Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
184/08.0TCLRS.L1-2
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: USUCAPIÃO
POSSE
DOMÍNIO PRIVADO DO ESTADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: I A usucapião, como deflui do artigo 1287º do CCivil, é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, além do mais e no que à economia do recurso diz respeito, e tem por base a posse mantida durante certo lapso de tempo.
II Tal significa que só as coisas que são possuídas, em princípio, serão susceptíveis de serem usucapidas, pois os detentores e/ou possuidores precários não podem adquirir para si por usucapião o direito possuído, a não ser que haja inversão do título de posse, e neste caso, o tempo necessário para usucapir, começa a correr desde a data da inversão do título, artigo 1290º, do CCivil.
III A posse fundamento de usucapião tem de ser uma posse que recaia sobre a totalidade do bem, de onde não se exercendo o poder de facto sobre o prédio no seu todo, in casu, construção (casa de habitação) e terreno (onde a mesma se insere e logradouro)), não pode proceder a pretensão de aquisição, sendo certo que os actos materiais terão de ser contínuos e inequívocos, por forma a não oferecerem quaisquer dúvidas sobre o respectivo alcance e significado.
IV Se o prédio cuja propriedade se visa adquirir por usucapião está integrado no domínio privado do Estado, ou de uma pessoa colectiva de direito público, pois só estes bens públicos são susceptíveis de aquisição por usucapião, o prazo para o efeito é o que resultar da lei civil conjugada com o artigo 1º da Lei 54 de 16 de Julho de 1913 «as prescrições contra a Fazenda Nacional só se completam desde que, além dos prazos actualmente em vigor, tenha decorrido mais metade dos mesmos prazos.
V Todavia, não podem ser adquiridos por usucapião os bens integrados no domínio público do Estado ou das pessoas colectivas de direito público, porque a tal se opõe o artigo 202º, nº2 do CCivil.
VI Impende sobre o Autor o ónus de alegação e prova de que o bem cuja aquisição por usucapião é peticionada, se encontra no integrado no domínio privado do Estado, pois este elemento constitui facto constitutivo do direito que se arroga.
(APB)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I M I, intentou acção declarativa com processo ordinário contra INSTITUTO DA HABITAÇÃO E DA REABILITAÇÃO URBANA, I. P., pedindo:
a) Seja declarado que a Autora adquiriu, em 31 de Dezembro de 1979, a propriedade do prédio inscrito a seu favor no Serviço de Finanças (…), sob o artigo matricial urbano (…), da freguesia de (…), destinado a habitação, com o n.° 27 de polícia, sito na Rua A, Bairro CAR, (…), composto de casa de habitação de rés-do-chão, com cinco divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho e uma garagem, tendo uma superfície coberta de 100m2 e um logradouro de 340m2;
b) Seja declarado que tal aquisição de propriedade retroage à data do início da posse (31.Dez.1979).
Alegou, para o efeito, em substância, que adquiriu aquela casa e respectivo logradouro em 1979 a empresa do Grupo IGR, tendo pago o preço então ajustado, e que por dificuldades burocráticas várias, como a omissão da descrição do prédio na Conservatória do Registo Predial, não logrou registar a aquisição a seu favor, não obstante sempre ter actuado como única e exclusiva dona do prédio em apreço, usando-o e fruindo-o, com o seu agregado familiar, de forma pacífica, sem oposição de ninguém, à vista e com conhecimento de toda a gente e com inteira boa fé, designadamente com a convicção de que não está a lesar direito de terceiros.

O Réu deduziu defesa por impugnação, simples e motivada, e formulou pedido reconvencional, onde pediu a condenação da Autora a reconhecer a propriedade do Réu sobre a parcela de terreno ocupada pela Autora, uma vez que a mesma faz parte de um prédio rústico, originariamente com a área de 53.160 m2, que foi objecto de expropriação e entrou na posse administrativa do extinto Fundo de Fomento da Habitação, tendo sido englobado num prédio com a área total de 156.200m2, que se encontra registado a favor do IGAPHE, na 2ª Conservatória do Registo Predial de (…), e a restitui-la totalmente livre de pessoas e bens.

A final foi a acção julgada procedente, tendo-se declarado que a Autora adquiriu, em 31 de Dezembro de 1979, a propriedade do prédio inscrito a seu favor no Serviço de Finanças (…), sob o artigo matricial urbano (…), da freguesia de (…), destinado a habitação, com o n.° 27 de polícia, sito na Rua A, Bairro CAR, (…), composto de casa de habitação de rés-do-chão, com cinco divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho e uma garagem, tendo uma superfície coberta de 100m2 e um logradouro de 340m2, e julgado improcedente o pedido reconvencional do qual se absolveu a Autora.

