Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1152/10.7TBVVD.G1
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: AUTORIDADE E FORÇA DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1- Por força da autoridade que emana do trânsito em julgado de uma sentença que, apreciando um pedido de reivindicação de um imóvel, condenou expressamente o réu a abster-se de passar por um determinado caminho de servidão com veículos motorizados, não pode prosseguir uma outra ação em que aquele, agora nas vestes de autor, peça a condenação do ali demandante a reconhecer a existência de uma servidão de passagem de automóvel no mesmo caminho a seu favor.
2- Ainda que não integrante do dispositivo da sentença transitada em julgado, a afirmação justificada, na respetiva motivação, da existência de uma servidão de passagem a pé a favor do réu (invocada pelo demandado a título de exceção), como fundamento da negação do pedido na medida em que este visava a condenação do réu a não entrar pessoalmente ou com animais no prédio do autor, constitui um pressuposto ou premissa lógica e indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado e, como tal, deve-se-lhe considerar extensiva a autoridade do caso julgado, assim evitando que, em ação posterior, o tribunal se veja na contingência de se contradizer em matéria implicitamente reconhecida.
3- Embora resultem ambas do trânsito em julgado da decisão do mérito da causa, a exceção do caso julgado não coincide com a figura da autoridade do caso julgado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
C.., e mulher S.., residentes no lugar do.., Vila Verde, intentaram ação declarativa de condenação, com forma de processo ordinário, contra J.., solteira, maior, residente no lugar do.., da mesma freguesia e concelho, alegando essencialmente que são donos de um prédio urbano, cuja aquisição, por compra e venda, está registada a seu favor, para além de que o adquiriam por usucapião, conforme factos relativos à posse que descrevem.
Sendo a R. proprietária de um outro prédio urbano, ambos os imóveis referidos pertenceram, até agosto de 1997, aos mesmos donos, A.. e marido, D.., que neles circulavam por um caminho que partia de sul até ao atual prédio dos A.A. e deste até à estrema norte (EN nº 205). A partir de agosto de 1997, data em que passaram a ter donos diferentes, conforme ficou acordado e definido com os vendedores, cada um dos seus novos possuidores acedia aos respetivos prédios pela mesma entrada. Daí que, os A.A., desde aquela data, em que a R. também adquiriu o prédio onde reside, utilizam o acesso pedonal e de automóvel para aceder ao seu prédio pela Rua .., entrando pelo lado norte do caminho referido no artigo 15°, precisamente o mesmo que os moradores dessa casa já utilizavam há mais de 20 e 30 anos. E também a R. passou a ter por aí acesso ao seu prédio. Tal vem acontecendo há mais de 12 anos, ininterruptamente e sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente da R.
Já os vendedores dos dois prédios ou os seus arrendatários, para acederem ao imóvel agora dos A.A., vindos da Rua.., a pé, de automóvel ou com animais, ingressavam no citado caminho e seguiam no sentido norte para sul, atravessando integralmente o logradouro do prédio que agora pertence à R. até chegarem ao logradouro do prédio que aos A.A. agora pertence, o que foi continuado por todos, incluindo agora os demandantes, onerando o imóvel da demandada, há mais de 40 anos, sem qualquer interrupção, sempre no seu interesse e proveito com ânimo de quem exercem direitos próprios, à vista e com o conhecimento de toda a gente nisso interessada, nestes se incluindo a R. e seus antecessores, na ignorância de prejudicarem direitos de outrem e sem qualquer estorvo ou embaraço.
O prédio dos A.A. não tem qualquer outro acesso à via pública que permita a passagem de automóvel.
No início de 2007, a R. começou a opor-se a que os A.A. por ali transitassem de automóvel, através de sucessivos atos obstrutivos, vendo-se agora obrigados a aceder ao seu prédio exclusivamente a pé, o que lhes causa grande prejuízo.
Culminaram o seu articulado com o seguinte pedido:
«Termos em que deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e em consequência, ser a Ré condenada a:
a) reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio identificado no art. 1º supra da p.i., abstendo-se de praticar quaisquer actos que atentem ou perturbem tal direito;
b) declarar-se constituída, por destinação de pai de família e por usucapião, uma servidão de passagem a pé e de automóvel, mercê do reconhecimento da posse que os Autores têm sobre o caminho, pedonal e de automóvel, referido e descrito nos antecedentes artigos 15° a 20º, como assento da servidão de passagem também aí alegada, na parte em que tal caminho atravessa o prédio possuído pela Ré, identificado no artigo 10° e a respeitarem essa posse, abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for;
d) repor a situação no estado anterior, através da correcta reparação do caminho em causa nos autos, tapando devidamente a vala que aí executou;
e) pagar aos AA. uma indemnização, a liquidar em execução de sentença; e
h) pagar as custas e procuradoria do presente processo, bem como tudo o mais que for legal.» (sic)
Citada, a R. contestou a ação, invocando, além do mais, a exceção da litispendência, com base na pendência de uma ação por ela instaurada contra os aqui A.A. no mesmo tribunal, sob o nº 379/07 3TBVVD, onde foi pedida a condenação daqueles:
“a reconhecerem a autora como dona e legítima proprietária do prédio identificado no artigo 1° da p.i.;
A reconhecer a posse que a autora tem sobre o caminho pedonal referido nos artigos 14º e 15°, da p.i. como assento da servidão de passagem também aí alegada, na parte em que tal caminho atravessa o prédio possuído pelos réus identificado no artigo 10° da p. i. e a respeitarem essa posse, abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for;
a reconstruírem os canteiros do jardim da autora e ajardiná-los nos moldes em que os mesmos se encontravam antes de ser destruídos;
a permitir que a autora execute todas e quaisquer obras no seu prédio identificado no artigo 1° da p.i., de modo a impedir o acesso de pessoas e animais ou veículos automóveis estranhos à autora, seja vindos do lado da Estrada Nacional, seja vindo do lado do prédio dos réus;
a absterem-se de penetrar no prédio da autora identificado no artigo 1° desta p.i., com animais, veículos motorizados, automóveis ou quaisquer outros veículos com ou sem motor,
a respeitarem a posse e propriedade da autora sobre o referido prédio, abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for.”
