Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1317/09.4TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
NÃO USO DO LOCADO
DOENÇA DO ARRENDATÁRIO
Nº do Documento: RP201310151317/09.4TBVNG.P1
Data do Acordão: 10/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não é qualquer doença que constitui impedimento à justa causa de resolução do contrato pelo não uso do arrendado, prevista na al. a) do n.º2 do art.º 1072.º do C.Civil. Essa doença tem de ser temporária, curável, ou pelo menos existir forte probabilidade de o tratamento a efectuar fora do locado ser necessário e imprescindível à recuperação da saúde, sendo assim previsível o regresso ao arrendado, manifestando-se a correspectiva vontade.
II - Tendo-se provado que a doença de que a ré padece é crónica, irreversível, e mesmo dada a sua avançada idade e estado demencial que apresenta não é crível que a mesma tenha vontade de regressar alguma vez ao locado, ou que aí, em função das suas limitações pessoais, venha a ter as condições necessárias para voltar a residir.
III - Pelo que não logrou a ré provar os factos necessários e eventualmente integradores da sua situação no caso de impedimento da eficácia resolutiva do não uso do locado por mais de um ano, previsto na al. a) do n.º 2 do art.º 1072.º do C.Civil.
IV - Finalmente, não se julga inconstitucional, por violação de qualquer direito social das pessoas de terceira idade, a interpretação da al. a) do n.º2 do art.º 1072.º do C.Civil, no sentido de que a “doença” aí prevista seja de carácter temporário ou transitório, de modo que, debelada, o arrendatário retorne ao locado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 1317/09.4 TBVNG.P1
Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia – 6.º Juízo Cível
Recorrente – B…
Recorrida – Junta de Freguesia …
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Maria do Carmo Domingues
Desemb. José Bernardino de Carvalho

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)

I – A Junta de Freguesia …, com sede na …, n.º …, …, Vila Nova de Gaia, instaurou no Tribunal dessa mesma cidade a presente acção declarativa, com processo sumário, contra B…, pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento e que a ré seja condenada a entregar o locado livre de pessoas e bens.
Para tanto, alega, em síntese, que é dona de um prédio sito em … que foi dado de arrendamento à ré, para habitação desta, mediante o pagamento por esta de renda no valor de €6,00 anuais. Que a ré sofre há muito de doença prolongada e deixou de habitar o prédio, passando a residir num lar, onde se encontra acamada e totalmente dependente.
Regular e pessoalmente citada a ré veio contestar pedindo a improcedência da acção.
Para tanto começou por invocar a ineptidão da petição inicial por a autora não alegar suficientemente os factos em que funda o seu pedido. Depois impugnou a versão dos factos alegada pela autora, dizendo que o seu estado de saúde se deveu a atropelamento nas instalações do C… e que a sua situação não tem carácter definitivo, que apenas se encontra nesse lar porque o seu familiar mais próximo se encontra em Lisboa e não tem disponibilidade para contratar quem preste à ré os cuidados de que esta carece e que todos os seus bens continuam no locado e que este está conservado da melhor forma possível.
A autora respondeu mantendo o alegado na petição inicial e requereu a produção antecipada de prova, ouvindo-se a ré em depoimento de parte.
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Foi ordenada perícia médica à ré com vista a aferir da sua capacidade para prestar o depoimento de parte requerido.
Foi convidada a autora a aperfeiçoar a petição inicial e esta veio dizer que a ré sofre do doença que não lhe permite mover-se nem falar e encontra-se acamada e totalmente dependente no D…, pelo que não pode regressar ao arrendado.
A ré manteve a sua posição quanto aos vícios da petição inicial que invocou.
A autora apresentou nova resposta reiterando o que já havia alegado e dizendo não ter meios para especificar a doença de que sofre a ré.
Foi realizado exame médico à ré e face ao estado de saúde desta foi indeferido o depoimento de parte requerido.
Colocaram-se nos autos dúvidas quanto ao modo de citação da ré, atendendo ao seu estado de saúde. Tendo sido nomeado curador especial da ré para esta acção, o seu neto E…, tendo este sido notificado para ratificar a contestação apresentada em nome da ré, o que este fez.
