Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1359/11.0TVLSB.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A lei exige que o juiz discrimine os factos que considera provados (artigo 659.º, n.º 2, CPC), para além de, noutro plano, impor um exame crítico das provas (artigo 659.º, n.º 3, CPC).
II - Esta exigência é um importante corolário do princípio do Estado de Direito e do papel criador e aplicador do direito desempenhado pelos tribunais.
III - A garantia de que todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas tem, entre nós, assento constitucional (artigo 205.º, n.º 1 CRP), está configurada nos artigos 158.º e 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC e consta do artigo 6.º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, como uma componente essencial da garantia de um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4.º CRP).
IV – Esta obrigação está orientada para permitir um controlo interno (partes e instâncias de recurso) do modo como o juiz exerceu os seus poderes.
V - Omitindo-se, em termos suficientes e adequados a explicitação dos factos da causa, inviabiliza o controle interno da decisão, a reponderação a esse respeito do juízo de facto, para além de afectar as vias de defesa das partes.
VI - A ausência de decisão sobre a matéria de facto não pode deixar de se entender como a situação - limite da decisão deficiente a que alude o n.º 4 do artigo 712.º do CPC.
(ISM).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: A…. instaurou procedimento cautelar comum contra G… Incorporated, pedindo a condenação da requerida a encerrar o blogue htttp://www.....blogspot.com.
Alegou, em síntese, que no referido blogue são relatadas situações de má prática profissional do requerente como médico oftalmologista e de falta de ética.
A requerida deduziu oposição.
Foi realizado um convite à dedução de um incidente de intervenção principal provocado do titular do blogue, ao qual o requerente não respondeu.
Findo os articulados, procedeu-se ao conhecimento antecipado do mérito do procedimento, no sentido do indeferimento da providência, sob a invocação de que «o processo contém todos os elementos de facto que possibilitam a decisão – artigo 386.º do CPC».
Inconformado interpôs o requerente competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
«1. O Recorrente requereu procedimento cautelar comum, nos termos dos artigos 381.° e ss. do CPC pedindo a condenação da ora Recorrida, Google Inc., a encerrar o blogue www.....bloqspot.com, uma vez que deste constam gravíssimas e falsas imputações e juízos de valor atentatórios do bom-nome, da imagem, da reputação e honra do Recorrente, e ainda colocando em causa a sua competência e profissionalismo.
2. Vem o presente recurso de Apelação interposto da decisão do Exmo. Sr. Juiz a quo que determinou o não decretamento da providência cautelar requerida.
3. O Recorrente visa, com a providência cautelar, evitar a continuação lesão dos seus direitos fundamentais, designadamente o direito ao bom-nome, à imagem, à reputação e honra do Recorrente.
4. É manifesto que a existência de um blogue que contém a descrição de factos falsos e que encerra juízos de valor sobre a conduta profissional do Recorrente altamente difamatórios é atentatório e violador do bom-nome, honra e imagem profissional deste, e como tal só pode causar ao mesmo um enorme e dificilmente reparável prejuízo moral, mas também patrimonial.
5. Motivo pelo qual, não se pode admitir que tal prejuízo se prolongue no tempo até à prolação da decisão referente à acção principal.
6. É evidente que se verifica a existência/aparência do direito a acautelar , pois estão em causa os direitos de personalidade do Recorrente, nomeadamente o seu direito ao bom-nome, à sua reputação, à sua imagem, e à sua honra pessoal e profissional.
7. Ademais, os efeitos da violação dos direitos de personalidade do Recorrente são ainda mais gravosos, por ser uma figura conceituada e reconhecida no seu meio profissional e pelo meio escolhido para a sua divulgação (a Internet) ser/poder ser acedido por milhares de pessoas.
8. O que significa que a ofensa ao bom-nome e à honra do Recorrente é, neste momento constante, e assim se manterá enquanto tal blogue se mantiver em funcionamento.