Nessa ação foi proferida sentença pela qual os ali réus (aqui A.A.) foram condenados:
“- a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o prédio identificado no artigo 1° da p.i.;
- a reconhecer a posse sobre o caminho pedonal referido nos artigos 14° e 15°, da p.i., pontos 9) e 10) da matéria assente na sentença, como assento da servidão de passagem, na parte em que tal caminho atravessa o prédio dos réus e a respeitarem essa posse, abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for;
- a reconstruir os canteiros do jardim da autora nos moldes em que os mesmos se encontravam antes de ser destruídos;
- a abster-se de passar no caminho provindo da E N 205 se inicia na Rua.. e passa junto do prédio da autora com veículos motorizados ou aí estacionar veículos.”
Da sentença foi interposto recurso pelos aqui A.A.
Numa e noutra ações estão em causa os mesmos prédios e a mesma questão jurídica, de saber quem beneficia de servidão de passagem e qual a sua dimensão.
Naquela decisão reconheceu-se o direito de passar a pé sobre a passagem situada no prédio da aqui R., mas foram os aqui A.A. condenados a “abster-se de passar no caminho provindo da EN. 205 se inicia na Rua.. e passa junto do prédio da autora com veículos motorizados ou ai estacionar veículos”. Este foi o pomo dos fundamentos do recurso interposto naquela ação. Se a Relação ali der razão aos réus (aqui A.A.), a aqui R. e autora naquela ação, terá o seu prédio onerado com uma servidão de passagem a pé e de automóvel; o que tudo significa que, nesta medida, o efeito jurídico pretendido é o mesmo nas duas ações.
Pede, por isso, além do mais, a sua absolvição da instância, nos termos dos art.ºs 499°, alínea i), 494.°, al. i) e 493.°, nº 2, do Código de Processo Civil.
Em resposta à exceção, os A.A. negam a litispendência, por falta de pressupostos, ainda que concedendo no facto da existência de identidade de sujeitos, dado as partes serem as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
Na sua perspetiva não há, numa e noutra ações, identidade de pedido e de causa de pedir. Enquanto, nesta ação, os A.A. pretendem que se declare constituída, por destinação de pai de família e por usucapião, uma servidão de passagem a pé e de automóvel, na parte em que tal caminho atravessa o prédio possuído pela R., já naqueloutros autos a autora (aqui R.) pretende que lhe seja reconhecida servidão de passagem pedonal, na parte em que tal caminho atravessa o prédio dos A.A. (ali réus).
A exceção da litispendência foi julgada improcedente, por despacho fundamentado de fl.s 119 e seg.s, de onde se destaca a seguinte argumentação final:
“Na acção n.º 379/07.7TBVVD a causa de pedir são os factos constitutivos do direito de propriedade da ali autora sobre o prédio ali identificado e os actos reiterados de passagem sobre o prédio dos réus.
Na presente acção a causa de pedir são os factos constitutivos do direito de propriedade sobre o prédio dos aqui autores e o facto de os autores acederem ao seu imóvel através do prédio da ré, acesso determinado já pelos seus antecessores na posse do prédio, fazendo-o igualmente de forma reiterada.
Com efeito, os factos constitutivos do direito de servidão que aqui se pretende ver reconhecido não foram alegados na acção n.º 379/07.3TBWD, concluindo-se assim que não se encontram preenchidos todos os pressupostos de que depende a verificação da litispendência: a proposição de uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir artigos 497.º e 498.º do Código de Processo Civil.”. (sic)
Após vicissitudes várias e junta que foi certidão da sentença proferida no proc. nº 379/07.3TBVVD, com nota de que houve interposição de recurso para esta Relação, foi proferido despacho que ordenou a suspensão da instância, nos seguintes termos:
«Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 279°, n° 1, do Código de Processo Civil determina-se a suspensão da presente instância, até que se mostre transitada em julgado a decisão proferida no âmbito da acção declarativa de condenação n° 379/07.3TBVVD (2° Juízo do Tribunal Judicial de Vila Verde), onde figura como autora J.. (aqui ré) e como réus C.. e mulher S.. (aqui autores).» (sic)
Foi depois junta nova certidão, com nota de trânsito em julgado da sentença recorrida, confirmada pela Relação em acórdão, por sua vez, confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça (fl.s 311 e seg.s).
Nessa sequência foi proferida decisão que, conhecendo da autoridade do caso julgado, julgou verificada esta exceção e absolveu os R.R. da instância, ao abrigo dos art.ºs 493°, 494° e 495° do Código de Processo Civil.

Inconformados, os A.A. interpuseram apelação, cujas alegações fizeram culminar com as seguintes CONCLUSÕES:
«1. Vem o presente recurso interposto da, aliás, douta decisão que, julgando verificada a excepção dilatória inominada de autoridade de caso julgado, absolveu da instância a Recorrida.
2. Face aos elementos de facto e de direito já nos autos, não podem os Recorrentes, conformar-se com a douta decisão ora recorrida, por entenderem que se fundamenta em premissas incorrectas, fazendo errada aplicação do direito, pelo que, a bem da justiça, terá de ser revogada.
3. A douta decisão recorrida culmina com a absolvição da Recorrida da instância por considerar que o pedido da acção dos Recorrentes é frontalmente contrário ao que ficou já definitivamente julgado na acção n.º 379/07.3TBVVD, do 2.º Juízo do Tribunal “a quo”.
