Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
21761/22.0T8LSB-A.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: ARTICULADO
ROL DE TESTEMUNHAS
OMISSÃO NO FORMULÁRIO ELECTRÓNICO
PORTARIA N.º 280/2013 DE 26-08
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A norma do nº 4 do art.º 7º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, na redação que lhe foi conferida pela Portaria nº 267/2018, de 20-09 é formal e organicamente inconstitucional, por consagrar uma cominação processual não prevista na Lei processual civil, violando por isso o disposto nos art.ºs 112º, 161º, al. c), e 198º, nº 1, al. a), todos da Constituição da República Portuguesa.
II - Consequentemente, devem os Tribunais recusar a aplicação desta norma – art.º 204º da CRP.
III - Nas situações em que o autor ou o réu, na petição inicial, na contestação, ou na réplica arrolam testemunhas, mas não inserem no respetivo formulário eletrónico, a informação respeitante à prova testemunhal, não ocorre contradição entre o articulado e o formulário, mas antes omissão do preenchimento de um dos campos deste último.
IV - Nas circunstâncias descritas em III- não tem aplicação a cominação prevista no art.º 144º, nº 10, al. b) parte final do CPC e no art.º 7º, nº 2 da Portaria nº 280/2013, antes se devendo simplesmente considerar regularmente apresentado o rol de testemunhas, por ser evidente a vontade da parte em indicar prova testemunhal, aliás em conformidade com o disposto nos art.ºs 552º, nº 6 e 572º, al. d) do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
A, Lda., intentou ação declarativa de condenação com processo comum contra B, Lda., pedindo a condenação desta a pagar-lhe determinada quantia em dinheiro.
Citada, a ré contestou, tendo apresentado, no final deste articulado, um requerimento probatório com o seguinte teor:
“Rol de Testemunhas: 
A) JM, residente na Rua …, n.º ..., Beja. 
B) FM, residente na Rua …, n.º …, Mafra, a apresentar. 
C) - RS, residente na Rua …, n.º ..., Casal de Cambra, a apresentar;
D) - PS, residente na Rua …, n.º …, Casal de Cambra, a apresentar;”
A contestação deu entrada em juízo por meios telemáticos, sendo que no formulário eletrónico de remessa deste articulado o campo destinado à identificação dos meios de prova foi deixado por preencher.
No desenvolvimento da causa, realizou-se audiência prévia, no decurso da qual foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Nos autos o requerimento probatório constante do formulário da PI, bem como a testemunha ora a testemunha aditada, sendo todas as testemunhas a notificar.
 No que diz espeito ao requerimento probatório da R., considerando a sua ausência nesta diligência de audiência prévia e a circunstância de nos termos da lei, em caso de divergência entre o formulário e o articulado, prevalecer o primeiro, consigna-se para todos os efeitos que inexiste tal requerimento probatório.”
Este despacho foi proferido sem que a ré tenha sido convidada a apresentar novo formulário de apresentação da contestação com indicação das testemunhas que arrolou na contestação, seja mediante notificação oficiosa da secretaria, seja mediante despacho.
Inconformada com aquele despacho, a ré interpôs o presente recurso de apelação, cuja motivação resumiu nos termos das seguintes conclusões:
1.ª Determina o art.º 572º do Cód. Proc. Civil que é na contestação que o réu deve apresentar o seu rol de testemunhas e requerer outros meios de prova.
2.ª No dia 21 de Novembro de 2022, com a referência 43944978, subscrita pela sua então mandatária, a Exma. Senhora Dr.ª CL, a R. apresentou a sua contestação, na qual fez contar o seu rol de testemunhas, constituído por JM, FM, RS e PS, e indicou as suas respetivas moradas para notificação.
3.ª Não obstante ter indicado, na contestação que apresentou em juízo, o seu rol de testemunhas, que identificou pelo nome completo e morada, a R. não preencheu, no formulário fornecido pela plataforma informática, no local a tal destinado, a informação sobre as testemunhas e suas moradas.
4.ª Em face disso, a Mma Juiz a quo, socorrendo-se do disposto no nº 10 do art.º 144º do Cód. Proc. Civil, considerando haver divergência entre o formulário e o articulado, e dever prevalecer o primeiro, consignou, para todos os efeitos, como inexistente o requerimento probatório da R. apresentado na contestação.