9. Ademais, é evidente que quem aceder ao blogue ficará sempre na dúvida sobre o carácter, a competência e a conduta profissional do Recorrente.
10. Ademais , a providência cautelar comum, bem como todas as providências cautelares, requerem apenas, quanto ao seu grau de prova, uma simples demonstração de que a situação jurídica alegada pelo Recorrente – a existência do direito invocado é verosímil, sendo, por isso, suficiente a aparência desse direito, ou seja, basta que haja fumus boni júris.
11. A providência cautelar não exige uma prova stricto sensu, mas tão-só uma prova sumária do direito ameaçado.
12. Sendo assim, estando perante uma ofensa ao bom-nome, à honra, à imagem e à reputação do Recorrente perpetrada através de tal blogue deveria a decisão recorrida ter decretado a providência cautelar, uma vez que se encontram reunidos os pressupostos para o seu decretamento, ao assim não fazer violou o Tribunal Recorrido o artigo 381.º do CPC.
13. È um facto que não é a recorrida a autora dos conteúdos dos blogues, in casu do blogue www.....blogspot.com. todavia a Recorrida na qualidade de mera intermediária presta nessa qualidade um serviço de alojamento de conteúdos, nomeadamente blogues.
14. Tais conteúdos podem ser criados indiscriminadamente, e inclusivamente com perfis falsos, o que origina que qualquer indivíduo, se assim o entender, possa criar um blogue sobre os mais diversos temas.
15. A responsabilidade do conteúdo dos blogues é do seu autor, isso é certo, todavia a partir do momento em que a Recorrida tem conhecimento do conteúdo do blogue em causa nos presentes autos e mesmo assim decide nada fazer em relação ao mesmo está como que a compactuar com o autor do blogue no que concerne ao atentado dos direitos fundamentais do Recorrente.
16. Determinam os artigos 16 e ss do DL 7/2004, de 7 de Janeiro que a Recorrida tem legitimidade para remover ou impossibilitar o acesso aos blogues cuja ilicitude for manifesta.
17. Sendo certo que as afirmações contidas no blogue enquanto atentatórias dos direitos fundamentais do Recorrente são ilícitas, e que como tal justificam por parte da Recorrida a sua remoção.
18. A Recorrida é a única entidade que pode satisfazer a pretensão do Requerente, porquanto é impossível para o próprio identificar o autor do blogue em causa. Quem poderia por certo identificar o autor blogue e assim provocar a intervenção provocada do mesmo é a Recorrida Google Inc. e nunca o Recorrente.
19. Ademais, tendo em conta o caso concreto, bem como o princípio da proporcionalidade mos termos do artigo 18.º da CRP entende o Recorrente que os direitos por si invocados se sobrepõem ao direito fundamental de expressão e informação do titular do blogue.
20. O direito à liberdade de expressão não pode ser exercido sem limites, até porque há limites ao direito.
21. A tutela civil do direito à honra, ao bom nome e reputação é assegurada pelos artigos 70.º, 483.º e 484.º do CC, impondo um dever geral de respeito e de abstenção de ofensas ou ameaças de ofensas à honra de cada pessoa, estando especialmente contemplada neste último artigo a ilicitude decorrente da ofensa ao crédito ou bom nome de qualquer pessoa singular ou colectiva.
22. No caso sub Júdice, o Recorrente , na medida em que é um reputado médico especialista é óbvio que se encontra mais exposto que o comum dos cidadãos.
23. Mas esta maior exposição à crítica não significa que o direito à honra e reputação seja mais vulnerável e que possa dessa forma ser gratuitamente atingido.
24. Na situação em análise, sabe-se que a informação veiculada através da Internet, atacando o mérito profissional do Recorrente, transmite uma visão distorcida dos factos e subjazem-lhe juízos altamente atentatórios da integridade, coerência e rectidão de carácter do autor.