4. Tal não se aceita, porquanto, com a devida vénia por opinião divergente, a acção proposta pelos ora Recorrentes e o que aí peticionam não contende com o decidido no referido processo 379/07.3TBVVD, sendo que não ofende o caso julgado, mesmo que material.
5. Inexistindo, como é o caso, impossibilidade de se contrariar nos presentes autos o conteúdo da decisão anterior – não se podia ter considerado verificada a excepção dilatória inominada de autoridade de caso julgado, pelo que mal andou o Meritíssimo Juiz da 1ª Instância ao assim o determinar.
6. É certo que na tal acção anterior – 379/07.3TBVVD – por decorrência do direito de propriedade estabelecido a favor da então Autora, aqui Recorrida, J.. se determinou que os Recorrentes respeitem essa posse abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for,
7. Mas tal circunstância não deve, nem pode, obstar a que em acção posterior se lhes reconheça (aos Recorrentes), a titularidade activa de direitos de servidão que, embora limitem o direito de propriedade não o extinguem nem são com incompatíveis com aquele – cfr., nesse sentido, o expresso no, aliás, douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 20-01-2009, in “http://www.dgsi.pt”, documento n.º SJ200901200034056, onde, em síntese, se aduz: “1) O facto de numa acção anterior envolvendo as mesmas partes ter sido reconhecido ao réu (ali autor) o direito de propriedade sobre determinado prédio, e de, em consequência disso, a ré (aqui autora) ter sido condenada a abster-se da prática de quaisquer actos que o lesem, não impede que em acção posterior se lhe reconheça, por seu turno, a titularidade activa de direitos de servidão limitativos daquele domínio. 2) Tal reconhecimento não implica ofensa do caso julgado material constituído pela sentença anterior uma vez que, por definição, a servidão limita mas não extingue o direito de propriedade sobre o prédio serviente. (…)”.
8. A acção configurada pelos Recorrentes visa exactamente isso: que lhes sejam reconhecidos direitos de servidão de passagem a pé e de automóvel, constituída por destinação de pai de família e por usucapião, na parte em que tal caminho atravessa o prédio possuído pela Ré, aqui Recorrida, não se verificando, pois, a excepção dilatória inominada de autoridade de caso julgado.
9. Reconhecido o expendido nas presentes alegações, teria o Tribunal “a quo” de conhecer do peticionado, determinando, para tal, o prosseguimento dos autos.
10. Ao decidir pela absolvição da Ré da instância, com os fundamentos vertidos nos autos, o Meritíssimo Juiz a quo não fez, salvo melhor opinião, uma interpretação correcta do alegado nos articulados, matéria probatória e do aduzido nos arts. 287º, 288º, 497º, 498º e 671º a 675º do Código de Processo Civil, que a douta decisão recorrida violou, pelo que deve ser revogada.» (sic)
Pretendem a substituição da sentença por acórdão que julgue a instância regular e determine prosseguimento dos autos para audiência de julgamento.

A R. prescindiu do direito de contra-alegar.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação dos A.A., acima transcritas (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A do Código de Processo Civil[1]).
Com efeito, importa decidir se nesta ação se impõe a autoridade do caso julgado material formado com a decisão final proferida na ação 379/07.3TBVVD, transitada em julgado.
III.
O art.º 671º, nº 1, do Código de Processo Civil [2], dispõe que “transitada julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497.° e 498.°, sem prejuízo do disposto nos artigos 771.° a 777.°.”
Segundo o subsequente art.º 673º, “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique”.
O caso julgado confere à decisão caráter definitivo. Uma vez transitada em julgado, a decisão não pode, em princípio [3], ser alterada; antes adquire estabilidade, deixando de ser lícito a parte vencida provocar a sua alteração mediante o uso dos recursos ordinários. E sendo de caso julgado material, relativo ao mérito da causa, que falamos, a estabilidade ultrapassa as fronteiras do processo, e portanto, além da preclusão operada no processo, produz-se a impossibilidade de a decisão ser alterada mesmo noutro processo.
A exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir [4] uma decisão anterior (art.º 497º, nº 1, última parte, e nº 2). Implica uma não decisão sobre a nova ação e pressupõe uma total repetição entre as duas, constituindo, assim, um impedimento à decisão de idêntico objeto posterior.
Nos termos do art.º 498º, nº 1, entende-se que a causa se repete quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (nº 2).
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (nº 3).
Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (nº 4, primeira parte, ainda do art.º 498º).
A teoria da substanciação [5] está desde há muito consagrada no nosso processo civil: a afirmação da situação jurídica tem de ser fundada em factos que, ao mesmo tempo que integram, tal como os outros alegados pelas partes, a matéria fáctica da causa, exercem a função de individualizar a pretensão para o efeito da conformação do objeto do processo. Isso mesmo decorre dos art.ºs 193º, nº 2, al. a), 467º, nº 1, al. d) e 498º, nº 4. Sem distinção da natureza do direito, todas as ações se configurarão por ambos os elementos: pedido e causa de pedir concreta.
Assim, sendo a causa de pedir o facto jurídico concreto ou específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão e não a norma em que ele a estriba, deve entender-se que a identidade entre os objetos de uma e de outra ações não deve ser apreciada em abstrato. A doutrina mais recente tende a regressar à utilização do conceito de tatbstand, conjugado com a ideia de que o acontecimento da vida narrado pelo autor é suscetível de redução a um núcleo fáctico essencial, tipicamente previsto por uma ou mais normas materiais como causa do efeito pretendido.
