Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2460/07.0TBFAF.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
VALOR PROBATÓRIO
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
RECUSA DE PAGAMENTO
CHEQUE
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE A DA RÉ(PROCEDENTE A DOS AUTORES
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Os documentos particulares (cessão de quotas) assinados pelo autor, apenas provam que o autor fez essa declaração, nada mais, designadamente que a declaração corresponda à verdade. Quando as circunstâncias do caso façam crer que as convenções contra ou além do documento tenham tido lugar, a prova testemunhal, terá um papel de suplemento de prova e será de admitir, impondo-se, ante as circunstâncias do caso, a interpretação com os devidos cuidados do preceito proibitivo, cuja desaplicação se deve ter por justificada quando o mencionado começo de prova por escrito já tenha tornado verosímil o facto a provar.
II - Afastado o valor probatório dos documentos (cessão de quotas) no tocante aos valores e seu pagamento, compete ao réu provar, por outro meio, ter pago o valor convencionado.
III – A co-assunção de dívida não está sujeita a forma especial e, consequentemente, tanto pode operar-se mediante declaração expressa do assuntor, como de factos de onde claramente se deduza a intenção de terceiro de se responsabilizar por dívida alheia.
IV - Do nº3 do art. 6.º do CSC, tal como do art. 160º do C. Civil, não decorre uma incapacidade absoluta das sociedades para a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, nomeadamente, in casu a co-assunção de uma dívida do seu sócio-gerente.
V - O artº 563º do Código Civil consagra a doutrina da causalidade adequada, na sua formulação negativa: «o facto só deixará de ser causa adequada do dano, desde que se mostre, por sua natureza, de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais» (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição, pg. 708). Para além disso, a doutrina em causa não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano; podem ter colaborado na sua produção outros factos concomitantes ou posteriores (autor citado).
VI - Não é indiferente, para o portador do cheque, a sua devolução por motivo de revogação ou por falta de provisão. Há diferenças entre o título executivo ser um cheque, a que se aplicam as regras relativas aos cheques e em que a sua mera emissão faz presumir a existência de causa subjacente, dispensando o portador de a alegar e provar e o título ser um documento particular assinado pelo devedor, que implica a alegação de uma causa de pedir e a sua prova por parte do exequente.
VII – Também não é indiferente para a sociedade sacadora, já que a devolução do cheque, por falta de provisão, implicaria, entre outros efeitos, que passasse a integrar a listagem de utilizadores de cheques que oferecem risco (LUR), o que equivale a perder o crédito.
VIII – A actuação do Banco sacado não foi indiferente à produção do dano, ela foi condição do dano sofrido pelos recorrentes autores, não só porque, em abstracto é adequado a causá-lo, mas porque, em concreto, determinou o não pagamento.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO
J. M G. L. e mulher M. A. N. C. intentaram a presente acção declarativa, com processo comum sob a forma ordinária contra (1ºs) J. C. G. L. e mulher M. I. C. C. ; (2ª) V...– Investimentos Imobiliários, Ldª; (3º) e Banco.., S.A., pedindo que os réus sejam solidariamente condenados a pagarem-lhes a quantia de €630.000, acrescida de juros, à taxa legal, desde 25 de Setembro de 2007, ou, pelo menos, a partir da citação, até efectivo pagamento, importando em €600 à data da propositura da acção. Alegam, em síntese:
O autor e o réu J.C. tinham participações sociais nas sociedades V - Investimentos Imobiliários Ldª, M.C.C.L. & Filhos, Ldª, A.P. & Irmãos, Ldª, L. - Sociedade de Empreendimentos e Investimentos Imobiliários, Ldª, Transportes L., Ldª e C.L. & L.S., Ldª. Em Março de 2007, acordaram em dividir e separá-las de forma a ficar a segunda e a quinta para os demandantes e filhos e as restantes para os réus pessoas singulares e filhos, com exclusão uns dos outros.
Efectuadas as contas emergentes das transmissões, o demandante e o réu marido acordaram em fixar em €630.000 o montante correspondente ao excesso das participações cedidas a este e seus familiares, o que o mesmo assumiu.
Em 30 de Maio de 2007 o réu emitiu à ordem do demandante um cheque naquele montante duma conta da sociedade V. - Investimentos Imobiliários, Ldª, que lhe ficara a pertencer, o qual não chegou a ser apresentado a pagamento em virtude da sua validade ter caducado em 15 de Março de 2003, tendo sido substituído por outro, da mesma conta, datado de 31 de Maio de 2007.
Apresentado a pagamento, este cheque foi devolvido em 8 de Junho desse ano com fundamento em saque irregular, devido à falta de poderes para, só por si, obrigar a sociedade, sendo, por sua vez, substituído por outro, duma conta da mesma sociedade no Banco.., assinado pelo réu marido e seu filho H.. e datado de 20 de Setembro de 2007.
Este cheque foi apresentado a pagamento pela sociedade M.C.C.L.& Filhos, Ldª, que ficara a pertencer aos demandantes e filhos, na sequência de endosso, sendo devolvido a 25 de Setembro com fundamento em “cheque revogado/vício formação da vontade”.
Em 4 de Outubro foi apresentada reclamação ao réu Banco com nova apresentação do cheque solicitando a sua reapreciação por se tratar de uma excepção pessoal dependente de decisão judicial, mas aquele respondeu dizendo que se limitara a cumprir a ordem, não estando obrigado a investigar ou obter prova da veracidade do motivo e devolveu-o com o mesmo fundamento Alegam que o réu Banco não indicou concretamente os factos integrativos do vício limitando-se a aceitar uma revogação pura e simples, concluindo que se constituiu em responsabilidade solidária.
A ré mulher é responsável por terem sido incorporadas no património do casal as quotas que cederam e a ré sociedade por não ter pago o cheque sacado sobre uma conta sua.
