Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4104/18.5T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL DO INSOLVENTE
SUBSÍDIO DE FÉRIAS
SUBSÍDIO DE NATAL
Nº do Documento: RP202403194104/18.5T8STS.P1
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A exoneração do passivo constitui uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três a seis anos posteriores ao encerramento deste, ficando o devedor durante esse período (designado período da cessão) obrigado a ceder ao fiduciário o rendimento disponível que venha a auferir, dele se excluindo o “montante necessário ao sustento digno do insolvente”, a que se reporta o artº 239º do CIRE.
II - Os valores recebidos a título de subsídios de férias e de Natal pelo insolvente devem ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 4104/18.5T8STS.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 3


Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízas Desembargadoras Adjuntas:
Anabela Andrade Miranda
Márcia Portela (vota vencida)



SUMÁRIO:
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Acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação:

I - RELATÓRIO:
AA, apresentou-se à insolvência, em 19.12.2018, tendo formulado pedido de exoneração do passivo restante.
Por sentença de 21.12.2018, já transitada em julgado foi declarada a insolvência de AA.
Em 07-05-2019 foi proferido despacho que admitiu liminarmente o pedido de Exoneração do Passivo Restante, determinando que “durante os 5 anos de período de cessão ali previsto, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir acima de um salário mínimo nacional (1 SMN a vigorar em cada ano civil) se considere cedido ao Fiduciário, cabendo-lhe ainda cumprir as obrigações previstas no n.º 4 do art.º239.º, sob pena de cessação antecipada do respetivo procedimento.
Tal valor deve ser reportado a 12 meses do ano civil.”
Em 6.7.2022, o tribunal proferiu o seguinte despacho:
“Conforme se encontra documentado nos autos, a insolvente incumpriu com os deveres a que estava adstrita neste contexto exonerativo.-
--- Contudo, notificados os credores daqueles incumprimentos, nada vieram requerer, em razão do que não se legitima considerar validamente suscitado qualquer incidente de cessão antecipada, não detendo o Tribunal para oficiosamente tramitar e decidir tal incidente sem que o mesmo tenha sido requerido por banda dos credores da insolvência.-
--- Assim sendo, importa considerar findo o período de cessão que se encontrava em curso e que terminaria em 08.05.2024, por força da Lei 9/2022, de 11.01.-
--- Assim e tendo findado em 08.05.2022 tal período, determino que:
. se cumpra o disposto no art.º 244.º, n.º 1, do CIRE;
. se junte CRC atualizado da insolvente;
. se arbitre a favor da fiduciária, a título de remuneração, € 140,00, a adiantar pelo IGFEJ.”
A Fiduciária emitiu Parecer Final (elaborado ao abrigo do artigo 244.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), dizendo além do mais: “O período de exoneração do passivo restante teve início no mês de Maio de 2019 e término no mês de Abril de 2022 nomeadamente, dia 11, por força da entrada em vigor da Lei 9/2022, de 11 de Janeiro.
Terminado o período de cessão, considera a Fiduciária que a Devedora não cumpriu as suas obrigações.(…)
Conclui considerando a Fiduciária que não lhe deve ser concedido, a final, o benefício da exoneração do passivo restante.
Em 03.04.2023, a devedora veio pedir o diferimento do pagamento dos valores em divida à Fidúcia.
A Srª Juíza proferiu o seguinte despacho:
“A fiduciária veio já emitir parecer final desfavorável, em face dos incumprimentos detetados ao longo do período de cessão, estando a insolvente em dívida com o valor global de € 4.148,94.-
--- A insolvente veio solicitar prorrogação do período de cessão, o qual exige que a existência de probabilidade séria de cumprimento, e que se ouçam os credores, antes de decidir.-
--- Assim, notifiquem-se os credores para, em dez dias, se pronunciarem.-“
Sobre a pretensão da Insolvente recaiu despacho de 17.1.2023, que decidiu da seguinte forma:
Face a todo o exposto, decide-se não conceder à insolvente a exoneração do seu passivo restante, nos termos e com os efeitos previstos no art.º 244.º e 245.º, ambos do CIRE.-
Custas pela insolvente.”
Inconformada, a Insolvente AA, veio interpor o presente recurso de Apelação, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“i - O presente recurso vem interposto de despacho proferido pelo tribunal a quo em 17/11/2023 (ref. citius 454037247) onde o tribunal a quo decidiu pela não exoneração do passivo restante da insolvente, nos termos e com os efeitos previstos no art.º 244.º e 245.º, ambos do CIRE, o qual por economia processual, damos aqui por integralmente reproduzido.
ii - Entende a recorrente, salvo todo o devido respeito por entendimento diverso, que ao longo de um processo de insolvência que decorre desde 19/12/2018, portanto, há praticamente 5 (cinco) anos, vieram a ser acumulados erros flagrantes, em prejuízo da insolvente, que colocaram em causa o sucesso da pretensão peticionada.
iii - Se tal não tivesse sucedido, i.e., se oficiosamente o tribunal a quo se tivesse apercebido, ab initium, durante o passar dos anos (leia-se, a elaboração dos relatórios anuais da sra. administradora da insolvência, ou até mesmo, no despacho final de não exoneração do passivo restante aqui recorrido, recorrente sai deste processo de insolvência numa situação pior de que se encontrava e, salvo devido respeito, tudo por uma incorreta aplicação do direito, da lei, da jurisprudência e até da matemática pelo tribunal a quo.
iv - O douto despacho inicial de exoneração do passivo restante datado de 07/05/2019 (ref. citius 403794924) decretou que: “assim, e dando por assente e reproduzido o quadro vivencial da insolvente descrito no relatório apresentado pela sr.ª Administradora da Insolvência (cfr. fls. 46-47), nos termos do disposto no art.º 239.º, n.º 1 e 2, do CIRE, determina-se que durante os 5 anos de período de cessão ali previsto, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir acima de um salário mínimo nacional (1 smn a vigorar em cada ano civil) se considere cedido ao fiduciário, cabendo-lhe ainda cumprir as obrigações previstas no n.º 4 do art.º 239.º, sob pena de cessação antecipada do respetivo procedimento. Tal valor deve ser reportado a 12 meses do ano civil.-“
v - Sendo omisso o referido despacho no que concerne com o carácter do cálculo do período anual de cessão, onde se irá determinar eventuais quantias de que a aqui recorrente eventualmente estaria obrigada a entregar à sra. administradora da insolvência.
vi - Tendo em conta as alterações promovidas pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, o período de cessão passou a ser de 3 (três) anos, pelo que os cálculos apresentados serão tendo esse facto em conta e dando como assente os seguintes pressupostos: a retribuição mínima mensal garantida foi fixada: i) para o ano de 2019, em €600,00 (decreto-lei n.º 117/2018, de 27 de dezembro); ii); para o ano de 2020, em € 635,00 (decreto-lei n.º 167/2019, de 21 de novembro); iii) para o ano 2021 665,00 (decreto-lei n.º 109-a/2020, de 31 de dezembro); iv) para o ano de 2022, em € 705,00 (decreto‑lei n.º 109‑b/2021 de 7 de dezembro). o primeiro ano de cessão correspondeu ao período maio 2019 a abril 2020; o segundo ano de cessão correspondeu ao período maio 2020 a abril 2021; o terceiro ano de cessão correspondeu ao período maio 2021 a abril 2022;
vii - Ao que aparentemente se constata é que a partir do douto despacho inicial a sra. administradora da insolvência terá interpretado o mesmo no sentido de que, era por referência ao valor mensal que a recorrente auferia, que teria de ser contabilizado o valor que, mensalmente, teria de ceder à fiduciária.
