Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
890/22.6T8MAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
TÍTULO EXECUTIVO
CESSÃO DE CRÉDITO
LEGITIMIDADE ATIVA
LIVRANÇA
ENDOSSO
Nº do Documento: RP20240307890/22.6T8MAI-A.P1
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os documentos sem força probatória plena ficam sujeitos à livre apreciação, dependendo a sua eficácia probatória da livre apreciação do juiz.
II - A impugnação do documento particular de cessão não determina, pois, que ao mesmo não possa ser reconhecido valor probatório.
III - A identificação do crédito exequendo como cedido alcança-se dos termos da página do Anexo ao contrato de cessão junta aos autos, não suscitando perplexidade de maior a não assinatura digital daquele, atenta a presuntiva extensão ou dimensão do mesmo, como, de forma não escamoteável, a entrega à cessionária exequente do título de crédito exequendo e da totalidade dos elementos necessários ao seu preenchimento (como de outro modo poderia a livrança tê-lo sido, como admitido) justifica a inferência necessária pela transmissão do preciso crédito exequendo.
IV - A entrega ou transmissão da livrança e demais elementos do crédito serve de substrato (para além da prova directa da cessão, como já caracterizada) ao juízo de inferência, de dedução/indução, ajustando-se, de acordo com as regras da lógica e os princípios da experiência, à transmissão do crédito pela cessão cujo contrato foi junto; de modo que possível ultrapassar o estágio da dúvida ou possibilidade simples, para uma sede de probabilidade qualificada, que vem a ser o da certeza judiciária.
V - Demonstrado que o exequente embargado sucedeu (por acto inter vivos – contrato de cessão de créditos) ao credor na titularidade activa da obrigação exequenda, tem de reconhecer-se a sua legitimidade activa – sucedeu (por acto inter vivos) a quem no título dado à execução figura como credor.
VI - As letras e livranças podem ser transmitidas, para além do endosso, também por acto entre vivos, com os efeitos de uma normal cessão de créditos ou por sucessão mortis causa, não perdendo, por isso, a sua natureza de títulos executivos (artigo 46.º ,alínea c) do Código de Processo Civil).
VII - É parte legítima na execução, enquanto cessionário do título, o exequente que alegou ser portador de livrança por a ter adquirido por contrato de cessão de posição contratual que celebrou com o emitente da livrança, observando, assim, o disposto no artigo 56.º/1 do Código de Processo Civil.
VIII - De acordo com este preceito, que contempla desvios à regra geral de determinação da legitimidade na execução, segundo a qual (ver artigo 55.º/1 do C.P.C.) esta tem de ser promovida pela pessoa que no título figura como credor, que no caso é o cedente e não o cessionário, admite-se a possibilidade de a execução poder ser instaurada por este último.
IX - A cessão de créditos está regulamentada nos arts. 577.º e segs. do CC e tem efeitos distintos do endosso.
X - Uma vez cedido o crédito resultante do negócio subjacente à subscrição da livrança (mútuo oneroso), igualmente esta se transmite como acessório de garantia do pagamento do mesmo crédito.
XI - Por via da legitimação material conferida pelo negócio de cessão de créditos, a exequente é portadora legítima da livrança, podendo, com base nela, executar os seus subscritores pela falta do pagamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 890/22.6T8MAI-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução da Maia - Juiz 2



Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: Paulo Duarte Mesquita
2º Adjunto: Ana Vieira


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Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

Nos presentes autos de embargos de executado, veio a embargante invocar a excepção de ilegitimidade activa, com fundamento de que a exequente não é a pessoa que consta do título dado à execução e que a cessão de créditos não consta do título e não se mostra provada nos autos.

A Embargada veio responder à excepção alegada, pugnando pela sua improcedência.

Logo em sede de saneamento da causa foram julgados improcedentes os embargos.

É dessa decisão que vem interposto o presente recurso, formulando a executada/embargada/recorrente as seguintes conclusões:

A – A Executada terá que ser absolvida uma vez que a Exequente carece de legitimidade processual activa.

