Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PAULO DUARTE TEIXEIRA | ||
Descritores: | SIMULAÇÃO TERCEIROS INTERESSADOS PARA INVOCAR A SIMULAÇÃO PROVA INDICIÁRIA REGRAS DA EXPERIÊNCIA | ||
Nº do Documento: | RP20240307564/19.5T8PRD.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/07/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - Os herdeiros de um simulador, caso não aleguem um prejuízo próprio não são terceiros para efeitos do art. 394º, do CC. II - A interpretação restriva a essa norma que estabelece uma proibição de prova funda-se, também, na interpretação ampla do direito constitucional de acesso à jurisdição. III - Para demonstração de uma simulação enquanto facto interno são relevantes a prova indiciária e as regras da experiência. IV - Caso esta não seja clara, concordante e persuasiva, o que acontece quando a mesma permite demonstrar de igual forma, ainda em que em diferentes graus, várias realidades opostas entre si, o juízo probatório terá de ser inconclusivo. V - Em caso de dúvida este tribunal de recurso deve respeitar o juízo probatório do tribunal a quo que dirigiu a audiência durante várias sessões, teve imediação com as testemunhas e efectuou um juízo conclusivo, através da perceção directa da linguagem corporal das testemunhas. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo: 564/19.5T8PRD.P1
Sumário: A HERANÇA ILÍQUIDA INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE AA veio instaurar ACÇÃO de PROCESSO COMUM, contra BB, solteira, maior, NIF ...73, residente na Rua ..., ... ..., Paredes, e CC, divorciada, NIF ...66, residente na Rua ..., ..., ... ..., concluindo a final pedindo: A) se declare a herança autora dona e legitima proprietária, por aquisição originária, por usucapião, do prédio Rústico, ... de ..., ou ... no ..., situado no então Lugar ..., ..., freguesia ..., Concelho de Paredes, actualmente Travessa ..., freguesia ..., concelho de Paredes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº ....4/180486 e inscrito na matriz rústica sob o artigo ...40 e da casa de habitação nele implantada, uma moradia de dois pisos, cave, rés-do-chão e terreno de logradouro, condenando-se as rés no reconhecimento do referido direito de propriedade da autora; B) Se declare a nulidade, por simulação, da escritura de “compra e venda” de 16.09.1994, outorgada no Cartório Notarial do concelho de Paços de Ferreira, pela qual AA e mulher declararam vender à 1ª. ré, BB, que declarou comprar, pelo preço de 500.000$00 (quinhentos mil escudos) que aqueles declararam já ter recebido, o prédio rústico – na escritura designado por ... de ..., ou ... no ..., sito no Lugar ..., freguesia ... –,onde o AA e mulher construíram a casa de habitação identificada, condenando-se a 1ª. ré no respectivo reconhecimento; C) Se declare a nulidade do registo predial, efectuado ou que venha a efectuar-se com base no aludido título, ordenando-se o cancelamento respectivo; D) Se declare a nulidade do Título de Compra e Venda, em que foram intervenientes a 1ª. e a 2ª. rés, realizado na Casa Pronta da Conservatória do Registo Predial de Paredes, pelo qual a 1ª. ré, BB, declarou vender à 2ª. ré, CC, que declarou comprar, pelo preço de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), que aquela declarou já ter recebido, o prédio rústico - ... de ..., ou ... no ..., sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Paredes, E) Se declarem nulos todos e quaisquer registos efectuados ou que venham a efectuar-se com base no mesmo Título, ordenando-se o seu cancelamento e, finalmente, F) Se declare a restituição ao património da herança autora, do prédio identificado, com todo o seu recheio, excepcionando-se os bens pessoais das rés que, eventualmente, lá se encontrem e G) se condenem as rés ao pagamento ao património da herança autora, da quantia diária de 50,00€ (cinquenta euros) por cada dia de atraso na restituição do identificado prédio e respectivo recheio e até entrega efectiva dos mesmos. Contestaram