Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
131/12.4YRLSB-7
Relator: ANA RESENDE
Descritores: VEÍCULO AUTOMÓVEL
PRIVAÇÃO DE USO
SALVADOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - Da impossibilidade de disponibilidade material da viatura pelo respetivo dono decorrem danos de maior ou menor extensão, carecendo da adequada compensação.
II - No caso de não se poder averiguar o valor exato do prejuízo a ressarcir, deverá lançar-se mão a juízos de equidade.
III - Traduzindo-se o simples uso da viatura numa vantagem suscetível de avaliação pecuniária, e constituindo a respetiva privação um dano patrimonial, com a correspondente tradução monetária, a exigência da prova da ocorrência de danos diretamente imputáveis a tal privação, apenas se justificará se o lesado pretender a atribuição de uma quantia suplementar, visando fazer face a despesas acrescidas advindas da referida privação, ou a benefícios que deixou de obter, resultantes da mesma.
IV - Se o salvado se mantém na posse do seu titular, o respetivo valor deve ser tomado em linha de conta no quantum indemnizatório achado a título de perda total do veículo.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I - Relatório
1. A, veio apresentar reclamação junto do Serviço de Mediação e Arbitragem de Seguros, contra COMPANHIA DE SEGUROS, formulando a pretensão de haver a indemnização decorrente de acidente de viação, reportada ao veículo acidentado, no valor de 51.850,00€ e 8.150€, como compensação pela não utilização da viatura.
2. A Reclamada apresentou contestação.
3. Realizado julgamento arbitral foi proferida decisão que julgou a reclamação parcialmente procedente, condenando a Reclamada a pagar ao Reclamante a quantia de 51.850,00€, valor do veículo perdido, acrescida da quantia de 7.125,00€ por privação de uso do veículo perdido até à data em que foi proferida (285 dias decorridos desde o acidente até 23 de outubro de 2011, à taxa diária de 25,00€) e, ainda, dos dias que decorrerem até integral pagamento aquela mesma taxa diária de 25,00€. Quanto ao salvado do veículo CA, ficará o mesmo na propriedade da Companhia de Seguros, para o que o Reclamante deverá assinar e entregar a esta Seguradora o respetivo documento de transmissão no ato de pagamento da indemnização.
4. Inconformada, veio a Reclamada interpor recurso de apelação, formulando, nas suas alegações as seguintes conclusões:
· O A. não provou a verificação da privação de uso, nada existindo a este título no elenco dos factos provados, razão pelo qual deve decair o pedido do Apelado, nessa matéria.
· O valor do salvado dever ser atendido para efeitos do cômputo da indemnização a prestar ao Apelado, sendo certo que, a prova do valor do salvado consta do item 15 da mui douta sentença.
· Não pode o muito douto Tribunal a quo rejeitar o valor do salvado, descontando-o à indemnização com o argumento de que o mesmo foi determinado há oito meses, quando da prova nada resulta a essa título.
· O valor do salvado, que não teve qualquer oposição, deve ser efetivamente descontado na indemnização, ficando igualmente o Apelado com o veículo, cumprindo-se assim o disposto nos art.º 562 e seguintes do CC, em particular o relativo ao disposto no art.º 566, também do CC.
· Para uma correta e justa composição da indemnização a prestar ao lesado tem de se aferir o valor do salvado, fazendo-se um mútuo encontro de contas, ou compensação, situação que a mui douta sentença, com a decisão proferida não permite efetuar.
· Verifica-se a violação do disposto nos art.º 562 e segs. do CC, o que se alega para todos os devidos e legais efeitos.
· Nestes termos deve a sentença ser parcialmente revogada.
5. Nas contra-alegações o Reclamante pronunciou-se no sentido da manutenção do decidido.
6. Cumpre apreciar e decidir.
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II – Os factos
Na decisão sob recurso foram considerados como provados os seguintes factos:
1- O veículo ligeiro de passageiros (RO) estava seguro na Seguros, S.A, pela apólice … sendo conduzido na altura do acidente por M.
