Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6132/08.0TBBRG-E.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA OBRIGACIONAL
TRADIÇÃO DA COISA
NEGÓCIO EM CURSO
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Os contratos-promessa de compra e venda com eficácia obrigacional em que tenha havido tradição da coisa e insolvência do promitente-vendedor, conferem ao promitente-comprador direito de retenção sobre as fracções objecto do contrato prometido.
II – Em caso de recusa do administrador da insolvência em cumprir o contrato-promessa de compra e venda, só no caso do promitente-comprador tradiciário ser um consumidor é que goza do direito de retenção; não sendo consumidor não lhe assiste tal direito, sendo um credor comum da insolvência.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
Por apenso aos autos de insolvência de J…, veio a sociedade “A…, Lda.” reclamar créditos no montante de € 25.380,00, relativos a um contrato promessa que celebrou com o insolvente, em que este e a mulher prometeram vender-lhe um armazém sito em Braga, tendo a credora reclamante pago a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de € 10.000,00, e foi posteriormente autorizada a entrar na posse daquele imóvel e aí fazer as obras necessárias para a instalação da sua actividade, nas quais despendeu € 15.380,00.
Tal crédito, no valor de € 25.380,00, foi reconhecido pelo administrador da insolvência como estando garantido por direito de retenção.
A credora reclamante C… impugnou tal crédito.
Saneado e instruído o processo, teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida a sentença a julgar verificado o crédito de “A…, Lda.”, no montante de € 25.380,00, como crédito comum.
Inconformada com o assim decidido, interpôs aquela sociedade recurso de apelação, juntando as respectivas alegações (cfr. fls. 690 a 703).
Já depois de proferida a sentença a julgar verificado o crédito da “A…, Lda.”, veio o Sr. administrador da insolvência juntar nova lista de créditos reconhecidos, actualizada com o acordo obtido entre os credores, com os créditos reconhecidos nos apensos da verificação ulterior de créditos e com aquela decisão (cfr. fls. 674 e ss.).
Tal lista foi objecto de novas impugnações e foram reclamados novos créditos.
Notificado para o efeito, o administrador da insolvência apresentou nova lista de créditos rectificada (cfr. fls. 777 a 784).
Foi então proferida sentença de verificação e graduação de créditos na qual se decidiu, além do mais, relativamente à verba n.º 3, graduar o crédito reconhecido da “A…, Lda.” em 6.º lugar, como crédito comum.
De novo inconformada com a sentença proferida, dela interpôs recurso a “A…, Lda.”, rematando a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
«1. A sentença proferida pelo Tribunal a quo e de ora se recorre é nula e de nenhum efeito.
2. A Recorrente, em devido tempo, interpôs recurso da sentença proferida nos presentes autos em 22.12.2011 que considerou o seu crédito como comum, pelo que, tal decisão não transitou ainda em julgado.
3. Não se encontrando ainda decidida a questão da qualificação do crédito da Recorrente o Tribunal a quo não está em condições de proferir sentença de graduação de créditos, pelo que, a presente decisão deve ser declarada nula e de nenhum efeito e consequência deve o presente apenso de Reclamação de Créditos ser suspenso até que seja proferida decisão final e transitada em julgado sobre a qualificação do crédito da Recorrente.
4. O crédito do Recorrente, reconhecido e verificado, no montante de €: 25.380,00, encontra-se - ao abrigo do disposto alínea f) do nº1 do artº 755º do Código Civil - garantido pelo direito de retenção relativamente ao imóvel apreendido a favor da Massa Insolvente e descrito na verba 3 do auto de apreensão, nos termos do disposto na alínea f) do nº1 do artº 755º do Código Civil, devendo pois, ser graduado em 2º lugar.
5. O direito de retenção da recorrente advém-lhe de duas vias, uma do princípio geral consagrado no artº 754 do C.Civil, atentas as benfeitorias/despesas realizadas no imóvel para a adaptação do mesmo à actividade comercial da recorrente, bem como, da qualidade de beneficiário da promessa de transmissão do bem imóvel acompanhada da traditio da coisa nos termos do artº 755, al. f) do C.Civil.