viii - Engobando os subsídios (férias e Natal) no âmbito de meses em concreto, i.e., ao mês em que foi recebido de acordo com o calendário gregoriano, o que significa que, nos meses em que era recebido (junho e novembro) o rendimento disponível, literalmente, orçasse na totalidade destes subsídios,
ix - Esquecendo, como é reconhecido pela jurisprudência dominante e até por esta mesma relação, o cálculo do rendimento do insolvente deverá ser realizado segundo a fórmula RMMG x 14/12m., o que manifestamente não sucedeu.
x - Nas “contas” da sra. administradora da insolvência, resulta atualmente que a recorrente tem a pagar a quantia de € 4.148,94, sem prejuízo dos € 1.611,05 que, ao longo do processo, já veio a entregar à fiduciária, num total de € 5.759,99 que não são devidos!!
xi - Consta do relatório do 1.º ano da cessão (ref. citius 27509141) apresentado em 01/12/2020 de maio de 2019 a abril de 2020, junto aos autos pela sra. administradora da insolvência), nos termos do art. 240.º, n.º 2 do CIRE, informa-se que: “a devedora é trabalhadora por conta de outrem junto da entidade “A..., S.A.”, ocupando a categoria profissional de “operária não qualificada” e auferiu o vencimento de valor base de 615,00 € no ano de 2019 e de 636,00 € no ano de 2020 com exceção do mês de abril de 2020 que auferiu o vencimento de valor base de 600 €.”
xii - Segundo esses cálculos, no 1.º ano da cessão, ficaram em dívida € 2.294,07
xiii -Do relatório anual da cessão, (2020-2021), junto aos autos pela sra. administradora da insolvência em 14/06/2021 nos termos do art. 240.º, n.º 2 do CIRE, consta que: (ref. Citius 29187347) o valor do rendimento indisponível determinado para a devedora foi fixado em 1 salário mínimo nacional, o que correspondeu aos seguintes valores: - 635,00 € até dezembro de 2020; - 665,00 € a partir de janeiro de 2021; situação económica e dever de cessão a devedora é trabalhadora por conta de outrem junto da entidade A..., S.A.”, ocupando a categoria profissional de “operária não qualificada” e auferindo o vencimento base de 652,10 € até dezembro de 2020 e o vencimento base 665,00 € a partir de junho de 2021. Acresce o subsídio de refeição com exceção nos meses de outubro de 2020, janeiro e abril de 2021.A devedora auferiu subsídio de turno e horas extras nos meses de junho a setembro, novembro e dezembro de 2020 e fevereiro e março de 2021. O subsídio de férias foi pago no mês de junho e o subsídio de natal foi pago no mês de novembro. a devedora auferiu montantes a título subsídio de doença por tuberculose ou isolamento profilático no montante 143,76 € em fevereiro se 2021. Igualmente a devedora auferiu montantes a título de subsídio de doença de 20 de março a 28 de março de 2020 o montante de 136, 26 €.
xiv - Pela segunda vez, foi esquecido que sendo a remuneração mínima mensal garantida recebida 14 vezes no ano e constituindo a remuneração mínima anual 14 vezes aquele montante, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual dividida por doze.
xv - Confundindo-se o rendimento periodicamente obtido pelo insolvente --- em cada segundo, minuto, hora, dia, semana, mês, trimestre, semestre, etc. --- com o rendimento que em cada mês lhe deve ser garantido dentro das forças dos seus rendimentos (não necessariamente mensais) enquanto mínimo digno de subsistência do devedor e do seu agregado família
xvi - Significando que, para lá dos € 544,98 que efetivamente a insolvente cedeu nesse período, ainda ficasse em dívida no montante de € 1733,89, circunstância que não se concebe!!!
xvii - Do relatório anual da cessão, (2021-2022), junto aos autos pela sra. administradora da insolvência em 15/07/2022 nos termos do art. 240.º, n.º 2 do CIRE, consta que: (ref. Citius 32851167) o valor do rendimento indisponível determinado para a devedora foi fixado em 1 salário mínimo nacional, o que correspondeu aos seguintes valores: - 665,00 € até dezembro de 2021; - 705,00 € a partir de janeiro de 2022; • situação económica e dever de cessão a devedora é trabalhadora por conta de outrem junto da entidade A..., S.A.”, ocupando a categoria profissional de “operária não qualificada”. A devedora posteriormente à entrega pela fiduciária da informação anual, remeteu recibos de vencimento de 2021, e nota de liquidação de IRS. A devedora não remeteu os recibos de janeiro a abril de 2022, pelo que se mantém os valores obtidos mediante a consulta das bases de dados públicas do ISS.
xviii - No aludido relatório, pese embora o montante cedido pela recorrente de € 1066,07, seguindo os argumentos já supra aduzidos, encontrava-se, relativamente ao 3.º ano da cessão, o valor em dívida de € 805,58.
xix - Relativamente ao o subsídio de férias, «mais do que como um simples período de inatividade, as férias são hoje concebidas como um fator de equilíbrio bio psíquico do trabalhador, implicando um “corte com a rotina”, uma rutura drástica com o quotidiano laboral e extralaboral, o que redunda, mais ou menos inevitavelmente, num acréscimo de despesas para o trabalhador e respetiva família (deslocação, alojamento, etc.)»; e que é precisamente em «ordem a possibilitar que o trabalhador enfrente este previsível aumento de gastos», que a lei determina que, «além da retribuição de férias (…), o trabalhador terá outrossim direito a auferir um subsídio de férias» (João Leal Amado, Contrato de Trabalho, 3.ª edição, Almedina, pág. 288).
xx - Novamente, e agora quanto ao subsídio de Natal, dir-se-á que o Natal permite ao trabalhador (e ainda que não religioso) o festejo de uma quadra especialmente dedicada à família, entendendo-se por esta não apenas a sua nuclear (cada vez mais reduzida), mas sobretudo a sua alargada (cuja reunião está cada vez mais limitada a esta quadra e à páscoa), o que implica habitualmente um acréscimo de gastos (quer em deslocações, quer na disponibilidade de uma gastronomia mais rica e alargada no tempo, quer na aquisição das habituais prendas); e que é precisamente em ordem a possibilitar que o trabalhador assegure este aumento previsível de gastos, que lhe é pago o subsídio de Natal.
xxi - Compreende-se, por isso, que se afirme que os subsídios de férias e de Natal são, em regra, «prestações, legalmente consagradas, destinadas aos trabalhadores por conta doutrem (e aos beneficiários de pensões de reforma) que visam proporcionar aos seus titulares um acréscimo de rendimento (equivalente ao valor da retribuição), duas vezes no ano - no período de férias e no natal - a fim de que se usufrua de forma plena esses dois períodos festivos (de férias e de Natal)» (ac. da RG, de 26.11.2015, Maria Amélia Santos, processo n.º 3550/14.8t8gmr.g1).
xxii - Contudo, admite-se facilmente que, no caso de trabalhadores que aufiram salários mais baixos, como é o caso da aqui recorrente, nomeadamente inferiores ou no limite da retribuição mínima, mensal garantida, os subsídios de férias e de Natal sejam necessários para garantir o seu «sustento minimamente digno», sendo nomeadamente afetos à satisfação de regulares despesas anuais (v.g. prémios de seguro, contribuições de condomínio), bem como à aquisição de extraordinários bens ou serviços (v.g. óculos graduados, aparelhos dentários, eletrodomésticos de primeira necessidade, tratamentos urgentes), ou mesmo para fazer face a curtos períodos de perda, parcial ou total, ou decréscimo, da habitual remuneração laboral (v.g. baixa médica, menor volume de trabalho - suplementar, extraordinário, noturno, ou noutro regime que justifique um valor hora mais elevado -, vacatio entre a dispensa de um posto de trabalho e o encontrar de outro).