B – Não figurando no título executivo como credora, a Exequente terá que invocar e provar a sucessão da posição da credora originária que figura no título executivo e a credora que intenta a acção executiva.

C – Não é suficiente para provar esta sucessão um documento sem qualquer garantia de autenticidade, assinatura ou sequer comprovativo da data da sua elaboração.

D – No caso dos autos, um tal documento foi apresentado, foi alegada e PROVADA a sua inidoneidade e possibilidade de alteração.

E – Tal documento foi devidamente impugnado e a sentença a quo não demonstrou nenhuma fundamentação ou raciocínio lógico que permitisse afastar a referida inidoneidade, pelo que a sucessão de crédito jamais deveria ser tida como provada.

F – A Executada terá que ser absolvida uma vez que a Exequente deu à execução uma livrança em que a Exequente não consta como sacadora nem como endossada.

G – A Exequente e credora originária, a quem alegadamente aquela adquiriu o crédito, são pessoas jurídicas distintas.

H – Pelo que a única forma de transmissão da livrança, honrando os dispositivos de cariz imperativo da Lei Uniforme das Letras e Livranças, seria o endosso, na altura em que o crédito lhe foi transmitido.

I – Uma coisa é a transmissão do crédito e outra, bem diferente, é a entrega de um título de crédito que lhe subjaz.

J – Pelo que a transmissão do crédito não exime a adquirente, ora Exequente, de honrar os requisitos do título de crédito que lhe terá sido entregue.

K – A Exequente, se pretendia utilizar o título de crédito que recebeu como garantia do crédito subjacente, deveria ter exigido o endosso do mesmo.

L – Não há facto ou disposição legal que dispense a Exequente e a dispense de cumprir as disposições da Lei Uniforme das Letras e Livranças.

Contra-alegou a recorrida, pugnando pela improcedência do recurso.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

Questões a decidir:

As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões, todas por forma a apurar da legitimidade activa da exequente, excepção que fundamentava os embargos e é, novamente, o objecto deste recurso:


i. Da prova da cessão do crédito
ii. Da transmissão do crédito por cessão, que não por endosso

i.

Na decisão recorrida, tiveram-se por assentes os seguintes factos:

1- Em 8.02.2022 a exequente A... S.A.R.L. intentou execução ordinária para pagamento de quantia certa no valor de €34 370,10, dando como título uma livrança.

2 - A A..., S.A.R.L., sociedade de responsabilidade limitada (société à responsabilité limitée), constituída ao abrigo das leis do Luxemburgo, com sede em Rue ..., ... Luxemburgo, registada no Registo Comercial e das Sociedades do Luxemburgo sob o n.º ...79, ora Exequente, celebrou com o Banco 1..., S.A. um Contrato de Cessão de Créditos, em 22 de Dezembro de 2018, mediante o qual a referida entidade cedeu diversos créditos, bem como, todas as garantias e acessórios a ele inerentes, incluindo os créditos que aquela instituição bancária detinha sobre os ora Executados relativo ao Contrato de crédito ao consumo n.º ...76 (IDRBES ...30) celebrado em 10 de Julho de 2014.

3 - A Exequente é portadora de uma livrança subscrita pelos Executados AA e BB no valor de EUR 34.370,10 (trinta e quatro mil, trezentos e setenta euros e dez cêntimos), emitida em 10 de Julho de 2014 e vencida em 17 de Janeiro de 2022 (cfr. documento n.º 2, correspondente à Livrança exequenda)

4 - A livrança destinou-se a garantir o bom pagamento das obrigações emergentes do Contrato de crédito ao consumo n.º ...76 (IDRBES ...30) celebrado em 10 de Julho de 2014, o qual se venceu por falta de cumprimento das obrigações assumidas.

5 - Apesar de devidamente interpelados para o efeito, a livrança não foi paga à Exequente na data marcada para o vencimento, nem posteriormente.