Foi novamente convidada a autora a aperfeiçoar a petição inicial no que concerne à doença da ré, o que esta fez de acordo com as conclusões do exame médico realizado.
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Foi dispensada a realização de audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, seleccionada matéria de facto e elaborada a base instrutória de que se não reclamou.
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Procedeu-se a julgamento da matéria de facto, com gravação em sistema audio dos depoimentos aí prestados, após o que foi proferida a respectiva decisão sem reclamação das partes.
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Proferiu-se sentença que julgou a presente acção integralmente procedente por provada e, em consequência, declarou resolvido o contrato de arrendamento existente entre a autora e a ré e, em consequência, condenou a ré a despejar imediatamente o locado, entregando-o à autora livre de pessoas e bens.
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Inconformada com tal decisão veio a ré recorrer de apelação pedindo que a mesma seja revogada e substituída por outra que julgue improcedente a acção de despejo.
A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1. O não uso do locado se deve ao estado de doença de que padece a Ré.
2. O estado de doença, ainda que crónico e irreversível, deve ser subsumível na previsão do artigo 1072.º n.º 2 C.C.
3. O não uso do locado por parte da Ré deve ser qualificado como motivo de força maior ou de doença.
4. O estado de saúde da Ré deve justificar a falta de habitação permanente.
5. Deve considerar-se verificado o circunstancialismo do artigo 1072.º n.º 2 a) C.C. conforme o invocado.
6. Tal circunstancialismo é impeditivo da resolução do contrato de arrendamento.
7. Inexiste qualquer outro invocado fundamento de resolução do contrato de arrendamento.
Da Inconstitucionalidade da interpretação do art.º 1072.º n.º2 a) C.C.
8. A interpretação do artigo 1072.º n.º 2 a) C. C., segundo a qual as situações de força maior e doença previstas na citada alínea têm como pressuposto a intenção de regresso do arrendatário à habitação de que temporariamente se ausente por força da sua doença é inconstitucional.
9. A citada interpretação é violadora do preceito constitucional consagrado no artigo 72.º da Constituição da República Portuguesa.
10. Tal interpretação ofende o direito das pessoas idosas à manutenção da sua habitação em caso de doenças prolongadas, ao permitir a resolução dos contratos de arrendamento não justificando o não uso do locado nos termos do artigo 1072.º n.º 2 a) C.C.
11. Como ofende o seu direito à autonomia pessoal também consagrado constitucionalmente no mesmo artigo 72.º C.R.P.
12. O artigo 1072.º n.º 2 a) C.C. deveria ser interpretado no sentido de subsumir como motivo impeditivo da resolução do contrato de arrendamento, qualquer estado de doença, ainda que crónico e irreversível, desde que haja manifestação de vontade do arrendatário em manter o arrendamento, presumindo-se essa vontade com o pagamento regular das rendas.
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A autora/apelada juntou aos autos as suas contra-alegações onde pugna pela improcedência do recurso.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1- A Autora é dona do prédio urbano sito na …, casa …, freguesia …, Vila Nova de Gaia, omisso na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia e inscrito na matriz sob o art.º 1210 da freguesia …. – (Alínea A) da Matéria de Facto Assente).
2- Esse prédio foi dado de arrendamento pela autora à Ré para habitação desta. - (Alínea B) da Matéria de Facto Assente).
3- Como contrapartida a Ré pagava à Autora a quantia de €6,00 anuais a título de renda. - (Alínea C) da Matéria de Facto Assente).
4- A Ré encontra-se no D…, sito no n.º …, em …, Vila Nova de Gaia. - (Alínea D) da Matéria de Facto Assente).
5- A Ré sofre de síndrome demencial, apresentando perturbações das funções corticais superiores como a memória, o pensamento, a orientação, a compreensão, o cálculo, a capacidade de aprendizagem, e o julgamento das funções executivas, como planear, organizar, sequenciar e abstrair, situação que é crónica e irreversível. – (Alínea E) da Matéria de Facto Assente).
