Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
0074722
Nº Convencional: JTRL00012460
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
PROCURAÇÃO
MANDATO
LITISCONSÓRCIO
Nº do Documento: RL199306240074722
Data do Acordão: 06/24/1993
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Recurso: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROC ESP.
DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CPC67 ART1016 N1.
CCIV66 ART262 ART1157 ART1161 D ART1163 ART1170 N2 ART1172 C.
Jurisprudência Nacional: AC STJ DE 1961/05/05 IN BMJ N107 PAG477.
AC RL DE 1990/03/08 IN CJ ANOXV T2 PAG123.
AC STJ DE 1969/03/07 IN RLJ ANO109 PAG239.
AC RL DE 1991/01/17 IN CJ ANOXVI T1 PAG286.
Sumário: I - Se os Autores conferiram aos réus a obrigação, por estes assumida, de administrarem imóvel e se tal obrigação se desdobra na prática, por conta dos autores, de uma multiplicidade de actos jurídicos e mesmo de negócios juridicos há mandato.
II - Sendo várias as pessoas obrigadas a prestar contas ou com direito a exigi-las, há litisconsórcio.
III - O cônjuge do mandante, ainda que também tenha subscrito a procuração passada ao mandatário, não tem que intervir na acção.
IV - A simples fixação, de uma retribuição a favor do mandatário não é bastante para qualificar o mandato como no interesse deste.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
(J) intentou contra Dr. (A) e sua mulher. Doutora (M), advogados, a presente acção com processo especial, de prestação de contas, alegando, em resumo, o seguinte:
Celebrou com os réus, em 17 de Agosto de 1983, um contrato de prestação de serviços através do qual estes se obrigavam à prestação de serviços respeitantes à administração da loja n. 27 do rés-do-chão do Centro Comercial (W), sito na Costa da Caparica - loja de que é dono.
Os réus obrigavam-se a prestar contas ao autor findo o contrato ou quando ele o exigisse.
Estava ainda acordado que os réus, feitas as deduções previstas no contrato celebrado, depositariam, até ao dia 20 de cada mês, o remanescente dos montantes recebidos, em conta bancária do autor no Banco Português do Atlântico.
Porém, desde Novembro de 1984, os réus deixaram de prestar contas ao autor da totalidade dos rendimentos provenientes das rendas cobradas pelo arrendamento da loja sobredita, e não efectuaram depósitos das mesmas na conta bancária do autor.
O autor insistiu várias vezes com os réus para que estes lhe prestassem contas, mas não recebeu deles qualquer resposta, motivo por que, através de carta dirigida à ré em 18/12/89, revogou o contrato de prestação de serviços que com eles celebrara, passando a receber directamente da arrendatária da loja, desde Dezembro de 1989, o montante da renda.
Conclui o autor pedindo que os réus sejam citados para apresentarem, em 20 dias, as contas da sua administração ou contestarem a acção, sob pena de não poderem deduzir oposição às contas que ele, autor, apresente.
Os réus foram citados para os fins requeridos pelo autor e com aquela cominação.
Na sua contestação começaram por afirmar que sempre prestaram contas aos mandantes, pelo que não são obrigadas a repeti-las. A obrigação de prestação de contas já se extinguiu relativamente às contas apresentadas até à data da instauração da presente acção, as quais foram aceites e tacitamente aprovadas pelos mandantes.
Alegaram, depois, a ilegitimidade do autor: a acção de prestação de contas tem de ser proposta por todos os interessados para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. Como, "in casu", o mandante marido está desacompanhado da mulher, sendo certo que também ainda não provou, nos autos, a propriedade da questionada loja, é ele parte ilegítima na acção.
Sustentaram de seguida, sob a epígrafe "Incompetência / Improvada a propriedade da loja", o seguinte:-
Os mandatos em causa ainda não foram revogados nos termos legais, subsistindo os poderes gerais e especiais conferidos aos mandatários, os quais gozam do direito de retenção. No caso vertente, o mandato foi conferido pelos mandates sem acordo dos interessados.
E quando o mandato é conferido por várias pessoas e para assunto de interesse comum, a revogação só produz efeito se for realizada por todos os mandantes, o que não se verificou no caso presente.