Citando Chiovenda, já Alberto dos Reis defendia que a causa pretendi não é a norma de lei invocada pela parte, mas pelos elementos de facto que converteram em concreta a vontade legal, devendo atender-se aos factos que podem ter influência na formação da vontade concreta da lei (factos relevantes). E quando se muda o simples facto material ou motivo, mas para se deduzir dele o mesmo facto jurídico, não há diversidade de ação: a exceção de caso julgado subsiste.
Por regra, o caso julgado forma-se sobre a decisão, a decisão relativa ao objeto da ação, e não sobre os motivos ou fundamentos da decisão (teoria limitativa). Em princípio, estes não são mais do que elementos interpretativos e definidores do pensamento do julgador e do alcance da parte dispositiva da decisão. Para além disso, o problema do caso julgado sobre os motivos só se coloca quanto a pontos que poderiam ser objeto de processo autónomo, no qual sobre eles se formaria o caso julgado nos termos normais [6] e nas situações em que a motivação considera questões que constituem um antecedente lógico e indispensável da decisão, maxime, nas ações reais, como veremos adiante.
Uma vez passada em julgado, a sentença define de modo irrefragável a relação jurídica sobre que recaiu. E se situações há em que pode ser difícil resolver o problema de identidade de ações, elas assim se devem considerar se a decisão da segunda fizer correr ao tribunal o risco de contradizer ou reproduzir a decisão proferida na primeira.
Algo diferente da exceção do caso julgado é a autoridade própria do caso julgado que se impõe mesmo onde não há identidade objetiva. Como defende Teixeira de Sousa, a autoridade de caso julgado implica uma aceitação de uma decisão proferida numa ação anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda ação, enquanto questão prejudicial, constituindo, assim, uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior.
Assim, a decisão de mérito produzida num determinado processo, confirmando ou constituindo uma situação jurídica, pode, em variados casos, ser vinculativa noutros processos onde se vise a apreciação ou constituição de outras situações jurídicas com ela conflituantes. Para isso, releva a existência de uma relação entre o objeto de uma e o objeto da outra que implique a possibilidade de confirmação ou de divergência ou contradição da decisão anterior com a decisão a proferir na ação posterior, seja ela de identidade (ocorre nas situações de exceção de caso julgado), seja ela de prejudicialidade ou de concurso (casos de autoridade do caso julgado).
É ainda importante salientar a tendência jurisprudencial na defesa de que uma questão essencial num primeiro processo vincula a decisão do outro tribunal que julga a segunda ação. Com a autoridade do caso julgado, os tribunais ficam vinculados às decisões uns dos outros, quanto a questões essenciais. Se a decisão em causa foi decisiva para a procedência ou improcedência da ação, impõe-se aquela autoridade, não podendo o tribunal da segunda ação julgá-la em contrário, mesmo que a causa de pedir seja diferente. [7]
As questões essenciais são as que respeitam aos factos judiciais, os factos concretos que são determinados e separados de todos os outros pela norma aplicável e foram tornados certos através da decisão que sobre eles recaiu após transitar em julgado e estando perante as mesmas partes.
Nesta perspetiva, só as questões essenciais poderão ter a autoridade de caso julgado, o que significa que só a terão as decisões sobre questões relativas à causa de pedir da ação transitada. Mas, mesmo que a sua causa de pedir seja diferente, aquela autoridade deve impor-se na segunda ação.
Quer na sua função positiva de autoridade, quer na função negativa que impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal [8], é a necessidade de certeza do direito e da segurança das relações jurídicas que se acautela. Como ensina ainda Alberto dos Reis [9], “desde que uma sentença, transitada em julgado, reconhece a alguém certo benefício, certo direito, certos bens, é absolutamente indispensável, para que haja confiança e segurança nas relações sociais, que esse benefício, esse direito, esses bens constituam aquisições definitivas, isto é, que não lhe possam ser tirados por uma sentença posterior. Se assim não fosse, se uma nova sentença pudesse negar o que a primeira concedeu, ninguém podia estar seguro e tranquilo; a vida social, em vez de assentar sobre uma base de segurança e de certeza, ofereceria o aspecto da insegurança, da inquietação, da anarquia. …A força e a autoridade derivam … da necessidade superior de certeza e segurança jurídica”.
A força do caso julgado assenta, pois, na necessidade de assegurar a certeza das situações jurídicas apreciadas, nos termos em que o foram, que é inerente às decisões definitivamente julgadas, pressupondo a existência de uma conexão que impeça que a primeira decisão, transitada em julgado, seja contraditada pela segunda.
Refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.2.2012 [10], citando e traduzindo De la Oliva dos Santos, Andrés [11]: “Estas exigências necessitam de um vínculo que impeça: 1) que uma controvérsia se prolongue até ao infinito; 2) que se torne a instaurar uma segunda causa sobre uma matéria já decidida em via definitiva num órgão judicial; 3) que se produzam decisões e sentenças contraditórias ou se verifique uma injusta e irracional reiteração de sentença de conteúdo idêntico no confronto das mesmas partes”.
A propósito, o sumário do recente acórdão da Relação de Lisboa de 18.4.2013[12] é lapidar:
“1. O princípio da eventualidade ou da preclusão consubstanciado no nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil, que implica que toda a defesa deva ser deduzida na contestação, radica em razões de lealdade na condução da lide e razões de segurança e de certeza jurídica que impedem que os efeitos de uma sentença transitada em julgado sejam postergados, com base em novos argumentos que nessa acção poderiam ter sido invocados, e o não foram.
2. A autoridade de caso julgado de sentença transitada e a excepção de caso julgado constituem efeitos distintos da mesma realidade jurídica. Enquanto esta tem em vista obstar à repetição de causas e implica a tríplice identidade - de sujeitos, de pedido e de causa de pedir - aquela implica a proibição de novamente ser apreciada certa questão, podendo actuar independentemente da mencionada tríplice identidade.”
