Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
564/19.5T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: SIMULAÇÃO
TERCEIROS INTERESSADOS PARA INVOCAR A SIMULAÇÃO
PROVA INDICIÁRIA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA
Nº do Documento: RP20240307564/19.5T8PRD.P1
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os herdeiros de um simulador, caso não aleguem um prejuízo próprio não são terceiros para efeitos do art. 394º, do CC.
II - A interpretação restriva a essa norma que estabelece uma proibição de prova funda-se, também, na interpretação ampla do direito constitucional de acesso à jurisdição.
III - Para demonstração de uma simulação enquanto facto interno são relevantes a prova indiciária e as regras da experiência.
IV - Caso esta não seja clara, concordante e persuasiva, o que acontece quando a mesma permite demonstrar de igual forma, ainda em que em diferentes graus, várias realidades opostas entre si, o juízo probatório terá de ser inconclusivo.
V - Em caso de dúvida este tribunal de recurso deve respeitar o juízo probatório do tribunal a quo que dirigiu a audiência durante várias sessões, teve imediação com as testemunhas e efectuou um juízo conclusivo, através da perceção directa da linguagem corporal das testemunhas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 564/19.5T8PRD.P1

Sumário:
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1. Relatório

A HERANÇA ILÍQUIDA INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE AA veio instaurar ACÇÃO de PROCESSO COMUM, contra BB, solteira, maior, NIF ...73, residente na Rua ..., ... ..., Paredes, e CC, divorciada, NIF ...66, residente na Rua ..., ..., ... ..., concluindo a final pedindo: A) se declare a herança autora dona e legitima proprietária, por aquisição originária, por usucapião, do prédio Rústico, ... de ..., ou ... no ..., situado no então Lugar ..., ..., freguesia ..., Concelho de Paredes, actualmente Travessa ..., freguesia ..., concelho de Paredes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº ....4/180486 e inscrito na matriz rústica sob o artigo ...40 e da casa de habitação nele implantada, uma moradia de dois pisos, cave, rés-do-chão e terreno de logradouro, condenando-se as rés no reconhecimento do referido direito de propriedade da autora; B) Se declare a nulidade, por simulação, da escritura de “compra e venda” de 16.09.1994, outorgada no Cartório Notarial do concelho de Paços de Ferreira, pela qual AA e mulher declararam vender à 1ª. ré, BB, que declarou comprar, pelo preço de 500.000$00 (quinhentos mil escudos) que aqueles declararam já ter recebido, o prédio rústico – na escritura designado por ... de ..., ou ... no ..., sito no Lugar ..., freguesia ... –,onde o AA e mulher construíram a casa de habitação identificada, condenando-se a 1ª. ré no respectivo reconhecimento; C) Se declare a nulidade do registo predial, efectuado ou que venha a efectuar-se com base no aludido título, ordenando-se o cancelamento respectivo; D) Se declare a nulidade do Título de Compra e Venda, em que foram intervenientes a 1ª. e a 2ª. rés, realizado na Casa Pronta da Conservatória do Registo Predial de Paredes, pelo qual a 1ª. ré, BB, declarou vender à 2ª. ré, CC, que declarou comprar, pelo preço de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), que aquela declarou já ter recebido, o prédio rústico - ... de ..., ou ... no ..., sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Paredes, E) Se declarem nulos todos e quaisquer registos efectuados ou que venham a efectuar-se com base no mesmo Título, ordenando-se o seu cancelamento e, finalmente, F) Se declare a restituição ao património da herança autora, do prédio identificado, com todo o seu recheio, excepcionando-se os bens pessoais das rés que, eventualmente, lá se encontrem e G) se condenem as rés ao pagamento ao património da herança autora, da quantia diária de 50,00€ (cinquenta euros) por cada dia de atraso na restituição do identificado prédio e respectivo recheio e até entrega efectiva dos mesmos.

