Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
88/09.9TBRSD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS AO MENOR
MÍNIMO DE SOBREVIVÊNCIA
RESPONSABILIDADE DO FGADM
MOMENTO DA EXIGIBILIDADE DAS PRESTAÇÕES ALIMENTARES
Nº do Documento: RP2012100988/09.9TBRSD.P1
Data do Acordão: 10/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – O valor do rendimento social de inserção constitui um limite mínimo imune à cobrança do crédito de alimentos a menores.
II - A responsabilidade do FGADM apenas se constitui no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
PROC. N.º 88/09.9TBRSD.P1
Do Tribunal Judicial de Resende.
Relator: Henrique Araújo
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
REL. N.º 776
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO


Em 31.05.2010, B…., residente na Rua do …., n.º …, Valadares, intentou contra C…., residente no lugar de …, …., Cinfães, o incidente de incumprimento de prestação de alimentos às filhas menores de ambos, D…. e E…..

Na conferência de pais realizada em 18.01.2011, a Requerente e o Requerido chegaram a acordo, comprometendo-se este a liquidar as prestações em falta – v. fls. 138 a 140.

Em 24.02.2011, a Requerente promoveu novo incidente de prestação de alimentos contra o Requerido, em virtude de este não ter satisfeito as obrigações assumidas em 18.01.2011.

Com vista ao apuramento da situação económica e social de ambos os progenitores, foi realizado o inquérito a que alude o artigo 181º, n.º 4, da OTM.

Foi igualmente realizado o inquérito a que se refere o artigo 3º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, imposto pelo artigo 3º, n.º 3, da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro e 4º, nº 2, do referido DL.

Por sentença de 30.01.2012, declarou-se o incumprimento do Requerido C…. “relativamente às prestações de alimentos devidas às menores D…. e E…., no montante de 125,00 €, já vencidas e não pagas, desde Abril de 2010 até à presente data” – cfr. fls. 194/195.

O Ministério Público promoveu, em 15.03.2012, que o Tribunal fixasse um montante mensal não inferior a 75,00 € para cada menor, a prestar pelo Estado, em substituição do devedor.

Em 22.03.2012, a Mmª Juíza decidiu, na sequência da promoção do Ministério Público, que o FGADM procedesse ao pagamento da quantia de 75,00 € a cada menor, desde a data da decisão que julgou o incidente de incumprimento – fls. 203.