Entrando no caso cuja apreciação nos é solicitada, é de fundamental importância notar que, qualitativamente, são as mesmas as partes nesta ação relativamente à ação anterior cuja decisão transitou em julgado. Isso mesmo é reconhecido pelos recorrentes, desde logo na resposta à contestação (cf. respetivo art.º 7º).
Com invocação do seu direito de propriedade sobre um determinado prédio, tido como dominante, os A.A. visam com esta ação o reconhecimento do seu direito de servidão de passagem a pé e de automóvel, constituída sobre o logradouro da casa de habitação da R., por destinação de pai de família e por usucapião. Reconhecido o direito, pretendem pela mesma via de ação, a reposição do caminho no estado em que se encontrava antes de, nele, a R. ter intervindo, de modo a permitir o exercício do direito dos A.A., e ainda a condenação da R. numa indemnização por danos, a liquidar em execução de sentença.
No processo nº 379/07.3TBVVD, que também correu termos pelo Tribunal de Vila Verde e cuja sentença transitou em julgado, onde a aqui R. era autora e os aqui A.A. foram réus, debateu-se igualmente uma questão de natureza real com relação aos mesmos dois prédios, pedindo a autora J.. a condenação dos réus a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio que é a sua habitação e logradouro e ainda a sua posse sobre o caminho pedonal como assento da servidão de passagem, na parte em que tal caminho atravessa o prédio dos réus (aqui A.A.) e a respeitarem essa posse abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for.
Mas não se ficou por aqui. No que agora mais interessa, a autora pediu ainda a condenação dos réus (aqui A.A.) a reconstruírem os canteiros do jardim da autora e ajardiná-los nos moldes em que os mesmos se encontravam antes de serem destruídos; a repararem a porta da casa da autora ou a substituí-la por outra com as mesmas características; a permitir que a autora execute todas e quaisquer obras no seu prédio de modo a impedir o acesso ao mesmo de pessoas e animais ou veículos automóveis estranhos à autora, seja vindo do lado da Estrada Nacional, seja vindo do lado do prédio dos lºs réus; a absterem-se de penetrar no prédio da autora com animais, veículos motorizados, automóveis ou quaisquer outros veículos com ou sem motor; a respeitarem a posse e propriedade da autora sobre o seu prédio, abstendo-se de a turvar ou estorvar seja por que modo for. [13]
A decisão sentenciada naquela ação tem o seguinte teor:
“Por tudo o exposto decide-se, julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar os réus a:
- reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o prédio identificado em 1);
- reconhecer a posse da autora sobre o caminho pedonal descrito em 9) e 10), como assento da servidão de passagem, na parte em que tal caminho atravessa o prédio dos réus e a respeitarem essa posse abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for;
- reconstruir os canteiros do jardim da autora nos moldes em que os mesmos se encontravam antes de serem destruídos;
- a abster-se de passar no caminho que provindo da EN 205 se inicia na Rua.. e passa junto do prédio da autora com veículos motorizados ou aí estacionar veículos.”.
Para melhor compreensão do sentido da condenação, respigamos o seguinte trecho dos fundamentos da decisão transitada proferida na 1ª instância:
“Por último formula a autora a pretensão de que os réus sejam condenados a permitir que a autora execute todas e quaisquer obras no seu prédio de modo a impedir o acesso ao mesmo de pessoas e animais ou veículos automóveis estranhos à autora, seja vindos do lado da Estrada Nacional, seja vindo do lado do prédio dos 1ºs réus; a absterem-se de penetrar no prédio da autora com animais, veículos motorizados, automóveis ou quaisquer outros veículos com ou sem motor; a respeitarem a posse e propriedade da autora sobre o seu prédio, abstendo-se de a turvar ou estorvar seja por que modo for.
Pressuposto do seu pedido está o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel de que, como vimos, é titular.
Não obstante ser a autora titular do direito de propriedade sobre o referido prédio, não pode esta sua pretensão proceder em toda a sua extensão. E não pode proceder porque sobre ele incide servidão de passagem a pé.
O prédio da autora é prédio serviente relativamente ao prédio dos réus, prédio dominante, por sobre ele incidir, a favor do prédio dos réus, servidão de passagem a pé pelo caminho que provindo da E.N. 205 inicia-se na Rua.., junto à estrema norte/poente, seguindo pela estrema poente, no sentido norte/sul, do prédio da autora até atingir o prédio dos réus.
Donde, gozando o prédio dos réus de servidão de passagem que incide sobre o prédio da autora, não tem esta o direito de obstar ao exercício de tal servidão (um verdadeiro direito real, que se impõe erga omnes) e assim pretender que estes se abstenham de praticar quaisquer actos que limitem, diminuam ou impeçam o exercício do seu direito de propriedade porque contrários ao exercício legitimo do direito de servidão de que são titulares os réus.
A servidão é uma limitação ou restrição ao direito de propriedade.
Todavia, o seu exercício pelos réus vem sendo abusivo, pois que limitando-se a servidão à passagem a pé, têm estes estacionado o seu automóvel no leito do caminho junto à casa da autora.
Donde, o pedido formulado pela autora procede, na parte em que os réus excedem a sua passagem a pé.”
Do acórdão da Relação extrai-se a seguinte passagem:
“Os R.R. não alegaram se o direito de passagem era a pé, de animais ou com carro, limitando-se a invocar um direito de passagem. Na sentença entendeu-se que os R.R. apenas tinham o direito de passar a pé, pelo que se decidiu condenar os R.R. a absterem-se de passar no caminho provindo da EN 205 que se inicia na Rua.. com veículos motorizados ou aí estacionar veículos. Não constitui conhecimento para além do pedido ou de questão não colocada à apreciação do tribunal, a restrição de um direito que se invoca de forma genérica como ocorreu no caso. Esse conhecimento constitui um minus relativamente ao invocado.