xxiii - Nestes casos, e infelizmente para o trabalhador (aqui insolvente), os subsídios de férias e de natal não cumprem a função social subjacente à sua consagração e pagamento, antes asseguram (exatamente como o demais rendimento laboral que aufira com carácter de habitualidade todos os meses) o pagamento das despesas inerentes ao seu sustento básico.
xxiv - Tem-se, ainda, como conforme a maioria da jurisprudência que se vem pronunciando sobre este tema, uma vez, que quando exclui os subsídios de férias e de natal do rendimento autorizado a reter pelo insolvente, o faz assente na ponderação de que, no caso concreto, não se revela imprescindível ao seu «sustento minimamente digno». neste sentido, ac. da RG, de 14.02.2013, Manso Rainho, processo n.º 267/12.8tbgmr-c.g1; ac.da RC, de 13.05.2014, luís cravo, processo n.º 734/10.7tbfig-g.c1; ac. da RG, de 26.11.2015, Maria Amélia Santos, processo n.º 3550/14.8t8gmr.g1; ac. da RG, de 25.05.2016, Fernando Fernandes Freitas, processo n.º 6554/15.0t8vnf.g1; ac. da RG, de 12.07.2016, Francisca Micaela Vieira, processo n.º 4591/15.3t8vnf.g1; ac. da RC, de 28.03.2017, Emídio Francisco Santos, processo n.º 178/10.5tbnzr.c1; ac. da RG, de 17.12.2018, Pedro Damião e Cunha, processo n.º 2984/18.3t8gmr.g1; ac. da RE, de 17.01.2019, Maria João Sousa e Faro, processo n.º 344/16.0t8olh.e1; ac. da RG, de 23.05.2019, António Sobrinho, processo n.º 4211/18.4t8vnf.g1; ac. da RP, de 23.09.2019, José Eusébio Almeida, processo n.º 324/19.3t8amt.p1; ac. da RL, de 22.09.2020, Amélia Sofia Rebelo, processo n.º 6074/13.7tbvfx-l1-1; ou ac. da RG, de 03.12.2020, Helena Melo, processo n.º 1248/20.7tvnf.g1.
xxv - Logo, torna-se plenamente justificada a presunção de que, quando o resultado da divisão por doze (meses do ano civil), do montante anual global dos rendimentos do trabalho (incluindo doze salários mensais, um subsídio de férias e um subsídio de natal) seja inferior à retribuição mínima mensal garantida para o período considerado, os subsídios de férias e de Natal serão necessários para assegurar o «sustento minimamente digno» do trabalhador insolvente.
xxvi - Dir-se-á ainda, e sempre e apenas no quadro fáctico considerado (de ser a divisão, por doze, dos rendimentos laborais globais anuais inferior à retribuição mínima mensal garantida), que o entendimento contrário é suscetível de consubstanciar, não só a violação do princípio da dignidade da pessoa humana (conforme se crê sobejamente exposto antes), como ainda a violação do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade, consagrados nos arts. 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP.
xxvii - Em qualquer situação em que dois trabalhadores insolventes auferissem o mesmo rendimento anual global (v.g. € 6.960,00), mas em que um fosse composto apenas com doze salários mensais regulares, todos correspondentes à retribuição mínima mensal garantida (v.g.€ 580,00), e o outro fosse composto por doze salários mensais irregulares (no seu montante), sendo qualquer deles inferior à remuneração mínima mensal garantida (mas em proporção diferenciada) e pelos subsídios de férias e de Natal, o primeiro nada estaria obrigado a entregar do montante exclusivamente considerado (€ 6.960,00), enquanto que o segundo estaria obrigado a entregar o montante correspondente aos subsídios de férias e de Natal.
xxviii - Sendo a rmmg recebida 14 vezes no ano, podemos afirmar que o seu valor anual é constituído pelo montante mensal multiplicado por 14 (artigos 263º e 264º/1 e 2 do código do trabalho), e, portanto, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual. interpretação que é conformada pelo próprio conceito de retribuição mínima nacional anual (rmna, a que alude o artigo 3º do decreto-lei 158/2006, de 8 de agosto, que define “o valor da retribuição mínima mensal garantida (rmmg), a que se refere o n.º 1 do artigo 266.º do código do trabalho, multiplicado por 14 meses”. Na verdade, os subsídios de férias e de natal são parcelas de retribuição do trabalho e não extras para umas férias ou um natal melhorados. A retribuição mínima nacional anual é constituída pela rmmg multiplicada por 14, pelo que a rmmg garantida mensalmente disponibilizado corresponde à àquela rmmg multiplicada por 14 e dividida por 12. O mesmo é dizer que este valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento corresponde àquele que o estado fixa como o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do trabalhador (cf. Em www.dgsi.pt: ac. RL de 27-02-2018, processo 1809/17.1t8brr.l1-7; 13-03-2018, processo 92/17.3t8lsb-b.l1; 24-04-2018, processo 3553/16.8tabrr-e.l)
xxix - Nesse sentido acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 24/05/2023, referente ao processo 19030/22.5t8snt-b.l1-1, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário ensina como segue, a saber: 1 – Na fixação do rendimento indisponível para efeitos de exoneração do passivo restante, a denominada “escala de Oxford” serve como referência, como padrão para determinar o patamar mínimo da capitação dos rendimentos de um agregado familiar, mas não é um modelo exato para a fixação da medida do rendimento mínimo de sobrevivência com dignidade, não afastando a necessidade de apuro casuístico. 2 - O apuramento do montante a ceder, quando o devedor trabalha por conta de outrem, auferindo montante certo, deve ser feito mês a mês, tal como a cessão do rendimento objeto desta. 3 – A remuneração mínima garantida, que corresponde ao mínimo de subsistência com dignidade, inclui a remuneração mensal e os subsídios de férias e de Natal pelo que o cálculo do montante indisponível não pode ser inferior à remuneração mínima anual dividida por doze, segundo a fórmula: rmmg x 14/12m.
xxx - Idem, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/05/2019, referente ao processo 4211/18.4t8vnf.g1, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário ensina como segue, a saber: “desde que os subsídios de férias e de Natal a receber pela devedora, englobados nos rendimentos totais desta, não ultrapassem objetivamente um salário mínimo nacional e meio fixado como o montante necessário ao sustento digno da insolvente, estão excluídos do rendimento disponível para o fiduciário.”
xxxi - Ibidem, acórdão deste Tribunal da Relação de 22/05/2019, referente ao processo 1756/16.4t8sts-d.p1, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário ensina como segue, a saber: “i - Ao devedor insolvente deve ser resguardada da cessão ao fiduciário, pelo menos, quantia equivalente à retribuição mínima garantida, que corresponde, anualmente, à retribuição mínima mensal garantida multiplicada por catorze. ii - Sendo a remuneração mínima mensal garantida recebida 14 vezes no ano e constituindo a remuneração mínima anual 14 vezes aquele montante, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual dividida por doze.”