Depois, em sede de impugnação, alegaram que o contrato de prestação de serviços outorgado em 17/08/83 não se encontra legalmente rescindindo e que os proprietários da loja têm tido conhecimento oportuno dos arrendamentos dela, dos pagamentos e das faltas de pagamento de rendas e subsequente acção de despejo e de todos os demais assuntos com ela relacionados, tendo eles, mandatários, utilizado sempre os poderes que lhes foram conferidos em defesa dos legítimos direitos e interesses dos proprietários / senhorios da dita loja.
A finalizar a sua contestação, os réus procedem àquilo a que chamam nova pretação de contas, em repetição das já apresentadas, e pedem que lhes seja autorizado a receber dos mandantes o saldo das mesmas - 125564 escudos - que lhes é favorável, julgando-se o mesmo saldo e as verbas de crédito e débito como exactas.
O autor apresentou, de seguida, novo articulado, de contestação das contas apresentadas pelos réus, em que - além de rebater as alegações que estes aduziram em matéria de excepções - se espraia em longas considerações tendentes a demonstrar que as contas apresentadas pelos réus não são exactas, existindo, antes, um saldo de 150706 escudos a favor dele, autor.
Rematando esse articulado, o autor pede que as contas apresentadas pelos réus sejam julgadas parcialmente indocumentadas, erradas e improcedentes, devendo eles ser obrigados a justificar todas as verbas de receita e as de despesas não documentadas, e ainda condenados a pagar-lhe a quantia de 150706 escudos e juros de mora respectivos.
Responderam os réus, concluindo como o haviam a feito na sua contestação.
Seguidamente, o Mmo Juiz proferiu douta decisão em que entendeu a) que o autor pode, sozinho, propor a presente acção e que "a existir vício, seria incapacidade judiciária e não ilegitimidade"; b) que sobre os réus recai a obrigação de prestar contas, não resultando da prova documental apresentada que o tenham feito extrajudicialmente e que o autor as haja aprovado; c) que as demais questões suscitadas pelos réus - de não ter o autor provado a qualidade de proprietário da loja e de não poder ser o mandato revogado sem acordo dos interessados - não têm relevância para o caso em apreço e não podem ser discutidas sob esta forma processual; e d) que as contas apresentadas pelos réus não estão regularmente apresentadas porque o não foram sob a forma de conta corrente, devendo, por isso os mesmos réus, em 10 dias, "prestar as contas em forma de conta corrente, conforme se dispõe no art. 1016 - 1 do Código Processo Civil".
Agravaram os réus, que remataram as suas alegações enunciando as seguintes conclusões:
1 - A obrigação de prestação de contas dos mandatários já se extinguiu por terem sido precedentemente apresentadas e os mandantes as terem aceite e aprovado (art. 1163 do Código Civil);
2 - Há ilegitimidade do autor marido desacompanhado da mulher;
3 - O autor marido ainda não provou a sua qualidade de proprietário da loja em questão, e tal situação, bem como a data precisa da aquisição, é relevante para a boa decisão da causa;
4 - O mandato continua, dado a procuração não poder ser revogada unilateralmente pelos mandantes, devido à excepção do interesse invocada pelos mandatários (arts. 755 - 1.c), 1161 - d), 1170 - 2 e 1173 do Código Civil);
5 - Donde, face às contas apresentadas pela 2 vez e aos documentos justificativos que as acompanham, devem os agravantes ser autorizados a receber o saldo dos mandantes, no valor de 154217 escudos, acrescido dos juros legais desde 16/09/91, julgando-se o mesmo saldo e as verbas de crédito e débito como exactas;
6 - O Mmo Juiz "a quo" omitiu pronúncia sobre a questão arguida em 16/09/91 de que os arts. 1 a 19 da contestação do autor devem ser dados como não escritos (art. 668 - 1. d) do Código Processo Civil).
O agravado não ofereceu contra - alegações.
Na primeira instância foi sustentada a decisão agravada.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2
2.1. O processo de prestação de contas está relacionado com a obrigação a que alguém se encontra vinculado de prestar a outrem contas dos seus actos.
E quando é que pode afirmar-se a existência de tal obrigação?