2- O veículo ligeiro de passageiros (CA), era conduzido na altura do acidente pelo seu proprietário A.
3- O acidente ocorreu no dia 11 de janeiro de 2011, pelas 18,15h, no cruzamento da Av. ….com a Av …..
4- O veículo RO circulava na Av. …. no sentido Nascente/Poente, …...
5- O veículo CA circulava em sentido inverso e pretendia tomar a Av. …. no sentido da A1, mudando de direção à esquerda.
6- Para quem efetuar esta manobra, mudança de direção à esquerda, há duas vias de trânsito para os veículos que proveem do …., situando-se o condutor do veículo CA, na via da direita ao lado do veículo conduzido pela testemunha S, que circulava na da esquerda e que também pretendia efetuar aquela manobra.
7- O condutor do veículo CA arrancou iniciando a manobra de mudança de direção à esquerda, na altura em que a sinalização semafórica passou a verde, sendo precedido pelo arranque do veículo conduzido pela testemunha S… que, entretanto, afirmou estar a sintonizar o rádio enquanto estava parado.
8- O cruzamento é regulado por sinalização semafórica que na parte que interessa para a determinação de responsabilidade funciona do seguinte modo:
- quando a sinalização semafórica está verde para os veículos que circulam na Av. no sentido em que o fazia a condutora do RO, está simultaneamente vermelha para os veículos que provindos do ……, pretendem, no cruzamento, mudar de direção à esquerda, como fazia o condutor do CA.
- quando a sinalização passa a verde, para os veículos que provindos do A… pretendem mudar de direção à esquerda, como fazia o condutor do CA, passa a vermelha a sinalização para os condutores dos veículos que circulam como o fazia a condutora do RO.
- na transição da luz verde para a vermelha no semáforo que se apresentava à condutora do RO, existe uma luz amarela, cuja duração é de cerca de 3,15 segs.
- não existe qualquer simultaneidade entre a luz verde que se apresenta aos condutores que circula como o fazia o condutor do CA e a luz amarela que se apresenta aos condutores que circulam como fazia a condutora do RO.
9- A condutora do veículo RO, M, afirmou terem passado no sentido e direção em que seguia, vários veículos à sua frente, ainda no decurso do sinal verde e um veículo branco já com o sinal amarelo.
10- Indicou ter avistado a passagem à luz amarela num ponto da Av. …, que se verificou distar 13 m antes da sinalização semafórica e 18 m da linha imaginária que separa as faixas de rodagem da Av. …e da Av. ….
11- A largura das faixas de rodagem no cruzamento, totaliza 28m.
12- O veículo CA após o embate na sua lateral direita, pela frente do veículo RO, capotou e foi parar a cerca de 10m de distância do ponto de embate, o qual se situou cerca do ponto médio da faixa de rodagem da Av. …..
13- O veículo CA é um Range Rover que pesa 2,560Kg, sendo o veículo RO um Opel Zafira.
14- A Av. de … nas imediações do semáforo que se apresentava à condutora do RO, é de traçado ascendente de inclinação média.
15- A reclamada considerou perda total do veículo CA, estimando o seu valor venal em 51.850,00€ e, para o salvado do referido veículo, 13.266,00€.
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III – O Direito
Como se sabe, o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, importando em conformidade decidir as questões Sabendo-se que o Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está o mesmo sujeito às razões jurídicas invocadas também pelas partes, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, art.º 664, do CPC.
nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, com exceção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, vejam-se os artigos 684.º, n.º 3, e, 660.º, n.º 2, e 713.º, todos do CPC.
Delimitado assim o objeto do recurso apresentado, importa apreciar as questões suscitadas pela Recorrente que se prendem com o quantum indemnizatório fixado, no concerne à verba fixada a título de privação de uso, que entende não ser devida, pretendendo, por sua vez, que seja contabilizada o valor apontado como do salvado, e descontado no quantitativo achado.
Da privação do uso.