xxxii - Certos quanto ao erro em que, desde o 1.º relatório da sra. administradora da insolvência o tribunal a quo laborou, convirá, com o máximo de perfeição possível, demonstrar porque é que a recorrente nada deve à massa e ainda terá a receber, devendo ser exonerada do passivo restante!!!
xxxiii - O primeiro ano decorreu entre maio de 2019 e abril de 2020, em que o smn foi, respetivamente, € 600,00 e € 635,00, motivo pelo qual, os cálculos bem concretizados, iriam sempre ter de considerar que nesse período a recorrente teria para si os seguintes valores, a saber: - 10 x o smn 2019 (que se liquida de maio a dez 2019), 8 meses, a título de vencimento e 2 smn a título de subsídios de férias de natal, ou seja, € 6000,00 - 4 x o smn 2020 (que se liquida de janeiro a abril 2020), 4 meses, a título de vencimento, ou seja € 2540,00
xxxiv - O que significa que no 1.º ano da cessão o rmmg se cifrava na quantia anual de € 8.540,00, o que corresponde ao valor mensal de € 711,67
xxxv - No primeiro ano decorreu entre maio de 2019 e abril de 2020, a insolvente recebeu um total de € 8.870,56 conforme o relatório da cessão.
xxxvi - Aplicando a fórmula ao caso vertente verifica-se que o rmmg da insolvente no 1.º ano da cessão foi de € 7.603,34 (i.e. € 8.870,56/14*12), o que corresponde a um rendimento médio mensal garantido de € 633,61!!!
xxxvii - O segundo ano decorreu entre maio de 2020 e abril de 2021, em que o smn foi, respetivamente, €635,00 e €665,00, motivo pelo qual, os cálculos bem concretizados, iriam sempre ter de considerar que nesse período a recorrente teria para si os seguintes valores, a saber: - 10 x o smn 2020 (que se liquida de maio a dez 2020), 8 meses, a título de vencimento e 2 smn a título de subsídios de férias de natal, ou seja, € 6350,00 - 4 x o smn 2021 (que se liquida de janeiro a abril 2021), 4 meses, a título de vencimento, ou seja € 2660,00
xxxviii - No 2.º ano da cessão o rmmg cifrava-se na quantia anual de € 9.010,00, o que corresponde ao valor mensal de € 750,83
xxxix - No segundo ano decorreu entre maio de 2020 e abril de 2021, a insolvente recebeu um total de € 9.359,33 conforme o relatório da cessão.
xl - Aplicando a segunda fórmula ao caso vertente verifica-se que o rmmg da insolvente no 1.ºano da cessão foi de € 8.022,28 (i.e. € 9.359,33/14*12), o que corresponde a um rendimento médio mensal garantido de € 668,52!!!
xli - O terceiro ano decorreu entre maio de 2021 e abril de 2022, em que o smn foi, respetivamente, € 665,00 e € 705,00, motivo pelo qual, os cálculos bem concretizados, iriam sempre ter de considerar que nesse período a recorrente teria para si os seguintes valores, a saber: - 10 x o smn 2021 (que se liquida de maio a dez 2021), 8 meses, a título de vencimento e 2 smn a título de subsídios de férias de natal, ou seja, € 6650,00 - 4 x o smn 2022 (que se liquida de janeiro a abril 2022), 4 meses, a título de vencimento, ou seja € 2820,00 xlii - no 3.º ano da cessão o rmmg cifrava-se na quantia anual de € 9.470,00, o que corresponde ao valor mensal de € 789,17
xliii - No terceiro ano decorreu entre maio de 2021 e abril de 2022, a insolvente recebeu um total de € 9.932,30 conforme o relatório da cessão.
xliv - Aplicando a segunda fórmula ao caso vertente verifica-se que o rmmg da insolvente no 1.º ano da cessão foi de €8.513,40 (i.e. €9.932,30/14*12) o que corresponde a um rendimento médio mensal garantido de € 709,45!!!
xlv - Em algum momento, o tribunal a quo acautelou todos os erros matemáticos a ser praticados, ordenando a correção dos mesmos.
xlvi - A recorrente nunca, em ano algum, ultrapassou os rendimentos disponíveis que lhe foram por definidos pelo tribunal
xlvii - É por demais flagrante que, para além de nada ter de entregar à massa insolvente, a recorrente cumpriu escrupulosamente o que lhe era exigido, até demais,
xlviii - Deverá ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que, ordene a sra. administradora da insolvência a corrigir os cálculos, nos termos supra aduzidos, exonere a recorrente do passivo restante, ordenando ainda a restituição das quantias indevidamente entregues!!!
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas mui doutamente suprirão, requer a V. Exas. Se dignem:
- dar provimento ao presente Recurso e em consequência revogar o douto despacho ora recorrido substituindo-o por outro que:
A) Se considere que o apuramento do rendimento para fins de cessão deverá ter um caráter ANUAL;
B) Se decrete a exoneração do passivo restante relativamente à recorrente;
- Ordene a Sra. Administradora da Insolvência a devolver à Insolvente as quantias indevidamente entregues;
Sendo que só assim se fará A expetável JUSTIÇA!!”
A MASSA INSOLVENTE DE AA, veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo da seguinte forma:
“A. Quer a insolvente quer os credores foram notificados dos relatórios relativos aos 1º, 2º e 3º anos de cessão e ninguém se insurgiu contra o cálculo levado a cabo pela fiduciária.
B. A circunstância de a insolvente ter sido notificada dos relatórios da fiduciária onde constava que existiam rendimentos a ceder, o que não só não mereceu reação adversa como ainda motivou um pedido de pagamento prestacional da quantia em dívida, é geradora de uma legítima expectativa e convicção em todos os intervenientes processuais, expetativa e convicção essas que se mostram devidamente alicerçadas e suportadas no princípio da confiança.
C. Não se pode entender que a insolvente pudesse legitimamente ter a expectativa de ver concedida a exoneração do passivo restante, em face dos repetidos incumprimentos do dever de cessão que os relatórios apresentados pela fiduciária documentavam.
D. Os relatórios anuais não impugnados da fidúcia e os despachos sobre os mesmos incidentes adquiriram a imutabilidade própria do caso julgado.
E. Entende-se que se mostra esgotado o poder jurisdicional quanto à informação anualmente prestada.
F. É indiscutível que os subsídios de férias e de Natal são rendimentos provenientes do trabalho que estão sujeitos à cessão, enquadrando-se pela sua natureza, no rendimento disponível previsto no artigo 239.º, n.º 3, do CIRE, a entregar ao fiduciário durante o período de cessão.
G. O apuramento do rendimento disponível do insolvente a ceder ao fiduciário deve ter por referência o período mensal, pois a generalidade das pessoas recebe os rendimentos mensalmente e o rendimento indisponível também é fixado com H. É a posição que resulta da lei e dos princípios subjacentes à exoneração do passivo e eram estas as regras a que a Exonerada havia de ter cumprido.
I. Atento a todo o exposto, crê-se inverificados os vícios invocados.
J. Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso em apreço, mantendo-se a decisão proferida pelo tribunal a quo, fazendo assim a costumada Justiça!”
O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (cfr. artºs 627º, 629º, nº 1, 631º nº 1, 633º, nº 1, 637º, 638º, nº 1, 639º, 641º, 644º, nº 1º, al. a), 645º, nº 1 al. a) e 647º, nº 1 do CPC).
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II - OBJETO DO RECURSO:
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
Assim, a questão decidenda é a de saber se deve ser concedido à apelante a exoneração do passivo restante, corrigindo-se os cálculos em que se baseou o despacho recorrido, não se considerando integrado no rendimento disponível, o rendimento proveniente dos subsídios e férias e de Natal.