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A ré V. Lda. contestou, contrapondo, em síntese:
O montante reclamado diz respeito a um acordo exclusivamente celebrado pelas pessoas singulares, é alheia à sua fixação e assumpção de pagamento, o qual não visou o interesse da sociedade, é alheio ao seu objecto social e não se mostra necessário ou conveniente à prossecução do seu fim.
Refere que o autor, seu sócio e gerente até Março de 2007, conhecia que o acto não respeitava o pacto social. Invoca a nulidade do acto de emissão do cheque nos termos do artigo 6º nº 4 do Código das Sociedades Comerciais por ultrapassar a sua capacidade de gozo.
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Os réus J.C. e esposa contestaram, argumentando:
Todos os valores correspondentes às cessões de quotas foram pagos e recebidos e que o montante de €630.000 seria um valor limite a pagar pelo primeiro quando fossem apuradas as contas por si apresentadas, pois o autor utilizara em benefício próprio €590.195 da sociedade V..- Investimentos Imobiliários, Ldª e o réu marido fizera empréstimos à sociedade M.C.C.L& Filhos, Ldª no valor de €601.200.
Todos os cheques emitidos o foram a título de garantia e com o acordo do Autor para serem substituídos, tanto mais que no primeiro cheque é visível a data de validade e este sabia que a sociedade só podia obrigar-se com a assinatura de dois dos gerentes.
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O réu Banco também contestou e em síntese:
Admite que a ré V. Lda. tem conta aberta, que dela foi sacado o cheque com data de 20 de Setembro de 2007, no montante de €630.000 à ordem do autor, por si devolvido por duas vezes com a referida menção. Fê-lo devido a comunicação escrita contendo ordem de não pagamento, que acatou.
Acrescenta que, na data de apresentação do cheque a pagamento, a conta não tinha provisão suficiente para o seu pagamento, o mesmo se passando nos oito dias seguintes à que consta como de emissão, pelo que caso não tivesse acatado a ordem de revogação os autores não teriam recebido tal montante.
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Os autores replicaram alegando:
As empresas eram constituídas, essencialmente, por dois sectores de actividade, a construção civil e imobiliário, por um lado, vinho e transportes, por outro e, no acordo verbal de separação, celebrado em Julho de 2006, o réu marido escolheu o segundo sector contra o pagamento pelo primeiro de €750.000, tomando posse imediata das empresas e passando a geri-las como suas.
Cerca de uma semana depois, o réu marido contactou o demandante para trocarem as respectivas posições, o que este aceitou mas, como aquele tinha a haver pagamentos de despesas que efectuara, o montante foi reduzido a €630.000, que se obrigou a pagar-lhe quando as separações fossem formalizadas. Tal aconteceu em Março de 2007 e o réu emitiu o cheque e com ele ficavam saldadas entre ambos todas as contas.
A alteração do pacto social da sociedade V. - Investimentos Imobiliários, Ldª foi efectuada pelo réu marido e seus familiares depois da celebração do contrato de cessão de quotas em termos que desconhecem. Salientam que a nova gerência assumiu com a emissão do cheque dos autos em 20 de Setembro de 2007 o respectivo pagamento.
Entendem que a invocação da invalidade da emissão do cheque configura abuso de direito.
Referem que os danos causados pelo Banco réu consistem na privação imposta de dispor de uma certificação verdadeira do incumprimento dos demais Réus que melhor os habilitaria a sustentar contra eles acção para cobrança do montante devido.
Terminam pedindo a condenação dos Réus pessoas singulares e sociedade como litigantes de má fé em multa e indemnização.
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Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador que se pronunciou pela validade e regularidade de todos os pressupostos processuais. Seleccionaram-se os factos assentes e controvertidos elaborando-se base instrutória, com reclamações não atendidas.
Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo, sendo que no início da audiência se ampliou a matéria assente e a base instrutória.
Discutida a causa, decidiu-se a matéria de facto.
Proferiu-se sentença na qual se julgou a acção parcialmente procedente, decidindo-se:
I. 1) Absolver o Réu Banco …. do pedido formulado pelos autores J.M. e mulher M.A.;
2) Condenar os Réus J.C. e mulher M.I. e V. – Investimentos Imobiliários, Ldª, solidariamente, a pagar aos autores J.M. e mulher M.A. a quantia de € 630.000, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde 25 de Setembro de 2007 até integral e efectivo cumprimento.
II. Julgar o incidente de litigância de má fé parcialmente provado e procedente condenar o Réu J.C. na multa de vinte UCs.
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Inconformados, os autores e a ré “V. - Investimentos Imobiliários, Ldª” interpuseram recursos, que foram admitidos sob a forma de apelação a subirem de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Apresentaram alegações em que concluem:
A) Conclusões da apelação da ré V. - Investimentos Imobiliários, Ldª.
1.- Em Março de 2007, Recorrido e JC acordaram em dividir e separar as participações sociais que detinham nas sociedades identificadas nas alíneas C.C.f..
2.- Para execução desse acordo celebrara a 09 de Março os respectivos Contratos de Cessão de Quotas.
3.- Nos respectivos contratos, e nos termos do referido na alínea C.C.f., todos os valores das cessões foram liquidados.
4.- Só a 30 de Maio de 2007, passados 3 meses, a Recorrente emitiu o cheque da conta n.º 16000000147 da conta n.º 11.023900200028755 do Banco Santander.
5.- A Recorrente não interveio nos Contratos de Cessão, sendo alheia aos negócios.
6.- Quando o cheque foi emitido, já o Recorrido e J.C. tinham liquidado os valores das cessões e assumido nos respectivos contratos que todos os valores tinham sido recebidos.
7.- O Recorrido não pôs em causa o constante dos Contratos de Cessão, não tendo arguido a nulidade ou invalidade de quaisquer das suas cláusulas, nomeadamente onde é assumido e aceite a quitação dos valores de cessão.
8.- Contratos que estão dados por assentes.