Inconformado com esta sentença, recorreu o Réu, apresentando as seguintes conclusões:
- A sentença julgou provados os "factos" nela elencados sob os números 15., 19., 20. e 21. e que são os seguintes:
15) Desde 1979 e até hoje, a Autora tem usado e fruído a edificação (casa de habitação e respectivo logradouro identificado em A), como única e exclusiva proprietária (art 10º da Base Instrutória);
19) Sem oposição de ninguém (art. 15° da Base Instrutória);
20) E com a convicção de que não está a lesar o direito de terceiros (artigos 16º da Base Instrutória);
21) A entidade que vendeu à autora a casa e logradouro identificados em A) também actuava como dona desse Imóvel desde 1976, praticando os actos Inerentes a essa qualidade, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém (artigos 17º, 18º e 19º da Base Instrutória);
- Contudo, os factos que supra se transcreveram são meras conclusões de direito que resultarão ser ou não verdadeiras conforme a prova que seja feita sobre os factos materiais que as sustenta. São, assim insusceptíveis de sustentar qualquer decisão, pelo que deverão ser retiradas do elenco da matéria julgada provada, o que expressamente se requer.
- Ainda que não se entendesse nos termos supra expostos, sempre deveria ser alterada a resposta aos referidos "factos”, bem como aos factos elencados na sentença sob os nºs 13., 15., 19., 20. e 21.
Senão vejamos:
- Resulta como provado - ALÍNEA 13 DA SENTENÇA - que em 1979, tal casa – e respectivo logradouro – foi alienada à Autora, pelo construtor IGR, como representante da sociedade que a construíra.
- A resposta a tal questão, assenta, contudo, e apenas, nas declarações do referido I G que espontaneamente declarou ter "cedido" tal casa à Autora a um preço simbólico (sessão do dia 18.05.2010, entre as 10h56m13s e as 11h23 48, cujo depoimento está gravado em CD, de 00:00:00 a 00:27:34):
«(…) E pronto, essas casas ficaram lá, ficaram ocupadas com serviços administrativos, com armazém e com habitação de algumas pessoas.
Quando acabou a obra, ficaram e eu, enfim, dada a relação de amizade que tive com a Isabel, enfim, falei-lhe nisto, ela não, ela tinha necessidade de casa, não tinha casa na altura, e eu resolvi ceder-lhe a casa por uma módica quantia, na altura (...)»
- Ora, a compra e venda de imóveis é um negócio formal, cuja validade está dependente da celebração de escritura pública. In casu, não só não foi celebrada qualquer escritura, como a Autora expressamente confessou, como também não foi lavrado qualquer outro documento – ou pelo menos não foi junto aos autos — de onde resulte tal aquisição.
- Verifica-se assim que, ao julgar provado que o Sr. I G "vendeu" a casa às Autora a sentença sob recurso incorreu numa errónea apreciação da matéria de facto pelo que deverá ser alterada em conformidade com o exposto fazendo-se constar, apenas, que "Em 1979, tal casa foi cedida à autora, pelo referido I G, como representante da sociedade que a construíra;
- Foi julgado provado na ALÍNEA 15. DA SENTENÇA que "desde 1979 até hoje a Autora tem usado e fruído a edificação (casa de habitação) e respectivo logradouro como única e exclusiva proprietária.
- Ora, caso não se entendesse tratar-se de matéria de teor conclusivo, conforme supra se alegou, sempre a resposta deveria ser alterada. De facto, resulta das declarações da própria Autora que, quando comprou a casa ainda lá estava um operário que só saiu quando começaram as obras. E de acordo com o depoimento do seu companheiro de então, C A, (inquirido na sessão de 18-05-2010, entre as 12:09:05 e as 12:21:47, de 00:00:00 a 00/12:41) a casa só veio a ser habitada em finais de 1982, depois de ser instalada a linha telefónica, pois sendo médica não podia viver sem telefone: "Nós fomos para lá, julgo em 1979, e a casa... finalmente fomos viver para lá no fim de 82" (...)"Quando eu saí de lá, em 90, ela ainda lá ficou, mas por pouco tempo...(…) Uma das razões pela qual não pudemos habitara casa mais cedo é que não tinha rede telefónica" (...)
- Ou seja, em bom rigor, a autora e a sua família só passaram a usufruir da casa de forma pública a partir do momento que para lá foram residir em finais de 1982 e apenas a ocuparam até ao ano de 1990, data em que a Autora "cedeu"a casa a uma pessoa amiga.
- Deverá, assim, a matéria elencada sob o n.º 15 da sentença sob recurso ser alterada fazendo-se constar que a Autora usou e fruiu da casa desde 1982 a 1990, o que expressamente se requer;
- DA ALÍNEA 21. DOS FACTOS PROVADOS: "a entidade que vendeu à Autora a casa e o logradouro identificados em A) também actuava como dona desse imóvel desde 1976, praticando os actos inerentes a essa qualidade, à vista de toda a gente sem oposição de ninguém"
- A Ré também não se conforma com o supra referido "facto". O construtor I G (sessão do dia 18.052010, entre as 10h56m13s e as 11h23m48, depoimento gravado de 00:00:00 a 00:27:34) esclareceu que "nós instalámos os nossos escritórios e casas também para o guarda e para algumas pessoas que, enfim, trabalhavam nas obras e que residiam, havia conveniência em residirem no local por uma questão de proximidade e guarda das instalações, e assim nasceram essas casas". (...) E pronto, essas casas ficaram lá, ficaram ocupadas com serviços administrativos, com armazém e com habitação de algumas pessoas.
- Ora, não se provaram, nem foram alegados quaisquer factos de onde resulte que aquele praticasse quaisquer actos na qualidade de dono da casa. E o facto de as ter construído como apoio à obra, e de lá ter instalado serviços de apoio à obra não é compatível com a posse em nome próprio, pois que a instalação dos guardas e os serviços administrativos de apoio à obra implica, necessariamente, que estas casas, entre as quais a que foi ocupada pela Autora eram usadas no interesse da obra e portanto, do dono da obra.
- Ainda que não fosse totalmente retirada da matéria assente atento o seu teor manifestamente conclusivo, a matéria constante na alínea 21) da sentença sempre deveria ter como resposta, NÃO PROVADO.
- Por outro lado, a Ré não se conforma também com a resposta "não provado" dada aos quesitos 21., 22., 23., 24., 25., 26., 27. e 28. da BASE INSTRUTÓRIA e que são os seguintes:
21) A parcela de terreno ocupada pela Autora faz parte do prédio rústico identificado em F)?
22) 0 prédio identificado em F) veio a ser adquirido pelo Fundo de Fomento da Habitação em 1981?
23)…e foi englobado no prédio com a área total de 156.200 m2, que resultou da unificação dos vários prédios autónomos, expropriados para o mesmo fim: Quinta de P; Quinta de M; Quinta da C; e Quinta das P de F?
24) Dentro desta área global de terreno, numa área pertencente à antiga Quinta das P de F – uma parcela com 48.200m2, foi destinada para a construção de equipamento escolar?
25) Construída a escola Básica 2+3, esta apenas ocupou a área de 35.100m2?
26)…e numa faixa de terreno exterior à mesma, que se destinava à criação de espaços verdes (jardim público),?...
27)…surgiram umas habitações de construção não licenciada, por transformação dos estaleiros de obra do empreiteiro que ali estavam instalados?
28)…a casa ocupada pela Autora é precisamente uma das casas de construção não licenciada, que resultou da transformação dos estaleiros de obra do empreiteiro?
- Ora, o Autor é dono e legítimo proprietário do terreno descrito nos artigos 21º a 23º da Base Instrutória onde se encontra construída a casa ocupada peia Autora, e tal terreno encontra-se inscrito a favor do seu antecessor IGAPHE (cfr. ficha n.º (…) da 2ª Conservatória do Registo Predial de (…)). Tal terreno consta, aliás da lista de imóveis alvo de transferência patrimonial do IGAPHE para o IHRU, cfr. Despacho 2131 de 2008 de 22 de Janeiro, anexo 4, (página 3029), publicado em Diário da República.
- A prova de tal facto resulta ainda do depoimento da testemunha A C C, (sessão de julgamento de dia 16-06-2010) que atestou ter intervindo no processo de expropriação e dos documentos juntos aos autos com a contestação com os quais, esta testemunha, foi confrontado;
- Acresce que, a Ré juntou aos autos uma cópia de uma carta de interpelação (ofício 1976 de 12/05/1980) remetida ao Sr. I G a pedir esclarecimentos sobre as casas que construíra no seu terreno e que demonstram que o IGAPHE agia como proprietário daquele terreno.
- As testemunhas da Ré atestaram que a mesma tinha sido remetida e que aquele era o procedimento normal, ao tempo (guardar a cópia a papel químico) pelo que não existia comprovativo de remessa pelo correio.
- Deverá, assim, ser alterada a resposta à matéria de facto julgando-se provados os factos constantes nas alíneas 21° a 23º da Base Instrutóría.
- Por outro lado, resulta do depoimento de parte da Autora que: (...) a escola foi construída pela mesma empresa e as 4 casas foram construídas como estaleiro da obra do bairro da CAR que era um bairro de apoio aos retornados, e o empresa que construiu o bairro e que construiu o escola, naquele canto do terreno, digamos construiu 4 casos que serviram de estaleiro obra, onde estavam alojados os operários, o apoio à obra, operários e julgo que instrumentos e, em 79… . Ou seja, que a casa por si ocupada foi construída num terreno sobrante da construção da Escola que ali foi instalada, (ainda que não a sua identificação como "Escola Básica 2+3")« O mesmo resulta do depoimento do próprio construtor, I G (que supra transcrevemos e aqui damos por reproduzido) e do depoimento da testemunha A C C, (ouvido na sessão de julgamento de dia 16-06-2010)
- Verifica-se, assim, que ao julgar não provados tais factos a sentença sob recurso procedeu a uma errada avaliação da prova produzida nos autos pelo que deverá tal decisão ser revogada e substituída por outra que julgue provados os quesitos 24., 25., 27. e 28. da Base Instrutória e serem os mesmos aditados ao elenco da matéria julgada provada nos seguintes termos:
24. Dentro desta área global de terreno, uma parcela foi destinada para a construção de equipamento escolar;
25. Construída a Escola, esta apenas ocupou uma parte da área que lhe estava destinada;
26. ... e numa faixa de terreno exterior à mesma, surgiram umas habitações de construção não licenciada, por transformação dos estaleiros de obra do empreiteiro que ali estavam instalados;
27. …a casa ocupada pela Autora é precisamente uma das casas de construção não licenciada, que resultou da transformação dos estaleiros de obra do empreiteiro?
- Não agiu de boa-fé o construtor que, em vez de demolir, procedeu à entrega à Autora, de uma casa instalada em terreno, confessadamente, alheio;
- Não agiu de boa fé a Autora, médica, que sabia estar a adquirir, por negócio nulo, e preço inferior ao de mercado um imóvel instalado num terreno alheio;
- Nos termos do disposto no art. 874.º do Código Civil o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública;
- A venda é nula nos termos do disposto no art. 892.º do C Civil, porquanto, quer o terreno quer o estaleiro da obra pertenciam ao dono da obra, tanto mais que, e conforme dispõe o n.º 2 do art.º 1259º do C.Civil, o título não se presume e a autora não juntou qualquer comprovativo de aquisição;
- Ao concluir que quer o construtor, quer a Autora exerceram a posse em boa-fé, a sentença sob recurso procedeu a uma errónea interpretação dos factos e violou, claramente, o disposto nos artigos 874.º, 892.º, 1258.º, 1259.º 126º.º do Código Civil;
- "A sucessão na posse só pode ocorrer quando o elo transmitente seja cognoscível, na juridicidade como título capacitante da respectiva transmissão. Dando-se como provada a posse (o que aqui nem é o caso) por tempo bastante para adquirir por usucapião, não pode esta ocorrer se no tempo se conta a sucessão baseada num contrato de compra e venda nulo»;
- De 1979 a 2008 decorreram 29 anos;
- Nos termos do disposto n.º 1 da Lei 54 de 16 de Julho de 1913, sendo o bem em causa propriedade do Estado, só poderia ser adquirido por usucapião desde que, para além do prazo normal, tivesse decorrido mais de metade do mesmo, ou seja, 30 anos;
- A posse de um bem do Estado exercida de má-fé por período inferior a 30 anos é insuficiente para permitir a aquisição por usucapião;
- Ao decidir pela procedência da acção e, consequentemente pela improcedência da reconvenção a sentença sob recurso violou também flagrantemente o disposto no n.º 1 da Lei 54 de 16 de Julho de 1913, pelo que deverá ser revogada em conformidade.

Nas contra alegações a Autora pugna pela manutenção do julgado.