25. É um facto que o interesse público da divulgação, e nos concretos termos em que foi feita, não se pode sobrepor aos direitos violados do Recorrente.
26. Pelo que, no que diz respeito ao confronto entre estes direitos fundamentais, o direito à honra, ao bom-nome e à reputação devem ser salvaguardados, em detrimento da liberdade de expressão do titular do blogue.
27. Violou desta forma o art.° 381.° do CPC que estabelece os requisitos para a concessão da providência cautelar, bem como violou o Tribunal recorrido o art.° 70.° do CC, uma vez que não confere ao Recorrente a adequada protecção dos seus direitos de personalidade.
Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência deverão V. Exas. revogar a decisão recorrida e proceder à sua substituição por outra que julgue a providência cautelar requerida procedente.
A Recorrida apresentou contra-alegações nas quais pugna pela manutenção do julgado.
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Não foram fixados os factos pertinentes à causa.
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Como é sabido, o poder de, por regra, em nome do princípio da economia processual, o juiz jugular a acção logo à nascença, no liminar, foi suprimido com a reforma de 95/96 (artigo 234.º. CPC).
Casos há, porém, em que a intervenção liminar do juiz, pode ocorrer.
De entre eles, nos procedimentos cautelares (artigo 234.º, n.º 4, alínea b), CPC).
Então o juiz, em vez de ordenar a citação, pode indeferir liminarmente a petição inicial, designadamente com fundamento no pedido ser manifestamente improcedente (artigo 234.º-A, n.º 1, CPC).
Estamos perante um procedimento cautelar comum, em que não foi dispensado o contraditório prévio da requerida.
Deduzida por esta oposição, foi julgada antecipadamente a «lide cautelar», invocando-se para tanto o disposto no artigo 386.º CPC.
Este normativo, sob a epígrafe «audiência final», preceitua no seu n.º 1: «Findo o prazo da oposição, quando o requerido seja ouvido [como no caso foi] procede-se, quando necessário, à produção das provas requeridas ou oficiosamente determinadas pelo juiz».
Por regra, na verdade, findo os articulados, há necessidade de produzir prova, designadamente testemunhal, aplicando-se nessas hipóteses o disposto no artigo 304.º CPC, ex artigo 384.º.
Mas tal pode, excepcionalmente, não acontecer.
Diz a respeito Lebre de Freitas: «Constituindo ofensa do direito à prova, emanação do princípio constitucional do contraditório (…) a recusa, a menos que para tal seja inidóneo, da produção dum meio oferecido para prova de um facto que não deva considerar-se já provado (…), o preceito há-de ser entendido no sentido de apenas se aplicar quando, tido em conta que ao decretamento da providência basta a probabilidade séria da existência do direito e o fundamento suficiente do perigo de lesão (…) se deva ter já por assente a verificação destes requisitos, por prova documental, por confissão ou admissão insusceptível de ser destruída pela produção dos meios de prova propostos pelo requerido ou oficiosamente ordenados pelo juiz ou, ao invés, se devam ter já por assentes factos contrários aqueles que fundem a providência, por prova documental ou por confissão, insusceptível de ser destruída pela produção dos meios de prova propostos pelo requerente ou oficiosamente ordenados pelo juiz. Assim, por exemplo, será desnecessária a inquirição das testemunhas oferecidas pelo requerente em procedimento de arresto se os factos constitutivos do crédito estiverem provados por documento autêntico e o estado da insolvência do requerido tiver sido verificado em recente decisão judicial, de que é dada igualmente prova » (Código de Processo Civil Anotado, Vol 2.º Coimbra Editora, Coimbra, 2001:30/31).
No caso sujeito, o primeiro grau limitou-se a convocar o artigo 386.º do CPC, sob a alegação, como vimos, de que «o processo contém todos os elementos de facto que possibilitam a decisão».