Contestaram as Rés. A 1 alega a inexistência de qualquer simulação e a segunda sempre o desconhecimento de qualquer vício do negócio anterior pela aquisição pela sua transmitente. Suscitada ademais a questão da legitimidade da Autora e tendo deduzido pretensão reconvencional a primeira Ré, a qual foi indeferida na respectiva totalidade, na fase de saneamento.

Foi proferido despacho que entendeu que a aqui A., não obstante a fórmula (aliás comum) por si utilizada para identificar quem instaura a ação, invocando a “Herança ilíquida… representada pelo cabeça de casal” é na verdade a cabeça de casal e herdeira, intervindo em defesa – representação - dos direitos da herança. E pela mesma razão o pedido de reconhecimento de que o imóvel em causa nestes autos é propriedade da “autora”, pode e deve ser entendido como um pedido de reconhecimento de que do acervo hereditário faz parte este mesmo imóvel. Decidindo-se estar causa o reconhecimento de direitos titulados pela herança, convidou-se a A. a suscitar a intervenção dos herdeiros, o que fez, tendo estes sido chamados através do incidente próprio e intervindo.

Após saneamento e instrução procedeu-se a julgamento. Foi proferida sentença que “julgo a acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolvo as RR da totalidade das pretensões contra si deduzidas.

Inconformada com a mesma veio a Autora interpor recurso o qual foi admitido como de apelação “o qual sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo da decisão – arts. 644.º, n.º 1, al. a), 645.º, n.º 1, al. a) e 647.º, n.º 3, al. b), 2.ª parte, todos do Cód. Processo Civil”.


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2.1. Conclusões

A - A douta sentença recorrida é nula, por omitir, de entre toda a prova produzida, as razões pelas quais considera provados, e não provados, os factos que entendeu como tais.

B - Toda a prova produzida- designadamente a constante da documentação junta aos autos, bem como nas declarações de parte de BB, DD, do depoimento das testemunhas EE, FF-, impõe a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto quanto aos factos não provados 1, 2, 3, 4 e 5, cujo teor deve passar a considerar-se assente.

C - Antes da escritura de 16.09.1994, já a ré BB sabia que o cunhado tinha dívidas, débitos, para com os seus credores, só os conhecidos no valor de 2.731.839$91, isto é, a 19 de Agosto de 1994, devia a A..., Lda., a quantia, vencida, no valor de 1.970.008$31 - documento junto ao processo a 11.11.2020, pela identificada credora, a fls…- e à credora B..., Lda, devia o montante de 761.831$60- documento junto ao processo, em 19.11.2020, pela credora.

D – Antes da escritura de 16.09.1994, era do conhecimento de todos quantos frequentavam e habitavam a casa em construção, implantada no prédio rústico objecto da alegada venda, que AA passava dificuldades financeiras, tinha dívidas para com pessoas que lhe vendiam material, vários credores, processos executivos e penhoras.

E- Pelas razões constantes das precedentes alíneas C) e D), sabendo disso, a ré BB- que sempre viveu com o casal e os filhos deste, antes do ano de 1990, num apartamento arrendado por estes; depois de 1990, e antes de 16.09.1994, na casa em construção, comendo à mesma mesa, onde os assuntos eram falados entre todos, à mesa, partilhando os mesmos espaços- foi ao Cartório Notarial de Paços de Ferreira e assinou o que estava na escritura.

F- Na escritura de 16.09.1994, os vendedores declaram o preço já pago mas, realmente, nada receberam da compradora, e esta nada pagou.

G- Por força das declarações efectuadas a 16.09.1994, o prédio rústico passou a constar em nome de BB.

H- A escritura de 16.09.1994, foi usada como expediente para retirar do património do casal o único bem que poderia responder pelas dívidas deste(s).

I- Os vendedores e a compradora acordaram em divergir nas declarações que prestaram perante o Primeiro Ajudante do Cartório, na escritura de compra e venda de 16.09.1994, entre o que queriam e o que disseram querer, com o único fito de enganar os credores do(s) vendedor(es), pelo que tendo ocorrido simulação, é nula a escritura.