III - FUNDAMENTAÇÃO:
No despacho recorrido, foram considerados assentes os seguintes factos:
a) AA, com os demais sinais identificadores constantes dos autos, foi declarada insolvente no âmbito do presente processo, após se ter apresentado nessa conformidade;
b) O processo veio a ser encerrado por insuficiência da massa insolvente, por despacho datado de 07.05.2019, tendo nessa mesma data sido proferido o despacho inicial exonerativo, no qual se admitiu o pedido de exoneração formulado pela devedora e se lhe fixou o valor de 1 SMN como rendimento indisponível para cessão aos credores;
c) Decorrido o 1.º ano de período de cessão, veio a Fiduciária informar, através de competente relatório anual e subsequente aditamento/atualização a tal relatório, que se encontrava em dívida o valor de € 1.694,07 que a insolvente deveria ter entregue à fidúcia (cfr. exposições datadas de 07.06.2020 e 01.12.2020, que aqui se dão por reproduzidas);
d) Por despacho datado de 11.01.2021, o tribunal determinou que a insolvente fosse notificada para clarificar a sua posição processual, ante o apontado valor em dívida e considerando que havia sido anteriormente notificada para esclarecer se pretendia regularizar tal valor (e se sim em que moldes), sem qualquer resposta;
e) Nesta decorrência, veio a insolvente por requerimento de 24.01.2021, solicitar o pagamento da aludida quantia (€1.694,07) em 32 prestações mensais, o que mereceu por parte do tribunal posição no sentido de nada ter a opor, desde que não se somassem novos incumprimentos por referência aos rendimentos futuros a considerar (cfr. despacho de 24.03.2021);
f) A fiduciária veio a juntar o 2.º relatório anual (requerimento de 14.06.2021, cujo teor e documentação anexa ao mesmo damos aqui por reproduzido), tendo informado que a insolvente havia auferido de rendimento disponível € 1.733,89, não entregue, em razão do que o valor global em dívida já ascendia a € 3.427,96;
g) Por despacho datado de 04.10.2021, o tribunal determinou que se notificasse a insolvente, ante o apontado (novo) incumprimento, sendo que após tal notificação, a insolvente nada veio esclarecer ou requerer (v. despacho exarado aos 08.02.2022);
h) Aos 03.06.2022 veio a fiduciária juntar o 3.º relatório anual, no qual informa que a insolvente ainda não lhe havia remetido a documentação solicitada, mas que, ante os dados constantes da base de dados do ISS, havia concluído que haveria novo incumprimento do dever de entrega do rendimento disponível para cessão, tudo como flui do teor da exposição com a ref.ª 42471170, que aqui se dá por reproduzida;
i) Por despacho exarado aos 06.07.2022, o tribunal assentou no facto de a devedora ter incumprido com os seus deveres exonerativos, e declarou findo o período de cessão com reporte à data de 08.05.2022, ali tendo sido determinado o cumprimento do art.º 244.º, n.º 1, do CIRE;
j) A fiduciária veio juntar um último relatório atualizado, dando conta que o valor global em falta apurado ascende ao montante de € 4.148,94, conforme exposições de 15.07.2022 (referências 42883541 e 42877375), que aqui se dão por reproduzidas, com toda a documentação anexada às mesmas;
k) A fiduciária emitiu parecer final desfavorável, anotando o valor global em falta e a postura da insolvente ao longo do processo, não tendo logrado sequer entregar o valor em falta por referência ao 1.º ano do período de cessão;
l) Do CRC da insolvente nada consta;
m) A insolvente não remeteu à fiduciária os recibos de vencimento referentes a janeiro a abril de 2022;
n) A insolvente entregou à fidúcia o valor de € 1.611,05, o qual foi afetado à satisfação parcial das custas em dívida, sendo que o valor atual das custas em dívida ascende a € 1.596,35;
o) No apenso de reclamação de créditos, foi reconhecido um passivo global de € 18.514,65, tudo como flui do processado junto ao apenso A, que aqui se tem por reproduzido.-
p) Até ao momento nenhum outro valor foi entregue à fidúcia, por banda da devedora insolvente, sendo que desde fevereiro de 2022 que nenhuma entrega foi realizada.

IV - APLICAÇÃO DO DIREITO:
A exoneração do passivo restante é uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três a seis anos posteriores ao encerramento deste.
Tal como decorre do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2003, de 18 de Março, é uma solução que se inspirou no modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente.
O devedor mantém-se por um período de cessão adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não tenham sido integralmente satisfeitos e obriga-se, durante esse período, no essencial, a ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário, que afetará os montantes recebidos. Em termos processuais, não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial a determinar que, no referido período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade designada por fiduciário (cf. art.º 239.º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Esta medida especial de proteção do devedor pessoa singular traduz-se assim, esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste.
A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores.
A excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excecional.
O pedido da insolvente de exoneração do passivo, foi liminarmente admitido, por despacho proferido a 7.5.209, tendo aquela devedora ficado sujeita a um período de cessão de 5 anos.
Com efeito, o prazo de duração da cessão dos rendimentos, de cinco anos era o prazo aplicável naquela data, por força do que dispunha o art. 239º nº 2 do CIRE, na redação anterior à que lhe foi dada pela Lei 9/2022 de 11.1.
Com a entra em vigor da nova lei, que encurtou o período de cessão para três anos (apenas de consagra agora a possibilidade de o período ser prorrogado até um período máximo de 6 anos) ficou o período de cessão fixado no despacho de 7.5.2019, automaticamente e por força daquela lei reduzido a três anos, pelo que, a cessão findou no dia 8.5.2022, tal como bem entendeu o tribunal a quo.
Não há que confundir a decisão liminar com a decisão final da exoneração do passivo.
Sendo admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz profere despacho inicial, nos termos do art. 239º, nºs 1 e 2, do CIRE no qual determinará que durante os (atualmente) três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, denominado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário para os fins do art. 241º.
Com efeito, em termos processuais, não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial a determinar que, no período três anos da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade designada por fiduciário (Cf. art.º 239.º, n.º 2, do CIRE).
Este despacho, não consubstancia uma decisão definitiva, como dissemos, garantido apenas a passagem do processo para a fase subsequente, o período de cessão.
Na perspetiva de Catarina Serra[1] “não pode deixar de se associar o despacho inicial e a subsequente abertura do procedimento da cessão à concessão da liberdade condicional por bom comportamento-uma espécie de período experimental em que, se tudo correr bem, terá lugar a libertação definitiva do sujeito.”
Durante o período de cessão, o Insolvente encontra-se sujeito a um conjunto de deveres, nos termos elencados no art.º 239.º do CIRE.
Durante o período da cessão, segundo as alíneas a) e c) do n.º 4 do art. 239.º do CIRE, o devedor fica obrigado nomeadamente a informar o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que lhe isso lhe seja requisitado e a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.
Caberá depois ao tribunal, findo o prazo da cessão, proferir decisão final da exoneração, concedendo-lhe ou não a exoneração do passivo restante, sendo que esta concessão importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam ã data em que é concedida (cfr. artigos 244º e 245º do CIRE).
Só no final do período da cessão, será então proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência (cfr. art. 244º) e, sendo a mesma concedida, dar-se-á, de acordo com o art. 245º do CIRE, a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados.
Por sua vez a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos porque o poderia ter sido antecipadamente (art. 244º nº 2 do CIRE).
Dispõe o n.2 do art. art 244.º que: “a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior”.
