsora e projétil em chumbo, sendo 16 (dezasseis) munições de calibre nominal “.25 Auto”, de marca “SPEER”, fabricadas nos Estados Unidos da América, duas munições de calibre nominal “6,35 mm Browning”, de marca “Geco”, fabricada na Alemanha;
c. Uma munição de calibre nominal “6,35 mm Browning”, de marca “S & B”, fabricada na República Checa.

21. O arguido não possui licença de uso e porte de arma de fogo e munições, nem se encontra registado ou manifestado em seu nome qualquer tipo de arma.
22. O arguido sabia que as expressões por si dirigidas à ofendida eram profundamente ultrajantes e lesivas da honra e da consideração pessoal que lhe é devida, mas não obstante essa cognição, agiu com o propósito, conseguido, de a ofender na sua honra e consideração e de a menosprezar, pese embora não ignorasse que devia à visada, na qualidade de sua mulher especial respeito e consideração.

23. Sabia o arguido que as expressões acima referidas e dirigidas à ofendida, bem como os comportamentos acima descritos, eram idóneos e apropriados a afetar a sua liberdade de determinação e a provocar-lhe medo e inquietação e deixá-la perturbada no seu sentimento de segurança, com receio de que pudesse atentar contra a sua integridade física e vida, o que igualmente quis e logrou fazer.
24. Mais sabia que, ao atuar da forma supra descrita deixava a ofendida perturbada no seu sentimento de segurança e condicionava as suas rotinas por esta se sentir permanentemente vigiada, o que igualmente quis e conseguiu.
25. Ao atuar da forma acima descrita, quis também, como conseguiu, molestar e maltratar o corpo e saúde da sua mulher BB e atingi-la na sua integridade física.
26. Sabia ademais que os seus atos, descritos nos artigos que antecedem, afetavam a dignidade pessoal da mencionada ofendida, com quem era casado, bem como o seu equilíbrio psicológico e emocional, e eram adequados a criar nela angústia e sentimentos de insegurança e dependência em relação a si, aterrorizando-a e humilhando-a, o que igualmente quis e conseguiu.
27. Fê-lo sem qualquer motivo justificativo e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência física e psíquica, bem sabendo que da forma descrita atingia física e psicologicamente a mencionada ofendida e lhe infligia maus-tratos físicos e psíquicos, o que lhe foi indiferente por ser querida tal conduta.

28. Sabia outrossim que atuava no domicílio comum e no domicílio da vítima e que, deste modo, coartava as possibilidades de defesa e/ou fuga da mesma e lhe infligia um maior sentimento de vergonha e de insegurança e vulnerabilidade, não se coibindo de praticar tais fatos na presença dos filhos menores que têm em comum, bem sabendo que essas circunstâncias lhe agravavam a responsabilidade criminal.
29. O arguido agiu com o propósito concretizado de deter as armas e munições supra referidas, cujas características próprias conhecia, bem sabendo que não se encontrava autorizado para o efeito.
30. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal.
31. Como consequência do comportamento do arguido supra descrito, a assistente sentiu-se humilhada, desmerecida, aterrorizada, vigiada e devassada.
32. Como consequência do comportamento do arguido supra descrito, a assistente sentiu dores, medo, vergonha, desgosto, angústia impotência e mágoa.
33. O arguido determinou para a assistente o surgimento de crenças negativas em relação a si própria, vivencia em constante stress, hipervigilância, com cognições distorcidas,
resposta em sobressalto, dificuldades de atenção e concentração, insónias.
34. Desde Setembro de 2021 a assistente desenvolveu um quadro de depressão reactiva, apresentando-se desde então e, pelo menos até Março de 2023, com síndrome depressivo, acompanhada por labilidade emocional, chora fácil, baixa autoestima, insónias, razão pela qual passou a ser medicada com Venlafaxina, 37,5mg.
35. Quadro que evoluiu negativamente face à reiteração do comportamento do arguido, pelo que em Janeiro de 2022 a assistente intensificou a medicação antipressiva para 75mg e iniciou a toma de dois ansiolíticos, Alprazolam e Lorazepan.