Invoca a Recorrente que o Apelado não provou a verificação da privação de uso, nada existindo a esse título no âmbito dos factos provados, sendo que seria necessário que o lesado tivesse alegado e provado que a detenção ilícita da coisa por outrem frustrou um propósito real, concreto e efetivo, de proceder à sua utilização.
Vejamos.
Como se sabe, segundo a regra geral consagrada no art.º 562, do CC, quem está obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que determina a reparação, considerando-se a reconstituição natural como o meio mais eficaz de garantir o interesse do lesado, por adequada a repô-lo na situação anterior ao acidente.
Quando a reconstituição natural for impossível, ou excessivamente onerosa para o devedor, deverá a indemnização ser fixada em dinheiro, tendo sempre como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, com referência à data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria, nesse mesmo momento, se não tivesse ocorrido a lesão, n.º1 e 2, do art.º 566, do CC.
Estando em causa o dano resultante da privação do uso da viatura e da correspondente utilidade que a mesma poderia proporcionar, surge-nos como inquestionável, que o proprietário de uma viatura automóvel goza do direito de a fruir de modo pleno e exclusivo, nos termos que entender por convenientes Sem prejuízo dos limites da lei e com a observância das restrições por ela imposta, art.º 1305, do CC., ficando na sua disponibilidade a respetiva utilização, ou mesmo o não uso, sendo esta última opção, sem quaisquer dúvidas, uma manifestação dos poderes em que se encontra investido.
Da impossibilidade de disponibilidade material da viatura pelo respetivo dono decorrem, assim, danos de maior ou menor extensão, conforme o caso concreto, mas carecendo da adequada compensação, sendo que no caso de não se poder averiguar o valor exato do prejuízo a ressarcir, se deverá lançar mão a juízos de equidade, como resulta do art.º 566, n.º3 e art.º 4, ambos do CC.
Na verdade, traduzindo-se o simples uso do bem numa vantagem suscetível de avaliação pecuniária, e constituindo a respetiva privação um dano patrimonial, com a correspondente tradução monetária, a exigência da prova da ocorrência de danos diretamente imputáveis a tal privação, apenas se justificará se o lesado pretender a atribuição de uma quantia suplementar, visando fazer face a despesas acrescidas advindas da referida privação, ou a benefícios que deixou de obter, resultantes da mesma.
Reportando-nos aos presentes autos, resultou apurado que a Recorrente, enquanto reclamada considerou a perda total do veículo, perda esta que não se mostra questionada em consequência do acidente, ocorrido em 11 de janeiro de 2011, pelo que, necessariamente, ficou o Recorrido impossibilitado de o poder utilizar.
Resultando dos autos uma, ainda que mera, indisponibilidade material da viatura, a mesma gera a obrigação de reparar, pelo que provado o dano, para a sua quantificação surge adequado o recurso a um juízo de equidade, em termos de justiça real, no sentido de ajustada às circunstâncias do caso concreto.
Assim, na falta de despesas concretas decorrentes dessa indisponibilidade, e das condições específicas da utilização do veículo pelo Apelado, mas não deixando de ter presente que a viatura automóvel constitui um bem de consumo amplamente utilizado no dia a dia da generalidade das pessoas, considerando o tipo de carro em causa, configura-se como equilibrado, o montante fixado, que aliás, em si, não se mostrou contrariado.
Do salvado
Vem a Recorrente invocar que o valor do salvado devia ter sido atendido para efeitos do cômputo da indemnização, valor esse que não teve qualquer oposição, ficando igualmente o Apelado com veículo, cumprindo-se, desse modo o disposto no art.º 562, e em particular o previsto no art.º 566, ambos do CC.
Na decisão sob recurso considerou-se que o valor do salvado ficaria na propriedade da Recorrente, não sendo efetuada qualquer dedução, decorrentemente do montante indemnizatório, fundando o entendimento no facto de o valor ter sido determinado há mais de oito meses, não sendo certo que o mesmo se mantivesse, pois tal não fora provado pela Apelante.