J- O intuito de enganar terceiros, não precisa de ser provado autonomamente, pois pode resultar, como resulta, inequivocamente dos restantes factos demonstrados como provados.

L- Menos de um mês após a alegada compra, em 10 de Outubro de 1994, a BB assinou um documento que titulou de doação, no qual declarou doar aos filhos dos alegados vendedores o prédio rústico que tinha acabado de, alegadamente, acabado de comprar- entregando-o à sua sobrinha GG.

M- Pelas razões constantes das precedentes alíneas, de toda a prova produzida- designadamente a constante da documentação junta aos autos, bem como nas declarações de parte de BB e de CC, das testemunhas EE, FF-, impõe a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto quanto ao facto provado em H., cujo teor deve passar a considerar-se como não provado.

N - Deve ter-se por simulada, logo nula, a compra e venda da ... de ..., celebrada por escritura de 16.09.1994, na qual outorgaram como vendedores AA e mulher, HH e, como compradora, BB, por não corresponder à vontade real dos outorgantes o que nela foi, por eles, declarado.

O - Deve ter-se por nula a compra e venda da dita ..., celebrada por escritura de 7.08.2018, na qual outorgaram, como vendedora, BB e, como compradora, CC, por não corresponder à vontade real dos outorgantes o que nela foi, por elas, declarado... ... ou, se não for por esta razão declarada a nulidade, deverá sê-lo por traduzir a transmissão referida, venda de coisa alheia- art. 892º. CC.

P - O negócio de 7.08.2018, sempre seria oponível à CC, visto que a presente acção foi registada a 13.03.2019, dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio de 7.08.2018 - art. 291º.-2 CC.

Q - Decidindo pela absolvição das rés dos pedidos formulados, violou a douta sentença o disposto nos arts. 240º., 242º., 243º.-3, 286º., 289º.-1, 291º.-2 e 892º. CC, e 615º.-1 b) CPC, pelo que é ilegal, e como tal, deve ser revogada e substituída por outra que, deferindo ao requerido, condene ambas as rés nos pedidos contra elas formulados,

2.2. A apelada CC apresentou contra-alegações, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, concluindo pela improcedência do recurso e não admissão deste quanto à matéria de facto.


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3. Questões a decidir

1. Da nulidade da sentença

2. Do recurso sobre a matéria de facto

3. Depois, face aos factos provados determinar a viabilidade jurídica dos pedidos formulados pela A.


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4. Da nulidade da sentença

Pretende a apelante que a sentença é nula porque: “não especificou os fundamentos de facto que justificam a decisão, tanto no que respeita aos factos provados como aos não provados, pois não efectuou uma apreciação crítica da prova por referência a cada facto, limitando-se a uma conclusão em bloco. Com respeito aos factos não provados a falta de fundamentação é absoluta uma vez que a Mma. Juiz não aprecia especificadamente nenhuma das provas produzidas”.

Nos termos do art. 615º.-1 b) CPC a sentença será nula se não especificar os fundamentos de facto que justificam a decisão.

Mas tal omissão terá de ser absoluta ou ter afectado, em concreto, o direito de recurso.

In casu, após várias páginas de fundamentação sobre a decisão de facto a sentença recorrida concluiu que: “Assim, a prova testemunhal e outra documental junta aos autos não corroborou, justificou ou tornou mais verosímil ou provável a hipótese de simulação que o documento referido era apto a indiciar”.

Logo, é manifesto que não existe uma nulidade absoluta de falta de fundamentação.

5. Da admissão do recurso sobre a matéria de facto.

A concreta localização dos depoimentos testemunhais que fundamentam, na óptica da apelante a bondade do sue recurso, consta das alegações de recurso (cfr. pág. 9 e segs).

A obrigação constante do art. 640º, do CPC está, pois, integralmente cumprida, pois, não se  impõe que estas menções tenham de ser efectuadas apenas nas conclusões.

Improcede, pois, a questão suscitada.