6- A Ré, desde pelo menos o ano de 2006, deixou de viver na casa referida em 1, deixando de receber aí correspondência. – (Resposta ao quesito 1.º da b. inst).
7- E a Autora não mais regressou ao locado com excepção de um dia por ano, no verão, de 2008 a 2011, e de um outro dia na Páscoa, em que o seu neto a levou a visitar a casa. - (Resposta ao quesito 2.º da b. inst).
8- Não mais tendo aberto e fechado as janelas dessa casa. - (Resposta ao quesito 3.º da b. inst).
9- Nem procedido à limpeza da casa. - (Resposta ao quesito 4.º da b. inst).
10- Nem aí recebendo correspondência. - (Resposta ao quesito 5.º da b. inst).
11- Nem aí dormindo. - (Resposta ao quesito 6.º da b. inst).
12- A Autora não mais aí fez refeições com excepção dos dias referidos em 7. - (Resposta ao quesito 7.º da b. inst).
13- Desde o ano de 2006 a Ré encontra-se a residir no D…. – (Resposta ao quesito 8.º da b. inst).
14- No ano de 2006 foram alterados o domicílio fiscal e o domicílio da Ré junto da segurança social para esse lar. - (Resposta ao quesito 9.º da b. inst).
15- A Ré passou a receber a correspondência nesse lar. - (Resposta ao quesito 10.º da b. inst).
16- A Ré encontra-se no D… devido ao seu estado de saúde. - (Resposta ao quesito 11.º da b. inst).
17- E porque o seu familiar mais próximo reside em Lisboa e não possui disponibilidade, quer humana, quer financeira, para prestar, ou contratar alguém que preste os cuidados de que a Ré carece. - (Resposta ao quesito 12º da b. inst).
18- Todos os pertences da Ré permanecem na casa referida em 1. - (Resposta ao quesito 14.º da b. inst).
19- Encontrando-se este conservado da melhor forma possível. - (Resposta ao quesito 15.º da b. inst).
20- A Ré nasceu em 8 de Setembro de 1917. – documento junto a fls. 82.
21- A Ré foi declarada interdita por sentença de 16/02/2012, tendo-se aí fixado como data de indício da incapacidade os inícios de 2010, conforme consta do documento junto a fls. 186 a 190 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
22- Nessa sentença deu-se como provado que a Ré não consegue deslocar-se sozinha para fora do D…; que não consegue ler nem escrever; nem efectuar operações aritméticas; que não conhece o dinheiro, não lhe reconhece valor nem utilidade, nem é capaz de o gerir; que não consegue sequer alimentar-se, vestir-se, nem cuidar da sua higiene pessoal sozinha; nem consegue tomar a medicação que lhe é prescrita a horas e nas dosagens recomendadas.

III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 684.º n.º3, 684.º-B, n.º 2 e 685.º-A, todos do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. Sendo que ao presente recurso é aplicável o regime processual estabelecido pelo DL 303/2007, de 24.08, por respeitar a acção instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, cfr. n.º 1 do artº 11.º e art.º 12.º do citado DL., não sendo ainda aplicável o NCPC por a decisão em crise ter sido proferida antes de 1 de Setembro de 2013.
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Ora, visto o teor das alegações da apelante é questão a apreciar no presente recurso:
1.ª – Da alegada licitude do não uso do locado por parte da ré – art.º 1072.º n.º2 al. a) do C.Civil.
2.ª – Da alegada inconstitucionalidade da interpretação feita da al. a) do n.º2 do art.º 1072.º do C.Civil.
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1.ªquestão - Da alegada licitude do não uso do locado por parte da ré.
Vem a autora pedir que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento que celebrou com a ré e consequentemente pede que esta seja condenada a entregar-lhe o locado livre de pessoas e bens. Alega a autora, como fundamento da resolução do contrato de arrendamento, o não uso do locado por mais de um ano, nos termos do disposto nos art.ºs 1072.º n.º1 e 1083.º n.º2 al. c), ambos do C.Civil.