36. Desde o Verão de 2022, o estado de saúde da assistente sofreu novo agravamento, face à exposição das ameaças do arguido, tendo passado a sofrer de um quadro de astenia generalizada, anorexia, tendo o seu peso corporal decaído de 65Kg para 50 Kg.
37. Na mesma altura a assistente passou a sofrer de tremores generalizado, crises ansiosas agudas, de pânico, o que conduziu ao aumento da dose de Venlafaxina para 150mg.
38. Por causa do comportamento do arguido, a assistente passou a adotar cuidados nas suas deslocações.
39. Durante o hiato temporal abarcado pelos eventos mencionados na acusação, AA compartilhava a moradia com a ofendida e os seus filhos, cujas idades atuais perfazem respetivamente 6 e 11 anos.

40. A formação social de AA ocorreu no contexto do seu núcleo familiar de origem, composto pelos genitores e uma irmã mais velha. A família residia em ..., e a sua subsistência era sustentada pelos proventos obtidos pelo pai, que desempenhava o cargo de porteiro no Hospital ..., e pela mãe, que ocupava o posto de Auxiliar de Ação Médica.
41. A dinâmica familiar pautava-se pela coesão e apoio mútuo, com os pais exercendo uma adequada supervisão e cuidado ao acompanharem o desenvolvimento dos filhos.
42. AA, frequentou o sistema de ensino de forma convencional, completando o 11º ano de escolaridade. No entanto, durante o 8º ano, experimentou uma falta de motivação em relação às atividades académicas, registando uma reprovação. Posteriormente, em 2015, obteve o reconhecimento de competências através do processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), concluindo assim o 12º ano de escolaridade.
43. Após abandonar os estudos, aos 18 anos, ingressou numa empresa privada de segurança, procurando, entretanto, oportunidades em diferentes entidades dentro do mesmo setor.
44. Em 2005 teve uma experiência laboral como condutor de veículos de grande porte durante cerca de um ano. Contudo, optou por encerrar essa atividade profissional em virtude da escassa compensação económica.
45. Posteriormente, após um período de cerca de 3 meses em que esteve desempregado, retomou atividade profissional no
setor da segurança, passando a trabalhar no Centro de Saúde ....
46. A partir de 2009 estabeleceu-se como motorista de veículos ligeiros (taxista), ocupação que mantém na atualidade.
47. Atualmente AA reside só, na habitação da família, subsistindo com base na atividade profissional acima indicada, auferindo mensalmente a remuneração aproximada de 1000 €.
48. Numa análise abstrata e considerando a natureza intrínseca dos factos subjacentes ao processo, AA demonstra capacidade de descentração e reconhece a ilicitude dos mesmos.
49. O arguido refere vivenciar com expectativa e ansiedade o desfecho dos presentes autos, asseverando que recorre a medicamentos para controlo da ansiedade.
50. Questionado quanto à possibilidade de reatar o relacionamento com a ofendida, AA refuta-a, posição igualmente assumida pela ofendida.

B) Factos Não Provados
(…)
Atendendo à medida concreta da pena de prisão fixada, impõe-se que se pondere a suspensão da execução da mesma, nos termos do artigo 50º, n.º 1 do Código Penal.
Aquele normativo estabelece que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Subjacente à decisão de suspender a execução de uma pena de prisão está uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial.
O tribunal, ao suspender a execução da pena de prisão, terá que refletir sobre a personalidade do arguido, sobre as condições da sua vida, sobre a sua conduta anterior e posterior ao delito e sobre o circunstancialismo envolvente da infração.
Verificamos que o arguido não tem antecedentes criminais. Por outro lado, o arguido encontra-se profissional e familiarmente integrado. Assim, entende o tribunal que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Desta forma, vai o arguido condenado na pena de três anos de prisão, suspensa por igual período (artigo 50º, nº1 e 5 do Código Penal).
O nº2 do artigo 50º do Código Penal estabelece que o “tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades de punição (…) determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.