9.- Não podia o Tribunal “a quo” face aos documentos dados por assentes, concluir que o cheque no valor de 630.000,00 € foi para liquidar as cessões de quotas.
10.- Não era à Recorrente ou a J.C. que competia alegar e demonstrar que haviam pago os valores respeitantes às cessões de quotas, pois ele resulta expressamente do texto dos contratos, que não foram colocados em causa pelo Recorrido.
Sem prescindir
11. - Nos termos do Art.º 6, n.º 1 e n.º 3 do C.S.C. a capacidade de uma sociedade é medida pelo seu fim mediato, que é a obtenção do lucro, pelo que não compreende a prática de actos gratuitos sendo nulos os actos praticados pelos titulares dos órgãos da sociedade comercial que não seja abrangidos pela capacidade desta.
12.- O valor a que a Recorrente foi condenada a pagar – 630.000,00 € -, pela emissão de um cheque sacado sobre uma conta sua, corresponderá a uma eventual responsabilidade exclusiva do co-Réu J.C., conforme é expressamente referido pelos Recorridos na sua P.I. e dado como assente e provado pelo Tribunal “a quo”.
13. - Eventual Responsabilidade à qual Recorrente foi e é completamente alheia, quer quanto à fixação do seu montante quer quanto à assumpção do pagamento, além de que não visou o interesse da sociedade, é alheio ao seu objecto social e não se mostra de forma alguma, necessário ou conveniente à prossecução do seu fim.
14. - O Recorrido-marido, sócio e gerente da Recorrente até Março de 2007 conhecia, em absoluto, que o acto não respeitava a Cláusula do pacto social referente ao seu objecto e que a emissão do cheque era um acto desprovido de interesse para a sociedade e, por isso, ilegítimo.
Termos em que, com o douto suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença recorrida, absolvendo-se a Recorrente e, atento os invocados motivos, o Co-Réu J.C. assim fazendo justiça.
B) Conclusões da apelação dos autores:
1. Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto constante da douta sentença recorrida, designadamente sob os n.os 20 a 28, devendo ser aditado – por serem relevantes para a decisão final – que o cheque dos autos (datado de 20/09/2007) foi apresentado a pagamento em 21/09/2007 e 04/10/2007;
2. Verificam-se, assim, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, que obriga o Banco – Réu a reparar os prejuízos que, com a sua conduta, causou aos Autores, em virtude de ter procedido ao não pagamento e restituição do cheque dos autos, no montante de €630.000,00, não por falta de provisão, mas tão somente pelos vícios invocados no verso desse cheque, com a menção de “cheque revogado/vício da formação da vontade”, sem cuidar de avaliar quais os motivos concretos dessa menção.3. Como consta da douta sentença recorrida – que aqui se dá por reproduzida – o motivo aposto no verso é vago, constituindo uma revogação pura e simples que, sendo levada a cabo fora do prazo previsto no art.º 32º da LUCH é ilícita, verificando-se os demais requisitos da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, como o dano causado, correspondente ao montante titulado no cheque, e a culpa do Réu – Banco no acatamento da instrução de não pagamento do sacador, sem exigir maior precisão, da fórmula tabelar referida, o que podia fazer com antecedência – a comunicação foi-lhe dirigida a 6 de Setembro e a data que consta do cheque é de 20 desse mês, sendo a devolução datada de 25 (não actuou, portanto, com a diligência que lhe era exigível, como agiria uma pessoa medianamente capaz, prudente, avisada e cuidadosa, como um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso – cfr. art.º 487º do Código Civil).
4. Porém, a douta sentença recorrida entendeu que não se encontrava verificado o “nexo de causalidade entre o dano patrimonial sofrido e conduta do Réu – Banco, por a conta não ter provisão nos oito dias subsequentes à data que consta como emissão, não tendo os Autores demonstrado esse nexo e, com esse fundamento, absolveu o Réu – Banco, do pedido indemnizatório formulado pelos Autores.
5. Salvo o devido respeito, não se concorda com este entendimento, porquanto, de harmonia com a doutrina da causalidade adequada (consagrada no art.º 563º do Código Civil) da conduta do Réu, ao certificar que o cheque tinha sido revogado, e que, por isso, procedia à sua restituição, sem referência a qualquer falta de provisão, não podia deixar de configurar como provável o não pagamento desse cheque, segundo o curso normal das coisas e a partir das circunstâncias do caso, de harmonia com a evolução normal (e portanto previsível) dos acontecimentos.
6. Este efeito, para além de ser abstractamente adequado, por via da conduta do Réu – Banco, também por este era previsível se tivesse empregado uma diligência comum.
7. Ao recusar o pagamento do cheque com fundamento na sua revogação (ilícita) o Réu – Banco impediu que se verificasse o facto que implicava a obrigação de notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos 30 dias referidos no art.º 1º-A do Dec. Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, alterado pelo Dec. Lei n.º 316/97 de 19 de Novembro.
8. Não se trata, pois, da aplicação da causa da questão da irrelevância negativa da causa virtual ou hipotética, porquanto a partir do momento em que o Réu – Banco aceitou a revogação do cheque (tout court), sem invocação da sua falta de provisão, não existe causa que pudesse configurar ou afectar o processo causal efectivo.
9. Ora, o Banco – Réu não alegou – e muito menos provou – que tivesse observado o que a lei lhe impunha (cfr. preambulo deste diploma), como a de, no caso de invocar deficiência da respectiva provisão, proceder à rescisão da convenção do cheque estabelecida com o sacador, com proibição de emitir novos cheques e devolução dos módulos de cheques fornecidos e não utilizados, com comunicação do Banco do Portugal, como decorre também do preceituado nos art.s 1º, 2º e 3º daquele diploma.
10. O ónus da prova da observância destas normas e do Banco sacado (ora Réu), como resulta do disposto no art.º 9º, n.º 2, desse diploma e do art.º 493º do Código Civil, atento o dever de vigilância do cheque a que a lei o obrigava.