Apreciando, como já se referiu, nos termos do art.º 566, n.º1, do CC, procede-se, em princípio à restauração natural, surgindo a indemnização a título sucedâneo, não se questionando nos presentes autos, a perda total do veículo, conforme foi considerado pela Recorrente, bem como o respetivo valor venal, pela mesma estimado, orçando em 51.850,00€, apurado estando, também que para o salvado, por aquela, foi indicado o valor de 13.266,00€.
Na verdade, resulta dos autos, veja-se logo a fls. 6, e não é escamoteado pelo Recorrido, a remessa de uma comunicação com tal apreciação, cujo envio se compreende no âmbito da regularização dos sinistros, nos termos do art.º 31 e seguintes, do DL 291/2007, de 21 de agosto, regime do seguro de responsabilidade resultante da circulação de veículos automóveis, que nos diz no seu art.º 41, sob a epígrafe “perda total”, que em tal situação se encontra o veículo interveniente num acidente, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através de reparação do veículo, n.º1.
Esclarece-se, por outro lado, no n.º3 da mesma disposição legal, que o valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo (valor de substituição no momento anterior ao do acidente, n.º 2), deduzido do valor do respetivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.
Refira-se, que tal entendimento, se adequa ao constante no CCom, art.º 439 §2.º - o segurado não tem o direito de abandonar ao segurador os objetos salvos do sinistro, e o valor destes não será incluído na indemnização devida pelo segurador, bem como deve considerar-se uma manifestação do previsto no art.º 129, do regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de abril Cfr. Pedro Romano Martinez, e outros em Lei do Contrato de Seguro Anotada, pag. 366..
Voltando aos autos, configura-se que o salvado se mantém na posse do seu titular, sendo que contrariamente ao que o mesmo pretende fazer agora valer em sede do presente recurso, não constitui esta a sede própria para apreciar da inadequação dos termos da missiva da Recorrente ao Recorrido, na inobservância do disposto no n.º 4, do art.º 41, do mencionado DL 291/2007, de 21 de agosto, bem como das respetivas consequências, maxime em termos de obstar ao funcionamento de uma previsão legal, no atendimento de uma situação tal como foi configurada, em momento próprio, pelas partes.
Com efeito, constitui princípio básico e elementar em matéria de recursos que os mesmos visam a reapreciação de decisões proferidas pelos tribunais recorridos, art.º 676, nº 1, do CPC, estando em causa a modificação da decisão por via do reexame da matéria nela constante e não a criação de decisão sobre matéria nova.
De acordo com a natureza e função processual do recurso o seu regime é o de revisão ou de reponderação, porquanto, repita-se, o tribunal de recurso não pode ter por objeto a apreciação e decisão de questões novas, isto é, ao tribunal ad quem está vedada a possibilidade de se pronunciar sobre matéria não submetida à apreciação do tribunal a quo, não podendo, por isso, o recurso ter por objeto questões que as partes não tenham levantado para a apreciação do tribunal recorrido nos articulados da causa e que não foram por ele apreciadas, vedado ficando a este Tribunal conhecê-la.
Aqui chegados, e no atendimento dos normativos enunciados, bem como do factualismo dado como provado, na apreciação da realidade reportada à viatura, no sentido da estimativa da respetiva depreciação, e do valor do salvado, resulta que deveria ter sido tomado em linha de conta este último no quantum indemnizatório achado a título de perda total, sendo certo que não se divisa a razão de ser da desconsideração efetuada com base no decurso do tempo, face aos elementos dos autos e ao dado como apurado, tão só, aliás, quanto ao valor do salvado.
Em conformidade, e como decorre do legalmente preceituado, ao valor venal do veículo deverá ser deduzido o valor, apontado nos autos, do salvado.
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IV – DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e assim:
1. Revogar a sentença na parte que ordenou que o salvado ficasse na propriedade da Seguradora.
2. Determinar que ao valor do veículo perdido, 51.850,00€, seja descontado o valor do salvado de 13.266,00€.
3. Manter no mais o decidido.
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Custas pelo Reclamante e Reclamada, na proporção de vencidos.
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Lisboa, 27 de Março de 2012

Ana Resende
Dina Monteiro
Luís Espírito Santo