Ali se fundamentou a aquisição dos factos e, decisivamente, a cessão do crédito que os embargantes questionam novamente, nos seguintes termos:

«A prova produzida nos autos a propósito da questão é, exclusivamente, documental – documentos particulares, não subscritos pela embargante e por esta impugnados, por isso sujeitos à livre apreciação – todos os documentos que não sejam documentos autênticos ou particulares cuja autoria seja reconhecida (aqueles e estes têm força probatória plena - arts. 371º e e 376º do CC, respectivamente), desde que impugnados pela parte contra quem são apresentados, vêem a sua eficácia probatória dependente da livre apreciação do juiz.

A impugnação do documento particular não determina que ao mesmo não possa ser reconhecido valor probatório, antes implicando que o mesmo fica sujeito à livre apreciação do juiz – ainda que desacompanhado doutros meios de prova tendentes a corroborá-lo, tal documento (elemento probatório) tem de ser analisado criticamente em vista de se apurar se demonstra ou não o facto que com a sua junção a parte pretende provar.

Apreciação que tem como ponto prévio (a realidade do foro demonstra-o e comprova-o, diariamente) ser normal e corrente a cessão de créditos entre entidades financeiras – diariamente, nos tribunais nacionais, se apresentam cessionários a requerer a sua habilitação em processos judiciais, mormente executivos, por terem celebrado com os cessionários, designadamente entidades bancárias, contratos de cessão de créditos, acompanhados das pertinentes garantias, que têm por objecto uma carteira de créditos (um grande número de créditos). Interessa realçar que tais negócios são frequentes, sendo corrente a habilitação de adquirentes ou cessionários (seja ab initio, seja em incidente de habilitação) com fundamento em tais contratos de cessão de créditos: negócios em que os cedentes (instituições de crédito autorizadas junto dos bancos centrais) vendem a investidor (entidade que se dedica ao investimento em carteiras de risco e à aquisição de dívidas em situação de incumprimento) empréstimos de risco (já em incumprimento e até objecto de processos judiciais), por um valor global acordado, sendo que o clausulado do contrato respeita aos termos do negócio de cessão, deixando-se a identificação do objecto mediato do contrato (dos créditos cedidos) para anexo (onde todos e cada um dos créditos são identificados).

Demonstra também a prática forense (que neste âmbito funciona como experiência da vida) que, normalmente os cessionários são entidades estrangeiras (de grandes centros financeiros) e que os contratos são celebrados em língua estrangeira.

Analisados os documento juntos pela exequente/embargada com o requerimento executivo, constata-se que o mesmo se reporta a contrato celebrado na língua inglesa (está também junta pertinente tradução e certificação da tradução, nos termos do DL 76-A/2006, de 29/03 e Portaria 657-B/2006, de 29/06), consubstanciado em ‘Contrato de Cessão de Créditos’ celebrado em 22 de dezembro de 2018 entre o Banco 1..., S.A. e o Banco 2..., SA, a título de vendedores, e L... SARL, a título de comprador, através do qual os vendedores declararam vender e o comprador declarou comprar carteira de empréstimos de risco (alguns objecto de processos judiciais) detida pelos primeiros, sendo os empréstimos vendidos identificados em anexo (ficheiro electrónico, considerado parte integrante do contrato, contendo os dados relativos aos empréstimos objecto da alienação), clausulado que se reporta a tudo o necessário ao estabelecimento da lex contractus de um tal negócio (desde a densificação do significado e alcance de determinados termos – as ‘definições’ –, passando pelo estabelecimento de regras para a interpreteção e elaboração, o clausulado relativo ao endosso da carteira de empréstimos, aos actos a ser efectuados pelos vendedores e pelo comprador em cumprimento do contrato, as cláusulas relativas ao direito de recompra de empréstimos por parte dos vendedores, as cláusulas das garantias das partes e do incumprimento das mesmas pelos vendedores, cláusula de confidencialidade, determinação da lei aplicável e cláusulas relativas à resolução de litígios), acompanhado dos respectivos anexos (atinentes às garantias dos vendedores, do comprador, da identificação dos empréstimos alienados, dos rascunhos da notificação da cessão de créditos e dos modelos de relatório de dados de cobrança).