Elementos de facto cuja enunciação foi totalmente omitida, tendo sido proferida sentença final, uma peça que bem melhor se configura como um despacho liminar de indeferimento posterior e como tal, perante o princípio preclusivo que, bem ou mal, enforma o nosso sistema, queda intempestivo.
Sabido é que a sentença tem uma estrutura tripartida. Na verdade, é constituída por um relatório, pelos fundamentos e pela decisão.
Cingindo-nos aos fundamentos diremos que a lei exige que o juiz discrimine os factos que considera provados (artigo 659.º, n.º 2, CPC), para além de, noutro plano, impor um exame crítico das provas (artigo 659.º, n.º 3, CPC).
Esta exigência deve ser adequadamente compreendida.
Ela é um importante corolário do princípio do Estado de Direito e do papel criador e aplicador do direito desempenhado pelos tribunais.
A garantia de que todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas tem, entre nós, assento constitucional (artigo 205.º, n.º 1 CRP), está configurada nos artigos 158.º e 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC e consta do artigo 6.º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem, como uma componente essencial da garantia de um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4.º CRP).
Costuma afirmar-se que esta obrigação está orientada para permitir um controlo interno (partes e instâncias de recurso) do modo como o juiz exerceu os seus poderes.
Todavia, há uma outra razão, tão ou mais importante do que a referida.
Como refere Michele Taruffo «na motivação da sentença o juiz deve desenvolver uma argumentação justificativa da qual devem resultar as «boas razões» que fazem aceitar razoavelmente a decisão, numa base objectiva, não só para as partes, mas também – num plano mais geral – para a opinião pública. Na motivação, o juiz deve demonstrar a consistência dos vários aspectos da decisão, que vão desde a determinação da verdade dos factos na base das provas, até à correcta interpretação e aplicação da norma que se assume como critério do juízo. Da motivação deve resultar particularmente que a decisão foi tomada, em todos os seus aspectos, de facto e de direito, de maneira racional, seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração, e, portanto, de forma imparcial» ( Páginas sobre justicia civil, Marcial Pons, 2009: 53).
Ou dito de outro modo: «a decisão não deve ser só justa, legal e razoável em si mesma: o juiz está obrigado a demonstrar que o seu raciocínio é justo e legal, e isto só pode fazer-se emitindo opiniões racionais que revelem as premissas e inferências que podem ser aduzidas como bons e aceitáveis fundamentos da decisão» (op. cit.: 36/37).
No caso ocorrente, o primeiro grau não discriminou, pura e simplesmente, os factos que considerava provados.
O que o primeiro grau se limitou a fazer foi uma análise de mérito, sem suporte factual, e sem, como se disse, discriminar devidamente os pertinentes factos onde deveria ter feito radicar o conhecimento antecipado da lide.
Omitiu-se, em termos suficientes e adequados a explicitação dos factos da causa, o que inviabiliza o controle interno da decisão, a reponderação a esse respeito do juízo de facto, para além de afectar as vias de defesa das partes.
Como se refere no Ac. RL, de 21.05.2009, www.dgsi.pt, «a ausência de decisão sobre a matéria de facto não pode deixar de se entender como a situação - limite da decisão deficiente a que alude o n.º 4 do artigo 712.º do CPC».
Impõe-se, pois, anular a decisão, ficando prejudicada a apreciação das questões suscitadas (cfr. Ac. RE, de 12.11.92, BMJ 421: 520; Ac. RE, de 03.12.92, BMJ 422: 452; Ac. RP, de 14.03.95, BMJ 445: 620; Ac. RL, de 01.07.99, CJ, T 4: 90).
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Pelo exposto, acordamos em anular o julgamento, devendo o primeiro grau,
se considerar reunidos os pressupostos do artigo 386.º, n.º 1, do CPC, emitir sentença com cabal discriminação dos factos que considerar provados.
Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 21 de Março de 2012

Luís Correia de Mendonça
Amélia Ameixoeira
António Ferreira de Almeida