Não existe norma legal que, genericamente, dê resposta a esta questão. O que há é um alargado leque de preceitos, espalhados por vários Códigos, que, casuisticamente, impõem essa obrigação (cfr. arts. 95, 662, 1920, 1944, 2002 - A, 2039 e 2332 do Código Civil; arts. 843, 1126, 1128 - 1 e 1261 do Código Processo Civil; arts. 65 a 70 do Código Soc. Com.).
E, como ensina o Prof. Alberto dos Reis (Proc. Esp., vol. I, pág. 303) pode - a partir desses normativos que, caso a caso, estabelecem a obrigação de prestar contas - extrair-se este princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses.
Assim, vezes há em que a obrigação de prestar contas decorre directamente da lei. Mas nem sempre assim é: a referidab obrigação pode derivar de negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa fé.
No caso "sub judicio" o autor invoca, como fonte de onde promana a obrigação de os réus lhe prestarem contas, um contrato que com eles celebrou em 17 de Agosto de 1983, cuja cópia se acha junta a fls. 5/7 dos autos.
Tal negócio jurídico, a que as partes chamaram "contrato de prestação de serviço", é um verdadeiro contrato de mandato.
Com efeito, o elemento nuclear de tal contrato é a obrigação, assumida pelos réus - segundos outorgantes no contrato - de proporcionarem ao autor (1 outorgante) a administração da fracção correspondente à loja n.
27 do rés do chão do Centro Comercial (W), na Costa da Caparica, e tal obrigação desdobra-se na prática de uma multiplicidade de actos jurídicos e mesmo de negócios jurídicos (cfr. cláusula 3 do contrato), pelos réus, por conta do autor - o que traduz a essência do mandato.
"É a natureza jurídica do acto objecto do mandato que o distingue do contrato de trabalho e de outros contratos de prestação de serviço de que hoje constitui uma espécie (Pessoa Jorge, "Obrigações", 1966, pág. 60).
Entre as obrigações expressamente assumidas pelos réus no contrato em apreço figura a de "prestar contas, findo este contrato ou quando o primeiro outorgante as exigir" (al. m) da cláusula 3).
Esta obrigação, mesmo que não tivesse sido clausulada, sempre decorreria directamente da lei (art. 1161 - d) do Código Civil); ela constitui uma emanação do princípio geral, acima assinalado, de que quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses.
Pode, pois, afoitamente concluir-se que sobre os réus impende a obrigação de prestar contas, dispondo, consequentemente, o autor, do direito de exigir essa prestação.
Os réus, porém, sustentam que essa sua obrigação já se extinguiu, pois que - afirmam - já prestaram as contas e estas foram aceites e aprovadas.
Esta questão prévia, suscitada pelos réus na sua contestação, mereceu na decisão sob censura o seguinte tratamento:
"(...) da prova documental apresentada (e outra não foi apresentada) não resulta que os réus tenham visto as contas aprovadas, extrajudicialmente, pelo A. ou que as tenham mesmo apresentado".
Não merece reparo o assim decidido.
Com efeito, às questões suscitadas pelo réu na sua contestação pode o autor responder "e, produzidas as provas oferecidas com os articulados, que sejam consideradas necessárias, as questões (...) serão imediatamente decididas" (art. 1014 - 2 do Código Processo Civil).
Ora, os réus, a tal respeito, limitaram-se a alegar o que consta dos arts. 1 a 4 da sua contestação, isto é:-
- que sempre prestaram contas aos mandantes, pessoalmente, no Gabinete da Administração do Centro Comercial (W);
- que houve então a entrega dos respectivos documentos comprovativos; e
- que as contas foram aceites e aprovadas tacitamente pelos mandantes.
Não ofereceram, porém, qualquer prova da factualidade alegada, juntando apenas dois "dossiers" documentais cronológicos que, no seu entender, traduzem uma nova apresentação de contas, em repetição da que anteriormente teriam efectuado.
O autor, por seu turno, negou aqueles factos, alegados pelos réus.
Sendo assim, não podia o Mmo. Juiz "a quo" deixar de concluir como o fez.
Na verdade, não está minimamente demonstrado que os réus tenham já prestado contas e menos ainda que estas tenham sido aceites e aprovadas (tacitamente!) pelo autor.