6. Do recurso sobre a matéria de facto

A primeira questão nesta matéria é a de determinar se os depoimentos testemunhais podem ou não ser valorados face à previsão do art. 394º, do CC que dispõe “ 1. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores. 2. A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores”.

A questão sobre a admissibilidade da prova testemunhal em caso de acordos simulatórios não é nova, nem foi pacífica.

A decisão recorrida já revela de forma mais do suficiente a jurisprudência relevante sobre a questão.

Acrescentemos apenas que, quanto a nós, o fundamental nesta questão radica na interpretação das normas que restringem a produção de meios de prova à luz dos princípios constitucionais.

Na verdade, o direito à tutela jurisdicional efectiva contido no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) implica o direito à prova. Nesta medida o acórdão do TC n.º 646/2006 (in www.tribunalconstitucional.pt) decidiu que “O direito de acesso à justiça comporta indiscutivelmente o direito à produção de prova”.

Por causa disso é que o TC decidiu que era contrária à CRP a proibição absoluta da prova testemunhal, se tal restrição eliminasse a possibilidade de prova dos factos relevantes para a decisão. (cfr. por todos o acórdão do TC n.º 24/2008).

Ora é precisamente por causa disso que a nossa jurisprudência e doutrina têm feito uma interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 394.º do Código Civil, admitindo o recurso a testemunhas para a prova da simulação, desde que haja um início de prova documental. Como afirma este aresto[1] essa interpretação visa “atenuar a limitação dos meios de prova disponíveis a que a letra da lei conduz”, porque “quando há um começo de prova por escrito, que torne verosímil o facto alegado, a prova testemunhal não é já o único meio de prova do facto, justificando-se a excepção por então o perigo da prova testemunhal ser eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada parcialmente com base num documento”.
Mas, como acentua o Ac do STJ de 7.2.17, nº 3071/13.6TJVNF.G1.S1 (Sebastião Póvoas) “Essa tese pode aceitar-se com três condições: o princípio de prova consistir num documento, com força e credibilidade; o documento não ser usado como facto – base de presunção judicial; reconhecer-se que se trata de uma laboração da doutrina e da jurisprudência oportunamente arredada do “jure constituto” e, em consequência, a ser tida em consonância com os artigos 9.º e 10.º do Código Civil”.
Ora, in casu foi junto uma declaração da compradora datada de 10.10.1994, cerca de um mês após a escritura de compra e venda, nos termos da qual se compromete a doar, em negócio a formalizar ulteriormente, aos sobrinhos o prédio que havia comprado.
Importa ter em conta que apesar dessa assinatura ter sido impugnada o resultado do exame pericial torna a sua autoria provável.
Logo, é seguro que estamos perante uma prova documental indiciadora da simulação.
Note-se, aliás, que um caso factualmente semelhante, foi apreciado por este tribunal[2], nos termos do qual se concluiu que: “Alegando os herdeiros de um pretenso promitente vendedor (enquanto sucessores da sua posição jurídica global) que o contrato promessa pelo mesmo outorgado foi simulado, conforme resulta do relatório pericial feito à contabilidade da sociedade que figura como promitente compradora e dos documentos a ele anexos (alguns deles pertencentes à mesma sociedade e por ela elaborados e/ou emitidos), está estabelecido o princípio de prova legitimador da produção de prova presencial, com vista a complementar ou contextualizar essa prova escrita”.
Assim, impõe-se valorar (apenas nesses termos complementares) a prova testemunhal e documental apresentada.
Porque, se assim não fosse existiria uma impossibilidade efectiva de provar a existência de uma simulação entre simuladores, o que violaria o art. 20º, da CRP.

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2. Da factualidade da simulação

A comprovação dos factos internos dos sujeitos só é revelada ou por confissão destes (que no caso não aconteceu de forma relevante) ou através de presunções ou indícios.