11. Assim, ao não provar a observância de tais normas o Banco – Réu impediu que os Autores usassem do meio de pressão que a lei lhe facultava, na hipótese de falta de provisão, com intervenção do Banco de Portugal e, eventualmente, da respectiva participação criminal;
12. Os Autores é que não podiam, por manifesto desconhecimento, como emerge da tutela do segredo bancário, ter em consideração a falta de provisão do cheque na data da sua apresentação (com o subsequente prejuízo do seu não pagamento) atento o princípio da boa fé e o espírito de confiança que deve existir em relação às instituições de crédito, na certificação, com verdade, do motivo da devolução do cheque;
13. Aliás, quando o cheque foi apresentado a pagamento (21/09/2007) e foi devolvido do Banco Réu, em 25/09/2007, com a referida menção “cheque revogado/vício da formação da vontade, é reclamado desse fundamento, sua falta de concretização, com nova apresentação (em 04/10/2007) foi o mesmo devolvido, com a mesma menção, em 09/10/2007, o que significa que foi conscientemente que o motivo do não pagamento foi a revogação do cheque e não qualquer outro;
14. Ora, revogar um cheque significa proibir o seu pagamento dando-o como não emitido;
15. A falta de provisão do cheque na data da apresentação (nem nos 8 dias seguintes) não significa que o pudesse vir a ter tanto mais que pouco tempo antes (26/06/2007) a conta respectiva apresentava um saldo de €450.000,00 e na conta do Santander Totta €317.062,95, sinal de que, caso o cheque dos autos tivesse sido devolvido por falta de provisão, não o pudesse vir a ter, se tivesse sido exercida a pressão correspondente, com a observância das normas do Dec. Lei n.º 316/97.
16. Só na contestação da presente acção é que o Réu – Banco invocou a falta de provisão com a junção da conta – corrente, mas sem alegar – e muito menos provar – que tivesse observado tais normas.
17. Sendo-lhe exigido, por um lado, que avaliasse a seriedade e veracidade do motivo indicado pelo sacador, sob pena de violação do art.º 32 (bem como 28 e 29) da LUCH e, por outro lado, provasse as condições ou circunstâncias que afastassem o nexo de causalidade entre o facto e o dano patrimonial, verificam-se todos os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual ou aquiliana, pelo que o Banco-Réu deve ser condenado a pagar aos Autores o prejuízo que lhes causou, correspondente ao valor do cheque (€630.000,00) não pago nos termos do art.º 483º e 562º e seguintes do Código Civil (v.g. por todos o Ac. do T.R.P. de 14/04/2011 – Proc. n.º 3579/08 e em consonância com o Acórdão Uniformizador do STJ n.º 4/2008, publicado no D.R., I Série, n.º 67, de 04/04/2008).
18. Ao assim não entender a douta sentença recorrida violou tais preceitos, designadamente, por erro de interpretação e aplicação, o art.º 563 do referido Código;
19. Ao montante de €630.000,00 devem acrescer os juros de mora à taxa legal desde a data da devolução do cheque (25/09/2007) até efectivo e integral pagamento (art.º 805º, n.º 2, al. b), do Código Civil).
Termos em que, com o douto suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando a douta sentença recorrida, e, consequentemente, condenando-se o recorrido Réu – Banco, a pagar aos Autores solidariamente com os restantes Réus a quantia de €630.000,00 acrescida de juros moratórios desde 25/09/2007, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
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O recorrido Banco contra-alegou.
O réu JC declarou aderir ao recurso interposto pela ré V. - Investimentos Imobiliários, Ldª (fls. 479).
Os recursos vieram a ser admitidos neste Tribunal da Relação na espécie, com o efeito e regime de subida fixados no despacho de admissão dos recursos na 1ª instância.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, tal como decorre das disposições legais do artº 684º nº3 do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras “ (artº 660º-nº2 do CPC). E, de entre estas questões, excepto no tocante aquelas que o tribunal conhece ex officio, o tribunal de 2ª instância apenas poderá tomar conhecimento das questões já trazidas aos autos pelas partes, nos termos dos artº 664º e 264º do CPC, não podendo a parte nas alegações de recurso e respectivas conclusões vir suscitar e requerer a apreciação de questões ou excepções novas.
Face às conclusões das alegações, cumpre apreciar:
A) Apelação da ré V. - Investimentos Imobiliários, Ldª:
- Se o Tribunal “a quo” não podia, face aos documentos dados por assentes, concluir que o cheque no valor de €630.000 foi para liquidar as cessões de quotas.
- Se não era à recorrente ou a JC que competia alegar e demonstrar que havia pago os valores respeitantes às cessões de quotas
- Se a emissão do cheque era um acto desprovido de interesse para a sociedade e, por isso, ilegítimo.
B) Apelação dos autores:
- Se, o facto da conta sacada não ter fundos que permitissem o pagamento do cheque, não exclui o nexo causal entre o ilícito praticado pelo Banco sacado e o dano sofrido pelos autores, correspondente ao não recebimento do respectivo valor.