“O regime de prova é uma modalidade da suspensão da execução da pena de prisão, tendo como elemento diferenciador das outras modalidades a existência de um plano individual de readaptação social que é executado com vigilância e apoio de serviços tecnicamente apetrechados para o efeito, no caso os Serviços de Reinserção Social” (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, Almedina, 2007, página 216).
Ora, considerando a natureza do crime pelo qual o arguido vai condenado, e por forma a assegurar a interiorização pelo mesmo da censurabilidade dos factos por si praticados, tanto mais que o arguido desculpabiliza o seu comportamento com atitudes da assistente, este tribunal julga conveniente promover a reinserção do arguido na sociedade, pelo que, torna-se adequado fazer acompanhar a suspensão da pena de prisão do arguido de regime de prova.
De facto, através da elaboração de um plano individual de readaptação e do acompanhamento por técnicos especializados, imprime-se à pena em que o arguido é condenado “um cunho profundamente educativo e corretivo” (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 2007, página 1041)
Pelo exposto, é o arguido condenado na pena de três anos de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova, cujo plano individual de readaptação social será elaborado pelos Serviços de Reinserção Socia que deve incluir a obrigação de afastamento do arguido da assistente, da sua residência e local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio durante o período da suspensão, com exceção das questões relacionadas com o exercício do poder paternal/regime de visitas dos filhos menores de ambos
O crime em análise pode, ainda, ser punido com uma pena acessória de proibição de contacto com a vítima, pelo período de 6 meses a cinco anos.
Entendemos aplicar esta pena acessória ao arguido pelo período de três anos, com exceção das questões relacionadas com o exercício do poder paternal/regime de visitas dos filhos menores de ambos e determina-se, ainda, que esta pena acessória seja fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do disposto no artigo 35º, nº1 da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, por se entender que tal é imprescindível para a defesa da vítima, uma vez que o arguido ainda não interiorizou o desvalor das suas condutas, não sendo de ignorar uma possível repetição dos factos, não tendo resultado dos autos que o comportamento do arguido tenha cessado.
Nos termos do disposto no artigo 152º, nº4 do C.P. vai, ainda, o arguido, ainda, condenado na pena acessória de obrigação de frequência de um programa especifico de prevenção da violência doméstica, a indicar pela DGRSP, durante o período da suspensão.
(…)

III.2
Da vigilância eletrónica instituída
Em jeito introdutório e no sentido de fixar as premissas do juízo sindicante que nos propomos fazer, importa reter que o recorrente não questiona a matéria de facto dada como provada (e por isso definitivamente fixada) ou a justeza e adequação do demais decidido, excluindo e contestando apenas – sendo este o objeto do dissídio – a necessidade e forma de fiscalização instituída em complemento da pena acessória.
Assim e tendo como premissa a matéria de facto dada por assente, importa reter e considerar que o recorrente foi condenado pena prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al. a) 2, 4 e 5 do C.P. e, como defluência, na pena acessória de proibição de contactos com a assistente pelo período de três anos fiscalizada por meios de técnicos de controlo à distância
Em traços largos, perante tal condenação, o recorrente argumenta que a decisão proferida foi insensível e desconsiderou as informações da D.G.R.S.P. de 20.10.2022 (Ref.ª 8297479) e de 10.10.2023 (Ref.ª 9094681) que permitiriam a substituição daquele tipo de vigilância pelo mecanismo de teleassistência.
Refere que, aquando do primeiro interrogatório, foi-lhe imposta a medida de coação de “proibição de permanecer, frequentar ou de se aproximar da habitação, num raio de 500m, da ofendida BB, sita na Rua ..., ... ..., cumulada com a proibição de se aproximar do local de trabalho da ofendida sito no Centro de Saúde ..., estabelecendo-se como área de exclusão um raio de 200 (duzentos) metros e ainda proibição de contactos com a mesma (…)”, a controlar através do sistema de fiscalização eletrónica – Dispositivo de Identificação Pessoal (DIP), vulgo pulseira eletrónica.