5.ª Com tal despacho violou a Mma Juiz a quo o direito de defesa da R., o princípio do contraditório e o princípio da igualdade das partes, previstos nos art.ºs 3º e 4º do Cód. Proc. Civil, bem como o disposto nos art.ºs 144º, nº 2, 572º e 573º, igualmente do mesmo diploma legal, e o disposto nos nºs 3 e 4 do art.º 7º da Portaria 280/2023, de 26 de Agosto.
6.ª Bem como desconsiderou jurisprudência já prolatada e firmada pelos tribunais superiores.
7.ª No que respeita à apresentação em juízo dos atos processuais, estatui o art.º 144º do Cód. Proc. Civil que “1. Os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são apresentados a juízo por via eletrónica, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva expedição.” e que “2. A apresentação de peça processual nos termos do número anterior abrange também os documentos que a devam acompanhar, ficando a parte dispensada de remeter os respetivos originais (...)”.
8.ª A portaria em causa é a Portaria 280/2013, de 26 de Agosto, nas suas sucessivas versões.
9.ª De acordo com o disposto no nº 1 do art.º 6º da referida Portaria, a apresentação de peças processuais é efetuada através do preenchimento de formulários disponibilizados, aos quais se anexam os ficheiros com a restante informação legalmente exigida, conteúdo material da peça processual e demais informação que o mandatário considere relevante e que não se enquadre em nenhum campo dos formulários.
10.ª Por sua vez, o nº 2 dessa mesma norma legal determina que a informação inserida nos formulários é refletida num documento que, juntamente com os ficheiros anexos referidos na alínea a) do número anterior, faz parte, para todos os efeitos, da peça processual (sublinhado nosso).
11.ª Assim sendo, temos como certo que a contestação, contendo o rol de testemunhas da R., passou a fazer parte integrante do ficheiro único, de formato digital, criado pelo sistema informático.
12.ª Logo, não podia ser declarada “inexistente” a prova indicada pela R. na sua contestação.
13.ª De facto, a falta de preenchimento do formulário no que respeita à informação específica sobre as testemunhas não pode ter como consequência a “desconsideração” do rol de testemunhas apresentado na peça processual designada para o efeito, no caso, a contestação.
14.ª Sobre esta questão já se pronunciaram os vários Tribunais da Relação, deixando-se aqui como exemplos:
a) o decidido no Ac. da  Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-01-2016, proferido no âmbito do proc. nº 390/15.0T8CSC-A.L1-4: “Tendo sido propósito do legislador com a implementação do projeto de desmaterialização eliminação e simplificação dos atos processuais agilizar e simplificar a justiça e consequentemente aproximar esta dos cidadãos com salvaguarda dos respetivos direitos não é de rejeitar o rol de testemunhas que não foi inserido no campo do formulário respectivo mas apenas no ficheiro anexo onde consta o conteúdo material da peça em questão contestação”;
b) o decidido no Ac. da Relação de Guimarães, de 11-05-2010, proferido no âmbito do proc. nº 5834/09.8TBBRG-C.G1: “Deve ser admitido o rol de testemunhas constante do requerimento probatório anexo ao formulário de requerimento probatório disponibilizado pelos sistema informático sítios apesar da omissão de preenchimento do campo daquele formulário destinado ao arrolamento das testemunhas.”;
c) o decidido no Ac. da Relação do Porto, de 12-04-2010, proferido no âmbito do proc. nº 823/08.2TBCH-A.P1:  “II- Assim, caso o rol de testemunhas tenha sido inserido na contestação anexa ao como ficheiro ao formulário disponibilizado no endereço electrónico necessário, mas não tenha sido inserido no campo específico do formulário relativo à apresentação dos meios de prova, deve ser admitido rol de testemunhas, uma vez que a peça processual em causa passa a fazer parte integrante do ficheiro único, do formato digital criado pelo referido sistema informático.”;
d) o decidido no Ac. da Relação de Lisboa, de 30-09-2021, proferido no âmbito do proc. nº 4093/20.6T8OER-A.L1-8: “(...) Deve assim entender-se que embora não constando do próprio articulado não pode deixar de ser atendida a indicação de prova contida no formulário que aquele acompanhe uma vez que o mesmo constitui parte integrante da peça processual entregue.”.