Nenhum elemento objectivo suscita dúvidas sobre a autenticidade do documento nem muito menos sobre a veracidade do vínculo negocial estabelecido entre as partes, não se mostrando minimamente consistentes nem racionalmente fundadas as dúvidas e objecções suscitadas pela embargante.

Observa-se que o crédito exequendo se mostra identificado no anexo destinado à identificação dos créditos cedidos através do número do contrato o qual está também identificado na carta remetida à embargante a comunicar a cessão de créditos e que a mesma não nega que recebeu.

Do exposto resulta que os elementos probatórios permitem concluir, com a probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso e às regras da experiência), pela veracidade do facto impugnado pela embargante ou seja, pela celebração do alegado contrato de cessão de créditos

Vejamos,

Tem-se por perfeitamente correcta e suficiente a motivação que antecede, para sustentar a prova da cessão do crédito, na senda, aliás, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.01.2023, acessível na base de dados da dgsi, o qual versou situação perfeitamente idêntica.

Ora, atentando-se em que não foi produzido qualquer outro elemento probatório a propósito da matéria da cessão, para além da tradução certificada do contrato que a documenta e da identificação do crédito exequendo como cedido, nos termos documentados nos autos principais, os da execução, acedidos, a prova apenas depende da “valia intrínseca do documento para demonstrar a realidade do facto (da celebração do contrato), atendendo às circunstâncias do caso e à regras da experiência[1].

Sem prejuízo da proficiência da fundamentação acima transcrita, sempre se dirá, no que tange à “dúvida” em sede de alegações reiterada, que:

- a mais de o crédito exequendo se mostrar identificado no anexo destinado à identificação dos créditos cedidos através do número da operação/conta, no campo destinado ao número de conta, assim se identificando o crédito exequendo com um dos créditos objecto da cessão; uma vez que dos documentos juntos aos autos principais pela exequente é possível verificar que o Anexo I corresponde à base de dados do contrato que sustenta a operação de cessão, denominada “Projecto Nata”, que foi compilada em formato digital por meio de CD-ROM. Dos aludidos documentos é possível extrair que os elementos de identificação da Recorrente em tudo coincidem com o conteúdo constante na linha 78818 do aludido anexo, dados estes que também correspondem aos da carta de interpelação…

Um outro dado de facto revela, de acordo com juízos de normalidade e regras da experiência, a materialidade da cessão do crédito exequendo, em termos que afastam manifestamente o risco de nova execução a que alude a recorrente… Assim, decisivamente, a entrega/transmissão e posse da livrança (original) mesma pela exequente…

Na verdade, não apenas a identificação do crédito exequendo como cedido se pode alcançar dos termos da página do Anexo ao contrato junta aos autos, não suscitando perplexidade de maior a não assinatura digital daquele, atenta a presuntiva extensão ou dimensão do mesmo, como, de forma não escamoteável, a entrega à cessionária exequente do título de crédito exequendo e da totalidade dos elementos necessários ao seu preenchimento (como de outro modo poderia a livrança tê-lo sido, como admitido) justifica a inferência necessária (que a “montagem” pelo Ilustre Mandatário não infirma minimamente) pela transmissão do preciso crédito exequendo.

A entrega ou transmissão da livrança e demais elementos do crédito serve de substrato (para além da prova directa da cessão, como já caracterizada) ao juízo de inferência, de dedução/indução [sobre a controvérsia ainda existente sobre o tipo de operação mental ou argumentação subjacente à prova indiciária, se dedutivo ou indutivo, cfr., v.g., Nueva Teoria de La Prueba, Bogotá, 1997, págs. 58-59 (o qual conclui que na maioria dos casos a inferência indiciária é uma inferência analógica, isto é, uma dedução, embora apoiada numa inferência indutiva prévia) e Adalberto Camargo Aranha, Da Prova no Processo Penal, 4ª ed., S. Paulo, 1996, págs. 183-184], ajustando-se, de acordo com as regras da lógica e os princípios da experiência, à transmissão do crédito pela cessão cujo contrato foi junto;  de modo que possível ultrapassar o estágio da dúvida ou possibilidade simples, para uma sede de probabilidade qualificada, que vem a ser o da certeza judiciária.

