Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1862/23.9T8VFX.L1-1
Relator: MANUEL RIBEIRO MARQUES
Descritores: PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.A violação de normas referentes ao conteúdo do plano prende-se com a substância do plano de recuperação (aquilo que ele contém ou deve conter) e, portanto, essa violação será não negligenciável, de um modo geral, sempre que ela acarrete um resultado que a lei não permite, seja porque o conteúdo do plano viola disposições legais de carácter imperativo, seja porque viola regras legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respectivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere.

2.A procedência do pedido de não homologação do plano baseado no fundamento elencado na al. a) do n.º 1 do art. 216º do CIRE depende da demonstração da existência de um prejuízo decorrente da sua homologação.

3.O plano de revitalização deve obedecer aos princípios da igualdade e da proporcionalidade.

4.O tratamento desigual deve ser justificado e a justificação cabe a quem apresenta o plano, sob pena de, não o fazendo, a discriminação se ter por injustificada, não cabendo ao juiz, no momento da homologação do acordo, entrar em suposições ou conjecturas sobre as razões do tratamento desigual, excepto se as mesmas forem notórias/patentes em face daquele.

5.Viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade o plano de revitalização que não apresenta razões objetivas bastantes que possam dar respaldo jurídico à diferenciação de tratamento de credores, traduzida no perdão de 60% dos créditos comuns e pagamento integral do crédito de outro, quando o crédito deste, no montante de €24.396,78, apenas se encontra garantido pelas acções dadas em penhor, no valor de €1.000,00.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–A., Unipessoal, Lda. requereu a abertura de processo especial de revitalização, manifestando vontade em encetar negociações conducentes à sua recuperação.

Foi nomeado administrador judicial provisório.

O Sr. Administrador Judicial Provisório apresentou a lista provisória de créditos mencionada no art. 17.º-D, n.º 3, do CIRE, publicada no portal Citius, a qual sofreu impugnações, decididas por despacho de 6/11/2023.

O prazo de dois meses para conclusão das negociações foi prorrogado por um mês.

A AJP juntou aos autos as reclamações de crédito apresentadas.
Na reclamação formulada pela L., SA esta alegou, além do mais, que no exercício da sua atividade celebrou com a ora devedora A., LDA., dois contratos destinados a regular os termos e condições em que a Reclamante prestaria, em nome e a pedido daquela, duas garantias autónomas à primeira solicitação: Garantia n.º … 2017-03-20 Banco BIC Português, S.A. 12.250,00 € e Garantia n.º … 2019-07-02 Banco BPI, S.A. 37.500,00 €; que na sequência desses contratos, a ora Reclamante prestou efetivamente as garantias autónomas à primeira solicitação acima referidas, destinando-se as mesmas a garantir o cumprimento das obrigações emergentes dos contratos de mútuo celebrados entre aqueles Beneficiários e a referida sociedade; que para garantia das obrigações emergentes da celebração dos referidos contratos, a sociedade A., LDA., adquiriu 1000 ações e entregou à aqui Reclamante, duas livranças subscritas pela mesma e avalizadas pelos contraentes identificados nos contratos (AC e SC); que, em virtude do incumprimento por parte da insolvente A., LDA., dos termos dos contratos celebrados, os Beneficiários solicitaram à aqui Reclamante, em 22/02/2022 e 29/12/2022, ao abrigo do disposto nos contratos, o pagamento do montante total de 23.725,00€; que a aqui Reclamante pagou aos Beneficiários os valores acionados; que, de acordo com o disposto nos contratos juntos como docs. n.º 1 e 2, como contrapartida da prestação da garantia, a devedora A., LDA, obrigou-se a pagar uma comissão de garantia sobre o montante dos saldos vivos garantidos e em dívida em cada momento do tempo; que aos valores em dívida acrescem ainda, nos termos do disposto nos contratos juntos como docs. nº 1 e 2, juros de mora calculados desde a data de apresentação da declaração de insolvência até à data da declaração de insolvência à taxa legal, no valor de 676,26 € (seiscentos e setenta e seis euros e vinte e seis cêntimos), acrescido do respetivo imposto de selo, no valor de 27,05€; que o crédito total da Reclamante ascende a 24.396,78 €.
A 4/10/2023 a devedora depositou no tribunal a versão final do plano de recuperação submetido aos credores, à qual foi dada a devida publicidade (art. 17.º-F, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
E a 16/10/2023 a devedora depositou nova versão do plano de recuperação, igualmente publicitada.

Nesse plano consta o seguinte:

3.1.1-Os credores do processo especial de revitalização registarão as seguintes alterações:

CREDORES PRIVILEGIADOS

1–ESTADO Fazenda Pública:
Plano de Regularização:
1.1.-Pagamento da totalidade da dívida em regime prestacional, em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, nos termos e com os fundamentos previstos no artigo 196º nº 6 do CPPT, por se considerar demonstrada “a indispensabilidade da medida (…)”, vencendo-se a primeira prestação até ao final do mês seguinte ao terminus do prazo previsto no nº 5 do artigo 17º - D do CIRE.
1.2-A redução dos créditos fiscais só se dará, por juros de mora vencidos e vincendos, nos termos do DL 73/99 de 16/03, aceitando-se as taxas praticadas para os créditos da Segurança Social, face à renúncia dos demais credores e às garantias constituídas e/ou a constituir;
1.3-Neste sentido, a taxa de juros vincendos a aplicar será a que for aceite pela Fazenda Nacional.
1.4-Não haverá lugar à redução de coimas e custas;
1.5-Não haverá lugar a qualquer moratória;
1.6-Requer-se a dispensa da obrigação de substituição do gerente dado que a sua manutenção em funções é vital para assegurar a credibilidade da presente recuperação, mormente e no que tange ao relacionamento com fornecedores e clientes, nos termos do nº 3 al. a) do artigo 196º do CPPT.
1.7-A revitalizanda fará demonstração do pagamento integral de todas as obrigações fiscais, após o despacho a que se refere o artigo 17º-C, nº 3, a).
1.8-Assim, considera-se notificada a Administração Fiscal do requerimento a que alude o artigo 196º, n.º 1 do CPPT.
1.9-Para os efeitos previstos no nº 1 do artigo 17º E do CIRE, determina-se nos termos da sua parte final, que a extinção dos processos fiscais só se dará nos termos do Código de Procedimento e Processo Tributário. A suspensão prevista neste normativo cessa, conforme o que ocorrer primeiro, com o decurso das negociações ou do prazo previsto na lei para conclusão das mesmas (nº 5 do artigo 17º-D do CIRE).
1.10-Dispensa de garantias adicionais nos termos do artigo 199º nº 13 do CPPT, o qual dispõe que: “os pagamentos em prestações ao abrigo do plano de recuperação no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização ou em acordo sujeito ao regime extrajudicial de recuperação de empresas em execução ou em negociação que decorra do plano ou do acordo não dependem da prestação de quaisquer garantias adicionais.”