Sendo que depois esses elementos são avaliados, ponderados e analisados através das regras da experiência que consistem em ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.[3]

Deste modo, neste caso, tal como na situação semelhante da impugnação pauliana a comprovação da intenção de efetuar uma declaração simulada terá de ser efectuada por prova indirecta, através de raciocínios da vida, de normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas, ou da lógica.[4]

Ora, analisando o conjunto dos documentos e depoimentos testemunhais sob o ponto de vista das presunções indiciárias, de uma simulação podemos concluir que:


I.O preço da venda (500 contos) aponta para alguma disparidade no valor provável do bem. Mas esse elemento não é decisivo, porque o mesmo pode ser explicado pela natureza do bem (que ainda não estava concluído conforme declarações, por exemplo do filho do autor da herança Sr. DD e o irmão deste FF: (até chovia lá quando se mudaram).  Acresce que o documento da doação pode também explicar um preço menor, quer porque foi um negócio entre irmãos, quer porque iria “existir” uma doação parcial.

II.A ligação familiar (os simuladores são irmãos) poderia indiciar a simulação, tanto mais que a simuladora BB admite que vivia com a sua irmã nessa casa, e no apartamento anterior (facto confirmado pelo Sr. II).  Mas, mais uma vez esse facto não é decisivo, porque poderia ser precisamente essa ligação a explicar a venda.

III.Quanto ao motivo da venda inexistem documentos a demonstrar qualquer penhora (real ou efectiva) sendo que, várias testemunhas (incluindo o irmão Sr. FF) referem que era uma venda “de faz de conta” para evitar penhoras, mas nunca conseguem explicar o montante destas e/ou sua natureza. De notar também a existência de outros familiares que poderiam ser simuladores (a sogra do simulador, o seu outro irmão, etc). O dono do prédio que confronta com esse terreno (JJ) diz que lhe foi pedido e ele assinou um documento aquando da venda, apesar de até estar interessado na compra do terreno. Este disse, que nessa data o simulador “não teria problemas económicos”, e ouviu falar que “a casa era da BB”, não sabe “se era por causa de penhoras”. O vizinho KK diz de forma nebulosa que viu alguém ir lá buscar coisas, sem precisar a data, motivo e natureza das mesmas.
Mais relevante para esta matéria é o depoimento do Sr. II, vizinho que diz ter vivido no apartamento anterior casa quando veio viver para o norte. Esta testemunha diz que viu penhoras e confirma as dificuldades (refere ter visto os fornecedores de betão de uma obra ir á porta pedir dinheiro, falando de penhoras), mas também que a partir de certa altura a simuladora passou a comportar-se como dona da casa. Diz “dentro de casa passava-se alguma coisa (..) sabe que a casa passou para a D. BB” e apesar da insistência do tribunal afirma que essa transferência foi posterior aos problemas económicos. Diz aliás que viu uma situação ao jantar em que a “compradora disse numa zanga você agora está em minha casa”.

IV.O documento da doação, entendido como uma “cautela” ou “garantia” é posto em causa por várias testemunhas. Assim o Sr. FF diz que o irmão nunca lhe falou disso mas que “quando as coisas estivessem bem passaria a casa de novo para o seu nome”. Logo, nesta perpectiva essa doação até pode fortalecer a existência de uma efectiva venda de parte do imóvel, porque demonstra uma destinação futura desse imóvel que explica o preço.

V.Quanto à coincidência da destinação, temos que afinal a compradora vivia de facto com o seu irmã e agregado familiar, (depoimento do vizinho KK). Logo, o facto de todo o agregado continuar a viver no local pode até explicar um preço mais baixo, mas explicar também o interesse efectivo na aquisição. Ou seja, não podemos concluir com segurança que a destinação do imóvel seja a mesma antes e depois do negócio.

VI.Quanto à situação económica da simuladora note-se que o Sr. II confirma que esta fabricava camisolas numa maquina que estava nessa casa para “ganhar dinheiro” e eram “camisolas para o estrangeiro porque eram quentes”, tendo aliás visto esta “a contar notas em cima do colchão”.

VII.Quanto ao efectivo pagamento da compra e despesas do contrato temos apenas que, afinal a Sra. BB trabalhava e auferia proventos do fabrico de camisolas. Logo, teria algumas possibilidades económicas para comprar a casa., no estado em que se encontrava (ainda em construção).
 