As chamadas ilações ou presunções da vida radicam em o “juiz valendo-se de certo facto e de regras de experiência concluir que aquele denuncia a existência de um outro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência da vida, da qual resulte que um facto é consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra de experiência, ou se se quiser, vale-se de uma prova de primeira aparência”[2].

Podemos pois afirmar que a chamada presunção judicial é a ilação que o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido – cfr. Art.º 349 do Código Civil -.

Ora, na situação decidenda, os factos que vêm de destacar-se são “significantes” do ponto de vista da corroboração periférica ou indiciária, sendo ademais concordantes com a prova directa, em termos de ter sido inevitável ultrapassar a dúvida séria quanto à transmissão do crédito.

Temos por certo que "não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes, equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano" (Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil - Conceito e Princípios Gerais (À Luz do Código Revisto), Coimbra Editora, 1996, pag. 160), bastando que assente num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança, que dê - em consciência - ao julgador, garantias de que os factos terão ocorrido de certa forma, fora de dúvida razoável, o que, no caso concreto, com a prova produzida, com a seriedade intelectual que se exige, não cremos ser possível levar a dar como assente outra factualidade e apurar outra verdade.

ii.

Provado o contrato de cessão, integrando no seu objecto o crédito da executada/embargante/recorrente, demonstrada está a legitimidade da exequente.

Apesar de no título dado à execução (a livrança) não figurar como credor (art. 53º, nº 1 do CPC), certo é que a exequente logo alegou no requerimento executivo a ocorrência de fenómeno sucessório, inter vivos, no lado activo da obrigação exequenda, através do qual tal posição activa para si foi transmitida, assim justificando a sua legitimidade (art. 54º do CPC) – alegou que, por contrato de cessão de créditos, o credor (o mutuante) lhe transmitiu o crédito que detinha sobre os mutuários.

Citando, data venia, o referido Acórdão da Relação do Porto, «Havendo sucessão, entre vivos, na titularidade da obrigação exequenda, entre o momento da formação do título e o da propositura da acção executiva, devem tomar a posição de parte, como exequentes e executados, os sucessores das pessoas que figuram no título como credores ou devedores[3] - devendo por isso deduzir-se no requerimento inicial da execução os factos constitutivos da sucessão[4] (como no caso aconteceu).

Demonstrado que o exequente embargado sucedeu (por acto inter vivos – contrato de cessão de créditos) ao credor originário na titularidade activa da obrigação exequenda, tem de reconhecer-se a sua legitimidade activa – sucedeu (por acto inter vivos) a quem no título dado à execução figura como credor.

Transferência do lado activo da obrigação, no estádio de desenvolvimento em que se encontrava à data do contrato (…).

Entendimento que vem sendo observado pela jurisprudência – a cessão de créditos (contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do credor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, pois só ocorre a modificação subjectiva operada pela transferência do lado activo da relação obrigacional) pode ser levada ao conhecimento do devedor por qualquer meio, inclusivamente pela citação do devedor cedido para a acção executiva[5]; ou seja, na cessão de créditos não é imprescindível o consenso do contraente originário cedido, bastando a notificação aludida no art. 583º, nº 1 do CC, que pode ser feita através da citação para a acção que contra o devedor proponha o credor-cessionário[6] (ou, como no caso, pode ser feita através da citação para a execução que o credor-cessionário proponha contra os devedores em vista da realização coerciva do crédito cedido).”[7]~

Resulta do exposto que, face à cessão de créditos, a exequente embargada tem a qualidade de titular activa da obrigação exequenda – é, pois, parte legítima (lado activo) para a execução.

E em nada altera o que vem de dizer-se o facto de estar em causa, como título exequendo uma livrança…

Às livranças são aplicáveis as disposições relativas às letras, nomeadamente o artigo 11° da LULL, por força do seu artigo 77°.