A insolvente vem impugnar o despacho final, proferido em 17.11.2023 que lhe recusou a concessão daquele benefício.
Os fundamentos da recusa elencados no despacho recorrido, foram os seguintes: “No caso dos autos, a devedora incumpriu com os deveres consagrados no art.º 239.º, n.º 4, alíneas a), e c), dado que nem sempre cuidou de, atempadamente, fazer chegar à fiduciária os comprovativos dos seus rendimentos mensais.
Acresce que, conforme a fiduciário veio esclarecer atempadamente nos autos, a entrega de rendimentos em contexto de “exoneração do passivo restante” é uma entrega voluntária dos devedores, sendo aos mesmos que cabe diligenciar pelo bom cumprimento de tal obrigação, e atuar de boa-fé durante o legal “período de cessão”, não se tratando aqui de qualquer sucedâneo de “penhora” ou de apreensão de vencimentos.- Assim, não procedeu, como devia e estava obrigada, à entrega ao fiduciário do rendimento disponível que auferiu durante os 3 anos de período de cessão (encurtado por virtude da lei 9/2022, de 11.01), certo que lhe foi deferida, durante o decurso daquele período, a pretensão que solicitou no sentido de lhe ser admitido plano de regularização através de pagamento em prestações do valor apurado como estando em falta.
Assim, não há dúvidas de que o valor em falta detetado pela Sr.ª Fiduciária - € 4.148,94 -, configura uma grave violação dos deveres a que estava adstrita a insolvente.
Pode-se mesmo dizer que a devedora gozou, sem qualquer cabimento legal, na prática, de um prazo adicional que, ao fim e ao cabo, resultou num alargamento de mais de um ano desde o fim do período de cessão (ocorrido em 08.05.2022) sem que, nesse prazo, tivesse entregue um cêntimo à fidúcia!
Deste modo, também não se nos oferece qualquer dúvida que este significativo valor não pôde ser distribuído pelos credores, prejudicando, assim, a satisfação (ainda que parcial) dos créditos sobre a insolvência.
Por outro lado, tal incumprimento consubstancia forçosamente uma atuação, no mínimo, de grave negligência por parte da devedora: foi a própria que requereu o presente instituto de exoneração; estava inteirada das obrigações que sobre si impendiam ou deveria estar; nada justificou, de forma idónea, para legitimar aquela não entrega.
Assim, atendendo a que a devedora violou os principais deveres exarados no art.º 239.º do CIRE, e em face do parecer desfavorável da Fiduciária, entende o Tribunal (apesar do silêncio dos credores) que existe motivo idóneo legitimador do indeferimento da peticionada concessão da exoneração do passivo restante.”
Já as razões de discordância da apelante relativamente a este despacho são as seguintes:
A recorrente alega que, “nunca, em ano algum, ultrapassou os rendimentos disponíveis que lhe foram por definidos pelo tribunal” e que “para além de nada ter de entregar à massa insolvente, a recorrente cumpriu escrupulosamente o que lhe era exigido, até demais”.
Isto porque, os relatórios anuais apresentados pela Fiduciária contêm erros de cálculo do rendimento disponível e indisponível, e o tribunal decidiu a recusa da exoneração do passivo, baseado em tais erros.
Afirma que o referido despacho é omisso no que concerne com o carácter do cálculo do período anual de cessão, onde se irá determinar eventuais quantias de que a aqui recorrente eventualmente estaria obrigada a entregar à sra. administradora da insolvência.
Que a sra. administradora da insolvência terá interpretado o mesmo no sentido de que, era por referência ao valor mensal que a recorrente auferia, que teria de ser contabilizado o valor que, mensalmente, teria de ceder à fiduciária.
Engobando os subsídios (férias e Natal) no âmbito de meses em concreto, i.e., ao mês em que foi recebido de acordo com o calendário gregoriano, o que significa que, nos meses em que era recebido (junho e novembro) o rendimento disponível, literalmente, orçasse na totalidade destes subsídios,
Esquecendo, como é reconhecido pela jurisprudência dominante e até por esta mesma relação, o cálculo do rendimento do insolvente deverá ser realizado segundo a fórmula RMMG x 14/12m., o que manifestamente não sucedeu.
Conclui que, nas “contas” da sra. administradora da insolvência, resulta atualmente que a recorrente tem a pagar a quantia de € 4.148,94, sem prejuízo dos € 1.611,05 que, ao longo do processo, já veio a entregar à fiduciária, num total de € 5.759,99 que não são devidos.
As contas assentam num “erro de cálculo” que consistiu no facto de ter sido esquecido que “a remuneração mínima mensal garantida recebida 14 vezes no ano e constituindo a remuneração mínima anual 14 vezes aquele montante, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual dividida por doze.” E que “confundindo-se o rendimento periodicamente obtido pelo insolvente --- em cada segundo, minuto, hora, dia, semana, mês, trimestre, semestre, etc. --- com o rendimento que em cada mês lhe deve ser garantido dentro das forças dos seus rendimentos (não necessariamente mensais) enquanto mínimo digno de subsistência do devedor e do seu agregado familiar.”
Já a Administradora de Insolvência, veio na resposta ao recurso, pugnar pela manutenção do decidido, dizendo que “a circunstância de a insolvente ter sido notificada dos relatórios da fiduciária onde constava que existiam rendimentos a ceder, o que não só não mereceu reação adversa como ainda motivou um pedido de pagamento prestacional da quantia em dívida, é geradora de uma legítima expectativa e convicção em todos os intervenientes processuais, expetativa e convicção essas que se mostram devidamente alicerçadas e suportadas no princípio da confiança.”
Que não se pode entender que a insolvente pudesse legitimamente ter a expectativa de ver concedida a exoneração do passivo restante, em face dos repetidos incumprimentos do dever de cessão que os relatórios apresentados pela fiduciária documentavam.
Que “o apuramento do rendimento disponível do insolvente a ceder ao fiduciário deve ter por referência o período mensal, pois a generalidade das pessoas recebe os rendimentos mensalmente e o rendimento indisponível também é fixado com H. É a posição que resulta da lei e dos princípios subjacentes à exoneração do passivo e eram estas as regras a que a Exonerada havia de ter cumprido”.
Defende ainda que os subsídios de férias e de Natal são rendimentos provenientes do trabalho que estão sujeitos à cessão, enquadrando-se pela sua natureza, no rendimento disponível previsto no artigo 239.º, n.º 3, do CIRE, a entregar ao fiduciário durante o período de cessão, pelo que inexiste qualquer erro nos relatórios que elaborou.
Vejamos.
O despacho inicial de exoneração do passivo restante datado de 07/05/2019 determinou:  “(…) assim, e dando por assente e reproduzido o quadro vivencial da insolvente descrito no relatório apresentado pela sr.ª Administradora da Insolvência (cfr. fls. 46-47), nos termos do disposto no art.º 239.º, n.º 1 e 2, do CIRE, determina-se que durante os 5 anos de período de cessão ali previsto, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir acima de um salário mínimo nacional (1 smn a vigorar em cada ano civil) se considere cedido ao fiduciário, cabendo-lhe ainda cumprir as obrigações previstas no n.º 4 do art.º 239.º, sob pena de cessação antecipada do respetivo procedimento. Tal valor deve ser reportado a 12 meses do ano civil.”
No despacho inicial proferido ao abrigo do disposto no art. 239º nº 2 e 3 do CIRE, ficou determinada a obrigação da devedora a entregar o “rendimento disponível que venha a auferir ao Fiduciário.