III - FUNDAMENTOS DE FACTO
O Tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade:
1. Os Autores – que são casados no regime de comunhão de adquiridos – e os primeiros Réus – que são casados também no mesmo regime – eram donos e legítimos possuidores das seguintes participações sociais:
a) na sociedade por quotas denominada V. – Investimentos Imobiliários, Ldª, com sede na …, desta cidade, com o objecto de “compra e venda de propriedades, sua administração, gestão, exploração e todas as demais operações permitidas sobre imóveis”, com o capital de € 800.000, sendo o Autor marido titular de uma quota de € 400.000 e o Réu marido de outra quota de € 400.000;
b) na sociedade por quotas denominada MCCL & Filhos, Ldª, com sede no lugar e freguesia de …, desde concelho e comarca de Fafe, com o objecto de “comércio de vinhos e seus derivados”, com o capital social de € 800.000, sendo o Autor marido titular de uma quota de € 400.000 e o Réu marido de duas quotas, sendo uma de € 75.781,37, como bem próprio e outra de € 324.218,64;
c) na sociedade por quotas denominada A.P. & Irmãos, Ldª, com sede na …., desta cidade, com o objecto de “indústria de confecção e venda de roupas” com o capital social de € 5.000, sendo o Autor marido titular de duas quotas de € 1.125, duas de € 500, o sócio João.. da quota de € 625 e o sócio Armando.. da quota de € 1.125;
d) na sociedade por quotas denominada L.– Sociedade de Empreendimentos e Investimentos Imobiliários, Ldª, com sede na …, desta cidade, com o objecto de “indústria de construção civil, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, investimentos turísticos, aquisição de prédios rústicos e urbanos para loteamentos, administração e exploração de imóveis”, com o capital de € 50.000, sendo o Autor marido titular de uma quota de € 7.500, o Réu marido de outra de € 7.500, o sócio J.E.M.S. da quota de € 15.000, o sócio J.A.Q.G.M. de outra quota de € 15.000 e a própria sociedade da quota de € 15.000;
e) na sociedade por quotas denominada Transportes L, Ldª, com sede no lugar e freguesia de …., desde concelho, com o objecto de “comércio ou indústria de exploração de todos os serviços de transporte de aluguer em camioneta de carga ou qualquer outro ramo de comércio ou indústria em que a sociedade acorde e seja legal”, com o capital de € 254.386,92, sendo o Autor marido titular de uma quota de € 127.193,46 e o Réu marido de duas quotas de € 127.193,46;
f) na sociedade por quotas denominada CL & LS, Ldª, com sede na …., desta cidade, com o objecto do “exercício da actividade de construção e reparação de edifícios e operações sobre imóveis (compra e venda de imóveis)”, com o capital de € 750.000, sendo o Autor marido titular de uma quota de € 250.000 e o sócio A.L.S. com outra quota de € 250.000 [alínea A) dos factos assentes].
2. As empresas mencionadas em 1) eram constituídas, essencialmente, por dois sectores de actividade:
a) a construção civil e imobiliário no qual se integrava a “V. – Investimentos Imobiliários, Ldª”, “JL & LS, Ldª”1 e “L. - Sociedade de Empreendimentos e Investimentos Imobiliários, Ldª”;
b) vinhos e transportes integrada por “MCCL & Filhos, Ldª” e “Transportes L, Ldª” [resposta ao artigo 1º da base instrutória].
3. Na separação das empresas o Réu JC escolheu as relativas aos vinhos e transportes, ficando as restantes para o Autor e acordaram entre ambos que este pagaria àquele o montante de € 750.000 [artigo 2º].
4. Tal acordo foi verbalmente celebrado em Julho de 2006 [artigo 3º].
5. Imediatamente o Autor marido e o Réu marido tomaram posse das empresas respectivas e passaram a geri-las como suas [artigo 4º].
6. Porém, cerca de uma semana depois, o Réu marido contactou o Autor marido para trocarem as respectivas posições, o que o Autor marido aceitou, isto é, passaram a ficar para o Autor marido as empresas dos sectores vinhos e transportes e para o Réu marido as do sector de construção civil e imobiliário [artigo 5º].
7. Como o Réu marido tinha a haver pagamentos de despesas por ele efectuadas ao serviço das empresas, aquele montante de € 750.000 foi reduzido para € 630.000 que o Réu marido se obrigou a pagar ao Autor marido quando fossem formalizadas tais separações, o que ficou a cargo do distinto advogado Dr. S.P., desta comarca [artigo 6º].
8. Em Março de 2007, o Autor marido e o Réu marido acordaram em dividir e separar as participações sociais que detinham nas referidas sociedades por forma a que cada um deles ou família nelas participassem sem a presença do outro, nos termos seguintes:
- nas sociedades “MCCL & Filhos, Ldª” e “Transportes L., Ldª” passaram a participar o Autor marido, mulher e filhos, com exclusão do Réu marido e familiares;
- nas restantes “V. – Investimentos Imobiliários, Ldª”, “A. P. & Irmãos, Ldª”, “L. – Sociedade de Empreendimentos e Investimentos Imobiliários, Ldª” e “CL & LS, Ldª” passaram a participar o Réu marido, mulher e filhos, com exclusão do Autor marido e seus familiares [alínea B)].