II Põem-se como problemas a resolver no âmbito do presente recurso os de saber se há algum erro na apreciação da matéria de facto que urja corrigir; se a Autora adquiriu o prédio em causa nos autos por usucapião; ou se tal prédio sempre foi e continua a ser da propriedade do Réu, devendo-lhe ser restituído.

A sentença sob recurso deu como assentes os seguintes factos:
- A edificação e respectivo logradouro que vêm sendo usufruídos pela Autora encontram-se inscritos a seu favor, no Serviço de Finanças (…), sob o artigo matricial urbano (…), e estão descritos como prédio urbano, destinado a habitação, com o n.° 27 de polícia, sito na Rua A, Bairro CAR, em (…), composto de rés-do-chão com cinco divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho e uma garagem, tendo uma superfície coberta de 100 m2 e um logradouro de 340 m2 – documento de fls. 10 cujo teor no mais se dá por integralmente reproduzido (alínea A) dos Factos Assentes).
- A aludida edificação - e respectivo logradouro - não se encontra registada autonomamente na Conservatória do Registo Predial (alínea B) dos Facros Assentes).
- A Autora tem desencadeado várias diligências, sem sucesso, designadamente junto da Conservatória do Registo Predial, no sentido de registar a seu favor a aquisição daquela edificação e respectivo logradouro (alínea C) dos Factos Assentes).
- No âmbito dessas diligências, a Autora apurou que a responsabilidade pelo conjunto dos terrenos onde foi edificado o bairro social denominado Bairro CAR é do Réu (alínea D) dos Factos Assentes).
- O Réu sucedeu legalmente nas atribuições do IGAPHE – Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado, que, por sua vez, havia sucedido ao Fundo de Fomento da Habitação (FFH) – (alínea E) dos Factos Assentes).
- Por despacho do Ministro da Habitação, Urbanismo e Construção, de 8 de Junho de 1976 e publicado no DR, II série, de 3 de Setembro de 1976, foi declarada a utilidade pública urgente, entre outros, do seguinte prédio: «Prédio rústico, denominado Quinta das Portas de Ferro, com a área de 51160 m2, inscrito na matriz predial rústica sob artigo 12 da secção B, como pertencendo a J.» - (alínea F) dos Factos Assentes).
- Em cumprimento do referido Despacho, o Fundo de Fomento da Habitação tomou posse administrativa do citado prédio (alínea G) dos Factos Assentes).
- Em 1976 empresas do grupo IGR, designadamente a sociedade "J Indústrias e Comércio, S.A.R.L." e, mais tarde, "A - Construções, Lda.", iniciaram e prosseguiram nos anos seguintes a construção de um bairro social denominado Bairro CAR e da Escola Básica 2+3 (artigo 1° da Base Instrutória).
- No âmbito de projectos do extinto Fundo de Fomento da Habitação (artigo 2° da Base Instrutória).
- Aquelas empresas do grupo I G R construíram pelo menos quatro casas, na zona onde foi instalado o estaleiro de apoio à construção da Escola Básica 2+3 (artigo 3° da Base Instrutória).
- Inicialmente destinadas ao apoio da obra, que mais tarde alienaram (artigos 4° e 5° da Base Instrutória).
- A casa identificada em A) é uma dessas casas que foi edificada em zona de estaleiro, que serviram de apoio à construção da Escola Básica 2+3 (artigo 7° da Base Instrutória).
- Em 1979, tal casa - e respectivo logradouro - foi alienada à Autora, pelo referido I G R, como representante da sociedade que a construíra (artigo 8° da Base Instrutória).
- Tendo sido pago o preço então ajustado (artigo 9° da Base Instrutória).
- Desde 1979 e até hoje, a Autora tem usado e fruído a edificação (casa de habitação) e respectivo logradouro identificados em A), como única e exclusiva proprietária (artigo 10° da Base Instrutória).
- Realizando obras de conservação (artigo 11° da Base Instrutória).
- Pagando os fornecimentos/consumos de electricidade, água e telefone e ainda os respectivos encargos fiscais (artigos 12° e 13° da Base Instrutória).
- À vista de toda a gente, designadamente de toda a vizinhança e autoridades (artigo 14° da Base Instrutória).
- Sem oposição de ninguém (artigo 15° da Base Instrutória).
- E com a convicção de que não está a lesar direito de terceiros (artigo 16° da Base Instrutória).
- A entidade que vendeu à Autora a casa e logradouro identificados em A) também actuava como dona desse imóvel desde 1976, praticando os actos inerentes a essa qualidade, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém (artigos 17°, 18° e 19° da Base Instrutória).
- O prédio (edificação e logradouro) em causa está perfeitamente individualizado no conjunto urbanístico da zona (artigo 20° da Base Instrutória).
- A casa ocupada pela Autora é uma casa de construção não licenciada (artigo 28° da Base Instrutória).
- A Direcção-Geral do Equipamento Escolar do Ministério da Educação remeteu ao Ministério da Justiça, para envio à Procuradoria-Geral da República, dossier relativo à construção de quatro casas pré-fabricadas, pela empresa "J Indústria e Comércio, S.A.R.L.", em terreno expropriado e anexo à Escola Preparatória, e o referido dossier foi posteriormente remetido à Delegação da Procuradoria da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de (…), dando origem ao Processo Administrativo n.° (…), conforme cópia de oficio datado de 17/11/1982, que constitui fls. 253 a 255, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 32° da Base Instrutória).

1. Da impugnação da matéria de facto.

Conforme deflui do normativo inserto no artigo 712°, n°1, alínea a), do CPCivil a decisão do de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690°-A do mesmo diploma, a decisão com base neles proferida.

A reapreciação da matéria de facto por parte desta Relação tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação, cfr Ac STJ de 21 de Janeiro de 2003 (Relator Afonso Correia), in www.dgsi.pt.

Com efeito, não se trata de um segundo julgamento até porque as circunstâncias não são as mesmas, nas respectivas instâncias, não bastando que não se concorde com a decisão dada, antes se exige da parte que pretende usar desta faculdade a demonstração da existência de erro na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos.

Assim sendo, para que este Tribunal possa atender à eventual divergência quanto ao decidido, no Tribunal recorrido, na fixação da matéria de facto, deverá ficar demonstrado pelos meios de prova indicados pelo Apelante, a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, exigindo-se, contudo e para tanto, que tais elementos de prova sejam inequívocos quanto ao sentido pretendido por quem recorre, pois não podemos ignorar que no processo civil impera o principio da livre apreciação da prova, cfr artigo 655º, nº1 do CPCivil («(…) A reanálise das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção criada pelo Juiz da 1.ª instância, traduzida nas respostas aos quesitos, e determinar a alteração dessas respostas, em casos pontuais e excepcionais, quando, não se tratando de confissão ou de qualquer facto só susceptível de prova através de documento, se verifique que as respostas dadas não têm qualquer fundamento face aos elementos de prova trazidos ao processo ou estão profundamente desapoiados face às provas recolhidas (...) O objectivo da gravação da prova funciona assim mais como uma válvula de escape para situações pontuais em que seja inaceitável a possibilidade da resposta dada, do que como um meio desejado para reanálise sistemática de toda a prova. Desta forma, só está em perfeitas condições de poder satisfazer a eventual alteração das respostas aos quesitos em situações limite, ou seja, se resultar inequivocamente que a resposta ao quesito não podia ser aquela, mas tinha que ser outra (…)», ibidem Ac STJ de 21 de Março de 2003 (Relator Afonso Correia).

No caso sub judice e nesta sede pretende o Apelante que se alterem as respostas de “Provado” dadas aos pontos 10., 15, 16, 17., 18. e 19. da base instrutória, para não provado, uma vez que se trata de matéria conclusiva, e a não se entender assim, também tal resposta não resulta da prova produzida.

Impugna ainda as respostas dadas aos pontos 25. a 28. da base instrutória, de “Não provado”, requerendo que as mesmas passem a “Provado”, por tal resultar da prova documental e testemunhal produzida.

1.1. Da impugnação dos pontos 10., 15, 16, 17., 18. e 19. da base instrutória.

Começa o Apelante por discordar das respostas de “Provado” dadas aos pontos 8., 10., 15, 16, 17., 18. e 19. da base instrutória, pois na sua tese os mesmos contêm matéria de direito, conclusiva, pelo que deverão ser retirados daquela peça processual.

Analisemos.

Resulta do disposto no artigo 511º, nº1 do CPCivil que «O juiz ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida.».

Assim sendo e no bom rigor dos princípios só poderá ser levada àquela peça processual a matéria fáctica alegada pelas partes que seja relevante para a decisão do pleito.