2– ESTADO – Segurança Social
Plano de Regularização:
- A totalidade dos créditos da Segurança Social, reconhecidos na Lista de Créditos, será regularizada através de plano prestacional, em 60 prestações mensais, no âmbito da execução fiscal, vencendo-se a primeira prestação até ao final do mês seguinte ao da votação do plano de revitalização;
- Pagamento de juros vencidos e vincendos calculados de acordo com a taxa de juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado e outras entidades públicas;
- Dispensa de constituição de garantias, nos termos do artigo 199º, nº 13, do CPPT;
- As ações executivas pendentes para cobrança de dívida à segurança social, no âmbito das quais será implementado o plano prestacional, não são extintas, sendo suspensas, nos termos do artigo 194.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, na sequência da presente autorização e até integral cumprimento do plano de pagamentos autorizado.

CREDORES GARANTIDOS

Plano de Regularização:
- Carência de capital de 12 meses, vencendo-se o primeiro no último dia útil do mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação;
- Os juros vincendos serão pagos mensalmente, sendo calculados à taxa fixa anual de 1.5%, vencendo-se a primeira prestação de juros no último dia útil do mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação;
- Pagamento da totalidade da dívida em 150 prestações, mensais, iguais e sucessivas, sujeitas a juros vincendos calculados à taxa fixa anual de 1.5%, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte ao do término do período de carência de capital.

CREDORES COMUNS

Plano de Regularização:
- Carência de capital de 18 meses, vencendo-se o primeiro no último dia útil do mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação;
- Os juros vincendos serão pagos mensalmente, sendo calculados à taxa fixa anual de 1.5%, vencendo-se a primeira prestação de juros no último dia útil do mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação;
- Pagamento de 40% da dívida em 180 prestações, mensais, iguais e sucessivas, sujeitas a juros vincendos calculados à taxa fixa anual de 1.5%, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte ao do término do período de carência de capital. Perdão da dívida remanescente.
Consigna-se ainda:
- Manutenção das garantias existentes: As garantias existentes mantêm-se sem qualquer alteração. Caso o plano seja aprovado, tal não constitui novação da dívida mantendo-se as garantias nos exatos termos prestados.
- Distribuição de resultados: Durante a vigência do Plano de Recuperação, não será efetuada qualquer distribuição de resultados aos sócios da devedora.
- Cláusula salvo regresso de melhor fortuna:
O Plano de Recuperação fica subordinado à cláusula salvo regresso de melhor fortuna à devedora, que produz efeitos durante o período da sua vigência, nos termos em que, se e quando, a sua situação económico-financeira melhorar (o que será verificável pela regular informação contabilística) permitindo a libertação de meios, que, para além das prestações do Plano, lhe possibilite efetuar pagamentos aos credores sem comprometer o seu regular funcionamento, a devedora compromete-se a, de forma rateada, a efetuar reembolsos, totais ou parciais, da dívida
- Nos termos do artigo 209º, nº 3 do CIRE, o Plano de Recuperação acautela os créditos eventualmente controvertidos em processo de impugnação de forma que venham a ter o mesmo tratamento que os da classe em que se inserem.
No dia 2/11/2023 o credor Banco B., SA veio dizer ter votado contra o plano de revitalização apresentado e solicitou a sua não homologação, por violação do disposto nos arts. 194º, 215º e 216º do CIRE.

Alegou para tanto que:
3.O plano foi construído com base e à custa dos credores comuns.
4.Analisada a lista provisória de credores, verificamos que existe apenas um credor garantido – L., S.A.- cuja garantia decorre do penhor sobre 1.000 acções nominativas, representativas do capital social da SGM, que reclamou créditos no montante de € 24.396,78.
5.Os créditos comuns ascendem ao montante global de € 1.187.046,48.
6.O ora Credor não pode aceitar a forma de pagamento proposta para os créditos comuns, considerando que é proposto uma carência de 18 meses e um pagamento em 180 prestações, para pagamento de 40% da dívida e um perdão de 60% da mesma.
7.Sendo que ao crédito garantido é proposto o pagamento total em menor espaço de tempo (período de carência menor e em menos prestações).
8.Não se encontra qualquer justificação para tal distinção e tratamento altamente diferenciado efectuada entre o credor garantido e os credores comuns.
9.Ao credor garantido, é proposto no plano o pagamento da totalidade da dívida num prazo manifestamente inferior.
10.A grande maioria dos credores, têm a natureza de créditos comuns.
11.A admitir-se tal plano, o tratamento altamente desproporcional aos credores comuns onde é imposto um perdão inexplicável de 60% dos valores dos créditos.
12.Ou seja, considerando que os credores comuns compõem a grande maioria dos credores da lista provisória de créditos, a Devedora está a propor para em 15 anos liquidar apenas 40% da dívida (excluindo o período de carência de capital).
13.Não é apresentado no plano nenhuma razão ou justificação para a notória desigualdade e manifesta desproporcionalidade do tratamento dos credores comuns.
14.Não obstante o esforço que possa vir a ser pedido aos credores no sentido de viabilização de um plano, esse mesmo plano não pode consubstanciar um esforço de perdão de 60% da dívida, quando esse esforço não é equitativo com os demais credores!
15.Um plano que prevê que os créditos do credor garantido sejam pagos na totalidade e os créditos comuns sejam perdoados em 60%, estabelece uma diferenciação desproporcionada e injustificada entre os credores, violando o princípio da igualdade entre os credores.
16.Posto isto, manifesto é que a pretensão da devedora se traduz, nomeadamente, numa violação do fixado no artigo 194.º do CIRE, violação essa que deverá consubstanciar a recusa oficiosa da homologação do plano.
17.Por outro lado, e analisado a situação interna da devedora, nos termos que constam do plano (página 15), no quadro “Inventário dos bens e direitos do Devedor”, a soma do valor do inventário, segundo a própria devedora, ascende a mais de € 1.300.000,00.
18.Considerando que o valor dos créditos reclamados, ascende a € 1.427.771,60, sendo que desses, correspondem a créditos comuns o montante global de € 1.187.046,48, significa que num cenário de insolvência da devedora, prosseguindo os autos para liquidação, os credores teriam um ressarcimento na ordem dos 85% a 90%.
19.Pelo que e tendo em atenção os supra exposto, a situação dos credores, ao abrigo do plano apresentado, será menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, nomeadamente, num hipotético cenário de liquidação (uma vez que é imposto um perdão de 60% dos créditos comuns versus o valor do activo/inventário indicado pela sociedade devedora), deverá o plano agora apresentado ser não homologado.
Em 13/11/2023, a administradora judicial provisória juntou cópia da acta de abertura do resultado da votação, realizada em 10/11/2023, concluindo que o plano foi aprovado, nos termos do art. 17.º-F, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Refere-se nessa acta que votaram credores representando 93,07% dos credores cujos créditos foram reconhecidos, sendo favoráveis ao plano de recuperação 60,52% dos votos emitidos e desfavoráveis 32,55% dos votos emitidos (incluindo-se nestes o credor B., SA).