O FGADM recorreu.
Nas respectivas alegações de recurso, bate-se o apelante pela revogação da sentença no sentido de que seja imponha ao Requerido incumpridor a satisfação da prestação alimentar ou, a não ser assim, que se defina que a obrigação do FGADM apenas se constitui no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal.
Para tanto, formulou as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida nos autos pelo Tribunal Judicial de Resende em 22.03.2012, na qual o FGADM é condenado a prestar alimentos aos dois menores em causa nos mesmos, no valor de 75,00 € mensais para cada um, em substituição do progenitor incumpridor, “(…) desde a data da decisão que julgou o incidente de incumprimento (…)”, de acordo com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 07.07.2009.
2. Salvo o devido respeito, não pode o ora recorrente concordar com o doutamente decidido.
3. Quanto ao preenchimentos dos pressupostos legais, entende o FGADM que não se encontra verificada a impossibilidade de imposição coerciva da prestação imposta pelo artigo 1º, da Lei n.º 75/98, de 19/11 e pelos artigos 1º, nºs 2 e 3, n.º 1, al. a), do DL 146/99, de 13.05 (art. 189º da OTM).
4. Refere a douta decisão que não foi possível dar cumprimento àquelas disposições atendendo a que o devedor apenas aufere 274,98 € mensais.
5. Dispõe o artigo 2004º do CC, “Os alimentos são proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los”, e, de harmonia com o artigo 2008º do mesmo diploma, o direito a alimentos é irrenunciável.
6. Acresce que nos termos de informação constante do sistema informático da Segurança Social, que se solicitou e presume correcta, o devedor, dois meses após a atribuição da pensão de invalidez, com início em 01.03.2008, passou a MOE (membro de órgão estatutário) da empresa “F…., Lda.”, em 09.05.2008, actividade que não se encontra cessada.
7. Sendo a empresa unipessoal, é legítimo presumir que obtenha da mesma outros proventos além da pensão indicada, o que pode ser aferido através dos Serviços de Finanças competente.
8. No caso em apreço está-se perante um crédito de alimentos, motivo pelo qual o art. 824º, n.º 2, do CPC não é aplicável. E as faculdades previstas nos nºs 4 e 5 do art. 824º do CPC não foram utilizadas nos presentes autos.
9. A intervenção do recorrente tem natureza subsidiária e as suas prestações são de índole assistencial, portanto, diversa da dos alimentos em termos gerais de Direito Civil.
10. O FGADM desconhecia o presente incidente, pelo que apenas com o conhecimento da decisão que faz nascer a sua obrigação tem possibilidade de intervir, razão pela qual a presente prova é tempestiva.
11. Quanto ao carácter retroactivo da prestação fixada ao FGADM, refere a decisão que os alimentos são devidos desde a data da decisão que julgou o incidente de incumprimento e exigíveis no mês seguinte ao da notificação da decisão.
12. Seguramente por lapso, não se descortina a menção à data da decisão que julgou o incidente de incumprimento, a partir da qual nasce a obrigação do FGADM nos presentes autos.
13. O FAGDM discorda do entendimento segundo o qual deve pagar prestações vencidas, porquanto a ratio legis dos diplomas que o instituem e regulamentam é a de suprir necessidades de alimentos actuais dos menores.
14. Actualidade aferida pela verificação judicial da existência cumulativa dos pressupostos e requisitos legais, legitimadores da sua intervenção (arts. 1º e 3º, n.º 4, da Lei n.º 75/98, de 19.11; arts. 2º e 9º do DL n.º 164/99).
15. Não é irrelevante do ponto de vista interpretativo da lei, o preceituado no n.º 2 do art. 3º da Lei n.º 75/98, ao prever uma prestação de alimentos provisória.
16. Não existe qualquer disposição legal no regime do FGADM na qual seja possível fundamentar a atribuição de prestações com efectos retroactivos, pelo que outro entendimento contraria o art. 9º do CC.
17. O artigo 4º, n.º 5, do DL 164/99 é taxativo e contém uma delimitação temporal expressa que estabelece o momento da génese da obrigação que recai sobre o FGADM.
18. A decisão recorrida é desconforme com a jurisprudência uniformizada do STJ, vertida no Acórdão n.º 12/2009, publicado no Diário da República, 1ª série, n.º 150, de 05.08.2009, o qual foi proferido na esteira do entendimento jurisprudencial maioritário.
19. A decisão recorrida contraria igualmente o entendimento expresso consistentemente pela jurisprudência recente do Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão n.º 400/2011, de 22.09.2011.
20. Face ao que antecede, entende-se que a decisão recorrida violou: o disposto no n.º 1, da Lei n.º 75/98, de 19.11 e nos artigos 2º, n.º 2, 3º, n.º 1, al. a), do DL n.º 164/99, de 13.05; os artigos 2004º, 2008º do CC, e 824º, nºs 2 e 4, do CPC, quanto à falta de imposição coerciva da prestação ao devedor.
21. Bem como o artigo 4º, n.º 5, do DL n.º 164/99, de 13.05, e o artigo 9º, n.º 2, do CC, o Acórdão Uniformizador do STJ n.º 12/2009 e a jurisprudência do Tribunal Constitucional.

O Ministério Público contra-alegou, concluindo no sentido da parcial procedência do recurso do apelante, concretamente na parte em que este questiona o momento a partir do qual deve cumprir a obrigação do pagamento da prestação alimentar.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente – artigos 684º e 685º-A, n.º 1, do CPC – as questões a apreciar neste recurso são:
a) Os elementos constantes dos autos são suficientes para determinar o cumprimento das obrigações alimentares aos menores pelo progenitor devedor, nos termos do artigo 189º da OTM?
b) Se assim não se entender, a obrigação do FGADM apenas se constitui no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal?
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FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

A 1ª instância considerou assente a seguinte factualidade:

1. A menor E…. nasceu no dia 31 de Outubro de 1994 e a menor D…. nasceu no dia 14 de Fevereiro de 2001; são ambas filhas de B…. e de C…...

2. Por decisão devidamente transitada em julgado foi fixada a quantia de 125,00 € a pagar pelo pai a título de alimentos devidos às menores, que o Requerido não paga desde Abril de 2010.

3. As menores vivem com a mãe.

4. O agregado familiar das menores tem como rendimento o montante de 350,00 €/mensais e 68,00 € a título de RSI e como despesas mensais fixas a nível de alimentação e com os consumos domésticos em média a quantia de 79,00 €.