Os factos no domínio processual abrangem as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação das pessoas e das coisas, «(…) Dir-se-á ser matéria de facto a que envolve os acontecimentos ou circunstâncias do mundo exterior, os fenómenos da natureza, as manifestações concretas dos seres vivos, incluindo as actuações dos seres humanos, sem excluir as do foro interno. Neste quadro, pode, grosso modo, considerar-se questão de facto a que visa determinar o que aconteceu, designadamente as ocorrências da vida real, ou seja, os eventos materiais e concretos, as mudanças operadas no mundo exterior. (…)», apud Ac STJ de 23 de Abril de 2009 (Relator Salvador da Costa), in www.dgsi.pt.

Por seu turno «(…)a matéria de direito respeita à aplicação das normas jurídicas aos factos, à valoração feita pelo Tribunal, de acordo com a interpretação ou aplicação da lei, e a qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica, ou seja, sempre que, para se chegar a uma solução, haja necessidade de recorrer a uma disposição legal, ainda que se trate da interpretação de uma simples palavra da lei.(…)», apud Ac STJ de 9 de Junho de 2009 (Relator Helder Roque), in www.dgsi.pt.

Todavia, poderá acontecer – e acontece com frequência – que o conceito normativo enunciado na Lei seja igual ao conceito empírico, podendo neste caso elaborar-se as perguntas utilizando as palavras da Lei, cfr neste sentido Castro Mendes, in Conceito de Prova, 570.

Concentremo-nos, então, nos questionados pontos de facto, com a seguinte redacção:
Em 1979, tal casa – e respectivo logradouro – foi alienada à Autora pelo referido I G, como representante da sociedade que a construíra.
10º Desde 1979 e até hoje, a Autora tem usado e fruído a edificação (casa de habitação e respectivo logradouro identificado em A), como única e exclusiva proprietária.
15° Sem oposição de ninguém.
16º E com a convicção de que não está a lesar o direito de terceiros.
17º, 18º e 19º A entidade que vendeu à autora a casa e logradouro identificados em A) também actuava como dona desse Imóvel desde 1976, praticando os actos inerentes a essa qualidade, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

No caso dos autos quer o vocábulo «proprietária», quer a utilização dos verbos «usar», «fruir», «lesar», «vender» que têm um sentido jurídico próprio, têm igualmente um significado corrente na linguagem do dia a dia, sendo comummente utilizados e perfeitamente perceptíveis, inexistindo assim qualquer óbice do seu emprego quer na matéria assente, quer na base instrutória, não havendo lugar à aplicação do preceituado no artigo 646º, nº3 do CPCivil, com a declaração da respectiva matéria como não escrita, ((…) Por vezes o termos é utilizado na linguagem jurídica e na linguagem comum. Na formulação do questionário deve arredar-se o emprego desses termos. Quando todavia lá figure algum deles, deve entender-se que foi tomado no seu sentido vulgar, pelo menos quando este seja (como tal) bem claro e preciso. (…), apud Manuel de Andrade, Noções Elementares de processo Civil, 1976, 186).

Embora a melhor técnica processual faça afastar a utilização de termos de conotação jurídica, a realidade hodierna é que, uma grande parte deles – pelo menos os mais correntes, vg para além dos utilizados nos presentes autos tantos outros termos como «comprar», «emprestar», «arrendar», «alugar», etc – já entraram no vocabulário vulgar e por isso não podemos, quiça num excesso de purismo axiológico-normativo, expurga-los sem mais, com este fundamento.
Todavia, o Réu/Apelante, impugna ainda a sobredita matéria sob o prisma da errónea apreciação dos depoimentos que sobre a mesma recaíram, maxime, de I G, C A e da Autora, em depoimento de parte.

Vejamos, então.