15.ª Estipula o nº 3 do artigo 7º da Portaria nº 280/2023 que a desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos não prejudica a possibilidade da mesma ser corrigida, quer a requerimento da parte, quer oficiosamente, 
16.ª acrescentando no seu nº 4 que, nos casos em que o formulário não se encontre preenchido na parte relativa à identificação das testemunhas e demais informação referente a estas, constando tais elementos dos ficheiros anexos referidos na al. a) do nº 1 do art.º 6º da mesma Portaria, a secretaria procede à notificação da parte para preencher no prazo de 10 dias o respectivo formulário sob pena de se considerar apenas o conteúdo do formulário inicial.
17.ª Acontece que não foi dado cumprimento a tal dispositivo legal, não tendo R. sido notificada, pela secretaria, para cumprimento do disposto no artigo 4º da referida Portaria,
18.ª nem, tampouco, sido proferido despacho nesse sentido.
19.ª Assim, e face ao exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, o despacho recorrido revogado e substituído por Douto Acórdão que considere válido, legal e tempestivamente apresentado o rol de testemunhas constante da contestação da R., tudo com todas as consequências legais, incluindo a baixa do processo à 1ª instância, caso o Acórdão deste Venerando Tribunal venha a proferido após a realização da audiência de julgamento já agendada para o dia 6 de Maio de 2024, pelas 09:30 horas,.
Remataram as suas conclusões nos seguintes termos:
“deverá ser dado total provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido na parte impugnada e, em consequência, deverá o articulado superveniente apresentado pelos Autores ser desentranhado dos presentes autos”.
Os autores apresentaram contra-alegações; contudo, estas foram rejeitadas por extemporâneas[1].
Admitido o recurso, remetido o mesmo a este Tribunal e aqui recebido, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do Código de Processo Civil[3]).
Não obstante, está vedado a este Tribunal o conhecimento de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[4].
Assim sendo, a única questão a apreciar e decidir reside em aferir se no caso em apreço a omissão do formulário de entrega da contestação, na parte referente à prova testemunhal arrolada na contestação tem como consequência legal a desconsideração deste meio de prova.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
Os factos relevantes para a decisão da presente apelação são os constantes do relatório que antecede.
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Da omissão de indicação de prova testemunhal no formulário eletrónico de entrega da contestação
Dispõe o art.º 552º, nº 6 do CPC que “No final da petição, o autor deve apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova; caso o réu conteste, o autor é admitido a alterar o requerimento probatório inicialmente apresentado, podendo fazê-lo na réplica, caso haja lugar a esta, ou no prazo de 10 dias a contar da notificação da contestação”.
Por seu turno, estabelece o art.º 572º, al. d) do CPC que “na contestação deve o réu (…) Apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova; tendo havido reconvenção, caso o autor replique, o réu é admitido a alterar o requerimento probatório inicialmente apresentado, no prazo de 10 dias a contar da notificação da réplica”.
Por outro lado, estatui o art.º 144º, nº 1 do CPC que os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são apresentados a juízo por via eletrónica, nos termos definidos em Portaria.
Esta disposição é regulamentada pela Portaria nº 280/2013, de 26-08[5].
Assim, nos termos do art.º 5º, nº 1 desta Portaria, “A apresentação de peças processuais e documentos por transmissão eletrónica de dados por mandatários judiciais é efetuada através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, no endereço eletrónico https://citius.tribunaisnet.mj.pt, de acordo com os procedimentos e instruções aí constantes.”
Por seu turno, dispõe o art.º 6º, nº 1 da mesma Portaria que “A apresentação de peças processuais é efetuada através do preenchimento de formulários disponibilizados no endereço eletrónico referido no artigo anterior, aos quais se anexam:
a) Ficheiros com a restante informação legalmente exigida, conteúdo material da peça processual e demais informação que o mandatário considere relevante e que não se enquadre em nenhum campo dos formulários; e
b) De forma individualizada, os documentos que devem acompanhar a peça processual.”.