6. O contrato promessa de compra e venda celebrado entre Insolvente e Recorrente não foi atribuída eficácia real, mas a sua celebração foi acompanhada da respectiva entrega à recorrente, tendo havido a traditio da coisa.
7. Dispõe a alínea f) do nº 1 do art. 755º do C.C., que o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza de direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º.
8. O direito de retenção é um direito real de garantia que confere ao seu titular a faculdade de reter ou não restituir a coisa que possui ou detém, enquanto o devedor não cumprir, bem como, lhe assiste o direito de se fazer pagar pelo valor da coisa, com preferência sobre os demais credores.
9. No caso vertente, não tendo o contrato promessa de compra e venda eficácia real, sendo meramente obrigacional é-lhe aplicável o regime do art. 102º do CIRE.
10. O regime geral disposto no artº 102º do CIRE aplicável ao caso vertente, nada refere acerca das garantias dos créditos, pelo que, daí não se pode inferir que as mesmas deixam de existir quando estamos no âmbito de processos de Insolvência, aliás, tal interpretação é abusiva, pois “ Nada se diz sobre garantias desses créditos. E seria incompreensível e um verdadeiro contra-senso que essas garantias cessassem, ou não produzissem efeitos, para efeito da Insolvência – para além de se tornar espúrio todo o regime de graduação de créditos de acordo com as garantias que acompanham os respectivos créditos” – neste sentido cfr. Ac. da RL do Porto, Apelação 708/07.0TBPRD-G.P1-2ª Secção, de 31.03.2009.
11. O regime geral estabelecido pelos artº 755º, nº1 alínea f) e 759º do Código Civil não é alterado pelo regime previsto no CIRE, razão pela qual, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de um direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza de direito de retenção pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442 do C.C.
12. O facto de a coisa ter sido logo entregue ao promitente comprador, aqui recorrente “antes, portanto, da celebração do contrato definitivo, é-lhe criada uma mais forte expectativa na concretização do negócio, pelo que se justifica, postulado pela boa-fé, que lhe corresponda uma segurança acrescida.
13. O direito de retenção previsto na alínea f) do nº 1 do artº 755º do C.C. assenta em três pressupostos: i) existência de promessa de transmissão ou de constituição de direito real; ii) entrega da coisa objecto do contrato promessa; iii) titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato prometido, pressupostos que se encontram inequivocamente preenchidos para que assista à aqui Recorrente um direito de retenção.
14. Os contratos promessa, quer com eficácia real, quer com eficácia obrigacional, em que tenha havido tradição da coisa, conferem ao promitente-comprador direito de retenção sobre os prédios objecto do contrato prometido, nos termos do art. 755, nº1, al. f) do C.C, devendo, pois, ser o crédito da Recorrente por se encontrar garantido com o direito de retenção ser graduado em 2º lugar no que concerne ao imóvel descrito na verba 3 do auto de apreensão.
15. Na redacção alínea f) do nº1 do artº 755º do CC não foi introduzido qualquer elemento do qual se possa concluir que apenas se pretendia abarcar com a sua introdução uma determinada “pessoa jurídica” e ainda que o bem imóvel em causa tivesse de destinar-se especificamente á habitação.
16. Daqui resulta claro que não houve qualquer intenção do legislador de afastar deste normativo a sua aplicação às pessoas colectivas e muito menos de o restringir apenas aos imóveis destinados á habitação.
17. A interpretação restritiva da alínea f) do artº crise viola o princípio da igualdade vertido no artigo 13º da CRP, porquanto não encontra a mesma qualquer fundamento ou justificação, nem visa de forma alguma salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, pois, estaria a restringir-se o direito da Recorrente (inexistência do Direito de retenção que lei lhe faculta) para dar primazia, quer ao direito de crédito dos restantes credores comuns, quer ao direito de crédito com hipoteca, quando a é própria lei geral que o afasta nos termos do disposto no artº 759º nº 2 do CC.