Correctamente na decisão recorrida consignou-se que tendo a acção dado entrada em juízo no dia 6.02.2009, o regime à luz do qual se apreciará o fundamento de resolução do contrato invocado será o introduzido pela Lei n.º 6/2006, de 27.02 (NRAU).
Considerando os factos provados nos autos, designadamente que, pelo menos desde o ano de 2006 a ré deixou de viver no locado, nomeadamente, deixou de aí dormir, de tomar as suas refeições, de aí receber a sua correspondência, de limpar a casa e sequer de abrir e fechar as respectivas janelas, nem sequer se tendo dirigido a essa casa com excepção de um dia por ano, na altura do verão de 2008 a 2011 e um outro dia numa Páscoa, em que o seu neto a levou a visitar a casa; que no ano de 2006 foram, inclusivamente, alterados o domicílio fiscal e o domicílio da ré junto da segurança social para esse lar; que a ré passou também a receber a correspondência nesse lar, onde passou a residir, ou seja, que a ré deixou de ter a sua residência permanente no locado, passando a ter essa residência no D…, onde se encontra, concluiu a 1.ª instância que, há mais de um ano que o locado não é utilizado pela ré para o fim objecto do contrato de arrendamento, que era a sua habitação permanente, pelo que se encontra preenchida a cláusula prevista na al. d) do n.º 2 do art.º 1083.º do C.Civil, correlacionada com o disposto no n.º1º do art.º 1072.º do C.Civil, que impõe como obrigação do arrendatário o uso efectivo da coisa arrendada para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de um ano, fundamentando a resolução do contrato de arrendamento e, consequente despejo do local arrendado.
Mais considerou a 1.ª instância que tendo a ré 96 anos de idade e encontrando-se fisicamente muito debilitada, sofrendo de síndrome demencial, apresentando perturbações das funções corticais superiores como a memória, o pensamento, a orientação, a compreensão, o cálculo, a capacidade de aprendizagem, e o julgamento das funções executivas, como planear, organizar, sequenciar e abstrair, situação que é crónica e irreversível, tendo aliás, entretanto, sido declarada interdita por sentença de 16.02.2012, onde se fixou como data de indício da incapacidade os inícios de 2010 e onde se deu como provado que a ré não consegue deslocar-se sozinha para fora do D…; que não consegue ler nem escrever, nem efectuar operações aritméticas; que não conhece o dinheiro, não lhe reconhece valor nem utilidade, nem é capaz de o gerir; que não consegue sequer alimentar-se, vestir-se, nem cuidar da sua higiene pessoal; nem consegue tomar a medicação que lhe é prescrita a horas e nas dosagens recomendadas, ou seja, não tendo qualquer capacidade para se auto-regular, necessitando do auxílio de terceiros, concluiu que não se apurou nenhuma causa em que o não uso do locado é lícito, conforme previsto no n.º 2 do art.º 1072.ºdo C.Civil.
Ora, é exactamente contra esta última conclusão que a apelante se vem insurgir, dizendo, em suma, que não obstante sofrer de doença grave, crónica e irreversível, sem quaisquer perspetivas de melhora e que não lhe permite viver de forma autónoma e que se encontrar no D… por força da sua situação de doença que é incapacitante, e que o seu familiar mais próximo reside em Lisboa e não tem condições, humanas e financeiras, para lhe prestar, ou contratar alguém que lhe preste os cuidados de que carece, e que assim nenhum deste factores é impeditivo do seu regresso ao locado. Pois que, reunidas as condições sociais e humanas por parte da ré e dos seus familiares, é perfeitamente possível regressar e passar a usar o locado como fez durante mais de 50 anos.
A apelada veio dizer que ao longo dos autos ficou bem provado que a ré não tem as condições que agora alega, nem nunca as virá a ter e aliás disso nem sequer fez prova.
Vejamos.
Estabelece o art.º 1083.º n.º 2 al. d) do C.Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27.02, como fundamento para a resolução do contrato de arrendamento “O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072,º”.