E, como se refere no Ac. STJ de 05/05/1961 (BMJ 107/477), citado na decisão recorrida, "são exigíveis em juízo contas, tanto ao que se recusa a prestá-las particularmente, como ao que, tendo-as oferecido extrajudicialmente, não logrou vê-las aprovadas por quem tem o direito de as receber ou exigir".
Dir-se-á ainda que a prestação de contas não se satisfaz com a simples "entrega dos respectivos documentos comprovativos (Cfr., neste sentido, o Ac. Rel. Lxa. de 08/03/90, in Col. Jur., ano XV, tomo 2, pág. 123).
É uma operação mais complexa, conforme mais adiante será referido.
Fica, assim, plenamente demonstrada a improcedência da primeira das conclusões dos agravantes.
2.2. Teria o autor, para assegurar a sua legitimidade no caso vertente, de propôr a acção acompanhado da mulher?
Os agravantes sustentam a afirmativa, defendendo que tal é necessário para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
"Quid juris"?
Não nos custa aceitar a existência de litisconsórcio necessário no caso de haver vários titulares do direito de exigir a prestação de contas (litisconsórcio passivo).
Com efeito, já o Prof. Alberto dos Reis, ao abordar a questão, escreveu ("Proc. Especiais", vol. I, pág. 314):
"O ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/06/1940, referindo-se ao caso de impedender sobre várias pessoas a obrigação de prestar contas, decidiu que deve a acção ser proposta contra todas, sob pena de ilegitimidade do réu; e a Relação de Lisboa, em acórdão de 07/01/1948, considerando a hipótese inversa
(de serem vários os titulares do direito de exigir a prestação), entendeu também que a acção deve ser proposta por todos, sob pena de ilegitimidade do autor".
"É a doutrina mais segura" - remata o insigne Professor.
E o mesmo entendimento foi perfilhado no Ac. Relação Porto, de 19/02/1975 (sum. in BMJ 244/317) e no Ac. Relação Lisboa, de 28/11/1980 (Col. Jur. ano v, tomo 5, pág. 26).
Porém, no caso vertente, como vimos, a obrigação de prestar contas, que impende sobre os réus, e o consequente direito do autor de exigir tal prestação, entroncam no contrato de mandato celebrado entre aqueles e este.-
A mulher do autor é de todo estranha a esse contrato - o contrato é, quanto a ela, "res inter alia acta" - pelo que não pode afirmar-se que ela seja, como o marido, titular do direito de exigir a prestação de contas.
Parece, com efeito, inequívoco que a mulher do autor nunca poderia, com base no contrato de mandato "de quo agitus", exigir dos réus a prestação de contas.
Sendo assim, como justificar a sua intervenção na acção, em veste de autora, ao lado do marido?
O art. 28 do Código Processo Civil reporta-se aos interessados na relação controvertida - interessados directos, entenda-se. E tal qualificação não cabe, "in casu" à mulher do autor.
Por outro lado, também não estamos perante acção - das indicadas no art. 18 do Código Processo Civil - que tenha de ser proposta por ambos os cônjuges.
E nem se diga que a necessidade de intervenção da mulher do autor decorre do facto de, juntamente com o marido ter, logo no dia 18/08/1983, outorgado a procuração cuja cópia se acha a fls. 85, por meio da qual constituiram os réus "seus bastantes procuradores" e lhes conferiram "todos os poderes precisos para em nome dos mandantes administrar a fracção autónoma (...) correspondente à loja número vinte e sete (...) e, em consequência, fazer, alterar, renovar ou rescindir arrendamentos (...)" e ainda "poderes forenses gerais e os especiais para confessar qualquer acção, transigir sobre o seu objecto e desistir do pedido ou da instância".
É que a procuração e o mandato são realidades jurídicas distintas: aquela é o negócio jurídico pelo qual alguém confere poderes de representação a outrem (art. 262 do Código Civil), isto é, poderes para celebrar, em nome do representado, um ou vários negócios jurídicos; o mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra (art. 1157).
A procuração tem como traço essencial a atribuição voluntária de poderes representativos; o mandato pode ser acompanhado da outorga de poderes representativos (mandato com representação) ou desacompanhado da outorga de tais poderes (mandato sem representação).