O Tribunal recorrido, fundamentou a convicção das respostas dadas aos pontos controvertidos levados à base instrutória, do seguinte modo:
«Na presente acção declarativa, com processo comum sob a forma ordinária, que M I intentou contra o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P., o Tribunal julga a matéria de facto que integra a base instrutória, do modo seguinte:
Artigos 2°, 4°, 5°, 8°, 9°, 10°, 11°, 12°, 13°, 14°, 15°, 16° e 20°: Provados.
Artigos 6°, 21°, 22°, 23°, 24°, 25°, 26°, 27°, 29°, 30°, 31°, 33° e 34°: Não provados.
Artigo 1°: Provado que em 1976 empresas do grupo IGR, designadamente a sociedade "J Indústrias e Comércio, S.A.R.L." e, mais tarde, "A C — Construções, Lda.", iniciaram e prosseguiram nos anos seguintes a construção de um bairro social denominado Bairro CAR e da Escola Básica 2+3.
Artigo 3°: Provado que aquelas empresas do grupo IGR construíram pelo menos quatro casas, na zona onde foi instalado o estaleiro de apoio à construção da Escola Básica 2+3.
Artigo 7°: Provado que a casa identificada em A) é uma dessas casas que foi edificada em zona de estaleiro, que serviram de apoio à construção da Escola Básica 2+3.
Artigos 17°, 18° e 19°: Provado que a entidade que vendeu à Autora a casa e logradouro identificados em A) também actuava como dona desse imóvel desde 1976, praticando os actos inerentes a essa qualidade, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.Artigo 28°: Provado que a casa ocupada pela Autora é uma casa de construção não licenciada.
Artigo 32°: Provado que a Direcção-Geral do Equipamento Escolar do Ministério da Educação remeteu ao Ministério da Justiça, para envio à Procuradoria-Geral da República, dossier relativo à construção de quatro casas pré-fabricadas, pela empresa "J Indústria e Comércio, S.A.R.L.", em terreno expropriado e anexo à Escola Preparatória, e que o referido dossier foi posteriormente remetido à Delegação da Procuradoria da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de (…), dando origem ao Processo Administrativo n.°(…), conforme cópia de ofício datado de 17/11/1982, que constitui fls. 253 a 255, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
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A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados e não provados, emergiu da análise crítica e conjugada, segunda as regras da lógica e da experiência comum, do teor dos documentos constantes dos autos, com o depoimento da Autora e as declarações das testemunhas ouvidas em audiência, de que se segue uma breve síntese:
A resposta ao artigo 32° da base instrutória teve por fonte o teor do documento que constitui fls. 253 a 255.
Dos documentos de fls. 267 a 269 (print da caderneta predial urbana e comprovativos do pagamento do Impostos Municipal Sobre Imóveis) alcança-se que a Autora está inscrita nas Finanças, desde 1997, como titular do prédio descrito em A) e que tem pago o IMI relativo ao prédio em questão, evidências que contribuíram para a resposta à parte final do artigo 14°.
Por sua vez, os documentos emitidos pela Junta de Freguesia de (…)(fls. 11), pela EDP – Electricidade de Portugal, EP e pela Portugal Telecom (fls. 270 a 273), bem como a guia de remessa de fls. 264, a factura emitida pela Moviflor (fls. 265) e o Termo de responsabilidade de fls. 266, corroboram quer o depoimento prestado pela Autora, quer as declarações produzidas por diversas testemunhas ouvidas em audiência. Destes testemunhos e do acervo documental referido extrai-se a conclusão segura e firme de que a Autora - e respectivo agregado familiar -, a partir de 1979 e até à presente data tem tido a posse contínua, pública e pacífica da casa e respectivo logradouro, identificados na alínea A) da matéria de facto assente, usando e fruindo de todas as suas utilidades ou permitindo a sua fruição por terceiros, como sucedeu a partir de Novembro de 1998, data em que cedeu gratuitamente a utilização do prédio a um médico seu conhecido (Josué Martins), proveniente de Angola, o qual continua a habitar o mencionado prédio por mera tolerância da Autora.
A cópia da planta de localização e fotos do prédio (casa e logradouro – cf. fls. 9 e 12) descrito na alínea A) da matéria de facto assente, com que foram confrontadas diversas das testemunhas inquiridas, bem como da Informação prestada nos autos pelo Departamento de Gestão Urbanística da Câmara Municipal de (…)e mapas anexos (fls. 217 a 226), surpreende-se que aquela edificação não foi construída em terrenos afectos ao Bairro CAR, localizando-se antes em área contígua a uma parcela de terreno destinada a um equipamento escolar, o que vai, aliás, de encontro à prova testemunhal produzida, segundo a qual a referida parcela de terreno não integrara o loteamento habitacional e fora cedida ao Ministério da Educação pelo extinto Fundo de Fomento de Habitação (FFH), para a construção de uma escola, cedência essa que nunca chegou a ser formalizada.
A Autora M I prestou um depoimento sereno, objectivo e consistente, no qual descreveu e esclareceu as circunstâncias em que adquiriu a casa e o terreno onde se encontra implantada e que lhe serve de logradouro à empresa que construiu aquela edificação, representada no acto pelo empresário I G. Descreveu e esclareceu igualmente a utilização que desde então deu à casa e respectivo logradouro e o modo como o fez, deixando claro que sempre fruiu - com o seu agregado familiar - de todas as suas utilidades e dispôs da casa e do terreno que lhe está afecto em exclusivo à vista de todos, sem oposição de quem quer que fosse, na convicção de ser sua proprietária. Segundo referiu, só mais recentemente, quando diligenciou no sentido de regularizar a aquisição do prédio em seu nome, se inteirou que a responsabilidade pelo terreno onde foi edificado o Bairro CAR é do Réu.
O empresário I G, que foi administrador das empresas adjudicatárias da construção do Bairro CAR e de um agrupamento escolar e ginásio, esclareceu as circunstâncias da venda à Autora, no ano de 1979, da casa e respectivo logradouro, pelo preço de 600.000$00. Realçou que a casa vendida à Autora foi edificada em 1976 numa zona de terreno sobrante de uma parcela de terreno pertencente ao Ministério da Educação e que serviu inicialmente de apoio à construção do equipamento escolar, fazendo parte do estaleiro da obra. Afiançou, sem qualquer rebuço, que sempre actuou como proprietário daquela parcela de terreno sobrante onde edificou a casa que vendeu à Autora, bem como outras três edificações que com aquela formavam o estaleiro de apoio à construção do equipamento escolar, fazendo-a à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse. Assim como afirmou peremptoriamente que nunca foi interpelado pelo Fundo de Fomento de Habitação ou por qualquer outra entidade para demolir aquela casa.
No mesmo sentido orientaram-se as declarações prestadas em audiência por J M T G, que integrou a administração da sociedade "J Indústria e Comércio, S.A.R.L.", do grupo de empresas "Ilídio Godinho Ribeiro", no período compreendido entre 1976 e 1984.
As declarações prestadas por estes representantes da sociedade "J Indústria e Comércio, S.A.R.L." revelaram-se objectivas, coerentes em si e entre si, consistentes com a restante prova produzida, e por isso mesmo verosímeis.
A C S, M M e M S S, amigos da Autora há mais de 30 anos, com quem sempre mantiveram convívio mais ou menos regular, descreveram e esclareceram a utilização que a Autora e respectivo agregado familiar sempre deram à casa e logradouro, que frequentaram em diversas ocasiões enquanto por aquela foi habitada. Destes depoimentos resultou, ademais, que a Autora sempre se apresentou e assumiu desde a compra em 1979 como única e exclusiva proprietária da casa e logradouro, assim agindo perante todos e sem oposição de quem quer que fosse.
As declarações prestadas por J P, amigo da Autora há mais de 50 anos, também elas isentas e objectivas, apontaram no mesmo sentido. Este deu mesmo testemunho de ter colaborado em obras de conservação levadas a efeito pela Autora (pintura do portão de entrada e do muro exterior da casa), bem como na construção de uma arrecadação, no logradouro da casa.
C A, que viveu maritalmente com a Autora até à data da separação em 1996/1997, esclareceu que foram habitar para aquela casa em finais de 1982 e que desde a sua compra pela Autora até esta data fizeram nela obras de remodelações, faseadamente, à medida das suas disponibilidades económicas. Descreveu e esclareceu a utilização que a Autora e respectivo agregado familiar sempre deram à referida casa e logradouro, que aquela sempre agiu perante todos como proprietária da casa e logradouro e que nunca ninguém questionou tal propriedade. Referiu-se à construção de uma arrecadação no logradouro, acrescentando que por esse facto a Autora foi objecto de processo contraordenacional e que chegou a pagar uma coima.
J M, médico, esclareceu que a Autora lhe cedeu gratuitamente a utilização da casa e logradouro pouco depois de ter vindo de Angola, em Novembro de 1998, e que desde então habita aquela casa por tolerância daquela.
A C C, Técnico Superior que pertenceu aos quadros do FFH e posteriormente do IGAFHE, entre 1973 e 1995, teve um depoimento inseguro e titubeante, denotando dificuldade em esclarecer se a parcela de terreno onde foi edificada a casa ocupada pela Autora foi ou não objecto de cedência ao Ministério da Educação para a construção de equipamento escolar. No seu depoimento apenas se registou a certeza, que lhe adveio das visitas que efectuou ao local aquando da execução da obra, de que a casa em questão foi edificada pelo empreiteiro adjudicatário em área de estaleiro do empreendimento, tendo servido de apoio à obra, já não sendo capaz de precisar se de apoio à construção do Bairro CAR ou do equipamento escolar.
M P P, engenheira civil, Técnica Superior pertencente aos quadros do Réu, com início de funções no IGAPHE em 1992, afiançou, com base em documentação alegadamente por si consultada, que a parcela de terreno onde está implantada a casa ocupada pela Autora é área cedida pelo FFH à Direcção-Geral de Equipamentos Escolares, que ficou sobrante, ou seja, que não foi utilizada. No entanto, formalmente, o terreno está em nome do Réu. Acrescentou, ainda, que no local da casa estava instalado o estaleiro de apoio à construção da escola e que o estaleiro de apoio à construção do bairro CAR estava situado sensivelmente a meio deste empreendimento. A escola apenas ocupou parte do terreno cedido pelo FFH e uma parcela de terreno que fora objecto de loteamento, de que não fora dada posse ao Ministério da Educação.
M T L, jurista, Chefe da Divisão de Gestão da Habitação, afirmou igualmente que a parcela de terreno onde está implantada a casa ocupada pela Autora é área cedida pelo FFH à Direcção-Geral de Equipamentos Escolares, que ficou sobrante, e que nesse terreno estava implantado o estaleiro de apoio à construção da escola.
As respostas negativas dadas aos artigos 6°, 21°, 22°, 23°, 24°, 25°, 26°, 27°, 29°, 30°, 31°, 33° e 34° da base instrutória resultaram de nenhuma prova segura e firme ter sido produzida relativamente à factualidade neles vertida ou de se ter alcançado prova do seu contrário (cf. respostas dadas aos artigos 10° a 19°). Diga-se, em abono da verdade e do rigor que as questões suscitadas nos artigos 21° a 26° devem merecer no seu tratamento, que a prova desta matéria só poderia ser alcançada através de documentação idónea a demonstrar o título de aquisição, pelo FFH, da propriedade dos prédios em causa, respectivas localizações, áreas e confrontações e, se dúvidas subsistissem, através de prova pericial, mas sempre com base em documentação que o processo não fornece.
Note-se que o Réu nem sequer fez juntar aos autos, como lhe competia (artigo 342°, n.° 1, do CC), certidão do registo predial comprovativa da inscrição a seu favor da propriedade do terreno com a área de 156.200 m2, a que se alude nos artigos 69° da contestação/reconvenção e 23° da base instrutória.
Aliás, subsistindo dúvidas no que concerne à origem da parcela de terreno ocupada pela Autora e titularidade do prédio donde é proveniente, tal matéria de facto controvertida sempre teria de ser resolvida a favor da Autora - artigo 516° do Código de Processo Civil.».

Quid inde?

Perguntava-se no ponto 8. da base instrutória, dado como provado:
«Em 1979, tal casa – e respectivo logradouro – foi alienada à Autora pelo referido I G, como representante da sociedade que a construíra?».

A resposta a tal questão foi fundamentada, principalmente, no depoimento da testemunha I G, responsável da sociedade adjudicatária da obra a que aludem os pontos 1. a 5. e 7 da base instrutória, a qual, segundo as suas próprias declarações, a casa em litigio nestes autos foi construída num terreno que não era propriedade nem da testemunha, nem daquela empresa e foi construída, conjuntamente com outras no terreno pertencente à obra que se encontravam a realizar e para apoio desta, sendo que tal terreno era (no dizer da testemunha) do Ministério da Educação. Mas acentuou que embora tivesse cedido a casa à Autora por uma módica quantia, a sua empresa não tinha qualquer título de propriedade.

Quer dizer, do depoimento desta testemunha pode-se retirar o seguinte: a empresa da testemunha é adjudicatária de uma obra; sabe que o terreno onde se encontra a efectuar a obra é de outrem, bem como esta e todos os materiais nele incorporados (cfr nº2 do artigo 1212º, do CCivil, sendo que o desconhecimento da lei não é causa justificativa da sua eventual violação, nem isenta os prevaricadores das sanções nela estabelecidas, artigo 6º do mesmo diploma); não tem qualquer título de propriedade, mas cede uma casa que não lhe pertence, insistindo ao longo do seu depoimento que actuavam como proprietários e que nunca ninguém questionou a respectiva presença no local.

Este depoimento é no mínimo surpreendente, tanto mais que a testemunha adianta que foram vendidas outras parcelas e nunca ninguém se opôs…e com base em tais declarações dá-se o facto como provado.

Não pode ser.