Na mesma data a AJP juntou o seu parecer, nos termos do art. 17.º-F, n.º 6 do CIRE, no qual conclui que:
Tendo por base o Plano apresentado, os seus pressupostos, e as demonstrações financeiras previsionais que integram o referido, que se todas as premissas contidas no Plano, designadamente na sua parte dispositiva, com reflexo nas demonstrações financeiras previsionais, forem cumpridas, e no caso da empresa alcançar o volume de negócios e de recebimentos a que se propõe, e num juízo de prognose, o Plano reveste-se de perspetivas razoáveis de evitar a insolvência e assegurar a viabilidade da empresa.

Por requerimento de 14/11/2023 a devedora pronunciou-se pela homologação do plano de revitalização, alegando que:
1º-O pedido formulado pela credora em causa não possui qualquer fundamento legal.
2º-Com efeito, o perdão de dívida proposto no plano é uma medida necessária e imprescindível para a manutenção da Devedora em atividade.
3º-Na verdade, sem esta redução de créditos, face ao plano de negócios previsional, não teria qualquer possibilidade de cumprir com o seu serviço de dívida, o que foi plenamente entendido pela larga maioria dos credores.
4º-Aliás, o cenário de insolvência seria, sem margem para dúvidas pior para os credores, pois é certo que a Devedora não possui quaisquer bens imóveis nem outros ativos de valor relevante, ascendendo o valor líquido contabilístico dos ativos fixos tangíveis a tão somente 8.949,26€.
- Desta forma evidente se torna que não se encontra nestes autos preenchido o disposto no artigo 216º nº 1 al. a) do CIRE.
SEM PRESCINDIR:
6º-Quanto ao plano de recuperação não conter justificação para o tratamento diferenciado entre credores de classes distintas (garantidos e comuns), tratar-se-á certamente de um involuntário lapso por parte da credora, pois tal só é necessário no que tange a créditos da mesma categoria.
7º-Aliás, importa salientar que só existe “in casu” um único credor garantido e com um valor residual, de apenas 24.396,78€, enquanto os credores comuns totalizam, na sua totalidade, mais de 1.100.000,00€.
8º-Desta forma, é claro que o esforço tinha de incidir sobre estes, o que foi, reitera-se, entendido pelos credores que detêm créditos mais substanciais, dando assim um voto de confiança na Devedora pois estão conscientes que em sede insolvencial nada receberiam.
9º-Face ao exposto, vem requerer a V. Exa. se digne ordenar a homologação da proposta de plano de recuperação aprovada pelos credores, com todas as demais consequências legais.
Por sentença proferida dia 12/12/2023, decidiu-se “homologar o Plano de Recuperação conducente à Revitalização de A., Lda., constante dos autos, aprovado por maioria dos credores, que vincula os credores, mesmo os que não tenham participado nas negociações (cf. art. 17.º-F, n.º 11, do CIRE)”.

Inconformada com o decidido, veio o Banco B, SA. credor reclamante, interpor recurso de apelação, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1.º-A douta sentença recorrida, homologa, nos termos dos artigos 215.º e 17.º F, n.º 7 do CIRE, o plano de revitalização da devedora A., Lda.
2.º-O ora Recorrente discorda da decisão de homologação do plano.
3.º-No plano apresentado pela devedora, constata-se que a devedora determinou o seguinte plano de pagamentos quanto aos credores garantidos e comuns:
Créditos garantidos:
- Carência de capital de 12 meses (…)
- Pagamento da totalidade da dívida em 150 prestações (…)
Créditos comuns:
- Carência de capital de 18 meses (…)
- Pagamento de 40% da dívida em 180 prestações (…) Perdão da dívida remanescente.
4.º-Analisada a lista provisória de credores, verificamos que existe apenas um credor garantido – L., S.A.- cuja garantia decorre do penhor sobre 1.000 acções nominativas, representativas do capital social da SGM, que reclamou créditos no montante de € 24.396,78.
5.º-Os créditos comuns ascendem ao montante global de € 1.187.046,48.
6.º-É manifestamente discriminatório o pagamento assumido entre os créditos de natureza comum e de natureza garantida.
7.º-É imposto o pagamento da totalidade do crédito garantido, num espaço temporal substancialmente inferior ao invés do pagamento dos créditos comuns a quem é imposto um perdão de 60% da dívida e a ser pago num espaço temporal manifestamente mais alargado.
8.º-Não existindo qualquer justificação para tal distinção e tratamento altamente diferenciado efectuada entre o credor garantido e os credores comuns.
9.º-Não se ignora que o princípio da não discriminação entre os credores admite desigualdades entre créditos de natureza diversa.
10.º-O Douto Tribunal a quo entendeu, incorretamente, que pelo facto de o crédito garantido ser de valor relativamente baixo e que essa diferenciação não implicava consequências gravosas para os demais credores comuns.
11.º-De acordo com o entendimento adotado pelo Douto Tribunal, seria então mais justo se o tratamento aplicado ao credor garantido fosse igual ou o mais aproximado possível dos credores comuns.
12.º-Uma vez que são os credores comuns que suportam o plano de revitalização, com um benefício injustificado do único credor garantido.
13.º-O plano não pode consubstanciar um esforço de perdão de 60% da dívida, quando esse esforço não é equitativo com os demais credores!
14.º-Estabelecendo uma diferenciação desproporcionada e injustificada entre os credores, violando o princípio da igualdade entre os credores.
15.º-Termos em que, entende o ora Recorrente, que existe uma violação injustificada e desproporcional do principio da não discriminação entre credores.
16.º-Por outro lado, analisando a situação interna da devedora, nos termos que constam do plano (página 15), no quadro “Inventário dos bens e direitos do Devedor”, a soma do valor do inventário, segundo a própria devedora, ascende a mais de € 1.300.000,00.
17.º-O valor dos créditos reclamados ascende a € 1.427.771,60, sendo que desses, correspondem a créditos comuns o montante global de € 1.187.046,48, significa que num cenário de insolvência da devedora, prosseguindo os autos para liquidação, os credores, mormente os credores comuns, teriam um ressarcimento na ordem dos 85% a 90%, atento a que o plano prevê para esses credores um perdão de 60% dos seus créditos.
18.º-Salvo o devido respeito, a interpretação do tribunal a quo não tem suporte que possa consubstanciar a impossibilidade ou possibilidade recuperação dos direitos sobre os clientes da devedora, que consubstanciam parte do activo.
19.º-Nenhum risco, ressalva ou impossibilidade consta do plano quanto à efectiva existência desse activo.
20.º-Salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo concluí, sem base, que a liquidez que assegura a sociedade é escassa.
21.º-Assumindo que grande parte dos clientes estarão em situação de insolvência ou com necessidade de cobrança coerciva desses créditos.
22.º-Informação essa que, salvo outro e melhor entendimento, não pode ser presumida pelo Tribunal a quo.
24.º-Considerando que é imposto um perdão de 60% dos créditos comuns versus o valor do activo/inventário da sociedade devedora, pelo que e por essa razão também não deverá o plano ser homologado.
25.º-A douta sentença recorrida violou, no mínimo o disposto nos artigos 17.ºF, 194.º, 215.º e 216.º todos do CIRE.
Nestes termos e nos mais de Direito que serão por V. Exas. Doutamente supridos, deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência deve a sentença de homologação do plano ser revogada e ser substituída por sentença de não homologação por violação do princípio da não discriminação entre credores e por em cenário de insolvência ou liquidação ser mais favorável aos credores, mormente aos credores comuns, do que ao abrigo do presente plano.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA !

A devedora apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
A)-O Recorrente insurge-se, primeiramente, pelo facto de existir, no seu entendimento, uma diferença substancial e assim, alegadamente ilícita, entre a proposta de pagamento dos credores garantidos e a dos credores comuns.
B)-A Douta Sentença ora recorrida expressa o entendimento, ao qual a Recorrida adere que,O princípio da não discriminação entre credores admite desigualdades entre créditos de natureza diversa, nomeadamente em relação aos que estando garantidos por determinado bem ou direito seriam sempre pagos em cenário de liquidação. No caso concreto, havendo um crédito garantido, de valor relativamente baixo, nem sequer se pode considerar que a diferenciação tenha consequências gravosa para os demais credores, todos comuns. Termos em que não há violação injustificada nem desproporcionada do princípio da não discriminação entre credores.”
C)-Relembremos de que só existe “in casu” um único credor garantido, detentor de crédito com o valor residual de apenas 24.396,78€, enquanto os credores comuns totalizam, na sua totalidade, mais de 1.100.000,00€.
D)-É bem claro que o “esforço” tinha de incidir sobre os credores comuns o que foi, reitera-se, entendido pelos credores que detêm créditos mais substanciais, dando assim um voto de confiança à Recorrida pois é certo que, em sede insolvencial, nada receberiam.
E)-A proposta de redução dos créditos comuns não foi um mero capricho por parte da Recorrida, pois o plano de recuperação explica, de forma profusa, ser esta a única forma de se conseguir, efetivamente, viabilizar.
F)-O Recorrente entende ainda, novamente sem razão, de que estaria ao abrigo do plano apresentado numa situação menos favorável do que a que interviria na sua ausência, nomeadamente, num hipotético cenário de liquidação.
G)-Ora, a Douta Sentença ora recorrida bem refere que, Quanto ao ativo da Devedora, há que atender a que esta não tem bens imóveis, os quais são, em regra, aqueles que asseguram maior garantia de retorno do capital, em cenário de venda. O valor de ativo não corrente, que inclui ativos fixos tangíveis é insignificante. Quanto ao valor de ativo corrente, há que atender ao inventário de mercadorias, clientes, Estado e outras contas a receber, caixa e depósitos bancários.
H)-Ora, a Devedora apresenta valor superior a 1 milhão de Euros em ativo corrente, mas essencialmente na conta clientes. Ora, os direitos sobre clientes não são garantidos, sendo que grande parte dos créditos não são recuperáveis, por motivo de insolvência dos próprios clientes, necessidade de ações judiciais declarativas e executivas com encargos em custas e honorários para cobrança de valores, escassez de património e impenhorabilidade, etc. A liquidez, que assegura a manutenção da sociedade em atividade, é escassa, sendo que o valor em caixa e depósitos bancários é irrisório e os resultados líquidos negativos. Em caso de insolvência, a recuperação dos direitos sobre clientes é difícil e com resultados inferiores ao valor contabilístico dos direitos. Assim, conclui-se que em cenário de insolvência ou liquidação, os direitos dos credores seriam menos bem assegurados do que nos termos do Plano ora aprovado por maioria de credores.”
I)-Do exposto decorre o evidente, decorre aquilo que se verifica em todos os processos de insolvência em sede de liquidação de ativos e que é do pleno conhecimento do Recorrente, enquanto instituição de crédito credora num sem número de procedimentos falimentares.
J)-Se a Recorrida conseguisse recuperar o valor dos créditos incobráveis certamente que não teria tido necessidade de recorrer ao processo especial de revitalização para reestruturar a sua dívida.
K)-Concluindo, o cenário de liquidação seria, sem margem para dúvidas pior para os credores, pois é certo que a Recorrida, conforme bem decorre da Douta Sentença ora recorrida não possui quaisquer bens imóveis nem outros ativos de valor relevante, ascendendo o valor líquido contabilístico dos ativos fixos tangíveis a tão somente 8.949,26€, pelo que evidente se torna que não se encontra nestes autos preenchido o disposto no artigo 216º nº 1 al. a) do CIRE.
Termos em que mantendo a Douta Sentença ora recorrida na Ordem Jurídica estarão V. Exas., Venerandos Desembargadores, a produzir a tão habitual e costumada JUSTIÇA!!!!