5. O Requerido está reformado e aufere 274,79 € mensais.

O DIREITO

a)
Decorre do artigo 189º, da OTM, que, quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida dentro de dez dias depois do vencimento, proceder-se-á ao pagamento das prestações de alimentos vencidas e vincendas, através de desconto no vencimento, ordenado, salário do devedor, ou de rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos e comparticipações que sejam processadas com regularidade.
Visa-se por este meio a cobrança coerciva da prestação de alimentos, através de procedimento pré-executivo, ou seja, à margem de uma acção executiva e independente dela.
Na ponderação feita pelo tribunal recorrido concluiu-se pela impossibilidade de se obter o cumprimento das obrigações alimentares do progenitor devedor através do expediente previsto no artigo 189º da OTM.
Essa impossibilidade assentou na circunstância de o único rendimento conhecido do progenitor faltoso ser a reforma mensal no valor de 274,98 € e no facto de o rendimento per capita do agregado familiar da Requerente se situar em 221,96 € (ou seja, bem abaixo da retribuição mínima mensal[1]). Por isso, incumbiu-se o Estado de realizar essa prestação, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM), nos termos do artigo 1º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, do artigo 3º, n.º 2, do DL 164/99, de 13 de Maio, e dos artigos 1º, n.º 1, 3º, 4º e 5º do DL 70/2010, de 16 de Junho.
A referida impossibilidade de obter o cumprimento das prestações pelo devedor não foi declarada sem que antes se tivessem realizado as diligências de prova consideradas indispensáveis pelo tribunal e o inquérito sobre as necessidades das menores, nos termos do artigo 4º, nºs 1 e 2, do DL 164/99.
Mas, perante, a comprovada escassez de rendimentos do Requerido e a deficitária situação económica da Requerente e do seu agregado, o tribunal recorrido decidiu que teria de ser o FGADM a assegurar o limite mínimo de subsistência das duas menores, respeitando, contudo, o limite mensal de 4 UC por cada devedor, estabelecido no artigo 3º, n.º 3, do DL 164/99.
A intervenção do FGADM é, como se sabe, subsidiária e inicia-se apenas com a notificação da decisão que fixe as prestações de alimentos a pagar aos menores – artigo 4º, nºs 1 e 3 do DL 164/99 –, sendo líquido que não lhe é lícito propor ou apresentar novas provas em sede de recurso dessa decisão.
Independentemente disso, a circunstância de o Requerido ser membro de órgão estatutário de sociedade unipessoal – como agora alega – não faz presumir, sem mais, o recebimento de mais rendimentos do que aqueles que se apuraram na fase da instrução do incidente de incumprimento.
No que respeita à não aplicação do disposto no artigo 824º, n.º 2, do CPC, o apelante tem razão quando afirma que a impenhorabilidade mínima aí postulada não se aplica a créditos de alimentos. É, de facto, isso que resulta da própria letra dos nºs 1 e 2 do citado preceito:
“1 - São impenhoráveis:
a) Dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado;
b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.
2 - A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos[2], o montante equivalente a um salário mínimo nacional.”
A regra que se aplica é antes a do artigo 189º da OTM que, na alínea c) do n.º 1, permite a dedução da prestação alimentar em falta no montante da pensão ou reforma auferida pelo progenitor devedor, sem que aí se estabeleça qualquer limite. Ou seja, mesmo que o valor da reforma seja exíguo o montante deduzido no rendimento é adjudicado ao credor alimentício. Não pode, contudo, privar-se o devedor daquilo que lhe é indispensável para as necessidades mais básicas.