9. Assim, para execução desse “acordo” foram celebrados os seguintes contratos de cessão de quotas:
a) em 9 de Março de 2007, o Autor marido dividiu a sua quota de € 400.000 na sociedade “V. – Investimentos Imobiliários, Ldª” em quatro quotas de € 100.000 cada e fez as seguintes cessões:
- ao Réu marido, a quota de € 100.000;
- a J. Lima (filho do Réu marido), a quota de € 100.000;
- a H. Lima (filho do Réu marido), a quota de € 100.000;
- a O. Lima (filho do Réu marido), outra de € 100.000;
tendo renunciado à gerência e a Autora mulher declarado autorizar a divisão e cessão de quotas efectuada pelo marido, seguidamente o Réu marido unificou a sua quota de € 400.000, com a quota de € 100.000 que adquiriu, passando a ser titular de uma quota de € 500.000;
b) na mesma data (09/03/07), o Réu unificou as suas quotas de € 75.781,37 e €324.218,64, das quais era titular na sociedade “M da C. C. L. & Filhos, Ldª”, passando a ser titular de uma quota de € 400.000 que dividiu e quatro quotas de €100.000 cada e fez as seguintes cessões:
- ao Autor marido, a quota de € 100.000;
- a Graciete L. (filha do Autor marido), a quota de € 100.000;
- a Vera L. (filha do Autor marido), a quota de €100.000;
- a Vítor L. (filho do Autor marido), a quota de €100.000, tendo renunciado à gerência e a Ré mulher declarado autorizar a unificação da quota e a sua cessão unificada e dividida;
c) na mesma data (09/03/07), o Autor marido cedeu as duas quotas € 1.125 e as outras duas de € 500 que detinha na sociedade “A P & Irmãos, Ldª” à sociedade “C L & L S, Ldª”, renunciando à gerência;
d) na mesma data (09/03/07), o Autor marido cedeu a quota de € 7.500 que detinha na sociedade “L. – Sociedade de Empreendimentos e Investimentos Imobiliários, Ldª” ao Réu marido, renunciando à gerência; seguidamente o Réu marido unificou a quota de € 7.500 que já detinha, com a quota de € 7.500 que adquiriu, passando a ser titular de uma quota de € 15.000;
e) na mesma data (09/03/07), o Réu marido dividiu a quota de € 127.193,46 que detinha na sociedade “Transportes L., Ldª” em quatro quotas, sendo uma de € 52.193,46 e três de € 25.000 e fez as seguintes cessões: a quota de € 52.193,46 foi cedida ao Autor marido e as quotas de € 25.000 cada uma a G. L., V. S. L. e V. L, renunciando à gerência; seguidamente o Autor marido unificou a quota de e 127.193,46 que já detinha com a quota de € 52.193,46 que adquiriu e passando a ser titular de uma quota de € 179.386,92;
f) na mesma data (09/03/07), o Autor marido cedeu a quota de € 7.500 que detinha na sociedade “J L” & “L. S. Ldª” ao Réu marido, renunciando à gerência, tendo o Réu marido unificado a quota de € 250.000 que já detinha com a quota de € 250.000 à que adquiriu passando a ser titular da quota de € 500.000 [alínea C)];
10. Em Março de 2007 Autor e Réu celebraram entre si os acordos que constam a fls. 54 a 65 e 111 a 114 [alínea P)].
11. O Autor foi gerente da sociedade V-I.I., Ldª até 19 de Março de 2007 [alínea O) e doc. de fls. 7 a 16].
12. Datado de 30 de Maio de 2007 foi emitido o cheque da conta nº 16000000147 da conta nº 11.023900200028755 do Banco Santander, titulada pela Ré V-I.I., Ldª, no montante de € 630.000, à ordem do Autor [alínea D) e doc. de fls. 66].
13. O cheque referido em 12) foi assinado pelo Réu JC [alínea E) e doc. de fls. 66].
14. O cheque referido em 12) tinha como data de validade 15 de Março de 2003 [alínea F) e doc. de fls. 66].
15. Datado de 31 de Maio de 2007 foi emitido o cheque nº 3000000160 da conta identificada em 12), no montante de € 630.000, à ordem do Autor [alínea G) e doc. de fls. 67].
16. O cheque referido em 15) foi assinado pelo Réu JC [alínea H) e doc. de fls. 67].
17. O cheque referido em 12) foi substituído pelo identificado em 15) [artigo 10º].
18. O cheque referido em 15) foi devolvido pelo Banco Santander Totta, em 8 de Junho de 2007, com a menção de “saque irregular” [alínea I) e doc. de fls. 67].
19. A devolução referida em 18) foi motivada pelo facto de o Réu não ter poderes para, só por si, obrigar a sociedade [artigo 11º].
20. Datado de 20 de Setembro de 2007 foi emitido o cheque nº 0820023324 da conta nº 00141934572 do Banco.., S.A., titulada por V.I.I., Ldª, no montante de € 630.000, à ordem do Autor [alínea J) e doc. de fls. 68]. 21. O cheque referido em 20) foi assinado pelo Réu JC e por H. F. C. L. [alínea L) e doc. de fls. 68].
22. O cheque referido em 15) foi substituído pelo identificado em 20) [artigo 12º].
23. Em 6 de Setembro de 2007 a Ré V. I. I. Lda. comunicou e solicitou ao Banco.. a revogação do cheque identificado em 20) “face à verificação de falta, vício e divergência na formação da vontade, atenta a inexistência por incumprimento de qualquer negócio subjacente” [alínea N) e doc. de fls. 149].
24. O cheque referido em 20) (Ver pag. 18 deste acórdão, B), 1º parágrafo) foi devolvido pelo Banco.. em 25 de Setembro e 9 de Outubro de 2007 com a menção de “cheque revogado/vício formação de vontade” [alínea M) e doc. de fls. 68].
25. A sociedade M. C. C. L. & Filhos, Ldª remeteu ao Banco.., em 4 de Outubro de 2007, a carta cuja cópia se encontra a fls. 69 [alínea Q)].
26. O Banco.. respondeu à missiva identificada em 25) com a carta de fls. 73 [alínea R)].
27. Em 11 de Setembro de 2007 a conta identificada em 20) não tinha provisão suficiente para o pagamento do cheque referido no mesmo número [artigo 21º].
28. Também não a teve nos oito dias subsequentes à data que consta como de emissão [artigo 22º].
IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
A) APELAÇÃO DA RÉ “V.- Investimentos Imobiliários. Ldª”
Dos documentos juntos aos autos a fls. 54 a 65 e 111 a 114, intitulados “Contratos de Cessão de Quotas” consta efectivamente que o autor marido “faz a cessão das quotas, por preço igual ao valor nominal, já recebido”.
No caso em apreço estamos perante documentos particulares com a força probatória referida no artº 376º do Código Civil.
Tais documentos particulares (cessão de quotas) apenas provam que o autor fez essa declaração, nada mais, designadamente que a declaração corresponda à verdade.
Inadvertidamente, deu-se por assente na al. P) a fls. 217B o facto que supra consta sob o nº 10, quando dos documentos juntos e face ao teor da P.I, relativamente ao preço e ao seu recebimento, apenas estava assente que as partes declararam isso, sendo que, se o preço foi efectivamente esse e se foi pago, era matéria controvertida, pois alegou-se, que, face aos valores acertados, o autor receberia €630.000, montante que o réu aceitou pagar-lhe, destinando-se o cheque a tal pagamento (diferença entre o valor real das quotas cedidas e adquiridas).