E complementa o nº 2 do mesmo preceito:
“2 - A informação inserida nos formulários é refletida num documento que, juntamente com os ficheiros anexos referidos na alínea a) do número anterior, faz parte, para todos os efeitos, da peça processual.”
Finalmente estatui o art.º 7º nº 1 do mesmo diploma que “Quando existam campos no formulário para a inserção de informação específica, essa informação deve ser indicada no campo respetivo, não podendo ser apresentada unicamente nos ficheiros anexos”, acrescentando o nº 5 do mesmo art.º que “Existindo um formulário específico para a finalidade ou peça processual que se pretende apresentar, deve o mesmo ser usado obrigatoriamente pelo mandatário.”
O cumprimento irregular e a inobservância do disposto nas últimas normas citadas acham-se reguladas nos n.ºs 2 a 4 do mesmo preceito, que dispõem como segue:
“2 - Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos.
3 - O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de a mesma ser corrigida, a requerimento da parte, sem prejuízo de a questão poder ser suscitada oficiosamente.
4 - Nos casos em que o formulário não se encontre preenchido na parte relativa à identificação das testemunhas e demais informação referente a estas, constando tais elementos dos ficheiros anexos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, a secretaria procede à notificação da parte para preencher, no prazo de 10 dias, o respetivo formulário, sob pena de se considerar apenas o conteúdo do formulário inicial.”
Em sentido aproximado, estatui o art.º 144º, nº 10 do CPC:
“10- Quando a peça processual seja apresentada por via eletrónica e o sistema de informação através do qual se realiza a apresentação preveja a existência de formulários com campos para preenchimento de informação específica:
a) Essa informação deve ser indicada no campo respetivo, não podendo ser apresentada unicamente em ficheiros anexos;
b) Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos.”
Do confronto entre as normas da Portaria e aqueloutras enunciadas no preceito do CPC que acabamos de transcrever ressalta, de forma evidente, que a Portaria regulou de modo inovador as situações em que num determinado articulado, a parte inclui um requerimento probatório com indicação de prova testemunhal sem que, no entanto, preencha o correspondente campo no formulário eletrónico de apresentação do mesmo articulado.
Este desfasamento decorreu de alteração à Portaria, operada pela Portaria nº 267/2018, que aditou ao art.º 7º da primeira os atuais n.ºs 3 a 5.
As normas aditadas a tal preceito justificam-se porquanto as situações como a dos presentes autos não consubstanciam verdadeiras contradições entre o conteúdo do articulado e o que consta do formulário. Na verdade, só poderia considerar-se verificada tal contradição se o formulário contivesse, no campo da prova testemunhal, informações divergentes das que constam do articulado.
O caráter inovador desta solução é aliás evidente, face ao panorama legislativo que vigorava na vigência do CPC1960 e da Portaria nº 114/2008 de 06-02, os quais não previam esta matéria.
Nesta medida, na vigência do CPC1960 e da Portaria nº 114/2008, de 06-02, a jurisprudência entendia, de modo pacífico, que nas situações em que a parte indicava, no articulado, o seu rol de testemunhas, mas omitia tal indicação no formulário eletrónico de entrega do mesmo formulário, deveria atender-se ao rol constante do articulado, porquanto a situação não podia considerar-se uma contradição entre as informações constantes de um e outro, antes se deveria entender que ocorria uma lacuna. E, de acordo com este entendimento, tal lacuna deveria ser preenchida mediante a norma que o intérprete criaria se houvesse que legislar considerando o espírito do sistema (art.º 10º, nº 3 do CC), atendendo-se à informação constante do articulado.
Neste sentido cfr. acs.:
- RP 12-04-2010 (Mª Adelaide Domingos), p. 823/08.2TBCHV-A.P1;
- RG 11-05-2010 (Pereira da Rocha), p. 5834/09.8TBBRG-C.G1;
- RP 28-01-2013 (Manuel Domingos Fernandes), p. 5930/11.1TBMAI-A.P1.
A mencionada lacuna subsistiu na redação originária da Portaria 280/2013; porém, a Portaria nº 267/2018, de 20-09 veio supri-la, acrescentando ao art.º 7º daquela os n.ºs 3 a 5.
Lamentavelmente, aquando da publicação desta Portaria, não foi alterado o art.º 144º do CPC.