Não restam dúvidas de que competia à autora-locadora a alegação e prova dos factos integradores do invocado fundamento de resolução, cfr. art.º 342.º n.º 1 do C.Civil, o que como se viu, cumpriu cabalmente. Por sua vez, cabia à ré-locatária a prova da justificação do não uso do imóvel, cfr. art.º 342.º n.º 2 e 1072.º n.º 2 do C.Civil.
Mas a lei tipifica as causas de exclusão da ilicitude da violação da obrigação do arrendatário estabelecida no art.º 1083.º n.º 2 al. d) do C.Civil, prescrevendo o n.º 2 do art.º 1072.º do mesmo diploma, ser lícito o não uso pelo arrendatário: -a) “Em caso de força maior ou de doença”; -b) “Se a ausência, não perdurando há mais de dois anos, for devida ao cumprimento de deveres militares ou profissionais do próprio, do cônjuge ou de quem viva com o arrendatário em união de facto”; -c) “Se a utilização for mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano”.
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Dos factos assentes nos autos resulta que a ré é pessoa com 96 anos de idade (nasceu a 8.09.1917) que sofre de síndrome demencial, apresentando perturbações das funções corticais superiores como a memória, o pensamento, a orientação, a compreensão, o cálculo, a capacidade de aprendizagem, e o julgamento das funções executivas, como planear, organizar, sequenciar e abstrair, situação que é crónica e irreversível.
Desde o ano de 2006 que se encontra a residir no D… devido ao seu estado de saúde e porque o seu familiar mais próximo, que reside em Lisboa, não possuir disponibilidade, quer humana, quer financeira, para prestar, ou contratar alguém que preste os cuidados de que ela carece.
A ré foi declarada interdita, tendo-se dado por provado que a mesma não consegue deslocar-se sozinha para fora do D…; que não consegue ler nem escrever; nem efectuar operações aritméticas; que não conhece o dinheiro, não lhe reconhece valor nem utilidade, nem é capaz de o gerir; que não consegue sequer alimentar-se, vestir-se, nem cuidar da sua higiene pessoal sozinha; nem consegue tomar a medicação que lhe é prescrita a horas e nas dosagens recomendadas.
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Segundo Aragão Seia, in “Arrendamento Urbano Anotado e Comentado”, pág. 313, “a doença como causa impeditiva, tem de obedecer aos seguintes requisitos: ser doença do locatário e, em certos casos, dos seus familiares a quem deva, por lei, assistência; obrigar, por necessidade de tratamento, o locatário a ausentar-se do arrendado; ser regressiva, isto é, existir forte probabilidade de o tratamento a efectuar fora do arrendado ser decisivo à recuperação da saúde; não se tratar de doença crónica que torne o tratamento definitivo; ser a doença o único motivo que levou o inquilino a deixar de viver permanentemente no arrendado, de modo que, debelada, retome a residência permanente”.
Neste mesmo sentido veja-se o Ac. da Relação de Lisboa de 30.06.2005, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que não basta “um estado patológico qualquer para integrar o conceito de doença … tornando-se necessário que a doença, pela sua natureza e circunstâncias da sua terapêutica, torne impossível a habitação ou residência permanente no arrendado”.
Veja-se ainda o Ac. da Relação do Porto, de 22.09.1998, também in www.dgsi.pt, segundo o qual: “I - A doença, justificativa da ausência do inquilino do arrendado e impeditiva da resolução do contrato do arrendamento, não deverá ser crónica ou definitivamente impeditiva do regresso do inquilino, só se justificando essa ausência desde que seja imposta por necessidade de tratamento da doença e pelo tempo que esse tratamento durar.
II - A permanência no arrendado de parentes ou familiares do inquilino só será relevante, como impedimento da resolução do arrendamento fundada na ausência do inquilino, quando não tiver havido desintegração da família e o arrendado continue a ser a sede do agregado familiar ou, pelo menos, continue a existir conexão económica entre os parentes ou familiares e o arrendatário ausente”.