É desta forma que deve ser interpretado o facto nº 10 supra, no tocante a tal cláusula.
Ora a Mmª juiz a quo, indica todos os meios de prova que a convenceram de que «a partilha que os irmãos decidiram fazer … não era equilibrada, o que justifica que o “quinhão” do menos favorecido fosse completado em numerário e assim explica a emissão do cheque de €630.000 …» - cfr. fls. 385 e segs.
Com efeito, a própria emissão dos cheques, juntos a fls. 66, 67 e 68 destes autos é começo de prova por escrito. Ora, quando as circunstâncias do caso façam crer que as convenções contra ou além do documento tenham tido lugar, a prova testemunhal, como defendeu Vaz Serra (BMJ 112.º-217 e ss.), «terá um papel de suplemento de prova» e será de admitir, impondo-se, ante as circunstâncias do caso, a interpretação “com os devidos cuidados” do preceito proibitivo, cuja desaplicação se deve ter por justificada quando o mencionado começo de prova por escrito já tenha tornado verosímil o facto a provar».
Assim, face à prova produzida em audiência e aos documentos juntos aos autos (nomeadamente os cheques e a razão da sua substituição), a Mmª juiz a quo estava habilitada a decidir como decidiu, isto é, que o preço das cessões (ou o valor resultante do ajuste de contas a que se procedeu por força dessas cessões) era de €630.000 (facto nº 7 supra).
Bem como podia concluir, que a sucessão de cheques, que culminou na emissão do cheque que foi devolvido por motivo de revogação (vício formação da vontade), dado o seu contexto, tinha subjacente uma intenção de pagamento e não de garantia, do valor ajustado para a transacção.
E, por isso mesmo, afastado o valor probatório dos documentos (cessão de quotas) no tocante aos valores e seu pagamento, competia ao réu JC provar, por outro meio, ter pago o valor convencionado, o que não fez.
*
No tocante à última questão, entendemos que a emissão do cheque pela ré “V. - Investimentos Imobiliários., Ldª”, cujos sócios são o aqui réu JC e respectivos filhos (beneficiados na “partilha” das sociedades, acima referida, visto que por ela “adquiriram” participações sociais), no contexto em que o foi, revela a manifestação de vontade de co-assumir o pagamento da dívida do seu sócio-gerente, para os efeitos do nº1 do artigo 217º do Código Civil).
A co-assunção de dívida não está sujeita a forma especial e, consequentemente, tanto pode operar-se mediante declaração expressa do assuntor, como de factos “de onde claramente se deduza a intenção de terceiro de se responsabilizar por dívida alheia” (vide Ac. do TRL de 12.10.2010 (proc. 3971/05.7TBVFX.L1-7).
Ora, entendendo-se que a sociedade “V. – Investimentos Imobiliários. Ldª” quis co-assumir a dívida, relacionada com a aquisição de quotas dessa sociedade e de outras de sociedades com ela relacionadas, do seu sócio J.C. para com o autor, temos de atender ao disposto no art. 6º do Código das Sociedades Comerciais.
Este normativo, sob a epígrafe «Capacidade» dispõe:
«1. A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.
2. As liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta.
3. Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.»
Do nº3, tal como do art. 160º do C. Civil, não decorre uma incapacidade absoluta das sociedades para a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, nomeadamente, in casu a co-assunção de uma dívida do seu sócio-gerente (pai dos restantes sócios, que só adquiriram esta qualidade por via do negócio donde resultou tal dívida) – vide Ac. do STJ de 17.9.2009, proc nº 267/09.9YFLSB.S1.
É na ponderação do circunstancialismo que acompanhou a situação concreta que se deve aferir da licitude, ou não, do acto praticado pelos órgãos sociais da sociedade.
Sucede que, no caso em apreço, competia à sociedade recorrente que sacou o cheque em questão e que invocou a nulidade do acto por violação do princípio da especialidade ínsito no art. 6, nº 1 do CSC, o ónus de alegar e provar, que a emissão de tal cheque não só não era necessária nem conveniente à prossecução do seu fim social, como não existia da parte da sociedade justificado interesse próprio em co-assumir a dívida do seu sócio-gerente (Cfr. Ac deste TRG de 27.3.2008 (proc nº 43/08-1) e Ac. do STJ de 13.5.2003 (proc. nº 03A318) in dgsi.pt).
O que não fez.
Pelo exposto improcedem in totum as conclusões das alegações da apelante V. – Investimentos Imobiliários Ldª.
*
B) APELAÇÃO DOS AUTORES:
Procede à cabeça a pretensão destes recorrentes, no sentido de se aditar aos factos (in casu ao nº 24) que o cheque referido em 20º foi apresentado a pagamento em 21/09/2007 e 04/10/2007, por estar plenamente provado e ter interesse para a decisão da causa. Foi inserida anotação ao nº 24, remetendo para este parágrafo.
*
No caso em apreço provou-se que o cheque emitido em 20.9.2007 e apresentado a pagamento em 21.9.2007, foi devolvido pelo Banco réu ao portador, com a seguinte indicação: “cheque revogado – vício formação vontade”, em virtude da Ré V.I. I. Lda., em 6 de Setembro de 2007 ter comunicado e solicitado ao Banco réu a revogação de tal cheque “face à verificação de falta, vício e divergência na formação da vontade, atenta a inexistência por incumprimento de qualquer negócio subjacente”
Os motivos alegados pela sacadora nunca poderiam justificar a revogação do cheque e o Banco não podia recusar o seu pagamento.
Com efeito e como prescreve Artigo 32º da Lei Uniforme do Cheque, a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação. Ora o cheque foi apresentado a pagamento no prazo de 8 dias contados da sua emissão e era por isso irrevogável, sendo que a declaração da sacadora, não configura qualquer situação subsumível na justa causa de revogação tal como vem sendo definida em instruções pelo Banco de Portugal e admitida pela Doutrina e Jurisprudência.