Conjugando todos estas presunções podemos de facto concluir que existem elementos que permitem por em causa a autenticidade da venda, mas estes são contrariados e contrabalançados por outros elementos que apontam também para uma efectiva alienação.

Nesses termos, não existem indícios numerosos nem inteiramente coincidentes e concordantes entre si.  Nesta medida que a principal lacuna probatória dos autores é a efectiva possibilidade de face às dificuldades económicas do autor da herança, este ter efectivamente vendido toda ou parte do imóvel à sua irmã. Aliás decisivo é a frase dita por esta àquela “agora estás naquilo que é meu”. (…), e o seu comportamento mudou “mais autoritária, “agora quem manda aqui sou eu”.  Mais diz que “quem pagava e organizava a casa era a HH”. (min 23 e segs), e que ouviu falar que futuramente a casa iria ser doada aos filhos/sobrinhos.

Note-se que de todas as testemunhas inquiridas o Sr. II é amigo/familiar dos AA, viveu com estes no imóvel e no apartamento anterior durante 2 anos, e depôs (por vídeo-conferência) de forma imediata e aparentemente segura. Esta testemunha disse aliás que a sua ex-sogra era irmã da Sra. BB e que a Sra. BB até foi passar um fim-de-semana a sua casa em lisboa e ficou 3 meses. Sendo que “esta era vaidosa e tinha muito ouro” e lembra-se de a ver contar notas em cima do colchão obtidas com as camisolas (esclarece que eram poucas notas).
Acresce que os documentos juntos aos autos não permitem desfazer esta dúvida entre as duas versões da realidade.
Existem nos autos apenas como relevante o documento de doação, que permite numa tese explicar a efectiva venda com um preço mais baixo, como na tese oposta demonstrar que se tratava de uma doação aos sobrinhos com os quais vivia, por mera vontade.

Cumpre notar que, em todas as decisões probatórias, mas em especial nas que usam prova indirecta, o tribunal no seu juízo probatório deve respeitar cumulativamente três requisitos:
(i) a congruência dos meios de prova;
(ii) verificar se estes não são postos em causa por outros meios;
(iii) e, por fim, qual a sua valoração ou grau de certeza face a outras hipóteses probatórias.
Como vimos, este tribunal não pode atingir um elevado grau de conformidade com a tese dos apelantes.
Bastará dizer que, face aos relatos testemunhais, a hipótese factual mais provável até é uma terceira via, nos termos da qual a venda efetivamente ocorreu mas com condicionantes e um preço próprio face à proximidade familiar.
Acresce que, em caso de dúvida este tribunal de recurso deve respeitar o juízo probatório do tribunal a quo que dirigiu a audiência durante várias sessões, teve imediação com as testemunhas e efectuou um juízo conclusivo, através da perceção directa da linguagem comportamental das várias testemunhas.
Conforme acentua o Ac da RP de 17.9.14, nº 409/11.4GBTMC.P1 (Alves Duarte)/penal “é precisamente essa relação de proximidade entre o tribunal do julgamento em 1ª instância e os meios de prova que lhe confere os meios próprios e adequados para valorar a credibilidade dos depoentes  o que, de todo em todo, o tribunal de recurso não dispõe”.
Segundo Abrantes Geraldes[5] existem «comportamentos ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá apreciar o modo como o primeiro se formou a convicção dos julgadores».
Acresce que, neste caso, o tribunal de recurso não teve acesso a novos elementos probatórios e, se deve formar a sua própria convicção, terá também, prudentemente, de alterar a decisão de facto apenas se entender que a prova foi mal apreciada ou interpretada ou constatar a existência de outros elementos probatórios relevantes.
Logo, teremos de concluir que todos os elementos de prova, apreciados por um terceiro independente e de forma racional não apontam para uma dúvida fundada sobre a opção valorativa do tribunal recorrido. Decisão essa que por isso deve ser confirmada.