As formas de transmissão destas vêm assim reguladas no artigo 11° a 20° da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.

Estabelece o artigo 11º na parte que agora interessa considerar: Toda a letra de câmbio, mesmo que não envolva expressamente a cláusula à ordem, é transmissível por via de endosso.

Quando o sacador tiver inserido na letra as palavras “não à ordem”, ou uma expressão equivalente, a letra só é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.

O endosso é uma declaração aposta no verso da livrança, pela qual o seu portador a transfere para outrem. É este o modo normal de transmissão de letras e livranças e, consequentemente, do crédito nelas representado. Mas, para o efeito, não é necessário que das letras e livranças conste a expressão “à ordem” ou equivalente. Se nada constar da livrança ela é transmissível pela via do endosso.

Mas se tiverem sido inseridas na letra ou livrança as palavras “não à ordem”, ou uma expressão equivalente, aquelas só são transmissíveis pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.

Ora, quando se considere o original da livrança exequenda, como constante dos autos principais, dela consta expressamente a cláusula NÃO À ORDEM….

No caso sub judice, pois, sequer poderia ser transmitida por endosso, tendo de sê-lo, como foi, por cessão.

Em conclusão, a letra e a livrança não podem ser endossadas se tiverem inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente, mas podem ser livremente transmitidas pela forma e com os efeitos duma cessão de créditos. Assim, Miguel J. A. Pupo Correia, Direito Comercial – Direito da Empresa, 10ª ed., pág. 481 a 483 e Carolina Cunha, Letras e Livranças – Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, pág. 77 a 84.

Mesmo que não existisse uma tal cláusula, nada justifica que a livrança não possa ser transmitida pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos. Na verdade, o endosso é apenas um dos meios de transmissão das letras e livranças.  Com efeito, as letras ou livranças podem ser transmitidas, para além do endosso, por exemplo, por acto entre vivos, com os efeitos de uma normal cessão de créditos, ou por sucessão mortis causa (neste caso transmitem-se aos herdeiros quer os títulos quer o crédito que eles encerram). Portanto, em qualquer caso, a livrança pode circular sob a forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.

Na situação decidenda, vista a aposição daquela cláusula proibitiva do endosso, apenas poderia circular sob a forma e com os efeitos de uma cessão, como a demonstrada.

A cessão é um negócio jurídico celebrado entre cedente e cessionário ao passo que o endosso é uma declaração unilateral prestada pelo endossante. Feita esta declaração, e entregue o título, opera-se desde logo a transferência dos direitos a ela inerentes e é desde logo eficaz, mesmo em relação a terceiros. E então, o portador é desde logo parte legítima em execução a intentar contra os obrigados cambiários, como se do originário portador se tratasse.

Pelo contrário, na cessão de créditos, tal eficácia está sujeitas às regras normais destes contratos.

Neste último caso já não se verifica a transmissão de direitos cambiários, ao contrário do que sucede com o endosso, pelo qual se transmitem todos os direitos emergentes da letra, ou seja, todos os direitos cambiários nela incorporados.

A cessão de créditos está regulamentada nos artºs. 577º e seg. do CC e tem efeitos diferentes do endosso.

Na cessão de créditos, o cedente pode não ficar responsabilizado perante o cessionário pela satisfação do crédito pelo devedor, a não ser que a cessão preencha a figura da “datio pro solvendo” (artº. 840º do CC).

Por outro lado, o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, o que não acontece na transmissão por endosso (artº 585º do CC).

A cessão de créditos, na falta de convenção em contrário, importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido.

A questão está agora em saber quais as consequências jurídicas dessa transmissão na presente execução, e, nomeadamente, interessa considerar se a livrança deixa de valer como título executivo.

Como dissemos, a livrança entrou na posse do exequente através de uma cessão ordinária de créditos. Ora, como já dissemos, a livrança também pode circular pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos, ainda que dela não conste a expressão “não à ordem” ou semelhante (a qual, na situação decidenda, até existe, vedando o endosso como forma de transmissão).