Nos termos do nº 3 desta norma legal, “integram o rendimento disponível (isto é o rendimento que devedor se encontra obrigado a ceder ao fiduciário), “todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”.
Exclui-se deste rendimento disponível, o chamado “rendimento indisponível”, que é aquele que “seja razoavelmente necessário para o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, saldo decisão fundamentada do juiz em contrario, três vezes o salario mínimo nacional.”.
O tribunal no despacho de 7.5.2019, determinou expressamente que o valor do rendimento disponível “deve ser reportado a 12 meses do ano civil”.(sublinhado nosso).
 Apesar do artigo 239º do CIRE não estabelecer a regra da periodicidade da cessão – o tribunal determinou que “. Tal valor deve ser reportado a 12 meses do ano civil.” significa que, tal como habitualmente é feito, na generalidade dos processos, uma vez que a generalidade das pessoas aufere rendimentos do trabalho, com periodicidade mensal, o tribunal determinou que o cálculo do rendimento disponível fosse feito mensalmente.
Mas esta afirmação, constante do despacho sub judice significa também que, ao contrário do afirmado pela apelante, que entende que o despacho é omisso nessa questão, foi aí determinado que o rendimento disponível deva ser reportado a 12 meses, ou seja, significa que todo o rendimento auferido ao longo dos 12 meses, (onde se incluem os subsídios de férias e de Natal), sejam reportados a 12 meses. 
Implica este despacho que o Tribunal afastou o entendimento ora defendido pela apelante que o computo do rendimento disponível, deva ser feito a 14 meses.
Com efeito, a exclusão do rendimento do que seja razoavelmente necessário apar o sustento mínimo do devedor e do seu agregado familiar, segundo Luís Carvalho Fernandes e João Labareda [2] radica na proteção constitucional da dignidade humana.
No Acórdão do Tribunal Constitucional de 09/07/2002, afirma-se o seguinte: "O salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o "mínimo dos mínimos" não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim também uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo montante não seja superior ao salário nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respetivo beneficiário."
Daí que, porque o legislador não estabelece um “limite mínimo” do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e família, este conceito deva ser avaliado e ponderado, em cada caso particular, atendendo-se ás reais necessidades do insolvente e do respetivo agregado familiar. E, para tanto, a jurisprudência maioritária tem optado por atender, nesta matéria, a critérios objetivos adjuvantes do juízo a formular, designadamente ao salário mínimo nacional.
Explica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/16, [3] : "Jogam-se no art.º 239.º, n.º 3, b)-i), do CIRE - cessão do rendimento disponível - dois interesses conflituantes: um, aponta no sentido da proteção dos credores dos insolventes/requerentes da exoneração; outro, na lógica da "segunda oportunidade" concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período de cinco anos a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos."
Na ponderação do equilíbrio entre o interesse do credor à prestação e o interesse do devedor consistente no direito à manutenção de um nível de subsistência digno, tal como dissemos, deve ter-se por valor de referência mínima o salário mínimo nacional.
Por sua vez, o montante mensal retido para o Insolvente no período da cessão não visa assegurar o mesmo padrão de vida que este tinha antes da situação de insolvência, uma vez que ele terá de ajustar a sua situação sócio-económica à condição especial em que se encontra, designadamente à máxima defesa dos interesses patrimoniais dos credores.
A decisão recorrida esclareceu o conceito, considerando que deverá ser cedido o rendimento dos devedores que, em cada um dos doze meses do ano, ultrapasse o equivalente a um salário mínimo nacional, designadamente o valor dos subsídios de férias e de Natal e na proporção em que os mesmos ultrapassem este valor.
Ou seja, os subsídios de férias e de Natal integram o conceito de rendimento disponível, devendo cumular-se com os demais rendimentos do insolvente.
Estes subsídios são, como se sabe, um complemento de retribuição do trabalho com a função de auxiliar nas despesas potencialmente acrescidas em época de férias ou no período do Natal.
A forma de contabilização dos valores dos subsídios de férias e de Natal para efeitos de cessão do rendimento disponível deve ser decidida à luz da teleologia e dos interesses em jogo no incidente de exoneração do passivo restante.
Ora, o n.º 3 do art.º 239.º do CIRE é claro quando refere que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor.
Os subsídios de férias e de Natal são rendimentos disponíveis do devedor, pelo que deverão por inerência, ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar.[4]
A devedora, notificada do despacho proferido em 7.5.2019, que apreciou esta questão, decidindo que o rendimento (disponível e indisponível) fosse reportado a 12 meses, com ele se conformou, já que não interpôs recurso, pelo que formou-se, dentro do processo, relativamente a essa questão caso julgado formal.(art. 620º do CPC, aplicável por força do art. 17º do CIRE).
Tal como o caso julgado material, o caso julgado formal visa evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão.
O caso julgado formal obsta a que, na mesma acção, o juiz (o que proferiu a decisão ou qualquer outro) possa alterar uma decisão anteriormente proferida sem ofensa do caso julgado formal.
“Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, seja objeto de repetida decisão. Se assim for, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão”.[5]
Desta forma encontra-se a Apelante impedida de ver reapreciada tal questão, mormente em sede de recurso.
Desta feita, porque a Apelante baseia a existência dos “erros de cálculo” que imputa aos relatórios do Fiduciário, (nos quais o tribunal fundamentou a decisão sob recurso),  na sua discordância quanto ao cálculo do rendimento disponível por nele terem sido incluídos os subsídios de férias e de Natal, porque os relatórios tiveram em consideração decisão anterior transitada em julgado sobre tal questão, restará julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.



V - DECISÃO:
Pelo exposto e em conclusão acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o Recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Apelante.





Porto, 19 de março de 2024.
Alexandra Pelayo
Anabela Miranda
Márcia Portela - [VOTO DE VENCIDA: Voto vencida por entender que os subsídios de férias e de Natal devem integrar o rendimento indisponível.
Esta questão de saber se os subsídios de férias e de Natal devem integrar o rendimento indisponível foi abordada, de forma exemplar, num acórdão desta secção, datado de 14.03.2023, Eduardo Pires, em que figurou como adjunta ora Relatora, e que transcrevemos no que aqui releva:
2. Esta questão não tem merecido tratamento uniforme por parte da nossa jurisprudência.
Uma corrente que se perfila como maioritária, em termos de jurisprudência publicada, mas que não tem a nossa concordância, parte do entendimento de que os subsídios de férias e de Natal consistem em prestações, legalmente consagradas, destinadas aos trabalhadores por conta de outrem (e aos beneficiários de pensões de reforma) que visam proporcionar aos seus titulares um acréscimo de rendimento (equivalente ao valor da retribuição, duas vezes ao ano – no período de férias e de natal – a fim de que os mesmos usufruam de forma plena desses dois períodos: um dedicado ao lazer e outro de natureza festiva.
No caso do subsídio de férias constitui este um aumento do rendimento que vai proporcionar a quem o usufrui o seu gozo efetivo, com um melhor aproveitamento do tempo livre sem trabalhar, proporcionando o descanso merecido no final de um ano de trabalho.
No caso do subsídio de natal, visa-se com este proporcionar ao seu titular uma disposição plena da época natalícia, no meio familiar, com os inerentes gastos que lhe estão associados.
Para essa corrente, em ambos os casos trata-se de um valor “extra”, de um acréscimo do rendimento que permite proporcionar ao seu titular um acréscimo de bem-estar, com efetivo descanso e com a realização das despesas características destes períodos.