7. Motivação de Facto
A) AA faleceu no dia ../../2001, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo vivido até à morte, com a mulher e os filhos na casa de família de todos eles, sita na Travessa ... em ..., Paredes-.
B) Deixou como sucessores a viúva, HH, e três filhos, LL, DD e GG.
C) A 1ª. ré, BB, é irmã da viúva HH, cunhada do falecido AA e tia dos filhos destes.
D) No prédio identificado em A) e E), iniciaram o falecido e a mulher a construção de uma moradia de dois pisos, cave, rés-do-chão e terreno de logradouro, para a qual requereram licença de construção – doc. 9 com a petição inicial -, a qual veio a ser emitida, no processo com o nº ...3/86 da CM Paredes.
E) Por escritura de 16.09.1994, do Cartório Notarial do concelho de Paços de Ferreira, os referidos AA e mulher, declararam vender à 1ª. ré, BB, que declarou comprar, pelo preço de 500.000$00 (quinhentos mil escudos) que aqueles declararam já ter recebido, o prédio rústico – na escritura designado por ... de ..., ou ... no ..., sito no Lugar ..., freguesia ... –, onde o AA e mulher iniciaram a construção da casa de habitação.
F) Por Título de Compra e Venda de 07.08.2018, realizado na Casa Pronta da Conservatória do Registo Predial de Paredes, a 1ª. ré, BB, declarou vender à 2ª. ré, CC, que declarou comprar, pelo preço de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros), que aquela declarou já ter recebido, o prédio rústico - ... de ..., ou ... no ..., sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Paredes, conforme doc. 18 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
G) Aquando da celebração do contrato de 16.09.1994, a 1ª. ré sabia que o cunhado AA tinha vários credores.
H) A 2.ª Ré adquiriu o prédio à 1.ª Ré com desconhecimento de qualquer vício que afectasse o negócio pelo qual aquela 1ª Ré adquiriu.

7. Motivação Jurídica
Nos termos do n.º l do artigo 240.° do Código Civil, “se por acordo entre declarante e declaratário e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”.
Exige-se assim, a verificação cumulativa de três requisitos: a) divergência entre a vontade real e a vontade declarada; b) intenção de enganar terceiros; c) acordo simulatório.
Dos factos provados não resultam demonstrados esses requisitos.
Deste forma não se encontra demonstrada, conforme salienta o Ac do STJ de 14.02.2008[6], “a consciência, por parte do declarante, de que emite uma declaração que não corresponde à sua vontade real. O declarante não só sabe que a declaração emitida é diversa da sua vontade real, mas quer emiti-la nestes termos. Trata-se, portanto, de uma divergência livre, querida e propositadamente realizada”.

Podemos, por isso concluir que a apelante não demonstrou como lhe competia (art. 342º, do CC), a existência dos pressupostos da sua causa de pedir.
Improcedem, pois, as restantes questões suscitadas.

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8. Deliberação
Pelo exposto este tribunal colectivo julga a presente apelação não provida e, por via disso, confirma a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante porque decaiu inteiramente.



Porto em 7.3.24.
Paulo Duarte Teixeira
Aristides Rodrigues de Almeida
Carlos Portela
___________
[1] Como mais relevantes Adriano Vaz Serra, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, a. 107, pág. 311; Ac STJ de 23-09-2008, proferido no processo n.º 08B1711 in www.dgsi.pt
[2] Ac da RP de 9.3.21, nº 3976/18.8T8VFR-A.P1 (João Diogo Rodrigues) e Ac da RP de 25.9.23, nº 5189/22.5T8VNG.P1 (Carlos Gil).
[3] Cfr. SOUSA, LUÍS FILIPE PIRES, Prova por presunção, Almedina p. 160.
[4] TOMÉ GOMES, Manuel, Um olhar sobre a prova em demanda da verdade no Processo Civil, p. 159.
[5] Temas de Reforma do Processo Civil, Vol. II, pag. 271.
[6] Processo nº 08B180.