Argumenta ainda o recorrente que sempre respeitou, escrupulosamente, a medida que vigorou ao longo de 14 meses, sendo que, conforme informação prestada pela D.G.R.S.P. (de 10.10.2023), os alarmes detetados no dia 5 de outubro relativos à aproximação das partes decorreram da sua movimentação em zona dinâmica e que em nenhuma das situações reportadas se identificou padrão ou comportamento persecutório por parte do arguido, não tendo a segurança da ofendida sido colocada em causa.
Ora, o recorrente é taxista de profissão, fazendo os seus giros na cidade de Penafiel e, sendo a ofendida residente numa habitação situada na avenida principal daquela cidade e trabalhando no Centro de Saúde, tem o recorrente que passar, necessariamente, por aqueles locais a fim de transportar os seus clientes no serviço de táxi que presta.
Assim e enquanto vigorou a medida de coação, ficou o recorrente impedido de aceitar vários serviços que implicavam passar junto à residência da assistente ou do seu local de trabalho, situação que se tem tornado insustentável, reduzindo drasticamente os seus rendimentos, o que se agravará mercê do sistema de fiscalização da pena acessória imposta e que fará prolongar os sobreditos constrangimentos durante o período de 3 anos da sua vigência, defluindo na impossibilidade, para o recorrente, de cumprir as suas obrigações por falta de meios financeiros para tanto, designadamente o pagamento da pensão de alimentos devida aos filhos.
Considerando que o recorrente, em contexto cautelar, nunca constituiu qualquer ameaça para a assistente, não se justifica, a seu ver, o sistema de vigilância instituído, podendo a Mmª Juiz ter determinado, ao invés da vigilância eletrónica, o recurso a meios de teleassistência, conforme aliás sugerido pela D.G.R.S.P. na informação prestada a 28 de outubro, os quais se revelam perfeitamente aptos a controlar a sentenciada proibição de contactos e, ao mesmo tempo, permitindo que o recorrente possa movimentar-se pela cidade de Penafiel no exercício da sua profissão.
Vejamos.
Situando a questão versada no recurso no seu entorno legal dispõe o art.º 152.º do C.P., na parte aqui relevante, que:
“(…) 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. (…)” (sublinhado nosso).
Do normativo transcrito resulta que, no caso de condenação por crime de violência doméstica – como aqui sucede – o arguido pode ser cumulativamente sancionado com a pena acessória de proibição de contacto com a vítima, encontrando-se aqui, como na generalidade das penas acessórias, uma função preventiva e adjuvante da pena principal, fundada “(…) na censura da perigosidade, embora a ela não seja estranha a finalidade de prevenção geral” [cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, pág.165]. Trata-se de uma censura adicional pelo facto que o agente praticou [cfr. acta n.º 8 da Comissão de Revisão do Código Penal)] dirigida, pelo menos em parte, à perigosidade do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação.
No caso específico da pena acessória de proibição de contacto com a vítima, com afastamento da residência ou do local de trabalho desta e fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com duração de seis meses a cinco anos e fixada na decorrência da prática de crime de violência doméstica, esta incorpora e materializa a necessidade de proteção das vítimas de violência doméstica, em peculiar (pela prevalência na vimitação) das mulheres.
Neste particular, sintomático das necessidades de proteção, a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul em 11.05.2011 (Convenção de Istambul), aprovada por Resolução da A.R. n.º 4/2013, publicada no D.R. de 21.01, ratificado pelo Decreto do P.R. n.º 13/2013 de 21.01 e que vigora na ordem interna por força do art.º 8.º, n.º 2 da C.R.P. prevê também, no seu art.º 45.º que “as partes deverão adotar as medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para assegurar que as infrações previstas na presente Convenção sejam puníveis com sanções efetivas, proporcionais e dissuasoras, tendo em conta a sua gravidade (…) [as partes] podem adotar outras medidas em relação aos perpetradores, tais como: - A monitorização ou vigilância de pessoas condenadas (…)”.