O que foi objecto de cessão foi a posição contratual da recorrente no contrato de mútuo para cuja garantia de cumprimento foi subscrita a livrança em causa nos presentes autos. É esta suficiente para tornar a recorrida parte legítima na execução em virtude dos princípios da autonomia, literalidade e abstracção. E esta é realmente a grande questão, “ao lado” da que vem convocada no recurso, embora consentida a consideração jurídica correspondente, já que na qualificação ou enquadramento da situação permanece o tribunal livre…

Ora, como adquirido nos autos, o credor originário e portador da livrança exequenda cedeu à exequente a posição que detinha em vários contratos de mútuo, nomeadamente no celebrado com a executada, transmitindo a esta todos os direitos e deveres deles resultantes.

Como se viu, tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda… E acrescenta-se que no próprio requerimento para a execução deduzirá o exequente os factos constitutivos da sucessão (53º, n.º 1 e 54º, nº 1 do CPC).

Foi o que fez a ora apelada.

Deste modo temos de considerar que o exequente é parte legítima, não obstante não figurar na livrança como credor. Esta mantém-se como título executivo (art.º 703º, nº 1, alínea c) do CPC). Neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 12.12.2006, acessível na base de dados da dgsi.

A livrança foi subscrita pelos executados como caução/garantia do pagamento da importância em dívida por força do contrato de mútuo oneroso celebrado entre aqueles e o Banco cedente.

As partes subscreveram a livrança como caução do pagamento da dívida resultante do mútuo oneroso, pretendendo que a livrança acompanhasse como garantia o crédito resultante do mútuo.

As partes não pretendiam que a livrança se autonomizasse da dívida caucionada, pelo que inscreveram na mesma as palavras “não à ordem”, sendo que o credor transmitiu, como devia, a livrança caução com a cessão do crédito caucionado.

No caso dos autos, o negócio subjacente à subscrição da livrança foi o mútuo oneroso, que não vem posto em causa.

A convenção executiva foi inserida neste negócio subjacente, onde ficou convencionada a subscrição pelos mutuários de livrança, como se infere. Esta convenção executiva é vinculativa e faz incorrer em responsabilidade civil contratual quem a não cumprir[8]

Não se entende a oposição da executada, pois a transmissão da livrança como acessório de garantia do pagamento do crédito cedido só a beneficia, em contraponto com o endosso da mesma livrança, de resto vedado.

A transmissão da livrança juntamente com o crédito que a mesma cauciona é válida e legalmente prevista, em nada prejudicando o devedor, antes acautelando os seus direitos de defesa, pelo que a exequente é legítima portadora da livrança, legitimação material a suprir a legitimação formal, já que não consta do próprio título, e pode accionar os seus subscritores pelo seu não pagamento.

Assim, nos termos expostos, a oposição à execução é improcedente, razão pela qual se confirma a decisão recorrida, negando a apelação.

III.

Tudo visto, decide-se negar provimento ao recurso interposto pela executada/embargante, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente/embargante.

Notifique.



Porto, 07 de Março de 2024

Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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Isabel Peixoto Pereira
Paulo Duarte Teixeira
Ana Vieira
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[1] A expressão, feliz, é do referenciado Acórdão desta Relação, que, lugar para o qual nos remetemos e que mais ressalta da decisão recorrida, mais se reporta à força probatória de documento particular, como o apreciando.
[2] Vaz Serra BMJ 110/190.
[3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 4ª Edição, p. 131.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), p. 132, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I (Parte Geral e Processo de Declaração), 2018, p. 86 e José Lebre de Freitas, A Ação Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª Edição, pp. 144 e 145.
[5] Acórdão do STJ de 7/09/2021 (Maria Clara Sottomayor) - que cita concordante jurisprudência do STJ e das Relações -, no sítio www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do STJ de 3/10/2017 (Hélder Roque), no sítio www.dgsi.pt.
[7] Na situação decidenda, não vem também problematizada a questão da comunicação/notificação da cessão.
[8] Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, vol.I, pag. 312 a 315.