E ainda o Ac. da mesma Relação do Porto, de 6.12.1999, in www.dgsi.pt, onde se consignou que “A doença, como causa impeditiva da eficácia resolutiva da falta de residência permanente, tem de obedecer aos seguintes requisitos:
1) ser doença do locatário (ou das pessoas que convivem com ele em economia comum);
2) obrigar, por necessidade de tratamento, o locatário a ausentar-se do arrendado;
3) ser regressiva, isto é, existir forte probabilidade de o tratamento a efectuar fora do arrendado ser decisivo à recuperação da saúde;
4) não se tratar de doença crónica que torne definitivo o impedimento de regressar ao locado; e
5) ser a doença o único motivo que levou o inquilino a deixar de viver permanentemente no arrendado, de modo que, debelada, retome a residência permanente”.
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Nos autos invoca a apelante o disposto na al. a) do n.º2 do art.º 1072.º do C.Civil, segundo o qual é lícito o não uso do locado pelo arrendatário em caso de força maior ou de doença.
Como vem sendo entendido quer na Doutrina quer na Jurisprudência, o caso de força maior, capaz de impedir a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na al. d) do n.º 2 do art.º 1083.º, tem de consistir numa circunstância exterior ao arrendatário mas que o impede de usar o locado (habitá-lo, ocupá-lo, etc.), enquanto a doença, também mencionada na mesma norma, terá de ser uma circunstância temporária e causa única da ausência do arrendatário do locado.
No caso em apreço nos autos, e como defende a apelante, o seu internamento num lar de idosos, por não ter condições físicas e psíquicas para morar sozinha e ser assim capaz de gerir a sua pessoa, e por não familiares com disponibilidade, quer humana, quer financeira, para prestarem, ou contratarem alguém que preste os cuidados necessários ao estado de saúde e à sua avançada idade, não é um “caso de força maior” para a ausência do locado, por não ser uma circunstância exterior à ré, mas sim circunstâncias que lhe dizem directa e pessoalmente respeito.
Portanto, defende a apelante que é lícita a sua ausência do locado porque se encontra doente, e consequentemente por não ter condições físicas e psíquicas para morar sozinha e gerir assim sua pessoa, e por não ter familiares com disponibilidade, quer humana, quer financeira, para prestarem, ou contratarem alguém que preste os cuidados necessários ao estado de saúde e também à sua avançada idade. Ou seja, defende a apelante que a sua situação se integra no conceito de “doença” a que alude a al. a) do n.º 2 do art.º 1072.º do C.Civil.
Mas julgamos que não tem razão.
Na verdade, como se disse cabia à ré/locatária a alegação e prova da justificação do não uso do imóvel, cfr. art.º 342.º n.º 2 e 1072.º n.º 2 al. a) do C.Civil, como factos impeditivos do exercício do direito de resolução da autora.
Pela prova feita nos autos, está provado que a ré sofre de síndrome demencial, muito provavelmente decorrente da sua avançada idade, 96 anos, apresentando consequentemente perturbações das funções corticais superiores como a memória, o pensamento, a orientação, a compreensão, o cálculo, a capacidade de aprendizagem, e o julgamento das funções executivas, como planear, organizar, sequenciar e abstrair, situação que é crónica e irreversível. Por outro lado, a ré não se consegue deslocar sozinha para fora do lar; não consegue ler nem escrever; nem efectuar operações aritméticas; que não conhece o dinheiro, não lhe reconhece valor nem utilidade, nem é capaz de o gerir; que não consegue sequer alimentar-se, vestir-se, nem cuidar da sua higiene pessoal sozinha; nem consegue tomar a medicação que lhe é prescrita a horas e nas dosagens recomendadas. Devido a esse estado de saúde que é impeditivo de viver sozinha, isto é, sem o acompanhamento e tratamentos necessário, a ré, desde 2006, encontra-se a residir no D…, ou seja, num lar para idosos.
A situação demencial da ré foi aliás razão da mesma ser entretanto declarada interdita, tendo-se fixado como data de indício da incapacidade os inícios do ano de 2010.