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II.O objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, pelo que as questões a decidir traduzem-se em saber se a sentença que homologou o plano de revitalização deverá ser revogada, por violação do princípio da igualdade e por a situação ao abrigo do plano ser menos favorável para o recorrente do que a que interviria na ausência de qualquer plano (arts. 17º-F, 194º, 215º e 216º, n.º 1, al. a) do CIRE).
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III.Os factos a considerar são os descritos no relatório que antecede.
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IV.Da questão de mérito:
Na sentença recorrida decidiu-se homologar o plano de recuperação conducente à revitalização da devedora.
Dissentindo dessa decisão, sustenta o Banco apelante que o plano viola o princípio da igualdade e que num cenário de insolvência da devedora, prosseguindo os autos para liquidação, os credores, mormente os credores comuns, teriam um ressarcimento superior, na ordem dos 85% a 90%, enquanto o plano prevê para esses credores um perdão de 60% dos seus créditos, pelo que a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 17.ºF, 194.º, 215.º e 216.º todos do CIRE.
Vejamos.
O PER (Processo Especial de Revitalização) foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pela Lei 16/2012 de 20.04 que alterou o CIRE e destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização (art. 17º-A, n.º1, do CIRE).
Com o PER o legislador pretendeu facilitar e promover a recuperação efectiva de empresas economicamente viáveis, proporcionando ao devedor a possibilidade de negociar com os seus credores um plano de recuperação sem passar pelos efeitos da declaração da insolvência, num contexto híbrido de actos de natureza judicial e extrajudicial, caraterizado essencialmente pelos princípios da consensualidade e do compromisso e, como factores da desejável eficácia dos procedimentos de recuperação, da universalidade e da celeridade.
No que concerne à natureza deste processo, podemos dizer que se trata de um procedimento híbrido, no sentido em que, para alcançar a sua finalidade última, a recuperação do devedor, se trata de um processo extrajudicial, mas que exige a intervenção do tribunal em três momentos chave: no seu início, na decisão da impugnação da lista provisória de créditos e no final, para tornar gerais os efeitos do acordo, para recusar a sua homologação ou para extrair as devidas consequências da não aprovação do mesmo – neste sentido vide o Ac. desta Secção de Comércio de 4/07/2023, proc. n.º 11886/22.8T8LSB.L1, Manuela Espadaneira Lopes (relatora), acessível em www.dgsi.pt, assim como os demais adiante citados.
A eficácia universal que a lei consagra ao Plano de Recuperação depende, pois, da sua homologação por sentença.
Essa universalidade do PER manifesta-se e reflecte-se na oponibilidade do plano de recuperação homologado a todos os credores do devedor, independentemente de terem ou não participado nas negociações, de terem ou não emitido voto sobre o plano, ou de terem emitido voto desfavorável à sua aprovação (art. 17º-F, nº 10) – neste sentido vide o Ac. desta Secção, de 28.09.2021, proc. n.º 19874/21.5T8LSB.A.L1-1, Amélia Sofia Rebelo (relatora).
O art.º 17.º-F, n.º 7, do CIRE, incumbe o juiz de decidir se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216º e aferindo:
a)- Se o plano foi aprovado nos termos do n.º 5;
b)- Se, no caso de classificação dos credores em categorias distintas, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, os credores inseridos na mesma categoria são tratados de forma igual e proporcional aos seus créditos;
c)- Se, no caso de classificação dos credores em categorias distintas, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, as categorias votantes discordantes de credores afetados recebem um tratamento pelo menos tão favorável como o de qualquer outra categoria do mesmo grau, e mais favorável do que o de qualquer categoria de grau inferior;
d)- Que nenhuma categoria de credores, a que alude a alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, pode, no âmbito do plano de recuperação, receber nem conservar mais do que o montante correspondente à totalidade dos seus créditos;
e)- Se a situação dos credores ao abrigo do plano é mais favorável do que seria num cenário de liquidação da empresa, caso existam pedidos de não homologação de credores com este fundamento;
f)- Se aplicável, que qualquer novo financiamento necessário para executar o plano de reestruturação não prejudica injustamente os interesses dos credores;
g)- Se o plano de recuperação apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma.»

De entre as normas para que remete o citado art.º 17º-F, nº 7, estabelecem os artigos 194º a 196º:
“Artigo 194º
Princípio da Igualdade
1- O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
2- O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
Artigo 195º
Conteúdo do Plano
1- O plano de insolvência deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência.
2- O plano de insolvência deve indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e contém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente:
a)- A identificação da empresa, indicando o seu nome ou firma, sede, número de identificação fiscal ou número de identificação de pessoa coletiva, e do administrador da insolvência nomeado;
b)- A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor;
c)- A indicação sobre se os meios de satisfação dos credores serão obtidos através de liquidação da massa insolvente, de recuperação do titular da empresa ou da transmissão da empresa a outra entidade;
d)- No caso de se prever a manutenção em atividade da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiro, e pagamentos aos credores à custa dos respetivos rendimentos, o plano de investimentos, a conta de exploração previsional, a demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos, especificando fundamentadamente os principais pressupostos subjacentes a essas previsões, e o balanço pró-forma, em que os elementos do ativo e do passivo, tal como resultantes da homologação do plano de insolvência, são inscritos pelos respetivos valores;
e)- As formas de informação e consulta dos representantes dos trabalhadores, a posição dos trabalhadores na empresa e, se for caso disso, as consequências gerais relativamente ao emprego, designadamente despedimentos, redução temporária dos períodos normais de trabalho ou suspensão dos contratos de trabalho;
f)-O impacte expectável das alterações propostas, por comparação com a situação que se verificaria na ausência de qualquer plano de insolvência;
g)- A indicação dos credores que não são afetados pelo plano de insolvência, juntamente com uma descrição das razões pelas quais o plano não os afeta;
h)- Qualquer novo financiamento previsto no âmbito do plano de insolvência e as razões pelas quais esse novo financiamento é necessário para executar o plano;
i)- A indicação dos preceitos legais derrogados e do âmbito dessa derrogação.
Artigo 196º
Providências com incidência no passivo
1- O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor:
a)- O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula ‘salvo regresso de melhor fortuna’;
b)- O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor;
c)- A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos;
d)- A constituição de garantias;
e)- A cessão de bens aos credores.
2– (…)”.
Por sua vez, estabelece o artigo 215º:
“O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.”

A violação de normas referentes ao conteúdo do plano prende-se com a substância do plano de recuperação (aquilo que ele contém ou deve conter) e, portanto, essa violação será não negligenciável, de um modo geral, sempre que ela acarrete um resultado que a lei não permite, seja porque o conteúdo do plano viola disposições legais de carácter imperativo, seja porque viola regras legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respectivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere – cfr. Ac. RC. de 11-10-2017, Maria Catarina Gonçalves (relatora), proc. n.º 6/17.0T8GRD-A.C1.

Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3ª edição, 2015, pág. 781, “normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes (…). Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deva contemplar”.

No entanto, não são quaisquer violações das normas procedimentais ou relativas ao conteúdo de plano que impõem a não homologação do plano, mas apenas as violações não negligenciáveis. Sucede que a lei não define o que deva considerar-se como vício negligenciável.
Nas palavras dos mesmos autores “são não negligenciáveis, todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido”, importando, pois, para tal “sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta – tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável” (in ob. cit., pág. 782).

De sua vez, dispõe o art. 216º, n.º 1, do CIRE:
1 O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
a)-A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b)-O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.

Assim, a procedência do pedido de não homologação do plano depende da demonstração de uma das situações que, alternativamente, estão consagradas nas duas alíneas do n.º 1 citado: existência de um prejuízo decorrente da homologação do plano (al. a) ou o favorecimento indevido de um credor (al. b).
Posto isto, analisemos as questões concretamente postas na apelação.