São, pois, realidades distintas o contrato de fls. 5/7 e a procuração de fls. 85: e o direito de exigir a prestação de contas funda-o o autor apenas e só naquele contrato, no qual, repete-se, não interveio a sua mulher.
Não se verifica, pois, a alegada ilegitimidade do autor por não se achar acompanhado da mulher na presente lide.
E, "en passant", refira-se que, contrariamente ao que se expressou no despacho recorrido, a questão é mesmo de ilegitimidade, não de incapacidade judiciária (Cfr. A. Varela, M. Bezerra e S. Nora,
"Manual de Processo Civil", 1 ed., 1984, págs. 163/164 e A. Anselmo de Castro "Do Código Civil para o Código Processo Civil" - Coimbra, 1967, pág. 16.
2.3. Ainda na tentativa de demonstrarem a ilegitimidade do autor, sustentam os réus que este "não provou nos autos a propriedade da questionada loja".-
Não se vê, porém, que tal prova seja necessária para aferir da legitimidade do autor.
De acordo com o art. 26 do Código Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, exprimindo-se esse interesse pela utilidade derivada da procedência da acção.
A legitimidade das partes é, entre nós, um pressuposto processual: é uma posição das partes em relação ao objecto do processo e tem de aferir-se pelos termos em que o demandante configura o direito invocado e a ofensa que lhe é feita (Ac. STJ de 25/01/1972, in BMJ 213/250).
Assim, para a determinação da legitimidade das partes - e porque não há coincidência entre os conceitos de legitimidade processual e legitimidade substantiva - "deve considerar-se a relação material controvertida tal como é invocada pelo autor, visto que é quase sempre impossível averiguar se os autores e os réus são, efectivamente, sujeitos dessa relação sem que tal averiguação venha a traduzir-se no conhecimento do mérito da causa" (Ac. Relação Coimbra de 01/04/1977, in Col. Jur. ano II, pág. 292).
No caso, o autor invoca um contrato que celebrou com os réus, através do qual estes se obrigaram a prestar-lhe os serviços respeitantes à administração de uma loja de que aquele se afirma dono, estando ainda obrigados, no âmbito desse contrato, a prestarem-lhe contas; e pede que os réus sejam citados para apresentarem as ditas contas da sua administração.
Em sede de legitimidade processual importa apenas a análise da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo autor e, nesse aspecto, impõe-se concluir pela sua legitimidade para a dedução do pedido que formula.
A prova do que o autor alega contende já com o fundo da causa, situando-se, pois, para além da questão da legitimidade (sem que, com isto, queira significar-se que a prova da propriedade da loja seja necessária ao triunfo da pretensão do autor).
E, a este propósito, não deixa até de estranhar-se a alegação dos réus, pois que eles não impugnaram a qualidade, invocada pelo autor, de proprietário da loja: ao invés, em vários passos do processo há o reconhecimento expresso, pelos réus, dessa qualidade -
é ver os arts. 14, 15 e 16 da sua contestação e o n. 5 (2 parte) das suas alegações de recurso.
Não ocorre, pois, a pretendida ilegitimidade do autor com fundamento em não ter provado a sua qualidade de dono da loja em questão.
E porque também não se vê - nem os réus explicam porquê - que tal prova e a data precisa em que o autor adquiriu a loja em causa tenham qualquer relevância para a boa decisão do pleito (uma vez que a questão discutida nos autos é, tão só, a de saber se os réus devem prestar contas da sua administração), não resta senão concluir pela improcedência da 3 conclusão dos agravantes.
2.4. O autor pretende dos réus a prestação de contas desde Novembro de 1984 até à data da revogação do contrato de mandato que com eles celebrou - revogação que aquele reporta a 18/12/89, data em que dirigiu
à ré a carta registada cuja cópia se acha a fls. 18.
Objectam, porém, os réus que o mandato foi conferido também no interesse deles, mandatários, pelo que não pode ser revogado pelo mandante sem acordo dos interessados.
Ainda, porém, que assim fosse - i. e., ainda que o mandato, no caso vertente, tivesse sido também conferido no interesse dos réus mandatários - ainda assim tal constatação em nada contenderia com o direito do autor, de exigir daqueles a prestação de contas.