18. A douta decisão impugnada não pode manter-se, pois violou entre outros, o disposto nos artºs 754º, 755º, nº1 alínea f) 759º do Código Civil e artº 102º do CIRE, e artº 13º da Constituição da República Portuguesa, fazendo uma interpretação incorrecta dos artigos».
Termina pedindo a revogação da sentença na parte em que, relativamente à verba n.º 3, graduou o seu crédito em 6.º lugar.

A credora reclamante C…, S.A. contra-legou, batendo-se pela confirmação do julgado.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
Como se vê das conclusões, que, como é sabido, delimitam o objecto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
- se é nula a sentença de verificação e graduação de créditos, por não ter apreciado o recurso interposto da sentença proferida em 22.12.2011 que considerou o crédito da recorrente comum;
- se o questionado contrato-promessa, em que houve tradição da coisa, goza do direito de retenção, apesar de ter apenas eficácia obrigacional.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Os factos a considerar na decisão do recurso são os que constam do relatório, bem como os que foram dados como provados na sentença proferida em 22.12.2011 supra referida, e que são os seguintes:
1 – Por contrato celebrado em 17 de Maio de 2007, o insolvente e o seu cônjuge, M…, prometeram vender à reclamante um armazém correspondente à fracção C, com 310 m2, sito na Rua da vanda, n.º 24-B, da freguesia de Sequeira, Braga, pelo preço de € 82.500,00.
2 – A título de sinal e princípio de pagamento, a reclamante pagou ao insolvente e ao seu cônjuge a quantia de € 10.000,00.
3 – Por autorização escrita datada de 30 de Junho de 2007, o insolvente permitiu que a reclamante entrasse na posse da aludida fracção C, podendo fazer as obras necessárias para a instalação da sua actividade.
4 – A reclamante realizou obras de desaterro, sapatas, pilares, vigas e escadas:
5 – Despendeu nessas obras a quantia de € 12.930,00.
6 – No fornecimento e aplicação de paredes e tectos falsos, a reclamante despendeu a quantia de € 2.450,00.

B) O DIREITO
Da nulidade da sentença
Segundo a recorrente a sentença de verificação e graduação de créditos é nula, porquanto tendo aquela interposto recurso da sentença proferida nos autos em 22.12.2011 que considerou o seu crédito como comum, não transitou a mesma em julgado e, consequentemente, não se encontra ainda decidida a questão da qualificação do crédito da Recorrente, pelo que deve o presente apenso de reclamação de créditos ser suspenso até que seja proferida decisão final e transitada em julgado sobre a qualificação do seu crédito.
Mas não tem razão.
A decisão proferida em 22.12.2011, a fls. 667-669, debruçou-se apenas sobre um dos aspectos em discussão, ou seja, a qualificação do crédito da recorrente, considerando que o mesmo foi impugnado pela credora C….
Sucede, porém, que nessa decisão não se chegou a fazer a graduação dos créditos, tendo-se antes convidado o Sr. administrador da insolvência a juntar nova lista de créditos, face às alterações resultantes dessa mesma decisão que considerou o crédito da recorrente um crédito comum e das sentenças proferidas nos apensos de verificação ulterior de créditos.
Só na sentença ora recorrida se fez a graduação dos créditos remetendo-se para a nova lista apresentada pelo Sr. administrador, pelo que só esta sentença se pode considerar uma verdadeira sentença de verificação e graduação de créditos (art. 140º do CIRE).
Em bom rigor, só esta sentença admitia recurso, pois a decisão de 22.12.2011, que considerou o crédito da recorrente um crédito comum, mais não é do que aquilo que o Prof. Castro Mendes designava como «decisões não definitivas», que mais não são do que as «decisões que se destinam necessariamente a ser substituídas por outras ou nelas integradas (…)»[1].
Ora, parece não haver dúvida que a decisão que qualificou o crédito da recorrente como crédito comum, mas que não procedeu à graduação dos créditos reconhecidos, estava necessariamente destinada a ser integrada na sentença de graduação dos créditos.