Este preceito só veio a ser alterado em 2019, com a publicação do DL 97/2019, de 26-07. Mas tal alteração não acolheu as inovações introduzidas no art.º 7º da Portaria 280/2013 pela Portaria 267/2018. Na verdade, se compararmos o nº 10 do art.º 144º do CPC, na redação que lhe foi conferida pelo referido DL 97/2019 com o art.º 7º da Portaria 280/2013, na redação resultante da Portaria 267/2018, verificamos que o primeiro “acolheu” as soluções legislativas constantes dos nºs 1 e 2 da Portaria, mas não a vertida no seu nº 4.
Ora, a constitucionalidade da norma do art.º 7º, nº 4 da Portaria nº 280/2013 foi já questionada, por limitar, de modo desproporcional, o direito constitucional de acesso ao Direito e tutela jurisdicional efetiva, consagrado no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, descortinamos, na jurisprudência, uma corrente que afirma tal desproporcionalidade, embora nem sempre concluindo expressamente pela inconstitucionalidade do preceito. Neste sentido cfr. acs:
- RL 27-01-2016 (Albertina Pereira), p. 390/15.0T8CSC-A.L1-4;
- RL  23-09-2021 (Carla Mendes), p. 18412/20.1T8LSB-A.L1-8;
- RL 27-01-2022 (Carla Mendes), p. 28044/20.9T8LSB-A.L1-8.
Com efeito, em situações como a dos autos, a parte transmitiu ao Tribunal e à parte contrária, no momento previsto na lei processual, todos os elementos identificativos das testemunhas arroladas, possibilitando ao primeiro proceder à notificação das testemunhas para prestar depoimento (se forem a notificar) e à segunda o conhecimento antecipado de quem vai depor.
A única utilidade que se descortina decorrer do cumprimento do ónus de fazer constar do formulário eletrónico os dados relativos às testemunhas reside em transferir para as partes, através dos seus ilustres mandatários, o trabalho material de inserir aqueles dados no sistema informático de gestão processual.
Nessa medida, atenta a gravidade das consequências do incumprimento do ónus de indicação, no formulário, dos elementos de identificação das testemunhas, que excedem largamente o inconveniente de os dados em falta serem inseridos no sistema pela própria secretaria do Tribunal. poderá argumentar-se que a cominação da desconsideração do rol de testemunhas constitui uma consequência claramente desproporcionada, e portanto violadora do regime consagrado no art.º 18º, nºs 2 e 3 da CRP, do qual decorre que as restrições aos direitos fundamentais devem “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegido”, e não podem “diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”.
Cremos, contudo, que o mecanismo previsto no nº 4 do art.º 7º atenua o impacto negativo do incumprimento do referido ónus, na medida em que reserva a cominação de rejeição do requerimento probatório às situações de reiterado incumprimento. Com efeito, a referida cominação só pode ser aplicada se a parte for instada, pela Secretaria do Tribunal ou mediante despacho judicial, a suprir a omissão e, ainda assim, persistir na mesma.
Nessa medida, considerando que a norma em apreço integra um mecanismo que permite à parte suprir a omissão de inserção, no formulário, dos elementos de identificação das testemunhas, assim evitando a cominação legal de rejeição do mesmo rol, concluímos que a mesma não consagra uma limitação desproporcional ao direito constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva. Neste sentido cfr. o ac. RC 07-11-2023 (Maria Catarina Gonçalves), p. 64/20.1T8FIG-A.C1. Aplicando a cominação legal , embora sem se pronunciar sobre a eventual inconstitucionalidade da norma, vd. ac. RG 24-09-2020 (Alda Martins), p. 1167/19.0T8VRL-A.G1.
No caso vertente, verificamos que não obstante a ré não tenha preenchido o campo do formulário de apresentação da contestação destinado à identificação das testemunhas, não menos verdade será que nem a secretaria do Tribunal notificou a ré nos termos do art.º 7º, nº 4 da mencionada Portaria 280/2013, nem a Mmº Juíza a quo determinou a notificação da ré para suprir a falta de preenchimento do formulário, na parte relativa à prova testemunhal, antes aplicou imediatamente a cominação de desconsideração ou rejeição do rol de testemunhas da ré.
Ao fazê-lo violou a mencionada disposição regulamentar.