E não procede o argumento dos R.R. de que, como não caracterizaram o seu direito, estiveram impedidos de fazer valer o seu real direito de servidão de passagem.
…”.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que recaiu, em sede de revista, sobre o acórdão da Relação, foi confirmatório. A questão colocada respeitou apenas a eventual excesso de pronúncia, com invocação de nulidade.
O Supremo aponta os art.ºs 27º e 29º da contestação [14] para concluir que “os factos alegados nestes dois artigos, interpretados no contexto do articulado da contestação, consubstanciam matéria de excepção peremptória, permitindo que deles se infira pela invocação de uma servidão de passagem sobre o prédio da Autora (prédio serviente) e a favor do prédio dos Réus (prédio dominante).
Estando, como se está, em presença de uma acção de reivindicação, e constituindo as servidões prediais, como é o caso da servidão de passagem (no caso, a pé), uma limitação ao direito de propriedade, ao conhecer sobre tal matéria, o tribunal não conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento.”
Foi confirmado nos referidos termos o acórdão da Relação.

Continuando a reportar-nos à ação nº 379/07.3TBVVD, perante o pedido de condenação dos réus a absterem-se de penetrar no prédio da autora com animais, veículos motorizados, automóveis ou quaisquer outros veículos com ou sem motor; a respeitarem a posse e propriedade da autora sobre o seu prédio, abstendo-se de a turvar ou estorvar seja por que modo for, tinham os R.R. o ónus de impugnação na contestação, sendo naquela peça que toda a defesa deve ser deduzida, sob pena de preclusão do direito (art.ºs 489º e 490º). Quer isto dizer que é na contestação que o réu deve desenvolver todo o esforço no sentido de obter a improcedência do pedido da ação. Se o não fizer, designadamente por impugnação, ou não lograr obter prova dos factos que constituam matéria da exceção que invoque, coloca-se na contingência de ver julgado reconhecido o direito do autor, porventura incompatível com qualquer direito de que o R. seja titular e que, na mesma peça, deveria ter defendido, por via de exceção, e podia mesmo ver reconhecido em reconvenção, nos termos do art.º 274º, nºs 1 e 2, al. a)). Ficam precludidos todos os meios de defesa do réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir e até os que ele poderia ter deduzido, com base num direito seu[15].
O Prof. Miguel Teixeira de Sousa [16] explica que “quanto ao âmbito da preclusão que afecta o réu, há que considerar que lhe incumbe o ónus de apresentar toda a defesa na contestação (artigo 489º nº 1), pelo que a preclusão que o atinge é independente do caso julgado: ficam precludidos todos os factos que podiam ser invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada e, por isso, com aquela que foi apreciada pelo tribunal”.
Independentemente da natureza de caminho ou passagem do espaço em causa --- matéria cujo mérito, nesta segunda ação, não cabe discutir --- os réus (aqui A.A.) foram condenados na primeira ação a abster-se de passar com veículos motorizados pelo percurso conhecido que liga o seu prédio à EN 205 (com início na Rua..) e de aí estacionar veículos, ao mesmo tempo que, por esse mesmo espaço, se julgou a ação improcedente por se considerar existir a favor dos réus o direito a uma servidão de passagem a pé do seu prédio para a Rua ...
Verifica-se que os réus não conseguiram impedir a sua condenação em se absterem de passar com veículos motorizados e de estacionar veículos no dito espaço. A presente ação iria contradizer aquela decisão transitada se condenasse a R. (ali autora) a reconhecer o direito dos A.A. (ali réus) de passar de automóvel pelo dito espaço.
Ou seja, reconhecido que está o direito da R. à exclusão de passagem dos A.A. pelo caminho que liga o prédio deles à EN 205 com veículos motorizados e também de os estacionarem nesse caminho, na procedência da presente ação, ficaria sujeita ao facto contrário, de os A.A. passarem com veículo no mesmo espaço de ligação.
Não se diga --- como dizem os recorrentes --- que na ação nº 379/07.3TBVVD a abstenção dos aqui A.A. tem que ver com o respeito pelo direito de propriedade da aqui R. e que nada obsta a que se lhes reconheça agora um direito real menor que onere aquele direito de propriedade. É que era ali que esse direito deveria ter sido invocado e reconhecido, não querendo os ali réus (aqui A.A.) ficar impedidos de o exercer em razão da procedência do pedido que, sendo de reivindicação (e não de mero reconhecimento do direito de propriedade), incluiu, específica e concretamente, a pretensão de condenação dos réus (aqui A.A.) a absterem-se de penetrar no prédio da autora com animais, veículos motorizados, automóveis ou quaisquer outros veículos com ou sem motor; a respeitarem a posse e propriedade da autora sobre o seu prédio, abstendo-se de a turvar ou estorvar seja por que modo for.
Agora condenados, com trânsito em julgado, a não transitar de veículo automóvel pela referida ligação do seu prédio à E.N.205 (Rua ..), evidente seria a contradição da decisão condenatória que, por qualquer razão --- aqui de novo invocada ---, lhes reconhecesse o direito ali negado, quando é certo que, como observámos já, era naquela ação que se lhes impunha a adequada defesa do seu direito, ainda que de um direito real menor se tratasse, como facto impeditivo do direito da autora (qui R.).
O perfil da ação de reivindicação afere-se pela causa pretendi que, nas ações reais, como expressamente dispõe o art.º 498º, nº 4, é o facto jurídico de que deriva o direito real --- facto que, em concreto, deve ter a força suficiente para criar a favor do reivindicante e nele radicar o domínio da coisa reivindicada; e pelos pedidos que são dois: o do reconhecimento do direito de propriedade por um lado, e o da restituição da coisa por outro [17].