as Rés. A 1 alega a inexistência de qualquer simulação e a segunda sempre o desconhecimento de qualquer vício do negócio anterior pela aquisição pela sua transmitente. Suscitada ademais a questão da legitimidade da Autora e tendo deduzido pretensão reconvencional a primeira Ré, a qual foi indeferida na respectiva totalidade, na fase de saneamento. Foi proferido despacho que entendeu que a aqui A., não obstante a fórmula (aliás comum) por si utilizada para identificar quem instaura a ação, invocando a “Herança ilíquida… representada pelo cabeça de casal” é na verdade a cabeça de casal e herdeira, intervindo em defesa – representação - dos direitos da herança. E pela mesma razão o pedido de reconhecimento de que o imóvel em causa nestes autos é propriedade da “autora”, pode e deve ser entendido como um pedido de reconhecimento de que do acervo hereditário faz parte este mesmo imóvel. Decidindo-se estar causa o reconhecimento de direitos titulados pela herança, convidou-se a A. a suscitar a intervenção dos herdeiros, o que fez, tendo estes sido chamados através do incidente próprio e intervindo. Após saneamento e instrução procedeu-se a julgamento. Foi proferida sentença que “julgo a acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolvo as RR da totalidade das pretensões contra si deduzidas. Inconformada com a mesma veio a Autora interpor recurso o qual foi admitido como de apelação “o qual sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo da decisão – arts. 644.º, n.º 1, al. a), 645.º, n.º 1, al. a) e 647.º, n.º 3, al. b), 2.ª parte, todos do Cód. Processo Civil”. * 2.1. Conclusões A - A douta sentença recorrida é nula, por omitir, de entre toda a prova produzida, as razões pelas quais considera provados, e não provados, os factos que entendeu como tais. B - Toda a prova produzida- designadamente a constante da documentação junta aos autos, bem como nas declarações de parte de BB, DD, do depoimento das testemunhas EE, FF-, impõe a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto quanto aos factos não provados 1, 2, 3, 4 e 5, cujo teor deve passar a considerar-se assente. C - Antes da escritura de 16.09.1994, já a ré BB sabia que o cunhado tinha dívidas, débitos, para com os seus credores, só os conhecidos no valor de 2.731.839$91, isto é, a 19 de Agosto de 1994, devia a A..., Lda., a quantia, vencida, no valor de 1.970.008$31 - documento junto ao processo a 11.11.2020, pela identificada credora, a fls…- e à credora B..., Lda, devia o montante de 761.831$60- documento junto ao processo, em 19.11.2020, pela credora. D – Antes da escritura de 16.09.1994, era do conhecimento de todos quantos frequentavam e habitavam a casa em construção, implantada no prédio rústico objecto da alegada venda, que AA passava dificuldades financeiras, tinha dívidas para com pessoas que lhe vendiam material, vários credores, processos executivos e penhoras. E- Pelas razões constantes das precedentes alíneas C) e D), sabendo disso, a ré BB- que sempre viveu com o casal e os filhos deste, antes do ano de 1990, num apartamento arrendado por estes; depois de 1990, e antes de 16.09.1994, na casa em construção, comendo à mesma mesa, onde os assuntos eram falados entre todos, à mesa, partilhando os mesmos espaços- foi ao Cartório Notarial de Paços de Ferreira e assinou o que estava na escritura. F- Na escritura de 16.09.1994, os vendedores declaram o preço já pago mas, realmente, nada receberam da compradora, e esta nada pagou. G- Por força das declarações efectuadas a 16.09.1994, o prédio rústico passou a constar em nome de BB. H- A escritura de 16.09.1994, foi usada como expediente para retirar do património do casal o único bem que poderia responder pelas dívidas deste(s). I- Os vendedores e a compradora acordaram em divergir nas declarações que prestaram perante o Primeiro Ajudante do Cartório, na escritura de compra e venda de 16.09.1994, entre o que queriam e o que disseram querer, com o único fito de enganar os credores