Não obstante, estamos convencidos de que a norma regulamentar em apreço é inconstitucional, por violação do princípio da reserva de ato legislativo, consagrado no art.º 112º da CRP.
Com efeito, como já expusemos, aquela norma veio suprir uma lacuna legal, consagrando uma solução inovatória, que não consta do CPC.
Ora, como resulta do disposto no art.º 112º da CRP, as Portarias são atos normativos que se destinam a regulamentar as Leis e os Decretos-Leis, não sendo sua função suprir lacunas de atos legislativos, regulando de modo geral e abstrato, determinadas situações jurídicas - vd. nº 5 do referido preceito.
Nessa medida, as Portarias não podem estabelecer cominações processuais não previstas na lei processual civil.
Porque assim é, concluímos que a norma do nº 4 da Portaria 280/2013, na redação atualmente em vigor é formal e organicamente inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos art.ºs 112º, 161º, al. c), e 198º, nº 1, al. a), todos da Constituição da República.[6]
Assim sendo, cumpre a este Tribunal recusar a aplicação desta norma, nos termos previstos no art.º 204º da CRP.
Em consequência, aderindo ao entendimento da jurisprudência dominante na vigência do CPC1960 já mencionada, consideramos que tendo a apelante indicado o seu rol de testemunhas na contestação, o não preenchimento do campo do formulário respetivo, na parte destinada à identificação do rol de testemunhas configura uma mera irregularidade, pelo que não prevendo a lei processual civil qualquer consequência para tal omissão (que não configura contradição entre o formulário e o articulado), e sendo manifesto que a parte pretendeu arrolar testemunhas, e o fez no articulado apresentado, como aliás prevê o art.º 572º, al. d) do CPC, deverá o Tribunal atender ao rol de testemunhas constante daquele articulado.
Termos em que se conclui pela procedência da apelação, com a revogação do despacho recorrido e a admissão do rol de testemunhas da ré que consta da contestação.
3.2.2. Das custas
Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. art.ºs 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (art.ºs 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. art.ºs 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os art.ºs 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (art.ºs 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (art.ºs 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o diremos que no caso em apreço, considerando que não obstante a procedência do presente recurso, a autora não deu causa ao mesmo nem apresentou contra-alegações, importa concluir que não são devidas custas.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o presente recurso procedente, revogando o despacho recorrido, e admitindo o rol de testemunhas da ré constante da contestação.
Sem custas.
DN, devendo notificar-se a Digna Magistrada do MP, para efeitos de recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional – art.ºs 70º, nº 1, al. a) e 72º, nº 3 da Lei do Tribunal Constitucional[7].

Lisboa, 23 de abril de 2024
Diogo Ravara
Cristina Coelho
Cristina Silva Maximiano
_______________________________________________________
[1] Refª 432898064, de 19-02-2024.
[2] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 114-116.
[3] Adiante designado pela sigla “CPC”.
[4] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116.
[5] Retificada pela DR 44/2013, de 25-10, e alterada pela P 170/2017, de 25-05 (retificada pela DR 16/2017, de 06-06); pela P 267/2018, de 20-09, pela P* 86/2013, de 27-03; e pela P. 360-A/2023, de 14-11.
[6] Formalmente inconstitucional, porque tal diploma deveria assumir a forma de Lei da Assembleia da República, ou Decreto-Lei do Governo. E organicamente inconstitucional, porque apesar de o Governo ter competência legislativa em matéria de processo civil, a Portaria é assinada por um ou vários membros do governo, não estando sujeita à aprovação pela globalidade dos membros deste, em Conselho de Ministros, como sucede com os Decretos-Leis (vd. art.º 200º, nº 1, al. d) da CRP).
[7] Aprovada pela Lei nº 28/82, de 15-11, e alterada pela Leis 28/82, de 15-11; 143/85, de 26-11, 85/89, de 07-09 (retificada pela DR 3/11, de 1989) 88/95, de 01-09 13-A/98, de 26-02 (retificada pela DR 10/98, de 23-05); e pelas Leis Orgânicas nºs 1/2011, de 30-11; 5/2015, de 10-04; 11/2015, de 28-08; 1/2018, de 19-04; 4/2019, de 13-09, e 01/2022, de 04-01.