Apesar de se tratar de procedimentos distintos – o do artigo 189º (dedução) é pré-executivo, ao passo que o do artigo 824º (penhora) se insere num processo nitidamente executivo – a “(…) a diversa natureza do acto judicial é irrelevante. O que conta é tratar-se de uma providência judicial de apreensão e afectação de certa parcela de rendimentos periódicos daquela natureza (pensões sociais ou retribuição do trabalho por conta de outrem) à satisfação coerciva de dívidas do seu titular, com a consequente possibilidade de a diminuição do respectivo rendimento disponível lhe não permitir a satisfação das necessidades básicas em termos compatíveis com a dignidade da pessoa humana.”[3]
Este limite mínimo tem sempre de ser garantido, sob pena de violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana estatuído no artigo 1º da lei fundamental, que tem por finalidade assegurar condições mínimas de existência.
Em regra, tem-se estabelecido uma relação íntima entre a dignidade da pessoa humana e a retribuição mínima mensal, na justa medida em que se presume que esta retribuição garantirá uma vida digna.
Apesar da ressalva do n.º 2 do artigo 824º (pensada necessariamente para evitar incompatibilidade normativa com o artigo 189º da OTM), o referido princípio constitucional não pode ser preterido, em momento algum, pela regra do artigo 189º da OTM. Reafirma-se, assim, que o devedor de alimentos terá sempre garantido para a sua subsistência um valor mínimo. Mas qual será esse valor? Será o valor da retribuição mínima mensal ou poderá ser um valor inferior a esse?
Aproximamo-nos, quanto a esta questão, da solução encontrada no acórdão desta Relação de 02.10.2008[4], no qual, após se constatar uma colisão ou conflito de dois direitos fundamentais de igual dignidade (o direito fundamental que os filhos têm à manutenção por parte dos pais - artigo 36.º, n.º 5, da CRP - e o direito fundamental, a todos garantido, a um mínimo de sobrevivência - artigo 1º da CRP), se afirmou o seguinte:
“Embora a impenhorabilidade mínima – equivalente a um salário mínimo nacional – não se aplique quando o crédito exequendo é um crédito de alimentos, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP) impede que, em consequência da penhora/adjudicação o devedor passe a dispor de um rendimento disponível insuficiente para assegurar a sua própria auto-subsistência mínima.
Após a penhora/adjudicação deve o devedor ficar com uma quantia (inferior ao salário mínimo) susceptível de lhe preservar ‘um mínimo vital de subsistência’.
Mínimo que o legislador da reforma processual de 2003 – removendo embora o obstáculo do limite mínimo de impenhorabilidade equivalente ao salário mínimo nacional – não fixou, o que não impede que, por via jurisprudencial, se fixe um montante mínimo razoável totalmente impenhorável, cuja quantificação, à luz das condições sócio-económicas do país, deixe a salvo da penhora/adjudicação uma quantia mínima absolutamente indispensável para o executado prover à sua própria sobrevivência física. Pode pois dizer-se, efectuando a compatibilização prática, que a satisfação das necessidades básicas do menor credor de alimentos só cederá perante o montante de rendimento indispensável ao mínimo de sobrevivência do progenitor devedor de alimentos – montante este que constituirá um montante mínimo imune à penhora/adjudicação.
Mínimo de sobrevivência que tem no ordenamento jurídico uma bitola que pode ser usada como critério orientador do limite de ‘impenhorabilidade’ para este efeito: o rendimento social de inserção, referencial para o rendimento intangível, adequado ao balanceamento dos interesses em conflito.”
A fixação do valor do rendimento social de inserção como limite mínimo imune à cobrança do crédito de alimentos a menores, harmoniza os direitos em confronto, garantindo a correcta modelação dos interesses tutelados.
Situando-se esse valor muito próximo dos 190,00 €[5], e sabendo-se que o progenitor faltoso apenas aufere de reforma o valor mensal de 274,98 €, a dedução da prestação mensal devida pelo progenitor faltoso (125,00 €) deixar-lhe-ia de rendimento disponível o montante aproximado de 150,00 €.
Por isso, a sentença recorrida decidiu bem quanto à impossibilidade de fazer actuar o disposto no artigo 189º da OTM, embora se reconheça que não fundamentou convenientemente essa mesma impossibilidade.