Da questão de saber se a situação do recorrente Banco B., SA ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano (art. 216º, n.º 1, al. a) do CIRE):
Apreciando esta questão, na sentença recorrida concluiu-se que “em cenário de insolvência ou liquidação, os direitos dos credores seriam menos bem assegurados do que nos termos do Plano ora aprovado por maioria de credores.”

Fundou essa conclusão na seguinte argumentação:
“Quanto ao ativo da Devedora, há que atender a que esta não tem bens imóveis, os quais são, em regra, aqueles que asseguram maior garantia de retorno do capital, em cenário de venda.
O valor de ativo não corrente, que inclui ativos fixos tangíveis é insignificante.
Quanto ao valor de ativo corrente, há que atender ao inventário de mercadorias, clientes, Estado e outras contas a receber, caixa e depósitos bancários.
Ora, a Devedora apresenta valor superior a 1 milhão de Euros em ativo corrente, mas essencialmente na conta clientes.
Ora, os direitos sobre clientes não são garantidos, sendo que grande parte dos créditos não são recuperáveis, por motivo de insolvência dos próprios clientes, necessidade de ações judiciais declarativas e executivas com encargos em custas e honorários para cobrança de valores, escassez de património e impenhorabilidade, etc.
A liquidez, que assegura a manutenção da sociedade em atividade, é escassa, sendo que o valor em caixa e depósitos bancários é irrisório e os resultados líquidos negativos.
Em caso de insolvência, a recuperação dos direitos sobre clientes é difícil e com resultados inferiores ao valor contabilístico dos direitos.”

Dissentindo, propugna a apelante que:
- Analisando a situação interna da devedora, nos termos que constam do plano (página 15), no quadro “Inventário dos bens e direitos do Devedor”, a soma do valor do inventário, segundo a própria devedora, ascende a mais de € 1.300.000,00 (conclusão 16ª), quando o valor dos créditos reclamados ascende a € 1.427.771,60, sendo que desses, correspondem a créditos comuns o montante global de € 1.187.046,48, significa que num cenário de insolvência da devedora, prosseguindo os autos para liquidação, os credores, mormente os credores comuns, teriam um ressarcimento na ordem dos 85% a 90%, atento a que o plano prevê para esses credores um perdão de 60% dos seus créditos (conclusão 17ª).
- Nenhum risco, ressalva ou impossibilidade consta do plano quanto à efectiva existência desse activo (conclusão 19ª), pelo que o Tribunal a quo concluí, sem base, que a liquidez que assegura a sociedade é escassa (conclusão 20ª), assumindo que grande parte dos clientes estarão em situação de insolvência ou com necessidade de cobrança coerciva desses créditos, informação essa que, salvo outro e melhor entendimento, não pode ser presumida pelo Tribunal a quo (conclusões 22ª e 23ª).
Vejamos.
A procedência do pedido de não homologação do plano baseado no fundamento elencado na al. a) do n.º 1 do art. 216º do CIRE depende da demonstração da existência de um prejuízo decorrente da sua homologação.
Haverá, por isso, que proceder a um exercício intelectual de prognose, frequentemente complexo, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele.
Relativamente aos credores, isto reconduz-se a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima que receberiam sem ele. Quanto ao devedor, sócios, associados e membros, trata-se de avaliar eventuais remanescentes conforme se opte, ou não, pela alternativa à liquidação do património”Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. pag. 787.
O crédito do B., SA reconhecido nos autos é do montante de €33.136,20, pelo que, de acordo com o plano, o mesmo receberia a quantia de €13.136,20, acrescida dos juros de mora à taxa de 1,5%, em 180 prestações mensais (15 anos), após um período de carência de 18 meses, ou seja, cerca de €73 euros por mês (de capital).
Aceita-se que, em caso de não homologação do plano, o cenário de insolvência seja aquele que se apresenta como mais provável, no âmbito da qual se procederá de imediato à liquidação dos bens da devedora.
Importa, por isso, avaliar a priori o que a massa insolvente pode render no caso de venda universal.
O activo desta, de acordo com a relação de bens que foi junta com o requerimento inicial, é constituído pelos seguintes bens:
INVENTÁRIO DOS BENS E DIREITOS DO DEVEDOR
Verba N°
IDENTIFICAÇÃO DO BEM OU DIREITO
Valor de Registo na Contabilidade do Devedor
Valor Estimado
Características
Lugar em que se encontram
Direitos que os oneram
Descrição
Valor Bruto
Valor Liquido
Ano de Aquisição
1
Viatura - Opel Corsa ….
4 166,84 €
0.006
2016
800,00 €
Equipamento Transporte
Sede
Penhora Lusoalimentos
2
Empilhador Caterpillar ET…
4 500,00 €
0.00 €
2018
4 500,00 €
Equipamento Básico
Sede
Penhora Lusoalimentos
3
Viatura - Peugeot Partner …
11 355,96 €
0.00 6
2017
11 355,96 €
Equipamento Transporte
Sede
Crédito Autómovel
4
Equipam. Limpeza - Rainbow
4 687,80 €
0,00 6
2019
1 834,53 €
Equipamento Básico
Sede
5
Viatura - Fiat Ducato …
23 619.69 €
0,00 6
2018
23 619,69 6
Equipamento Transporte
Sede
Contrato Loc. Financeira
6
Impressora Brotner
197.64 6
0.00 6
2021
197,64 6
Equipamento Administrativo
Sede
7
Computador Desktop pcdiga
699,00 €
0,00 6
2022
699,00 6
Equipamento Administrativo
Sede
8
Mobiliário
5 455,42 €
0.00 6
2016
200,00 6
Equipamento Administrativo
Sede
9
Créditos sobre clientes
1 178 726,78 6
1 178 726,78 6
1 178 726.78 6
Créditos a receber de clientes
10
Stock Mercadorias
139 473.24 6
139 473.24 €
139 473,24 6
Créditos a receber de clientes
Nessa relação a devedora indica o valor por si estimado desses bens (com excepção do valor do stock de mercadorias e dos créditos sobre clientes), no montante de €43.206,82, ignorando-se, porém, o seu valor de mercado.
Quanto aos bens em stock, à data da apresentação do requerimento inicial, os mesmos tinham o valor de €139.473,24. Certo é que o stock de uma empresa está em contínua rotação, ignorando-se se, nesta fase da vidada empresa, as mercadorias têm sido repostas com cadência idêntica à da sua alienação a terceiros, não permitindo os dados conhecidos a formulação de um juízo de prognose sobre o valor do stock em caso de insolvência.
Por outro lado, e como é sabido, na venda a realizar no contexto da insolvência, com prazos de liquidação pré-definidos, os bens são na normalidade dos casos alienados por um valor bastante inferior (na ordem dos 20%/30%) relativamente àquele que decorreria do normal funcionamento do mercado.
E no que toca aos créditos sobre clientes (€1.178.726,78), os autos não fornecem elementos sobre a situação patrimonial/solvabilidade dos devedores e montantes dos créditos de cada um.
Ora, como se observou na decisão recorrida, grande parte dos créditos não são recuperáveis, face à necessidade de instauração de acções judiciais declarativas e executivas com encargos em custas e honorários para cobrança de valores, escassez de património e impenhorabilidade, etc.”.
De resto, se analisarmos a Informação Empresarial Simplificada (IES) junto aos autos, relativo ao exercício de 2021, verifica-se um aumento acentuado dos créditos sobre clientes: era então de €863.035,39 e será agora de €1.178.726,78.
O aumento do valor desses créditos inculca a ideia de incobrabilidade de alguns deles.
Assim, pese embora se aceite que, em caso de não homologação do plano, o cenário de insolvência seja aquele que se apresenta como mais provável, este só seria mais benéfico para a recorrente caso o valor da liquidação dos bens, a distribuir pelos credores após a dedução das dívidas da massa, fosse na ordem dos €350.000/€400.000,00, pois, sendo o seu crédito no valor de 2,32% dos créditos reconhecidos, o mesmo receberia num curto espaço temporal cerca de €8000,00 ou €9.000,00 (€350.000,00 x 2,32%= €8.120,00; €400.000,00 x 2,32% = €9.280,00).
Porém, os dados disponíveis não nos permitem estimar com um grau aceitável de segurança que na liquidação se alcançaria um montante igual ou superior aos referidos €350.000,00.
A dúvida sobre a realidade desse facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, ou seja, o recorrente (art. 414º do CPC).
Deste modo, conclui-se que o ora apelante não logrou demonstrar, mesmo em juízo de prognose ou de normal previsibilidade e probabilidade, que a situação para si resultante da aplicação e eficácia do mesmo plano seria menos favorável do que a que interviria na ausência dele, ou seja, que a imediata liquidação dos bens seja mais favorável aos seus interesses.
Concorda-se, pois, neste ponto, com o decidido em 1ª instância, não devendo ser recusada a homologação do plano com este fundamento.