Como é que se pode dar como provado que foi vendido um imóvel, verbalmente, quando esse imóvel nem sequer era propriedade de quem o vendeu? Já sem falarmos aqui nas questões de direito que se suscitam, no que tange à nulidade da venda de coisa alheia e da nulidade da venda por falta de observância de forma legal, para além da impossibilidade de efectivação de prova testemunhal sobre factos para cuja prova a Lei exige documento…

Daqui se extrai, sem necessidade de mais considerandos, por despiciendos, que a resposta a tal facto no bom rigor dos princípios só poderia ser negativa. Mas porque se concede que a testemunha possa ter cedido a casa à Autora a troco de uma quantia em dinheiro - só que tal cedência terá de ser devidamente analisada em termos jurídicos – a resposta passará a ser a de «Provado que em 1979, I G, como representante da sociedade que a construíra, cedeu-a à Autora.».

A seguir, perguntava-se nos pontos 10., 15. e 16.:
«Desde 1979 e até hoje, a Autora tem usado e fruído a edificação (casa de habitação e respectivo logradouro identificado em A), como única e exclusiva proprietária?»
«Sem oposição de ninguém?»
«E com a convicção de que não está a lesar o direito de terceiros?»

Nas respostas a estes pontos teve-se essencialmente em consideração o depoimento de parte da Autora, depoimento esse que foi qualificado pelo Tribunal como sereno, objectivo e consistente tendo-se acentuado que a depoente sempre utilizou a casa como se fosse sua proprietária e só mais recentemente, quando diligenciou no sentido de regularizar a aquisição do prédio em seu nome, se inteirou que a responsabilidade pelo terreno onde foi edificado o Bairro CAR é do Réu.

Todavia, auditado o seu depoimento, constata-se que a Autora soube desde o início que estava a adquirir uma casa que estava num terreno que pertencia ao Ministério da Educação e que tal casa fora construída como estaleiro da obra, onde estavam alojados os operários. Mais, decorre ainda que a Autora foi habitar tal casa, conjuntamente com o seu companheiro (a testemunha C A) e os seus dois filhos, porque tinham necessidade de uma habitação e que não fez a escritura de compra e venda porque havia uma indefinição quanto à propriedade do terreno onde a casa estava implantada, uma vez que no dizer da Autora, quanto à construção em si não havia dúvidas que a mesma era propriedade da empresa ((?) este ponto de interrogação surge na sequência do que já explanamos supra no concernente à incorporação da casa no solo e ao eventual desconhecimento da lei). Deflui ainda das suas declarações que a Autora tinha plena consciência de que estava a ocupar algo que era de outrem o que nós procuramos durante muito tempo foi descobrir o proprietário daquele terreno (sic) e que a testemunha I G nunca a (sic) aldrabou…disse-me claramente qual era a situação (de estaleiro).

Assim sendo, como é que se pode concluir que a Autora sempre usou e fruiu a casa e o terreno como se fosse sua proprietária, se andou estes anos todos em busca do real proprietário do terreno?

Por outra banda, veja-se esta decomposição da realidade em duas coisas distintas, como se se pudesse eventualmente destacar a casa do terreno – como se se tratasse quiçá de uma casa pré-fabricada, amovível - e, se assim era, então porque é que não se pegou na casa e não se colocou a mesma num outro terreno que fosse propriedade da Autora, posto que se sabia que aquele era alheio e não se conseguia descobrir o proprietário (aliás nas suas próprias palavras (sic) eu procurei afanosamente o proprietário)?

É óbvio, que estas questões que colocamos servem para concluir que as respostas àqueles pontos de facto não poderiam ser as de «Provado», mas antes de «Não Provado», também no bom rigor processual. Todavia, porque resulta da prova produzida que a Autora ocupou a casa e o terreno, ficando, mutatis mutandis, tal ocupação sujeita à respectiva análise normativa, a resposta a tal questão passará a ser a de «Provado que a Autora ocupou a casa desde 1979 a 1990.».

Por último no que a este bloco de factos diz respeito, respondendo-se afirmativamente ao perguntado em 17º, 18º e 19º, deu-se como provado que «A entidade que vendeu à autora a casa e logradouro identificados em A) também actuava como dona desse Imóvel desde 1976, praticando os actos inerentes a essa qualidade, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.»

A resposta a esta factualidade resultou, também essencialmente, como decorre do despacho supra transcrito, do depoimento daquela testemunha I G.

Todavia, ouvidas as declarações do mesmo, prestadas em audiência e constantes do suporte áudio, acima analisadas, dúvidas não se suscitam sobre a circunstância de a empresa adjudicatária da obra bem saber em que qualidade é que ocupava o terreno (de empreiteira) e de quem era o seu proprietário. Mas, mesmo que por mera hipótese do seu depoimento possam restar dúvidas acerca da identidade do proprietário do terreno onde a obra estava a ser realizada - ou Ministério da Educação ou Fundo de Fomento da Habitação – a testemunha bem sabia que era de terceiro estranho à empresa e por isso nunca se poderiam ter comportado como se donos do mesmo se tratassem…

Aqui neste conspectu, a factualidade controvertida terá de ser dada como «Não Provada».

Procedem, assim, parcialmente, as conclusões quanto a este particular.

1.2 Da impugnação da matéria de facto constante dos pontos 21., 22., 23., 24., 25., 26., 27. e 28. da base instrutória.

A Ré não se conforma também com a resposta de «Não provado» dada aos pontos 21 a 28 da base instrutória, pretendendo que se altere as respectivas respostas para «Provado» .

Nesses pontos perguntava-se:
21) A parcela de terreno ocupada pela Autora faz parte do prédio rústico identificado em F)?
22) 0 prédio identificado em F) veio a ser adquirido pelo Fundo de Fomento da Habitação em 1981?
23)…e foi englobado no prédio com a área total de 156.200 m2, que resultou da unificação dos vários prédios autónomos, expropriados para o mesmo fim: Quinta de P; Quinta de M; Quinta da C; e Quinta das P de F?
24) Dentro desta área global de terreno, numa área pertencente à antiga Quinta das P de F – uma parcela com 48.200m2, foi destinada para a construção de equipamento escolar?
25) Construída a escola Básica 2+3, esta apenas ocupou a área de 35.100m2?
26)…e numa faixa de terreno exterior à mesma, que se destinava à criação de espaços verdes (jardim público),?...
27)…surgiram umas habitações de construção não licenciada, por transformação dos estaleiros de obra do empreiteiro que ali estavam instalados?
28)…a casa ocupada pela Autora é precisamente uma das casas de construção não licenciada, que resultou da transformação dos estaleiros de obra do empreiteiro?

No que tange aos pontos 21 a 26, verifica-se que não foi feita pelo Réu a devida prova documental que se impunha no caso.

No que se refere aos pontos 27 e 28 (este parcialmente provado) deveria o Tribunal ter remetido as respectivas respostas para as respostas dadas aos pontos 4, 5 e 7 da base instrutória (onde se tinham formulado as mesmas perguntas, as quais mereceram resposta positiva que não se encontra questionada) e estão de acordo com os depoimentos testemunhais prestados em audiência.

Procedem, assim, parcialmente, as conclusões quanto a estes dois particulares.