do(s) vendedor(es), pelo que tendo ocorrido simulação, é nula a escritura. J- O intuito de enganar terceiros, não precisa de ser provado autonomamente, pois pode resultar, como resulta, inequivocamente dos restantes factos demonstrados como provados. L- Menos de um mês após a alegada compra, em 10 de Outubro de 1994, a BB assinou um documento que titulou de doação, no qual declarou doar aos filhos dos alegados vendedores o prédio rústico que tinha acabado de, alegadamente, acabado de comprar- entregando-o à sua sobrinha GG. M- Pelas razões constantes das precedentes alíneas, de toda a prova produzida- designadamente a constante da documentação junta aos autos, bem como nas declarações de parte de BB e de CC, das testemunhas EE, FF-, impõe a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto quanto ao facto provado em H., cujo teor deve passar a considerar-se como não provado. N - Deve ter-se por simulada, logo nula, a compra e venda da ... de ..., celebrada por escritura de 16.09.1994, na qual outorgaram como vendedores AA e mulher, HH e, como compradora, BB, por não corresponder à vontade real dos outorgantes o que nela foi, por eles, declarado. O - Deve ter-se por nula a compra e venda da dita ..., celebrada por escritura de 7.08.2018, na qual outorgaram, como vendedora, BB e, como compradora, CC, por não corresponder à vontade real dos outorgantes o que nela foi, por elas, declarado... ... ou, se não for por esta razão declarada a nulidade, deverá sê-lo por traduzir a transmissão referida, venda de coisa alheia- art. 892º. CC. P - O negócio de 7.08.2018, sempre seria oponível à CC, visto que a presente acção foi registada a 13.03.2019, dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio de 7.08.2018 - art. 291º.-2 CC. Q - Decidindo pela absolvição das rés dos pedidos formulados, violou a douta sentença o disposto nos arts. 240º., 242º., 243º.-3, 286º., 289º.-1, 291º.-2 e 892º. CC, e 615º.-1 b) CPC, pelo que é ilegal, e como tal, deve ser revogada e substituída por outra que, deferindo ao requerido, condene ambas as rés nos pedidos contra elas formulados,
2.2. A apelada CC apresentou contra-alegações, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, concluindo pela improcedência do recurso e não admissão deste quanto à matéria de facto. * 3. Questões a decidir 1. Da nulidade da sentença 2. Do recurso sobre a matéria de facto 3. Depois, face aos factos provados determinar a viabilidade jurídica dos pedidos formulados pela A. * 4. Da nulidade da sentença Pretende a apelante que a sentença é nula porque: “não especificou os fundamentos de facto que justificam a decisão, tanto no que respeita aos factos provados como aos não provados, pois não efectuou uma apreciação crítica da prova por referência a cada facto, limitando-se a uma conclusão em bloco. Com respeito aos factos não provados a falta de fundamentação é absoluta uma vez que a Mma. Juiz não aprecia especificadamente nenhuma das provas produzidas”. Nos termos do art. 615º.-1 b) CPC a sentença será nula se não especificar os fundamentos de facto que justificam a decisão. Mas tal omissão terá de ser absoluta ou ter afectado, em concreto, o direito de recurso. In casu, após várias páginas de fundamentação sobre a decisão de facto a sentença recorrida concluiu que: “Assim, a prova testemunhal e outra documental junta aos autos não corroborou, justificou ou tornou mais verosímil ou provável a hipótese de simulação que o documento referido era apto a indiciar”. Logo, é manifesto que não existe uma nulidade absoluta de falta de fundamentação.
5. Da admissão do recurso sobre a matéria de facto. A concreta localização dos depoimentos testemunhais que fundamentam, na óptica da apelante a bondade do sue recurso, consta das alegações de recurso (cfr. pág. 9 e segs). A obrigação constante do art. 640º, do CPC está, pois, integralmente cumprida, pois, não se impõe que estas menções tenham de ser efectuadas apenas nas conclusões. Improcede, pois, a questão suscitada.