Retomando a questão da contestada imposição da vigilância eletrónica, a atual redação do n.º 5 do art.º 152.º do C.P. – “A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância” - inculca a ideia da existência de um regime-regra quanto à necessidade de imposição da indicada vigilância, o que resulta ainda mais evidente ante o confronto com a anterior redação do inciso e da sua alteração por via da Lei n.º 19/2013, de 21.02, isto é, com o texto introduzido pela Lei n.º 59/2007, de 04.09 quando ali se referia: “A pena acessória de proibição de contacto com a vítima pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”.
A assinalada alteração de “pode” para “deve”, atinente à fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, indica, aparentemente, uma transmutação de mera faculdade de índole discricionária para uma certa assertividade na sua aplicação.
Retendo o exposto mas sem tirar, ainda, conclusões, a imposição de vigilância, para além de a montante pressupor a aplicação da respetiva pena acessória, deve, ainda, ser conjugada com o disposto nos art.ºs 35.º, n.º 1 e 36.º, n.º 7 da Lei n.º 112/2009, de 16.06, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas e que revogou a Lei n.º 107/99, de 3 de agosto, e o Decreto-Lei n.º 323/2000, de 19 de dezembro, dali se extraindo que o tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos art.ºs 52.º e 152.º do C.P. e no art.º 31.º do diploma em análise, como é o caso, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, também aqui ocorrendo a mudança do termo pode para deve, mas introduzindo o fator de ponderação da imprescindibilidade de tal medida para a proteção da vítima e impondo, como decorrência constitucional, na salvaguarda da reserva da vida privada e da liberdade pessoal, a necessidade de consentimento do arguido e das pessoas que com ele coabitem para a sua instituição.
Do exposto resulta que a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância no âmbito da execução da pena acessória instituída deve, em regra e por decorrência da proteção a conferir às vítimas especialmente vulneráveis, ser aplicada, carecendo, em princípio, do consentimento do arguido mas podendo o julgador suprir a falta deste, impondo a vigilância, quando, em decisão fundamentada, concluir que aqueles meios são imprescindíveis para a proteção da vítima, impondo, pois, um juízo conformador dos interesses protetivos da vítima ante os direitos constitucionais do arguido, necessariamente comprimidos por aquela imposição coerciva que sairá justificada, ante a prevalência dos primeiros.
Em síntese e como se lê no acórdão desta Relação de 14.09.2022 [proc. n.º 287/21.5GBVNG.P1, Rel. Maria Joana Grácio, acedido em www.dgsi.pt] “(…) a fiscalização da pena acessória de proibição de contactos com a vítima por meios técnicos de controlo à distância deve constituir o padrão das decisões tomadas no âmbito das condenações ao abrigo do art. 152.º do CPenal sempre que se mostre imprescindível para a protecção da vítima, impondo-se agora uma fundamentação mais exigente quando se entenda, nesse contexto, não ser de aplicar tais meios técnicos de fiscalização, por contraponto ao regime anterior em que a decisão de utilização dos referidos meios técnicos é que implicava uma explicação mais rigorosa – esse o sentido da alteração no seu n.º 5 do termo pode (faculdade) para deve (regra). Todavia, continua a ser necessário o consentimento do arguido, da vítima e de outras pessoas afectadas com a medida, embora se permita agora, desde a vigência da Lei 19/2013, de 21-02, que o julgador possa entender que o controlo por meios técnicos à distancia é de facto imprescindível para a protecção dos direitos da vítima, podendo prescindir daquele consentimento, mas exige-se a elaboração de decisão, de forma fundamentada, a justificar tal opção. No fundo, para aplicação da fiscalização da pena acessória através de meios técnicos de controlo à distância é sempre necessário que o julgador entenda que este meio se mostra imprescindível para a protecção da vítima e que ou obtenha o consentimento do arguido, e eventualmente de outras pessoas previstas na lei, de acordo com as circunstâncias em concreto, impondo-se com estes pressupostos uma fundamentação ligeira por ser o regime regra e estarem reunidos os requisitos formais necessários, ou dispensa tais consentimentos através de decisão expressa e com uma fundamentação mais completa no sentido de que a utilização daqueles meios é imprescindível para a protecção dos direitos da vítima, a ponto de se dispensarem os consentimentos apontados (…)” [cfr., no mesmo sentido, acórdão desta Relação de 22.06.2022, proc. n.º 475/21.4PDVNG.P1, Rel. Paulo Costa, in www.dgsi.pt].