Mesmo sem se colocar em causa a natureza retributiva destes subsídios é de considerar que por força da submissão do devedor ao instituto da exoneração do passivo restante, aquilo a que este tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno – por respeito para com os seus credores – e os subsídios de férias e de Natal, enquanto acréscimos ao valor do seu salário mensal, não são imprescindíveis para esse sustento minimamente condigno, pelo que os mesmos têm que ser, na medida em que ultrapassem o valor do salário fixado a título de rendimento disponível, incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.
Assim, o salário mínimo nacional, enquanto referência ou padrão mínimo para a fixação – pelo tribunal e olhando às particularidades de cada caso concreto do rendimento indisponível do devedor, ou seja, não sujeito a cessão ao fiduciário é o salário mínimo nacional mensal, legalmente fixado, e não o equivalente a um duodécimo da multiplicação por catorze daquele valor, aí se incluindo os subsídios de férias e de Natal.
Com efeito, nesta perspetiva, o apuramento do que em cada momento integra o rendimento disponível é feito mensalmente, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês e não o equivalente a um duodécimo da multiplicação por catorze daquele valor – cfr., por ex., Acórdãos da Relação do Porto de 7.5.2018, proc. 3728/13.1TBGDM.P1; de 23.9.2019, proc. 324/19.3T8AMT.P1; de 16.6.2020, proc. 3294/19.4 T8OAZ.P1; de 29.4.2021, proc. 1544/18.3T8STS.P1; de 28.10.2021, proc. 2161/18.3T8STS.P11; de 12.9.2022, proc. 8/22.5 T8STS-B.P1; de 8.11.2022, proc. 2370/22.0 T8VNG.P1; de 12.1.2023, proc. 800/20.0 T8AMT-C.P12; Acórdãos da Relação de Coimbra de 3.12.2019, proc. 8794/17.8 T8CBR-B.C1; de 22.6.2020, proc. 6137/18.2 T8CBR-B.C1; de 13.9.2022, proc. 2100/14.0 TBVIS.C1; Acórdãos da Relação de Guimarães de 3.12.2020, proc. 1248/20.7 TVNF.G1; de 17.12.2018, proc. 2984/18.3 T8GMR.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
3. Outra corrente, à qual aderimos, entende que sendo a RMMG [Retribuição Mínima Mensal Garantida] recebida 14 vezes no ano, é de afirmar que o seu valor anual é constituído pelo montante mensal multiplicado por 14 – arts. 263º e 264º, nºs 1 e 2 do Cód. do Trabalho -, e, portanto, o valor necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual. Interpretação que é conformada pelo próprio conceito de Retribuição Mínima Nacional Anual (RMNA, a que alude o art. 3º do Dec. Lei nº 158/2006, de 8.8., que define “o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o n.º 1 do artigo 266.º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses”. Na verdade, os subsídios de férias e de Natal são parcelas de retribuição do trabalho e não extras para umas férias ou um Natal melhorados. A retribuição mínima nacional anual é assim constituída pela RMMG multiplicada por 14, pelo que a RMMG mensalmente disponibilizada corresponde àquela RMMG multiplicada por 14 e dividida por 12. O mesmo é dizer que este valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento corresponde àquele que o Estado fixa como o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do trabalhador.
Transpondo este princípio para o valor do rendimento necessário ao sustento minimamente digno do insolvente, terá que se concluir, dentro desta orientação, que esse valor é retido 14 vezes ao ano ou, então, que cada uma das respetivas parcelas mensais não deverá ser inferior à RMMG multiplicada por 14, sendo depois o seu produto dividido por 12 – cfr., por ex., Acórdãos da Relação do Porto de 22.5.2019, proc. 1756/16.4T8STS-D.P13; de 15.6.2020, p. 1719/19.8T8AMT.P14; Decisão Singular da Relação do Porto de 1.3.2021, p. 1784/19.8 T8STS.P1; Acórdão da Relação de Lisboa de 27.2.2018, p. 1809/17.1 T8BRR.L1-7, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Continuando, e em apoio desta orientação, há ainda a acentuar que as verbas correspondentes aos subsídios de férias e de Natal, pese embora o seu designativo, não se destinam, na prática, a proporcionar umas melhores férias de verão ou uma celebração mais desafogada da época natalícia. Com efeito, a larga maioria dos cidadãos, com essas importâncias que recebe a título de subsídios, que não vê como extras, procura, em primeira linha, satisfazer os normais encargos e despesas da sua vida e também, por esse motivo, se impõe concluir que as mesmas visam garantir o mínimo indispensável ao sustento do trabalhador e assim deverão ser encaradas.
De relevar ainda o voto de vencido de Cura Mariano ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 770/2014, Ana Guerra Martins, acerca dos subsídios de férias e Natal: “Para superar as dificuldades da determinação do que é o mínimo necessário a uma subsistência condigna, o Tribunal Constitucional, relativamente aos rendimentos auferidos periodicamente, impôs a impenhorabilidade das prestações periódicas, pagas a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, quando o executado não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda (Acórdão n.º 177/02, acessível em www.tribunalconstitucional.pt) .
Aproveitou-se, assim, o facto do salário mínimo nacional conter em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos”, para utilizar esse valor, sujeito a atualizações, como aquele, a partir do qual, qualquer afetação porá em risco a subsistência condigna de quem vive de uma qualquer prestação periódica.
No caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao do salário mínimo nacional. E o facto de, nos meses em que são pagos aqueles subsídios, a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsídio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito dos credores, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular.
Não é o momento em que são pagas que as torna ou não indispensáveis à subsistência condigna do executado, mas sim o seu valor, uma vez que é este que lhe permite adquirir os meios necessários a essa subsistência.
Aliás, quando o Tribunal Constitucional escolheu o salário mínimo como o valor de referência para determinar o mínimo de subsistência condigna teve necessariamente presente que o mesmo era pago 14 vezes no ano, circunstância que tem influência na fixação do seu valor mensal, tendo entendido que o recebimento integral de todas essas prestações era imprescindível para o seu titular subsistir com dignidade. Foi o valor dessas prestações, pagas 14 vezes ao ano, que se entendeu ser estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador.
E se os rendimentos de prestações periódicas deixam de ter justificação para estar a salvo, quando o executado dispõe de outros rendimentos ou de bens que lhe permitam assegurar a sua subsistência, os subsídios de férias e de Natal não podem ser considerados outros rendimentos para esse efeito, uma vez que eles integram o referido mínimo dos mínimos. Os subsídios de férias e de Natal não são outros rendimentos diferentes da pensão paga mensalmente, mas o mesmo rendimento periódico, cujo momento de pagamento coincide com o das prestações mensais.
Daí que tenha defendido que a interpretação sindicada deveria ser julgada inconstitucional por violação do direito fundamental de qualquer pessoa a um mínimo de subsistência condigna, o qual se extrai do princípio da dignidade da pessoa humana condensado no artigo 1º da Constituição. João Cura Mariano”.].
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[1] Lições de Direito da Insolvência, pág. 568.
[2] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 788.
[3] Relator Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão desta Relação de 07/05/18, proferido no Processo n.º 3728/13.1TBGDM.P1 e os Acórdãos da Relação de Coimbra de 11/02/14, proferido no Processo n.º 467/11.1TBVND-C.C1 e de 13/05/14, proferido no Processo n.º 1734/10.7TBFIG-G.C1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[5] Ver Ac. do STJ de 18-03-2018 (Proc. nº 1306/14.7TBACB-T.C1.S1), disponível in www.dgsi.pt.