Cabe à parte contrária invocar e provar o facto impeditivo da entrega ou restituição do bem. Caso contrário --- não demonstrando que tem sobre ele outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou que a possui por virtude de direito pessoal bastante, ou ainda que o bem pertence a terceiro, nada obstará à sua restituição [18].
O reconhecimento de um direito real menor de servidão de passagem que onera um determinado prédio, depois da ação pela qual foi julgada procedente a reivindicação a favor do proprietário, entre as mesmas partes, só não violará a autoridade do caso julgado formado por esta decisão se nela, genericamente, o tribunal se limitou a condenar o réu a abster-se da prática de atos que lesem o bem; não já quando --- como no caso sub judice --- a decisão anterior transitada concretizou, em função da causa de pedir e de pedido concreto equivalente, e como parte da questão essencial, a proibição do réu de estacionar e de passar com veículos motorizados pelo caminho. [19] Neste caso existe uma especificação de atos de posse ou detenção abusiva cuja licitude o réu, na contestação da ação de reivindicação, no exercício do contraditório, podia e devia justificar, sob pena de se lhe negar o direito. A questão era parte do thema decidendum. Apreciá-la de novo seria colocar o tribunal perante a possibilidade de contradizer ou repetir o anteriormente decidido com trânsito em julgado entre as mesmas partes acerca do direito de passagem dos A.A., ali já apreciado (não do direito de propriedade da R., ali expressamente reconhecido).
Nesta decorrência, por ser contrário ao decidido na ação nº 379/07.3TBVVD, impõe-se-nos a conclusão de que a autoridade do caso julgado ali formado impede que os A.A. nesta ação peçam que se declare constituída, por destinação de pai de família e por usucapião, uma servidão e passagem de automóvel com base na posse que invocam sobre o caminho referido e descrito sob os artigos 15º a 20º da petição inicial, como assento da servidão de passagem ali alegada, na parte em que tal caminho atravessa o prédio possuído pela R. e a respeitarem essa posse, abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for [20].
A autoridade do caso julgado estende-se também ao direito dos A.A. à servidão de passagem a pé sobre o dito caminho, desde o seu prédio até à EN 205. Apesar de não expressamente declarado, por não ter sido incluído em pedido reconvencional, o pedido da ali autora incluía também a condenação dos réus a não aceder ao seu prédio, pessoalmente e com animais e, nessa medida, a ação proferida no proc. 379/07.3TBVVD foi julgada improcedente com o fundamento expresso de que os ali réus são titulares de uma servidão de passagem a pé sobre o prédio da autora. Tal conclusão constitui um antecedente essencial, um pressuposto lógico e necessário da parcial improcedência daquela ação, não se compreendendo que agora, na segunda ação, o tribunal haja de confirmá-lo ou possa contrariá-lo. Naquele caso, porque está implícito [21] na decisão transitada em julgado que os aqui A.A. podem passar pelo caminho até acederem à EN 205, a partir do seu prédio e vice-versa; no segundo caso, porque o tribunal sempre estaria a contradizer-se: primeiro expressando na sentença que não reconhece à autora o direito de impedir a passagem dos réus pelo caminho, assim reconhecendo, expressamente nos fundamentos e implicitamente no dispositivo, o direito de por lá passarem, depois negando o direito de passagem dos aqui A.A., concedendo à R. a possibilidade de os impedir de passar.
A sentença não pode deixar de valer como caso julgado, pelo menos, até onde contenha a resposta do tribunal ao pedido do autor.
Ainda, como diz Rodrigues Bastos [22], “crê-se que aposição predominante actual, principalmente devida à influência de uma parte da doutrina italiana, com o apoio da jurisprudência, é favorável a uma mitigação deste último conceito» (o de que apenas tem autoridade de caso julgado a conclusão ou à parte dispositiva do julgado) “no sentido de, considerando embora o caso julgado restrito a parte dispositiva do julgamento, alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissas da conclusão firmada. ...”. A nós afigura-se-nos, ponderadas as vantagens e os inconvenientes das duas teses em presença, que a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério eclético, que sem tornar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado».
Também Vaz Serra [23]refere que «sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, deve reconhecer-se essa autoridade à decisão das questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, desde que se verifiquem os outros requisitos do caso julgado material». E tem sido este o sentido mais comum na jurisprudência [24].
Admitir nas referidas situações o pedido da ação (condenação no reconhecimento de servidão de passagem com veículo automóvel e a pé) levaria à frustração da razão essencial da autoridade do caso julgado material: a certeza e a segurança jurídica, deixando os tribunais numa situação de desprestígio, com consequências absolutamente indesejáveis.
Diferente é o que acontece com o pedido de condenação na reposição da situação do prédio no estado anterior, através da correta reparação do caminho em causa nos autos, tapando devidamente a vala que a R. aí executou e no pagamento aos A.A. de uma indemnização, a liquidar em execução de sentença por danos causados no exercício daquele direito (de passar a pé). É matéria estranha ao pedido da ação e à defesa no proc. 379/07.3TBVVD, que assente no reconhecimento do direito dos aqui A.A. e que não foi sequer discutida naquele processo. Daí que tenham eles agora, nesta ação, a faculdade de obter a condenação da R. na reposição do caminho de modo a que aquela servidão de pé seja adequadamente exercida, e em indemnização pelo prejuízo que para eles tenha resultado da violação desse direito, caso se comprovem os pressupostos em falta, designadamente obstrução e dano no exercício da servidão de passagem dos A.A. a pé.
Com efeito, a apelação merece parcial procedência, com prosseguimento dos autos em tudo quanto não respeita ao reconhecimento da servidão de passagem de automóvel (esta porque o direito já foi negado) e a pé (porque o direito já foi afirmado) a favor dos A.A.