6. Do recurso sobre a matéria de facto A primeira questão nesta matéria é a de determinar se os depoimentos testemunhais podem ou não ser valorados face à previsão do art. 394º, do CC que dispõe “ 1. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores. 2. A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores”. A questão sobre a admissibilidade da prova testemunhal em caso de acordos simulatórios não é nova, nem foi pacífica. A decisão recorrida já revela de forma mais do suficiente a jurisprudência relevante sobre a questão. Acrescentemos apenas que, quanto a nós, o fundamental nesta questão radica na interpretação das normas que restringem a produção de meios de prova à luz dos princípios constitucionais. Na verdade, o direito à tutela jurisdicional efectiva contido no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) implica o direito à prova. Nesta medida o acórdão do TC n.º 646/2006 (in www.tribunalconstitucional.pt) decidiu que “O direito de acesso à justiça comporta indiscutivelmente o direito à produção de prova”. Por causa disso é que o TC decidiu que era contrária à CRP a proibição absoluta da prova testemunhal, se tal restrição eliminasse a possibilidade de prova dos factos relevantes para a decisão. (cfr. por todos o acórdão do TC n.º 24/2008). Ora é precisamente por causa disso que a nossa jurisprudência e doutrina têm feito uma interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 394.º do Código Civil, admitindo o recurso a testemunhas para a prova da simulação, desde que haja um início de prova documental. Como afirma este aresto[1] essa interpretação visa “atenuar a limitação dos meios de prova disponíveis a que a letra da lei conduz”, porque “quando há um começo de prova por escrito, que torne verosímil o facto alegado, a prova testemunhal não é já o único meio de prova do facto, justificando-se a excepção por então o perigo da prova testemunhal ser eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada parcialmente com base num documento”. * 2. Da factualidade da simulação A comprovação dos factos internos dos sujeitos só é revelada ou por confissão destes (que no caso não aconteceu de forma relevante) ou através de presunções ou indícios. Sendo que depois esses elementos são avaliados, ponderados e analisados através das regras da experiência que consistem em ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.[3] Deste modo, neste caso, tal como na situação semelhante da impugnação pauliana a comprovação da intenção de efetuar uma declaração simulada terá de ser efectuada por prova indirecta, através de raciocínios da vida, de normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas, ou da lógica.[4] Ora, analisando o conjunto dos documentos e depoimentos testemunhais sob o ponto de vista das presunções indiciárias, de uma simulação podemos concluir que: Conjugando todos estas presunções podemos de facto concluir que existem elementos que permitem por em causa a autenticidade da venda, mas estes são contrariados e contrabalançados por outros elementos que apontam também para uma efectiva alienação. Nesses termos, não existem indícios numerosos nem inteiramente coincidentes e concordantes entre si. Nesta medida que a principal lacuna probatória dos autores é a efectiva possibilidade de face às dificuldades económicas do autor da herança, este ter efectivamente vendido toda ou parte do imóvel à sua irmã. Aliás decisivo é a frase dita por esta àquela “agora estás naquilo que é meu”. (…), e o seu comportamento mudou “mais autoritária, “agora quem manda aqui sou eu”. Mais diz que “quem pagava e organizava a casa era a HH”. (min 23 e segs), e que ouviu falar que futuramente a casa iria ser doada aos filhos/sobrinhos. Note-se que de todas as testemunhas inquiridas o Sr. II é amigo/familiar dos AA, viveu com estes no imóvel e no apartamento anterior durante 2 anos, e depôs (por vídeo-conferência) de forma imediata e aparentemente segura. Esta testemunha disse aliás que a sua ex-sogra era irmã da Sra. BB e que a Sra. BB até foi passar um fim-de-semana a sua casa em lisboa e ficou 3 meses. Sendo que “esta era vaidosa e tinha muito ouro” e lembra-se de a ver contar notas em cima do colchão obtidas com as camisolas (esclarece que eram poucas notas). * * 8. Deliberação Pelo exposto este tribunal colectivo julga a presente apelação não provida e, por via disso, confirma a decisão recorrida. Custas a cargo da apelante porque decaiu inteiramente. Porto em 7.3.24. ___________Paulo Duarte Teixeira Aristides Rodrigues de Almeida Carlos Portela [1] Como mais relevantes Adriano Vaz Serra, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, a. 107, pág. 311; Ac STJ de 23-09-2008, proferido no processo n.º 08B1711 in www.dgsi.pt [2] Ac da RP de 9.3.21, nº 3976/18.8T8VFR-A.P1 (João Diogo Rodrigues) e Ac da RP de 25.9.23, nº 5189/22.5T8VNG.P1 (Carlos Gil). [3] Cfr. SOUSA, LUÍS FILIPE PIRES, Prova por presunção, Almedina p. 160. [4] TOMÉ GOMES, Manuel, Um olhar sobre a prova em demanda da verdade no Processo Civil, p. 159. [5] Temas de Reforma do Processo Civil, Vol. II, pag. 271. [6] Processo nº 08B180. |