Ora, é o estado de saúde da ré e as correspectivas limitações físicas e psíquicas, aliado à sua avançada idade que impõem que a mesma resida no Lar de idosos e consequentemente que a impedem de viver no locado.
Resulta dos factos provados que o estado de doença da ré é duradouro ou crónico, evolutivo em razão da própria enfermidade e da idade, e irreversível, ou sem possibilidade de cura.
Como acima já se deixou consignado não é qualquer doença que constitui impedimento à justa causa de resolução do contrato pelo não uso do arrendado. Essa doença tem de ser temporária, curável, ou pelo menos existir forte probabilidade de o tratamento a efectuar fora do locado ser necessário e imprescindível à recuperação da saúde, sendo assim previsível o regresso ao arrendado, manifestando-se a correspectiva vontade.
Ou seja, dos factos assentes nos autos não se extrai que a doença de que a ré padece e a procura da sua cura tenha sido o motivo porque a ré deixou de habitar no locado desde o ano de 2006. Na verdade, o que resulta provado é que a doença de que a mesma padece é crónica, irreversível, e mesmo dada a sua avançada idade e estado demencial não é crível que a mesma tenha vontade de regressar alguma vez ao locado, ou que aí, em função das suas limitações pessoais, venha a ter as condições necessárias para voltar a residir.
Pelo que sem necessidade de outros considerandos, não logrou a ré provar os factos necessários a enquadrar a sua situação no caso de impedimento da eficácia resolutiva do não uso do locado por mais de um ano, previsto na al. a) do n.º 2 do art.º 1072.º do C.Civil.
Improcedem as respectivas conclusões da apelante.
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2.ªquestão - Da alegada inconstitucionalidade da interpretação feita da al. a) do n.º2 do art.º 1072.º do C.Civil.
Diz a apelante que a interpretação feita da al. a) do n.º2 do art.º 1072.º do C. Civil em 1.ª instância, segundo a qual “as situações de força maior e doença previstas na citada alínea têm como pressuposto a intenção de regresso do arrendatário à habitação de que temporariamente se ausentou por força da sua doença”, ou seja, “desde que a doença ou o motivo de força maior for reversível”, é inconstitucional, por violação do disposto no art.º 72.º da C.R.Portuguesa.
Em suma, defende a apelante que o vocábulo “doença” utilizado na alínea a), do n.º 2 do art.º 1072.º do C.Civil, não permite distinguir se esta é de natureza temporária ou definitiva. Dizendo que a interpretação feita na decisão recorrida, e que reputa de inconstitucional, ofende o direito das pessoas idosas à manutenção da sua habitação em caso de doenças prolongadas, ao permitir a resolução dos contratos de arrendamento não justificando o não uso do locado nos termos do art.º 1072.º nº 2 al. a) do C.Civil.
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No que respeita à conformidade da interpretação das normas jurídicas com o direito constitucional refere Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, pág.1226 que “O princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a Constituição”.
Como se sabe o art.º 65.º da Constituição consagra, como direito fundamental social, o direito à habitação. Sobre tal direito constitucional à habitação, escreveu-se no Ac. do T.C. n.º 633/95, in D.R., II Série, de 20.04.1996, que “Como se ponderou já neste Tribunal, não pode aceitar-se como constitucionalmente exigível que a realização do direito à habitação esteja dependente de limitação intoleráveis e desproporcionadas dos direitos de terceiros, porventura também constitucionalmente consagrados, como é o direito de propriedade privada, cfr. Ac. do T.C. n.º 101/92, in D.R., II Série, de 18.08.1992; e por outro lado, o cidadão só pode exigir o cumprimento do direito à habitação nas condições e termos definidos por lei, ou seja, depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, cfr. Ac. do T.C. n.º 130/92, in D.R., II Série, de 24.07.1992”.
Preceitua o art.º 72.º da C.R.Portuguesa que:
“1. As pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social.
2. A política de terceira idade engloba medidas de carácter económico, social e cultural tendentes a proporcionar às pessoas idosas oportunidades de realização pessoal, através de uma participação ativa na vida da comunidade”.