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SUMÁRIO (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1- Por força da autoridade que emana do trânsito em julgado de uma sentença que, apreciando um pedido de reivindicação de um imóvel, condenou expressamente o réu a abster-se de passar por um determinado caminho de servidão com veículos motorizados, não pode prosseguir uma outra ação em que aquele, agora nas vestes de autor, peça a condenação do ali demandante a reconhecer a existência de uma servidão de passagem de automóvel no mesmo caminho a seu favor.
2- Ainda que não integrante do dispositivo da sentença transitada em julgado, a afirmação justificada, na respetiva motivação, da existência de uma servidão de passagem a pé a favor do réu (invocada pelo demandado a título de exceção), como fundamento da negação do pedido na medida em que este visava a condenação do réu a não entrar pessoalmente ou com animais no prédio do autor, constitui um pressuposto ou premissa lógica e indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado e, como tal, deve-se-lhe considerar extensiva a autoridade do caso julgado, assim evitando que, em ação posterior, o tribunal se veja na contingência de se contradizer em matéria implicitamente reconhecida.
3- Embora resultem ambas do trânsito em julgado da decisão do mérito da causa, a exceção do caso julgado não coincide com a figura da autoridade do caso julgado.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, revogando, em parte, a decisão recorrida:
- Confirma-se a verificação da exceção da autoridade do caso julgado
a) Na improcedência relativa ao pedido de condenação no reconhecimento da existência do direito dos A.A. de servidão e passagem de automóvel sobre o caminho identificado nos artigos 15º a 20º da petição inicial na parte em que tal caminho atravessa o prédio da R., J..; e
b) Na afirmação de uma servidão de passagem a favor dos A.A. relativamente ao caminho que liga o seu prédio à Rua.. e à EN 205, estando a R. obrigada a respeitá-la.
- Ordena-se o prosseguimento dos autos relativamente aos demais pedidos da ação por, quanto a eles, não se verificarem os pressupostos da referida exceção dilatória da autoridade do caso julgado.
Custas da apelação pelos apelantes e pela apelada, na proporção de ¾ e ¼, respetivamente.
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Guimarães, 21 de Maio de 2013
Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida
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[1]Na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto - cfr. respetivos art.ºs 11.º e 12.º.
[2]Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[3]Poderá ser modificada através de recurso extraordinário, mas dele não temos que cuidar aqui.
[4]dever que incumbe ao órgão jurisdicional que conhece de um novo processo de se abster de ditar uma nova resolução sobre o fundo da questão litigiosa, quando esta seja idêntica à que foi já decidida na resolução em que se produzia o caso julgado (efeito negativo ou excludente); ou, no dever de ater-se ao que resulte desta ou tomá-la como pressuposto da sua decisão, quando se apresente como condicionante ou prejudicial da questão que constitui o objeto do novo processo (efeito positivo ou prejudicial).
[5]Por oposição à teoria da individualização
[6]Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1982, vol. III, pág.s 392 e 398.
[7]Silva Carvalho, O Caso Julgado na Jurisdição Contenciosa (como excepção e como autoridade - limites objectivos) e na Jurisdição Voluntária (haverá caso julgado?)
[8]A que aqui nos interessa
[9]Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág.s 94 e 95.
[10]Proc. 5182/06.5TBMTS-B.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[11]Oggetto del Processo Civile e Cosa Giudicata, Giuffrè Editore, Milão, 2009, 116-118.
[12]Proc. 2204/10.9TBTVD.L1-2, in www.dgsi.pt
[13]Cf. relatório da sentença proferida na ação n.º 379/07.3TBVVD
[14]Artigo 27: "Os 1.ºs R.R. passaram a ter acesso ao seu prédio pelo mesmo acesso da A."; Artigo 29: "E tal vem acontecendo durante mais de 9 anos, ininterruptamente e sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente da A."
[15]Neste sentido, acórdão da Relação do Porto de 3.7.2012, proc. 3696/09.4T2OVR.C1.P1, in www.dgsi.pt.
[16]Estudos sobre o Novo Processo Civil, Editora Lex Março/Julho de 1996, pág. 349.
[17]Cf. Pires de Lima e A. Varela, in "Código Civil Anotado", vol. III, pág. 100.
[18]Cf. acórdãos da Relação do Porto de 22/01/1994 e de 25/05/1995, Colectânea de Jurisprudência, T.s I e III, págs. 216 e 223, respetivamente; acórdãos do STJ de 26/04/1994 e de 07/02/1995, CJ/STJ, T.II e T. I, pág.s 62 e 67, respetivamente.
[19]Refere-se no acórdão da Relação do Porto de 15/03/1984, proc. 0018414, in www.dgsi.pt, que na definição de caso julgado é essencial, além do mais, a determinação do objeto da ação, fundamentalmente, a pretensão do autor e as questões suscitadas pelo réu na defesa.
[20]Tantum judicatum disputatum vel disputari debebat.
[21]Decisão implícita é aquela que está subentendida numa decisão expressa e tal só acontece quando a solução da questão sobre que recaiu a decisão expressa pressupõe a prévia resolução de uma outra questão que, todavia, não foi expressamente assumida (acórdão do STJ de 12/09/2007, proc. 07S923, in www.dgsi.pt)
[22]Notas ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, pág. 253. No mesmo sentido, Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 4.ª ed., 2007, pág.s 701 e seg.s.
[23]Em anotação ao acórdão do STJ de 29.6.1976, BMJ 258/220, publicada na RLJ 110/223.
[24]Entre outros, acórdão do STJ de 9.6.1989, BMJ 388/377 e da Relação de Lisboa de 25.3.2004, proc. 496/2004-2, in www.dgsi.pt.