Assim sendo, face a estas alterações à factualidade apurada, passamos a reordenar a mesma:
- A edificação e respectivo logradouro que vêm sendo usufruídos pela Autora encontram-se inscritos a seu favor, no Serviço de Finanças (…), sob o artigo matricial urbano (…), da freguesia de (…), e estão descritos como prédio urbano, destinado a habitação, com o n.° 27 de polícia, sito na Rua A, Bairro CAR, composto de rés-do-chão com cinco divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho e uma garagem, tendo uma superfície coberta de 100 m2 e um logradouro de 340 m2 – documento de fls. 10 cujo teor no mais se dá por integralmente reproduzido (alínea A) dos Factos Assentes).
- A aludida edificação - e respectivo logradouro - não se encontra registada autonomamente na Conservatória do Registo Predial (alínea B) dos Factos Assentes).
- A Autora tem desencadeado várias diligências, sem sucesso, designadamente junto da Conservatória do Registo Predial, no sentido de registar a seu favor a aquisição daquela edificação e respectivo logradouro (alínea C) dos Factos Assentes).
- No âmbito dessas diligências, a Autora apurou que a responsabilidade pelo conjunto dos terrenos onde foi edificado o bairro social denominado Bairro CAR é do Réu (alínea D) dos Factos Assentes).
- O Réu sucedeu legalmente nas atribuições do IGAPHE – Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado, que, por sua vez, havia sucedido ao Fundo de Fomento da Habitação (FFH) – (alínea E) dos Factos Assentes).
- Por despacho do Ministro da Habitação, Urbanismo e Construção, de 8 de Junho de 1976 e publicado no DR, II série, de 3 de Setembro de 1976, foi declarada a utilidade pública urgente, entre outros, do seguinte prédio: «Prédio rústico, denominado Quinta das Portas de Ferro, com a área de 51160 m2, inscrito na matriz predial rústica sob artigo 12 da secção B, como pertencendo a J.» - (alínea F) dos Factos Assentes).
- Em cumprimento do referido Despacho, o Fundo de Fomento da Habitação tomou posse administrativa do citado prédio (alínea G) dos Factos Assentes).
- Em 1976 empresas do grupo IGR, designadamente a sociedade "J Indústrias e Comércio, S.A.R.L." e, mais tarde, "Alta Casa - Construções, Lda.", iniciaram e prosseguiram nos anos seguintes a construção de um bairro social denominado Bairro CAR e da Escola Básica 2+3 (artigo 1° da Base Instrutória).
- No âmbito de projectos do extinto Fundo de Fomento da Habitação (artigo 2° da Base Instrutória).
- Aquelas empresas do grupo IGR construíram pelo menos quatro casas, na zona onde foi instalado o estaleiro de apoio à construção da Escola Básica 2+3 Mário (artigo 3° da Base Instrutória).
- Inicialmente destinadas ao apoio da obra, que mais tarde alienaram (artigos 4° e 5° da Base Instrutória).
- A casa identificada em A) é uma dessas casas que foi edificada em zona de estaleiro, que serviram de apoio à construção da Escola Básica 2+3 (artigo 7° da Base Instrutória).
- Em 1979, I G, como representante da sociedade que a construíra, cedeu-a à Autora (artigo 8° da Base Instrutória).
-Tendo sido pago o preço então ajustado (artigo 9° da Base Instrutória).
- A Autora ocupou a casa desde 1979 a 1990 (artigo 10º da Base Instrutória).
- Realizando obras de conservação (artigo 11° da Base Instrutória).
- Pagando os fornecimentos/consumos de electricidade, água e telefone e ainda os respectivos encargos fiscais (artigos 12° e 13° da Base Instrutória).
- À vista de toda a gente, designadamente de toda a vizinhança e autoridades (artigo 14° da Base Instrutória).
- O prédio (edificação e logradouro) em causa está perfeitamente individualizado no conjunto urbanístico da zona (artigo 20° da Base Instrutória).
- A Direcção-Geral do Equipamento Escolar do Ministério da Educação remeteu ao Ministério da Justiça, para envio à Procuradoria-Geral da República, dossier relativo à construção de quatro casas pré-fabricadas, pela empresa "J Indústria e Comércio, S.A.R.L.", em terreno expropriado e anexo à Escola Preparatória, e o referido dossier foi posteriormente remetido à Delegação da Procuradoria da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de (…), dando origem ao Processo Administrativo n.° (…), conforme cópia de ofício datado de 17/11/1982, que constitui fls. 253 a 255, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 32° da Base Instrutória).

2. Da aquisição por usucapião.

Insurge-se ao Réu/Apelante contra a sentença recorrida uma vez que na sua tese a venda havida entre a Autora e a sociedade adjudicatária da obra, é nula, em primeiro lugar por falta de observância do legal formalismo, nos termos do disposto no artigo 874º do CCivil, sendo ainda nula nos termos do disposto no artigo 892.º do CCivil, porquanto, quer o terreno quer o estaleiro da obra pertenciam ao dono da obra, tanto mais que, e conforme dispõe o n.º 2 do artigo 1259º do mesmo diploma, o título não se presume e a autora não juntou qualquer comprovativo de aquisição. Acrescenta ainda que o concluir que quer o construtor, quer a Autora exerceram a posse em boa-fé, a sentença sob recurso procedeu a uma errónea interpretação dos factos e violou, claramente, o disposto naqueles artigos e ainda nos normativos insertos nos artigos 1258.º e 1260º do Código Civil.

A Autora, aqui Apelada, pretende que se declare judicialmente a aquisição do direito de propriedade, por usucapião, do prédio urbano constituído pela edificação e respectivo logradouro que se encontram-se inscritos a seu favor, no Serviço de Finanças (…), sob o artigo matricial urbano (…), da freguesia de (…), e estão descritos como prédio urbano, destinado a habitação, com o n.° 27 de polícia, sito na Rua A, Bairro CAR, composto de rés-do-chão com cinco divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho e uma garagem, tendo uma superfície coberta de 100 m2 e um logradouro de 340 m2, conforme documento de de fls. 10 (cfr alínea A) dos Factos Assentes).

De tal documento consta como titular a Autora.

Todavia, diga-se meramente en passant, e para que se não suscitem eventuais dúvidas e/ou quiçá, não se alvitrem contradições entre a matéria dada como provada e a decisão de direito, que o facto de a Autora ter feito inscrever o questionado imóvel na matriz predial, como decorre da matéria dada como provada, o que implica que dela passou a constar a caracterização, localização, valor patrimonial tributário e a identificação dos proprietários, nos termos do nº1 do artigo 12º do DL 287/2003, de 12 de Novembro (Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, actualmente em vigor), tal inscrição não equivale, nem tem como objectivo fazer equivaler a qualquer presunção de propriedade, a não ser para efeitos tributários, como deflui do nº5 do mencionado normativo, sem embargo de a Lei impor que para efeitos de realização de actos de registo predial, seja feita, além do mais, a respectiva prova de inscrição matricial, nos termos do artigo 31º, nº1 do CRPredial.

A Autora pretende adquirir a propriedade do aludido prédio, uma vez que na sua tese o teria possuído, de forma pacífica, durante mais de quinze anos, mais propriamente desde 1979, no qual tem praticado todos os actos inerentes à qualidade de dona, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

A usucapião, como deflui do artigo 1287º do CCivil, é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, além do mais e no que à economia do recurso diz respeito, e tem por base a posse mantida durante certo lapso de tempo.

Tal significa que só as coisas que são possuídas, em princípio, serão susceptíveis de serem usucapidas, pois os detentores e/ou possuidores precários não podem adquirir para si por usucapião o direito possuído, a não ser que haja inversão do título de posse, e neste caso, o tempo necessário para usucapir, começa a correr desde a data da inversão do título, artigo 1290º, do CCivil, cfr Ac STJ de 7 de Abril de 2011 (Relator Hélder Roque), in www.dgsi.pt.

Contudo, para a operância do predito instituto, isto é, a inversão por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía impõe que o primeiro torne, directamente, conhecida da pessoa em cujo nome possuía, a sua intenção de actuar como titular do direito, sendo uma oposição categórica, traduzida em actos positivos, materiais ou jurídicos, mas inequívocos, o que no caso sujeito nunca ocorreu, nem poderia ter ocorrido, posto que a Autora/Apelada nem sequer sabia quem era o proprietário do terreno, tendo-o procurado «afanosamente», ao longo dos anos, como afirmou no seu depoimento de parte.

Afastada que se encontra esta possibilidade, analisemos se se encontram verificados os requisitos legais para a pretendida aquisição por usucapião, peticionada pela Autora/Apelada.


Assim.

Começa a Autora/Apelada alegar a aquisição do imóvel ao representante da sociedade que construiu o empreendimento denominado Bairro CAR e a Escola Básica.

Todavia tal aquisição, a ter-se por existente enquanto tal, o que se nos oferece dúvidas tendo em atenção a factualidade dada como provada, encontrar-se-ia ferida de nulidade, sobre vários prismas.

Mas admitamos, por uma questão de facilidade de exposição e raciocínio que assim era. Isto é, que se teria tratado de uma «compra e venda».

Prima facie, tratando-se como se trata de uma venda de um bem imóvel, a mesma estava sujeita a formalidades legais, ad substantiam,
sendo válida se celebrada por escritura pública, nos termos dos artigos 874º e 875º do CCivil

Faltando aquela formalidade legal, sempre estaria tal acordo eivado de nulidade nos termos do artigo 294º do CCivil.

Dir-se-ia então, que tal nulidade não obstaria a um desenvolvimento de uma situação de posse, apenas nos encontraríamos perante uma situação susceptível de consubstanciar uma situação de posse não titulada, de harmonia com o disposto no artigo 1259º, nº1 do CCivil, cfr Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Edição da AAFDL, 1978, 614.

Todavia, para além de a Autora/Apelada não ter qualquer titulo aquisitivo da propriedade, veja-se que a teria adquirido a non dominus, isto é, quem lhe «cedeu» o direito que se arroga não era o seu legitimo proprietário, sendo a mesma nula, de harmonia com o disposto no artigo 892º do CCivil, sendo certo que a Autora/Apelada bem sabia de tal situação.

Quer dizer, a Autora/Apelada ocupou um bem imóvel, a troco de uma quantia em dinheiro, bem esse que lhe foi cedido por uma pessoa que não tinha qualquer direito sobre o mesmo, o que era do conhecimento de ambos.