Assim, pese embora a situação se tenha afastado do formalismo processual prescrito no art. 140º do CIRE, a verdade é que não foi violado nenhum direito das partes, nomeadamente da recorrente, que teve a possibilidade de, através do presente recurso, questionar a qualificação do seu crédito como comum.
Não ocorre, pois, a invocada nulidade.

Do direito de retenção
O artigo 754º do Código Civil consagra, em termos genéricos, o direito de retenção como direito real de garantia, dispondo que «O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.»
Procurando uma definição do conceito, e balizado pelos contornos do normativo acima transcrito, Antunes Varela afirma ser de retenção o «direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores.»[2]
Deste normativo legal retira-se que são pressupostos do direito de retenção: a licitude da detenção da coisa, a reciprocidade de créditos, e a conexão substancial entre a coisa retida e o crédito do autor da retenção – neste contexto, a recusa da entrega da coisa ao proprietário é legitimada se o crédito do recusante tiver resultado de despesas feita por causa da (ou de danos causados pela) coisa.
De acordo com o art. 755, nº1, al. f), do CC, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza de direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º do mesmo Código.
Uma das questões mais nebulosas que se levantam perante o regime do contrato-promessa em curso à data da declaração de insolvência prende-se com os efeitos da recusa do cumprimento por parte do administrador de insolvência, nos termos do n.º 1 do artigo 102º do CIRE, no que respeita à existência ou inexistência desse direito de retenção na esfera do promitente-comprador, como garantia do seu crédito indemnizatório.
À semelhança do que sucedia no domínio do anterior Código Especial de Recuperação de Empresas e Falência (CEPEREF), continua a não ser pacífica a questão de saber se, em caso de falência do promitente-vendedor, o promitente-comprador, com tradição da coisa, é titular de direito de retenção.
Os defensores da não existência do direito de retenção esgrimem com o facto de, não se traduzindo a opção do administrador pela recusa do cumprimento do contrato-promessa num acto ilícito, esta não consubstancia um não cumprimento imputável ao promitente-vendedor, o que excluiria desde logo a aplicabilidade da alínea f) do nº 1 do artigo 755º do Código Civil, por não se verificar um dos seus pressupostos. Assim, a não atribuição da garantia de retenção ao promitente-comprador encontrar-se-ia, de acordo com este entendimento, em conformidade com o princípio par conditio creditorum que enforma todo o regime legal da insolvência[3].
Propendemos, no entanto, para a admissibilidade do direito de retenção na promessa obrigacional de compra e venda com tradição da coisa e insolvência do promitente vendedor, sob ponderação, além do mais, que «a ideia de imputabilidade deve ser entendida, em sede de insolvência, no sentido de “ter dado causa, “ter motivado”»[4], afastando-nos assim dos que entendem ocorrer uma “reconfiguração da relação”, tendo em vista a especificidade do processo insolvencial[5].
Seja como for, no que ao direito de retenção em geral diz respeito, importa considerar que a alínea f) do nº 1 do artigo 755º do Código Civil não existia no texto primitivo deste diploma legal, havendo sido introduzida pelo Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, com o objectivo, expresso no respectivo preâmbulo, «de reforçar a posição jurídica do promitente-comprador, especialmente no campo das transacções de imóveis urbanos para habitação».
A norma em causa visou, pois, a tutela eficiente do promitente-comprador, especificamente quando o contrato-promessa diz respeito a edifícios ou fracções autónomas para habitação própria daquele. O reconhecimento deste direito tem fundamento no facto de a constituição de sinal e a tradição da coisa terem “subjacente uma forte confiança na firmeza ou concretização do negócio”[6].
O direito de retenção atribuído ao promitente-comprador, reveste assim um carácter marcadamente social, de tutela do promitente adquirente, face ao risco real de o promitente adquirente vir a recusar o cumprimento por ser economicamente vantajoso recusar a celebração do contrato definitivo, e pagar a indemnização correspondente, se a perda fosse compensada pela valorização que o imóvel, tivesse, eventualmente, sofrido.