Da putativa violação do princípio da igualdade:
Nas conclusões recursivas, diz o apelante que o plano de revitalização viola o disposto nos artigos 17º-F e 194° do CIRE, posto que o nele estabelecido não obteve o seu consentimento.
Refere ainda que:
- Analisada a lista provisória de credores, verificamos que existe apenas um credor garantido – L., S.A.- cuja garantia decorre do penhor sobre 1.000 acções nominativas, representativas do capital social da SGM, que reclamou créditos no montante de € 24.396,78 (conclusão 4ª), ascendendo os créditos comuns ao montante global de € 1.187.046,48 (conclusão 5ª);
- É manifestamente discriminatório o pagamento assumido entre os créditos de natureza comum e de natureza garantida (conclusão 6ª), posto que no plano é imposto o pagamento da totalidade do crédito garantido, num espaço temporal substancialmente inferior ao invés do pagamento dos créditos comuns a quem é imposto um perdão de 60% da dívida e a ser pago num espaço temporal manifestamente mais alargado (conclusão 7ª), inexistindo qualquer justificação para tal distinção e tratamento altamente diferenciado efectuada entre o credor garantido e os credores comuns (conclusão 8ª), não sendo tal equitativo (conclusão 13ª), mas desproporcionado e injustificado, violando o princípio da igualdade entre os credores (conclusão 14ª);
- O Tribunal a quo entendeu, incorretamente, que pelo facto de o crédito garantido ser de valor relativamente baixo e que essa diferenciação não implicava consequências gravosas para os demais credores comuns (conclusão 10ª), pelo que, de acordo com tal entendimento, seria então mais justo se o tratamento aplicado ao credor garantido fosse igual ou o mais aproximado possível dos credores comuns (conclusão 11ª), um vez que são estes que suportam o plano de revitalização, com um benefício injustificado do único credor garantido (conclusão 12ª).
Vejamos.
O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas – art. 194º do CIRE.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de 25 de Março de 2014, processo nº 6148/12.1TBBRG.G1.S1 (Fonseca Ramos): «A parte final do art. 194º, nº1, do CIRE foi ditada por razões de ordem pública convocando o princípio constitucional da proporcionalidade. Como ensina “Jorge Reis Novais, in “Os Princípios Estruturantes da República Portuguesa”, pág. 171: “…Por sua vez, a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como sendo justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspetiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável. Nesta aproximação de definição podem intuir-se, em primeiro lugar, a relativa imprecisão e fungibilidade dos critérios de avaliação; em segundo lugar, o permanente apelo que eles fazem a uma referência axiológica que funcione como terceiro termo na relação e onde está sempre presente um sentido de justa medida, de adequação material ou de razoabilidade, por último, a importância que nesta avaliação assumem as questões competenciais, mormente o problema da margem de livre decisão ou os limites funcionais que vinculam legislador, Administração e juiz.”» - vide ainda o Ac. do STJ de 24 de Novembro de 2015, proc. n.º 212/14.0TBACN.E1.S1, José Rainho (Relator).
E como assinala o Tribunal Constitucional (vide acórdãos n.º 123/2018, de 6 de Março de 2018 e 154/2022, de 17 de Fevereiro de 2022): constitui jurisprudência constitucional reiterada e pacífica que o princípio da proibição do excesso se analisa em três subprincípios: idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade.”
Acrescenta-se nesse acórdão que, “o subprincípio da proporcionalidade (ou da justa medida) determina que os fins alcançados pela medida devem, tudo visto e ponderado, justificar o emprego do meio restritivo; o contrário seria admitir soluções legislativas que importem um sacrifício líquido de valor constitucional».
E estipula o art.º 17.º-F, n.º 7, do CIRE, na sua actual redacção, que incumbe ao juiz aferir se no plano “os credores inseridos na mesma categoria são tratados de forma igual e proporcional aos seus créditos” (al. b) e se, “no caso de classificação dos credores em categorias distintas, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 17.º-C, as categorias votantes discordantes de credores afetados recebem um tratamento pelo menos tão favorável como o de qualquer outra categoria do mesmo grau, e mais favorável do que o de qualquer categoria de grau inferior” (al. c).
No caso, com excepção dos créditos da AT e da Segurança Social, o único crédito garantido contemplado no plano é o do credor L., SA, no montante de €24.396,78.
Esse crédito goza da garantia do penhor de 1000 acções nominativas, representativas do capital social de SGM, no valor nominal de 1 euro, sendo 250 acções correspondentes à garantia bancária n.º 2017.00922 e 750 acções correspondentes à garantia bancária n.º 2019.03901.
Essas garantias foram prestadas ao abrigo do Dec. Lei n.º 211/98, de 16/07, que regula as operações e os serviços a prestar pelas sociedades de garantia mútua, como a L., SA.
A obtenção daquelas garantias teve como condição a aquisição pela ora devedora de acções da sociedade de garantia mútua, sobre as quais, nos termos da lei, foi constituído penhor, em benefício da sociedade de garantia mútua, como contrapartida da garantia prestada por essa sociedade, podendo esta, em caso de não cumprimento das obrigações garantidas, executar o penhor, adjudicando a si o respetivo valor de emissão ou vendendo-as extrajudicialmente, sendo o seu valor para efeitos de adjudicação o da emissão (arts. 2º, n.º 8, 10º, n.º 2, e 12º do Dec. Lei n.º 211/98, de 16/07).
Deste modo, em caso de adjudicação o valor das acções dadas em penhor é de €1.000,00.
Relativamente aos demais bens da devedora, a L., SA não beneficia de qualquer garantia.
E assim sendo, carece de fundamento objectivo a diferenciação de tratamento entre os credores comuns e a L., SA, pois que enquanto os créditos daqueles sofrem uma redução de 60%, sendo pagos em 180 prestações mensais, com um período de carência de 18 meses, o crédito desta última é pago na totalidade, em 150 prestações mensais, com um período de carência de 12 meses.
Por outro lado, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 195º do CIRE, em especial a alínea g), o plano deve conter todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz.
Concordantemente, aduz-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/10/2015, proferido no processo n.º 1898/13.8TYLSB.S1 (Júlio Gomes-relator), que “necessário se torna, desde logo, justificar no próprio plano o diferente tratamento, com a indicação das razões objetivas para essa diferença”.
O tratamento desigual deve ser justificado e a justificação cabe a quem apresenta o plano, sob pena de, não o fazendo, a discriminação se ter por injustificada, não cabendo ao juiz, no momento da homologação do acordo, entrar em suposições ou conjecturas sobre as razões do tratamento desigual, excepto, segundo cremos, se as mesmas forem notórias/patentes em face daquele.
Perante a omissão do plano, na sentença recorrida procurou-se uma justificação para tal, referindo-se que:
“O princípio da não discriminação entre credores admite desigualdades entre créditos de natureza diversa, nomeadamente em relação aos que estando garantidos por determinado bem ou direito seriam sempre pagos em cenário de liquidação.
No caso concreto, havendo um crédito garantido, de valor relativamente baixo, nem sequer se pode considerar que a diferenciação tenha consequências gravosa para os demais credores, todos comuns.
Termos em que não há violação injustificada nem desproporcionada do princípio da não discriminação entre credores”.
Discorda-se, com o devido respeito, deste entendimento.
É certo que o crédito da L., SA é do montante de €24.396,78 e os créditos dos demais credores, com exclusão da AT e da Segurança Social, são de €1.138.236,61.
Porém, manifestamente, o valor daquele crédito da L., SA não justifica minimamente o seu pagamento integral, enquanto os demais créditos comuns sofrem de um perdão de 60%, tanto mais que nesta categoria de créditos existem vários de montante inferior ao da L., SA.
A circunstância do crédito da L., SA se encontrar parcialmente garantido pelo valor das acções dadas em penhor (no valor de €1.000,00), não justifica a apontada diferença de tratamento em sede de pagamento integral do mesmo e diverso prazo de pagamento, não podendo tal garantia, nas circunstâncias concretas apuradas, constituir um factor justificador de uma diferenciação do regime de satisfação dos créditos no confronto de outros credores.
O plano não apresenta, pois, razões objetivas bastantes que possam dar respaldo jurídico à aludida diferenciação de tratamento, traduzida no perdão de 60% dos créditos comuns e pagamento integral do crédito de um outro credor (L., SA), quando o crédito deste apenas parcialmente se encontra garantido pelas acções dadas em penhor.
Trata-se de uma desproporção merecedora de censura.
A única “explicação” que logramos vislumbrar para a circunstância do plano prever o pagamento integral do crédito da L.,, SA sobre a A., Lda é o facto do seu gerente, AC, bem como SC, serem avalistas da devedora, respondendo o património pessoal destes pelo pagamento da dívida (responsabilidade solidária).
Mas tal prende-se com razões estranhas aos interesses presentes nos autos (da devedora e dos seus credores), sendo, pois, perfeitamente injustificado o pagamento integral do crédito da L., SA contemplado no plano.
Concluímos assim que a homologação do plano nestas circunstâncias viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade (arts. 13º e 18º, n.º 2, da CRP).
Por esta razão, e como propugna o Banco apelante, o plano não deveria ter sido homologado judicialmente.
Procede, deste modo, a apelação.