No n.º 1 deste preceito (já que o n.º2 enuncia incumbências políticas dependentes da mediação do legislador ordinário) pode ler-se que as pessoas idosas “têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social”. Tal direito está, pois, apontado à realização da autonomia pessoa, e à prevenção e superação do isolamento ou marginalização social, exigindo opções político-legislativas em cuja definição não cabe aos tribunais substituir-se ao legislador. E, sobretudo, não decorre de tal norma uma imposição constitucional de protecção do direito da pessoa idosa a conservar um local arrendado no qual não habita há mais de um ano (não tem residência permanente), por motivo, embora possivelmente ligado à sua idade e estado de saúde, que não seja transitório.
Assim, se no quadro da resolução do contrato de arrendamento por não uso do locado por mais de um ano, a situação dos idosos tivesse sido considerada relevante pelo legislador, este tê-la-ia salvaguardado legalmente.
Os direitos constitucionais invocados pela apelante não podem servir para alterar tal entendimento, que é o do legislador, pelo menos no entendimento da norma “sub judice”, de que o que está fundamentalmente em causa não é nem a situação de doença, nem a idade avançada da arrendatária/apelante (índices que só seriam relevantes se o legislador lhes tivesse conferido relevância, como noutras situações conferiu). O que está em causa nos presentes autos é, antes, o ponto de equilíbrio entre os interesses da proprietária interessada em reaver o locado e os interesses da inquilina em conservá-lo. E o que, para o legislador, faz pender a balança entre uns ou outros interesses no que diz respeito a este ponto do regime de resolução do contrato é, no dizer de Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, Vol. II, pág. 1062 a 1064, a “desabitação ou simples falta de residência permanente do espaço arrendado para habitação, sempre, em qualquer destes casos, a falta de uso por mais de um ano torna inexigível a manutenção do contrato por parte do senhorio”, pelo que enquanto esta se mantiver, prevalecem os interesses do senhorio. Pois se assim não fosse, e no caso em apreço, estar-se-ia a reconhecer, por efeito da qualidade de arrendatária da apelante, do direito de não habitar, por tempo indeterminado, o prédio arrendado. Ora, é óbvio que tal pretensão não se integra no núcleo de protecção constitucional do direito à habitação, já que neste se visa assegurar o direito a habitar, não o de não habitar.
Por conseguinte, não vislumbramos que seja inconstitucional a interpretação da al. a) do n.º2 do art.º 1072.º do C.Civil, no sentido de que a “doença” aí prevista seja de carácter temporário ou transitório, de modo que, debelada, o arrendatário retorne ao locado.
Improcedem, pois, as derradeiras conclusões da apelante.
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Sumariando – Não é qualquer doença que constitui impedimento à justa causa de resolução do contrato pelo não uso do arrendado, prevista na al. a) do n.º2 do art.º 1072.º do C.Civil. Essa doença tem de ser temporária, curável, ou pelo menos existir forte probabilidade de o tratamento a efectuar fora do locado ser necessário e imprescindível à recuperação da saúde, sendo assim previsível o regresso ao arrendado, manifestando-se a correspectiva vontade.
Tendo-se provado que a doença de que a ré padece é crónica, irreversível, e mesmo dada a sua avançada idade e estado demencial que apresenta não é crível que a mesma tenha vontade de regressar alguma vez ao locado, ou que aí, em função das suas limitações pessoais, venha a ter as condições necessárias para voltar a residir.
Pelo que não logrou a ré provar os factos necessários e eventualmente integradores da sua situação no caso de impedimento da eficácia resolutiva do não uso do locado por mais de um ano, previsto na al. a) do n.º 2 do art.º 1072.º do C.Civil.
Finalmente, não se julga inconstitucional, por violação de qualquer direito social das pessoas de terceira idade, a interpretação da al. a) do n.º2 do art.º 1072.º do C.Civil, no sentido de que a “doença” aí prevista seja de carácter temporário ou transitório, de modo que, debelada, o arrendatário retorne ao locado.

IV – Pelo exposto a acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação totalmente improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 2013.10.15
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues
José Carvalho