b)
A outra questão suscitada no recurso prende-se com a determinação do momento a partir do qual o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) se encontra obrigado a cumprir as prestações alimentares das duas menores.
A jurisprudência esteve dividida quanto a essa questão durante muito tempo.
Havia três correntes: uma, entendia que a data a partir da qual o Fundo devia assegurar as prestações ao menor era a data em que tivesse sido requerida ao tribunal a sua intervenção; outra, defendia que esse momento se devia reportar ao momento do incumprimento do progenitor devedor; finalmente, uma outra, considerava que a obrigação do Fundo só nascia na data da decisão do respectivo incidente de cumprimento.
Como se compreende, são bem distintos os efeitos das decisões que adoptem qualquer uma das citadas correntes.
Da primeira, resultava serem exigíveis do Fundo as prestações alimentares vencidas desde a entrada em juízo do pedido contra o devedor; da segunda, decorria serem exigíveis todas as prestações alimentares vencidas desde o incumprimento do devedor, isto é, mesmo as prestações que se tivessem vencido antes da dedução desse pedido; da terceira, por fim, derivava a exigibilidade das prestações alimentares apenas no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, nos termos do art. 4º, n.º 5, do DL 164/99, de 13 de Maio, não abrangendo quaisquer prestações anteriores.
Foi sempre esta última solução que adoptámos[6].
E foi também esta a solução que o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 12/2009, de 7 de Julho[7], consagrou na seguinte súmula conclusiva:
“A obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menor, em substituição do devedor, nos termos previstos nos artigos 1º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, e 2º e 4º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores”.
Na fundamentação desse acórdão pode ler-se:
“Perante o elevado número de situações de incumprimento das prestações alimentares, a Lei 75/98 criou o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, com o objectivo de assegurar, através do Estado, direitos constitucionalmente garantidos, como sejam o direito à vida (que implica o acesso a condições de subsistência mínimas) e o direito das crianças ao seu desenvolvimento integral, consagrados nos artigos 24º, n.º 1, e 69º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
A obrigação de prestação de alimentos a cargo do Fundo é uma obrigação independente e autónoma, embora subsidiária, da do devedor originário dos alimentos, no sentido de que o Estado não se vincula a suportar os precisos alimentos incumpridos, mas antes a suportar alimentos fixados ex novo.
A prestação de alimentos incumprida pelo primitivo devedor funciona apenas como um pressuposto justificativo da intervenção subsidiária do Estado para satisfação de uma necessidade actual do menor.
Consequentemente, o Estado não se substitui incondicionalmente ao devedor originário dos alimentos e apenas se limita a assegurar os alimentos de que o menor carece, enquanto do devedor primário não pague, ficando onerado com uma nova prestação e devendo ser reembolsado do que pagar”.
E, mais à frente:
“Não há paridade entre o dever paternal e o dever do Estado quanto a alimentos, pois não há qualquer semelhança entre a razão de ser da prestação de alimentos fixada ao abrigo das disposições do Código Civil e a fixada no âmbito do Fundo. Enquanto o artigo 2006º está intimamente ligado ao vínculo familiar, nos termos do artigo 2009º (e daí que, quando a acção é proposta, os alimentos já seriam devidos), a lei n.º 75/98 cria uma obrigação nova, imposta a entidade que, antes da respectiva decisão, não tinha qualquer obrigação de a prestar”.
Embora os acórdãos uniformizadores não sejam vinculativos para os tribunais, a sua força persuasiva é inegável[8]. Para contrariar a doutrina uniformizadora só devem valer fortes razões ou outras especiais circunstâncias que, porventura, ainda não tenham sido suficiente e conscientemente ponderadas.
Ora, não há razões para nos desviarmos do sentido da jurisprudência uniformizada, tanto mais que a nossa posição sobre a matéria é, desde há muito, coincidente com a conclusão do citado acórdão uniformizador.
Posto isto, a conclusão parece-nos evidente: a responsabilidade do FGADM pelo pagamento da quantia de 75,00 € para cada uma das menores só é exigível a partir do mês seguinte à notificação da sentença que lhe atribuiu a obrigação desse pagamento, ou seja, desde Abril de 2012 – cfr. decisão de fls. 197 a 203.
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III. DECISÃO

Assim, na parcial procedência da apelação, revoga-se também em parte a douta sentença recorrida, determinando-se que a obrigação do pagamento pelo FGADM da prestação alimentar de 75,00 € a cada uma das menores se tornou efectiva a partir do mês de Abril de 2012.
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Sem custas.
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PORTO, 9 de Outubro de 2012
Henrique Luís de Brito Araújo
Fernando Augusto Samões
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
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[1] Fixada actualmente em 485,00 €.
[2] Sublinhado nosso.
[3] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/2005,
[4] No processo n.º
[5] Mais concretamente, 189,52 €.
[6] Cfr. acórdão por nós relatado em 15.06.2004, no processo n.º 0422369, em www.dgsi.pt.
[7] Publicado no DR, 1ª Série, n.º 150, de 5 de Agosto de 2009.
[8] Abrantes Geraldes, CJSTJ, Ano VII, Tomo II, págs. 5 seguintes e “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, pág. 425.