No caso concreto, não discute o recorrente a imposição da pena acessória que, como vimos, constituirá o regime padrão em caso de condenação por crime de violência doméstica.
Vejamos, em seguida, da existência e qualidade da fundamentação da decisão que impõe a vigilância eletrónica, suprindo a necessidade de consentimento do arguido e que acomodará o necessário juízo de imprescindibilidade daquela imposição para salvaguarda e proteção da vítima.
Neste particular, a decisão recorrida refere “Entendemos aplicar esta pena acessória ao arguido pelo período de três anos, com exceção das questões relacionadas com o exercício do poder paternal/regime de visitas dos filhos menores de ambos e determina-se, ainda, que esta pena acessória seja fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do disposto no artigo 35º, nº1 da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, por se entender que tal é imprescindível para a defesa da vítima, uma vez que o arguido ainda não interiorizou o desvalor das suas condutas, não sendo de ignorar uma possível repetição dos factos, não tendo resultado dos autos que o comportamento do arguido tenha cessado.”.
Perscrutando os factos assentes - como forma de aquilatar se aquele acervo consente o juízo de imprescindibilidade formulado - é de referir, em entorno geral, que a fundamentação da sentença sobre a imprescindibilidade de aplicação dos meios técnicos de controlo à distância é algo sintética. Invoca o interesse da vítima e o risco de cometimento de factos do mesmo jaez, uma vez que o arguido ainda não terá interiorizado o desvalor das suas condutas e não resultando dos autos que o seu comportamento tenha cessado.
Vejamos, pois, se os factos consentem a inferência.
Iniciaram-se as condutas do arguido (surgidas a propósito do autoconvencimento da manutenção, pela ofendida, de um relacionamento extraconjugal) em outubro/novembro de 2021. Em data anterior a 14.04.2022 o arguido colocou, na viatura utilizada pela assistente, um dispositivo de geolocalização e de escuta áudio, através dos quais manteve controlo das movimentações e conversas havidas no veículo daquela, situação que se manteve até final de junho de 2022. Mantiveram-se, igualmente, os demais comportamentos assacados ao arguido, pelo menos até setembro de 2022, aqui se incluindo repetidas ameaças no sentido de que iria atentar contra a vida da assistente.
O arguido tinha armas e munições em casa (o que lhe valeu a correspetiva condenação) onde lhe foram apreendidas, deixando antever que teve acesso à sua aquisição/posse em meios alternativos ao circuito legal.
Como reflexo da ação do arguido a assistente desenvolveu um quadro de depressão reativa, astenia generalizada e anorexia, com acentuada perda de peso, passando a sofrer de tremores generalizados, crises ansiosas agudas e pânico.
Importa também reter – conforme se alcança de 12 a 16 dos factos provados - que mesmo após a separação do casal e a mudança de residência por parte da assistente, o arguido persistiu nas suas condutas.
Entretanto a situação estará mais estabilizada mas não podemos obliterar a concorrência, para o facto, da aplicação de medidas de proteção e coativas que envolvem, precisamente, a vigilância contestada.
Em sede de determinação da pena o Tribunal a quo considerou que o arguido desculpabiliza o seu comportamento com as atitudes da assistente.
As fichas de avaliação do risco, elaborados pelo O.P.C., indicam consistentemente um risco médio.
Arguido e assistente têm filhos em comum.
É certo que o arguido não tem antecedentes criminais e mostra-se laboralmente ativo.