Assim, nos termos do artigo 14º, 2ª parte, do Decreto nº 13004, ao aceitar a revogação e por isso recusar o pagamento do referido cheque, o Banco, aqui recorrido, responde por perdas e danos - (Ac. de Uniformização De Jurisprudência de 28.2.2008 e Ac. do STJ de 12.10.2010 (proc. 2336/07.0TBPNF.L1.S1)
Na sentença recorrida e como sustentado pelo recorrido Banco, entendeu-se que não há nexo de causalidade entre os prejuízos sofridos pelos autores (não recebimento da quantia titulada pelo cheque) e a actuação do Banco, uma vez que o pagamento do cheque seria sempre recusado, se não pelo motivo por que o foi, em virtude de não ter provisão.
É precisamente esta a única questão (nexo de causalidade) que aqui nos cumpre apreciar.
Dispõe o artº 563º do Código Civil que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Consagra este normativo a doutrina da causalidade adequada, na sua formulação negativa: «o facto só deixará de ser causa adequada do dano, desde que se mostre, por sua natureza, de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais» (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição, pg. 708).
Para além disso, a doutrina em causa não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano; podem ter colaborado na sua produção outros factos concomitantes ou posteriores (autor citado).
Citando o Ac. do STJ de 20.01.2010, proc. nº 670/04.0TCGMR.S1 (in dgsi.pt):
“Com efeito, não é qualquer relação fenomenológica ou, se preferirmos, ôntico-naturalística que, embora seja condição próxima de produção de um resultado danoso (causal) entre dois fenómenos, releva para efeitos da teoria da causalidade adequada, mas aquele que for determinante no plano jurídico, isto é, entre um comportamento juridicamente censurável e o resultado danoso. (sublinhado nosso)
Por isso, com inteira razão, a dogmática moderna tende a substituir a designação imprópria de teoria de causalidade adequada, que a praxis tradicional consagrou, pela da teoria ou doutrina da adequação, ou seja pela imputação normativa de um resultado danoso à conduta reprovável do agente, nos casos em que pela via da prognose póstuma se possa concluir que tal resultado, segundo a experiência comum, possa ser atribuída ao agente como coisa sua (produzida por ele)”.
O Tribunal a quo deu relevância à chamada causa virtual do dano, isto é, sobre o Banco não impenderia o dever de indemnizar porque, apesar de não ter pago o cheque com fundamento na sua revogação (acto ilícito) este também não seria pago por não ter provisão e, por isso, o prejuízo (dano) sempre aconteceria, com ou sem o ilícito do Banco, acrescendo, segundo o Tribunal a quo, o cheque, mesmo revogado, sempre seria título executivo.
Não subscrevemos tal entendimento. A actuação do Banco réu não foi indiferente à produção do dano.
Em primeiro lugar não é indiferente, para o portador do cheque, a sua devolução por um ou outro motivo. Há diferenças entre o título executivo ser um cheque, a que se aplicam as regras relativas aos cheques e em que a sua mera emissão faz presumir a existência de causa subjacente, dispensando o portador de a alegar e provar e o título ser um documento particular assinado pelo devedor (para quem entende que um cheque que não vale como tal pode ser dado à execução enquanto documento particular), que implica a alegação de uma causa de pedir e a sua prova por parte do exequente.
Aliás, se a situação do cheque ser devolvido por um ou outro motivo fosse indiferente, não teria a ré “V. I. I. Lda.” a canseira de revogar o cheque.
É que os efeitos que a devolução do cheque por falta de provisão teriam na vida da sociedade sacadora seriam tais. que, provavelmente, no prazo que teria para regularizar o cheque, este seria pago ou, se os autores o aceitassem, substituído.
As consequências ( ) da não regularização do cheque devolvido são:
a) a rescisão da convenção de cheque;
b) a proibição de emitir cheques;
c) a obrigação de devolução dos módulos fornecidos pelo banco e não utilizados;
d) a inclusão na listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco LUR a difundir pelo Banco de Portugal;
e) a impossibilidade de se extinguir a responsabilidade criminal.
Integrar a listagem de utilizadores de cheques que oferecem risco (LUR) é sinónimo de perder o crédito.
É notório, que a sociedade sacadora, caso não regularizasse o cheque em causa, teria comprometida toda a sua actividade.
É elementar concluir, face aos contornos do presente caso, que ressaltam dos factos provados (não há falta de dinheiro, o que não houve foi vontade de pagar), que os autores teriam recebido o valor do cheque se o recorrido Banco não tivesse aceite a revogação, isto é, se não tivesse actuado ilicitamente.
E esse facto foi, em concreto, condição do dano sofrido pelos recorrentes autores, pois foi ele, em concreto, que determinou o não pagamento. E, em abstracto é adequado a causá-lo
Ora, se a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, podemos afirmar, que, provavelmente os autores não teriam sofrido o dano, correspondente ao montante que deixaram de receber, se o Réu Banco não tivesse actuado como actuou.
A actuação do Banco recorrido foi causa adequada do prejuízo dos autores.
Assim, o Banco recorrido é responsável pelas perdas e danos sofridos pelos recorrentes autores, devendo indemnizá-los pelo valor correspondente ao montante do cheque, por ser esse o valor da diferença patrimonial que para eles resulta da sua actuação.
V - DELIBERAÇÃO
Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação da ré V. – Investimentos Imobiliários Lda. e procedente a apelação dos autores e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, na parte em que absolveu o réu Banco, que ora se condena a pagar aos autores, solidariamente com os restantes réus, a quantia de €630.000,00 acrescida de juros moratórios desde 25/09/2007, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
Custas em ambas as instâncias pelos réus.
Guimarães, 10-04-2012
Eva Almeida
Catarina Gonçalves
Figueiredo de Almeida