É que, como vimos já, foi expressamente clausulada na al. m) da cláusula 3 do contrato e resulta do art. 1161 - d) do Código Civil, a obrigação dos réus de prestarem contas findo o contrato ou quando o autor as exigir.
Portanto - repete-se - ainda que fosse de entender que o contrato de mandato continua em vigor, tal entendimento não postergaria o direito do autor à reclamada prestação de contas.
Mas o certo é que nem sequer pode sufragar-se a ideia de que o mandato foi também, "in casu", conferido no interesse dos mandatários.
Os réus, aliás, limitam-se a avançar tal afirmação, mas não curam de a justificar minimamente.
E se, como parece e é de supor, se fundam na remuneração a seu favor estabelecida nas cláusulas 8 e 9 do contrato - e da leitura dos termos de tal contrato não enxergamos qualquer outra cláusula que possa servir de suporte a tal ideia - estão, a nosso ver a fazer incorrecta interpretação do texto legal (art. 1170 n. 2 do Código Civil).
Já o Prof. Vaz Serra, em anotação ao Ac. do STJ de 07/03/1969, escreveu, na Revista decana (ano 109, pág. 239) que "o simples facto de o mandato ser oneroso, isto é, retribuído, não faz com que ele seja conferido também no interesse do mandatário, como o revelam claramente os arts. 1170 n. 2 e 1172, al. e) do novo Código Civil: a retribuição é apenas uma remuneração pelo trabalho do mandatário".
E idêntico entendimento é perfilhado por Durval Ferreira - "Do mandato civil e comercial", ed. do autor - para quem a remuneração do mandatário, representando um interesse deste em conexão com o mandato, não é bastante para o qualificar como mandato de interesse comum. A própria essência do mandato - diz este autor - mostra que não basta a existência de qualquer interesse acidental, estranho àquela essência, para o mandato poder ser qualificado de interesse comum.
O mandato só pode ser qualificado como conferido no interesse do mandatário ou de terceiro se estes têm interesse naquilo que constitui a essência do mandato - o exercício autónomo, pelo agente, de uma actividade cujo efeito, assim por ele autonomamente modelado, deve ser recebido na esfera doutrem; ou seja, se eles têm interesse positivo nessa faculdade mesma de autonomamente criar algo para o outro, se eles têm positivo interesse nesse poder ou direito de modelação da esfera alheia (ob. cit., pág. 59).
Em conclusão: o mandato só pode ser considerado de interesse comum "quando aparece um interesse do mandatário ou de terceiro no livre exercício do poder modelador da esfera alheia, teleologicamente encarado e desejado, e para protecção de um bem juridicamente reconhecido" (ibidem, pág. 65).
Rejeitando ainda a ideia de que o simples facto do estabelecimento de uma retribuição a favor do mandatário não é bastante para qualificar o mandato como estabelecido no interesse deste, está o Ac. Rel.
Évora de 17-1-91 (Col. Jur., ano XVI, tomo 1, pág. 286), que conclui que para se poder falar de mandato conferido no interesse do mandatário é necessário que, pelo exercício dos poderes conferidos pelo mandante, aquele desempenhe actividade que, por si mesma, se repercuta directamente na esfera patrimonial do mandatário, podendo aumentá-la.
É - se bem percebemos - um entendimento que tem certas afinidades com a opinião de Durval Ferreira, acima expressa.
E do que fica exposto decorre que não podem os réus valer-se daquilo que designam por "excepção do interesse" (Cfr. sua conclusão 4) para, por aplicação do n. 2 do art. 1170 do Código Civil obviarem à livre revogação do mandato, decorrente do n. 1 do mesmo normativo.
Igualmente lhes não aproveita o disposto no art. 1173 (que também invocam), uma vez que, como já demonstramos, o mandato de que aqui se cura foi apenas conferido pelo autor, não sendo, pois, um mandato colectivo.
Improcede, pois, também a 4 conclusão dos agravantes.
2.5. Mas o certo é que os réus, com a sua contestação, vieram também fazer aquilo que designaram por "nova prestação de contas", e pedir que lhes fosse autorizado o recebimento do saldo das mesmas, que disseram ser de 125564 escudos e que mais tarde rectificaram para 154217 escudos.
Entendeu-se, porém, na decisão sob recurso, que tais contas, apresentadas pelos réus, "não estão regularmente apresentadas, pois não o foram sob a forma de conta corrente" - entendimento com o qual os réus persistem em não concordar.