No entanto, conservando que a imposição da vigilância eletrónica visa, em primeira linha, a salvaguarda e segurança da vítima, a atuação pregressa do arguido, com os sucessivos episódios de ameaça, injúria, perseguição, vigilância e controlo, em contexto de rutura de relação e com ideação, por parte deste, de que a assistente lhe era infiel, com manifestação de ciúmes, são tudo elementos preditores de risco que convocam a necessidade protetiva e a indispensabilidade, neste contexto, da vigilância eletrónica no controlo da execução da pena acessória, como fator protetivo e tranquilizador da vítima.
É certo que, nos termos do disposto no art.º 7.º, n.º 2 da Lei n.º 33/2010 de 02.09, a decisão de aplicação dos mecanismos de vigilância não deve desconsiderar, na medida do possível, os reflexos da sua implementação na vida pessoal e profissional do arguido.
É certo, também, que em termos cautelares, a imposição de igual medida não tem registado incidentes que tenham posto em causa a segurança da vítima.
É certo igualmente, e por fim, que a decisão em causa deve considerar, garantir e excecionalmente restringir, com a parcimónia que se impõe, a preservação de princípios com dignidade constitucional como seja – aqui sem exceção - o do respeito pela dignidade da pessoa humana e o respeito pelos direitos fundamentais do condenado, afetados pela aplicação da vigilância.
Porém, o vetor essencial a considerar na arquitetura da medida é o da necessidade de proteção da vítima, no caso especialmente vulnerável, impondo a vigilância quando esta for imprescindível, o que no caso se justifica pelo que antecedentemente se disse, existindo vítima, agressor e necessidades de proteção, não se vislumbrando, através da execução desta medida, a violação dos princípios da adequação, proibição do excesso e da necessidade consagrados no art.º 18.º da C.R.P.
Diga-se, aliás, ante a invocação, pelo recorrente, de uma pretensa estabilização comportamental, que a vigilância eletrónica, no caso da pena acessória de afastamento, pressupõe que o arguido não se encontre privado da liberdade e, por via disso mesmo, um certo grau de estabilização e de predição positiva quanto à sua atuação futura, ou não teria beneficiado da suspensão da execução da pena de prisão. Só que este juízo de prognose favorável não é excludente, nem incompatível, com a afirmação da imprescindibilidade da vigilância eletrónica como elemento acrescido de proteção da vítima.
O recorrente, ao questionar, essencialmente, o mecanismo de vigilância adotado, clamando pela suficiência da teleassistência, reflexamente, não exclui, ele próprio, a bondade do juízo formulado quanto à existência de um risco para a vítima e de uma necessidade de proteção desta. Afirma é que aquela mesma necessidade (e o risco que a acompanha), ficaria salvaguardada com o equipamento de teleassistência, desonerando-o, assim, do uso de pulseira eletrónica.
Discordamos.
A medida de proteção por teleassistência a vítimas de violência doméstica, prevista nos n.ºs 4 e 5 do art.º 20º, da Lei n.º 112/2009 de 16.09 (vulgo botão de pânico) corporiza, é certo, uma forma de proteção da vítima, garantindo uma resposta reativa a situações de emergência, minimizando, por esta via, a situação de vulnerabilidade em que as vítimas se encontram, contribuindo para o aumento da sua autonomia e reduzindo os índices de ansiedade.
No entanto, não substitui o sistema de vigilância instituído. A sua eficácia pode ser dissuasora, quando o arguido a conheça, mas é, essencialmente, reativa e não preventiva, não monitorizando nem permitindo por isso antecipar a aproximação do arguido e, desta forma, não conferindo eficácia ao controlo da execução de uma pena acessória que proíbe a aproximação.
Assim, na improcedência dos argumentos invocados pelo recorrente, mesmo concedendo que o decidido possa aportar escolhos no exercício da profissão (o que é, não raras vezes, um efeito inevitável das penas) a decisão recorrida deverá manter-se.

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IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando totalmente a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC (art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P. e art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P., com referência à Tabela III).
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Oportunamente cumpra-se o disposto no art.º 10.º da Portaria n.º 280/2016, de 26.10.
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Porto, 20 de março de 2024.
José Quaresma
Paula Natércia Rocha
Pedro M. Menezes