Sumário (da responsabilidade do relator):
1.-A violação de normas referentes ao conteúdo do plano prende-se com a substância do plano de recuperação (aquilo que ele contém ou deve conter) e, portanto, essa violação será não negligenciável, de um modo geral, sempre que ela acarrete um resultado que a lei não permite, seja porque o conteúdo do plano viola disposições legais de carácter imperativo, seja porque viola regras legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respectivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere.
2.-A procedência do pedido de não homologação do plano baseado no fundamento elencado na al. a) do n.º 1 do art. 216º do CIRE depende da demonstração da existência de um prejuízo decorrente da sua homologação.
3.-O plano de revitalização deve obedecer aos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
4.-O tratamento desigual deve ser justificado e a justificação cabe a quem apresenta o plano, sob pena de, não o fazendo, a discriminação se ter por injustificada, não cabendo ao juiz, no momento da homologação do acordo, entrar em suposições ou conjecturas sobre as razões do tratamento desigual, excepto se as mesmas forem notórias/patentes em face daquele.
5.-Viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade o plano de revitalização que não apresenta razões objetivas bastantes que possam dar respaldo jurídico à diferenciação de tratamento de credores, traduzida no perdão de 60% dos créditos comuns e pagamento integral do crédito de outro, quando o crédito deste, no montante de €24.396,78, apenas se encontra garantido pelas acções dadas em penhor, no valor de €1.000,00.

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V. Decisão:

Pelo acima exposto, decide-se:
a.-Julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida que homologou o plano de revitalização, recusando-se a sua homologação;
b.-Custas do recurso pela Requerente/devedora, enquanto parte vencida;
c.-Notifique.

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Lisboa, 2024-04-23


(Manuel Marques- Relator)
(Renata Linhares de Castro- 1ª Adjunta)
(Teresa Sousa Henriques- 2ª Adjunta)