Por muitas voltas que se dêem e por muitos argumentos jurídicos que se esgrimam, a questão é que o representante da sociedade adjudicatária da obra que cedeu onerosamente a casa, identificada na alínea A) da matéria de facto assente, à Autora, bem sabia e não poderia ignorar que tal casa era da dona do terreno onde a obra adjudicada estava a ser construída e havia sido erigida para serviço de tal obra, nos termos do artigo 1212º, nº2 do CCivil.

Inexiste posse da Autora em relação ao imóvel, mas apenas uma mera detenção, que atenta a forma como a mesma ocorreu (cedência por quem não tinha qualquer direito sobre o imóvel, bem sabendo a beneficiária da cedência que assim era e mesmo assim ocupou-o), nem sequer se poderá falar numa eventual inversão do titulo de posse nos termos do artigo 1265º do CCivil, porque não há qualquer titulo, cfr Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, 99, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, 668 e Oliveira Ascensão, Reais, 1983, 98.

A posse para efeitos de usucapião, como deflui do artigo 1251º do CCivil, tem de ter em si a nota do «corpus» e a nota do «animus», por um lado o exercício de poderes de facto sobre a coisa mas acompanhada da «intenção de agir como beneficiário do direito» (artigo 1253º, alínea a), do CCivil, a contrario), cfr Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 126, Acórdãos do STJ de 21 de Outubro de 2010 (Relator Barreto Nunes) e de 3 de Fevereiro de 2011 (Relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt.

Em termos de eventual integração do elemento «corpus», provou-se que: a Autora ocupou a casa desde 1979 a 1990 (artigo 10º da Base Instrutória); nela realizou obras de conservação (artigo 11° da Base Instrutória); pagou os fornecimentos/consumos de electricidade, água e telefone e ainda os respectivos encargos fiscais (artigos 12° e 13° da Base Instrutória); à vista de toda a gente, designadamente de toda a vizinhança e autoridades (artigo 14° da Base Instrutória). Todavia, esta matéria afigura-se manifestamente insuficiente, face à forma como a Autora configura a sua causa de pedir e o seu petitório.

A posse fundamento de usucapião tem de ser uma posse que recaia sobre a totalidade do bem, de onde não se exercendo o poder de facto sobre todo o prédio (in casu construção (casa de habitação) e terreno (onde a mesma se insere e logradouro)), não pode proceder a pretensão de aquisição, sendo certo que os actos materiais terão de ser contínuos e inequívocos, por forma a não oferecerem quaisquer dúvidas sobre o respectivo alcance e significado.

Ora, se acima apontamos a perplexidade consistente no facto de a Autora ter sempre efectuado uma diferença entre a «casa» em si e o terreno onde a mesma se encontrava implantada e respectivo logradouro, e a sua plena consciência de que apenas a construção era sua «pertença», os actos materiais por si praticados, de obras e pagamento de impostos, não relevam para a aquisição do imóvel por usucapião, porque o imóvel é um todo que se não pode cindir: só o direito de propriedade sobre tal imóvel, constituído pela casa e respectivo terreno onde a mesma se incorporou, é que tem a característica de usucapibilidade, cfr Dias Marques, in Prescrição Aquisitiva, I/139, citado por Menezes Cordeiro, Direitos Reais, cit, 619.

Por outro lado, mesmo “(…) se alguém, por exemplo, paga habitualmente a contribuição predial e outros encargos relativos a determinado imóvel, não adquire, através desses actos, a posse do prédio. Trata-se, com efeito, de actos que podem ser praticados por qualquer pessoa, não pressupondo uma relação de facto sobre a coisa.(…)”, cfr Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol III, reimpressão, 2ª edição, 25.

No que tange ao «animus», consistindo este na intenção de se exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito correspondente àquele domínio de facto, não podendo ser confundido com a mera convicção de ser titular do direito, é óbvio que face à factualidade apurada, da mesma apenas resulta, que a Autora ao longo dos anos alimentou a esperança de um dia poder vir a ser considerada a proprietária do imóvel (casa de habitação e terreno), pois sempre soube como o tinha ocupado e procurou, ao longo dos anos, «afanosamente», no seu dizer, encontrar o proprietário do terreno, pois tinha plena consciência que o mesmo lhe não pertencia, como também sabia que não era pertença da testemunha Ilídio Godinho Ribeiro.

Não estão, assim, preenchidos os requisitos para a aquisição por usucapião.

Mas, mesmo que por mera hipótese de raciocínio se pudesse concluir que a factualidade apurada integraria o «corpus» e o «animus», mesmo assim, não se concluiria pela aquisição por usucapião, uma vez que sempre seria de considerar que a posse da Autora/Apelada, porque não titulada nem registada, era de má fé (artigo 1296º do CCivil), e ainda não tinham decorrido trinta anos prazo este exigivel no caso sub judice uma vez que se trata de um bem de uma pessoa colectiva pública ou do próprio Estado e caso tal bem se encontrasse integrado no seu domínio privado, o que nem sequer se mostra alegado, cfr artigo 1º da Lei 54 de 16 de Julho de 1913 «as prescrições contra a Fazenda Nacional só se completam desde que, alêm dos prazos actualmente em vigor, tenha decorrido mais metade dos mesmos prazos.§ único. A disposição dêste artigo não abrange os bens que à data da promulgação desta lei estejam prescritos nos termos legais, nem as prescrições de dívidas ao Estado por contribuições.» acrescentando o seu Artigo 2º.«Continua em vigor o decreto de 1 de Setembro de 1899 e fica revogada a legislação em contrário», sendo que esta vigência decorre do disposto no artigo 3º do Decreto-Lei nº 47.344, de 25 de Novembro de 1966 «desde que principie a vigorar o novo Código Civil, fica revogada toda a legislação civil relativa às matérias que esse diploma abrange, com ressalva da legislação especial a que se faça expressa referência»., e no artigo 1304º do CCivil «o domínio das coisas pertencentes ao Estado ou a quaisquer outras pessoas colectivas públicas está igualmente sujeito às disposições deste código em tudo o que não for especialmente regulado e não contrarie a natureza própria daquele domínio».

Tudo isto para dizer que além do mais não se alegou, como se deveria ter feito, que o prédio cuja propriedade se visava adquirir estava integrado no domínio privado do Estado, ou de uma pessoa colectiva de direito público, pois só estes bens públicos são susceptíveis de aquisição por usucapião, já não o podendo ser os bens integrados no domínio público do Estado ou das pessoas colectivas de direito público, porque a tal se opõe o artigo 202º, nº2 do CCivil ao predispor «Consideram-se, porém, fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual.”, como refere Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, pág. 881, são coisas públicas ou do domínio público “as coisas submetidas por lei ao domínio de uma pessoa colectiva de direito público e subtraídas ao comércio jurídico privado em razão da sua principal utilidade colectiva”, Durval Ferreira, ibidem, 97.

As conclusões, procedem quanto a este ponto, não se podendo manter, pois a sentença recorrida, na parte em que reconheceu constituído por usucapião o direito de propriedade da Autora/Apelada sobre o imóvel.


3. Do pedido reconvencional.

Insurge-se o Réu/Apelante contra a sentença recorrida uma vez que no seu entendimento deverá ser dado provimento ao pedido reconvencional formulado, condenando-se a Autora a reconhecer a propriedade do Réu sobre a parcela de terreno ocupada, uma vez que a mesma faz parte de um prédio rústico, originariamente com a área de 53.160 m2, que foi objecto de expropriação e entrou na posse administrativa do extinto Fundo de Fomento da Habitação, tendo sido englobado num prédio com a área total de 156.200m2, que se encontra registado a favor do IGAPHE, na 2ª Conservatória do Registo Predial de (…), e a restitui-la totalmente livre de pessoas e bens.

Todavia, face à matéria dada como provada não se pode concluir como é peticionado pelo Apelante em sede reconvencional, posto que este não fez prova do direito que se arroga, ónus que sobre si impendia nos termos do artigo 342º, nº1 do CCivil.

Efectivamente, ficou-nos um non liquet, sobre a questão da propriedade do prédio, que tem de ser decidido em desfavor do Réu.

Veja-se que até em termos de prova testemunhal, embora insuficiente para o efeito, não se conseguiu dilucidar a questão de saber a quem pertenceria o terreno se ao aqui Réu, se ao Ministério da Educação, sendo certo que aquele não juntou, como se impunha, documentos bastantes de onde resultasse, pelo menos, a presunção aludida no artigo 7º do CRPredial.

As conclusões improcedem nesta parte.

III Destarte, julga-se parcialmente procedente a Apelação, revogando-se a sentença recorrida, no seu segmento decisório em que julgou a acção procedente, absolvendo-se o Réu/Apelante do pedido contra ele formulado e mantendo-se a mesma no mais, relativamente à improcedência do pedido reconvencional.

Custas por Apelante e Apelada em partes iguais.

Lisboa, 12 de Maio de 2011

Ana Paula Boularot
Lúcia de Sousa
Luciano Farinha Alves