Que dizer?
Como se alcança dos arts. 17 e seguintes da contestação dos réus, a sua alegada prestação de contas resume-se
à apresentação de dois "dossiers cronológicos" respeitantes à loja em causa, que englobam um aglomerado de documentos, muitos dos quais justificativos de recebimentos e de pagamentos efectuados pelos mesmos réus.
Ora, o art. 1016 n. 1 do Código Processo Civil estatui que "as contas que o réu deva prestar são apresentadas em forma de conta corrente, e nelas se especificará a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo".
Comentando o preceito correspondente do Código de
39 o Prof. Alberto dos Reis, com a lucidez e clareza habituais, afirmava:
"Quando se diz - as contas devem ser apresentadas em forma de conta corrente - quer-se aludir a uma forma gráfica de contabilidade, a um determinado método de dar a conhecer as operações de crédtito e débito entre duas pessoas.
A espécie gráfica conta corrente decompõe-se em três elementos fundamentais: receitas, despesas, saldo. As contas apresentam a expressão ou a forma gráfica de conta corrente quando em colunas separadas se inscreverem as verbas de receita, as verbas de despesa, e o saldo resultante do confronto dumas e doutras.
As verbas de receita inserem-se em coluna que tem a rubrica Haver; as verbas de despesa em coluna encimada pela palavra Deve.
O § 1 do art. 1015 (hoje, o n. 1 do art. 1016) não se limita a exigir que as contas sejam apresentadas em forma de conta corrente; acrescenta: especificando a proveniência das receitas e a aplicação das despesas.
Sublinhamos a palavra especificando, porque foi intencionalmente empregada para significar que ao réu incumbe descriminar e individualizar as diferentes fontes de receita e as diferentes causas de despesa ("Proc. Esp.", vol. I, reimpressão, pág. 315).
É manifesto que os réus não observaram o procedimento acabado de indicar, não se descortinando como chegam ao invocado saldo a seu favor.
Bem decidiu, por isso, o Tribunal "a quo", rejeitando aquelas contas e convidando os réus a apresentarem novas contas em forma de conta corrente, tal como determina o aludido art. 1016 n. 1 do Código Processo Civil.
Carece, assim, de razoabilidade o que consta da 5 conclusão dos réus agravantes.
2.6. A última conclusão por estes formulada tem a ver com alegada omissão de pronúncia por parte do Mmo Juiz "a quo", que nada disse quanto à questão, suscitada pelos réus, de deverem ser dados como não escritos, por não obedecerem ao disposto no artigo 1017 do Código Processo Civil, os arts. 1 a 19 do articulado em que o autor contestou as contas apresentadas pelos réus.
O Juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (art. 660 - 2 do Código Processo Civil).
A omissão de pronúncia é causa de nulidade da sentença (art. 668 - 1 d) do mesmo Código).
Verificada ela a Relação, embora reconhecendo a nulidade, sempre deveria conhecer da questão cuja análise e decisão foi omitida, e decidir em conformidade. É a solução que decorre do art. 715 do Código Processo Civil, aplicável ao agravo "ex vi" do art. 749 (Cfr. Ac. Rel. Lx., de 21/01/1976, BMJ 255/209).
No caso vertente, porém, não ocorre a invocada omissão de pronúncia.
É que, tendo o Mmo. Juiz "a quo" decidido que as contas apresentadas pelos réus não estão regularmente apresentadas e que os mesmos deverão apresentar novas contas, perde todo o interesse qualquer alegação do autor formulada no articulado em que contestou as contas irregularmente apresentadas.
Assim, a questão de saber se os arts. 1 a 19 do aludido articulado do autor deveriam ou não ser dados como não escritos, fica prejudicada pela decisão do Mmo Juiz de determinar a apresentação de novas contas, pelos réus.
Por isso, de tal questão não carece o juiz de conhecer, por se conter no âmbito da excepção enunciada no citado n. 2 do art. 660 do Código Processo Civil.
3.
Face a tudo quanto se deixa exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão agravada.
Custas pelos agravantes.
Lisboa, 24 de Junho de 1993
António Cardoso do Santos Bernardino.