Esta tutela é ainda reforçada por força da disposição legal contida no n.º 2 do artigo 759º do Código Civil, que confere ao titular do direito de retenção a prevalência sobre uma hipoteca anteriormente registada – o que significa que, no concurso entre o crédito do promitente-comprador e o do credor hipotecário, o primeiro será graduado em primeiro lugar, na execução ou na insolvência. Procura-se, desta forma, proteger de forma eficiente o promitente-comprador, evitando o prejuízo que para ele acarretaria a prevalência do crédito hipotecário sobre o seu crédito, conduzindo-o tanto a perder o bem objecto do contrato como o sinal prestado.
Sobretudo por força desta norma, a atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador tem sido alvo de diversas críticas[7].
Refira-se, porém, que o Tribunal Constitucional não julgou organicamente inconstitucionais as normas dos Decretos-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, respeitantes ao direito de retenção, e não julgou materialmente inconstitucionais as normas constantes do n.º 3 do artigo 410º e alínea f) do n.º 1 do artigo 755º, ambas do Código Civil (na redacção que resulta daqueles diplomas), nos termos da qual o direito de retenção do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa prevalece sobre a garantia hipotecária registada em data anterior à referida tradição, posição que foi sucessivamente reafirmada por este Tribunal[8].
Neste enquadramento, importa ainda ponderar o teor do Preâmbulo do Decreto-Lei 379/86, de 11 de Novembro, diploma que transferiu a previsão do direito de retenção do promitente-comprador para o contexto dos casos especiais de atribuição deste direito, mediante a adição de uma nova alínea ao n.º 1 do artigo 755º do Código Civil, na medida em que explicita a intenção do legislador ao consagrar o direito de retenção do promitente-comprador, discorrendo sobre os interesses em confronto e explicando a tomada de posição do legislador.
Pela sua relevância, transcrevemos de seguida o trecho que pensamos ser fundamental à compreensão do verdadeiro alcance da norma:
«O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759º, n. º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos. Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras.»
O reconhecimento do direito de retenção surge, pois, como uma medida de defesa do promitente-comprador considerado como parte débil do contrato, na medida em que, não dispondo de qualquer meio eficaz para fazer cumprir a promessa, a sua posição no âmbito do mecanismo contratual se vê muito fragilizada. O legislador optou por consagrar a atribuição deste direito ao promitente-comprador, em prejuízo dos interesses dos credores hipotecários – mas sempre, sublinhe-se, tendo como alvo subjectivo um credor específico – o consumidor[9].
A atribuição do direito de retenção ao promitente-adquirente tem, assim, um carácter marcadamente social, sendo que na avaliação da preponderância entre o “alcance social” da norma e «os inconvenientes perante a banca», «o legislador optou por dar a primazia aos aspectos sociais”[10].
O legislador procurou proteger o promitente fiel de riscos concretos e reais: por um lado, “o do incentivo ao não cumprimento se fosse economicamente mais vantajoso recusar a alienação e pagar o sinal em dobro, caso a valorização que o imóvel, entretanto, tivesse sofrido compensasse essa perda”[11]; por outro lado, o da privação do bem resultante da postergação do promitente-comprador em sede de graduação de bens na execução ou insolvência do promitente-alienante.
Também na jurisprudência de há muito que se aquiesceu neste entendimento. Escreveu-se o seguinte no Acórdão do STJ de 6-11-2001 (Afonso de Melo)[12]:
«O legislador, ao contemplar o direito de retenção do promitente comprador de fracção autónoma, com tradição da coisa, procedeu na lógica da tutela do consumidor, o que constitui um imperativo constitucional em que o legislador deu primazia aos aspectos sociais e que, no conflito entre as instituições de crédito credoras do promitente vendedor e os interesses dos promitentes compradores com tradição, prevalecem justificadamente os segundos.”[13].
Neste enquadramento, entendemos que o direito de retenção deverá ser atribuído apenas quando o promitente-comprador é um consumidor.
Ora, nos termos do n.º 1 do artigo 2º da Lei nº 24/96 de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor), entende-se por consumidor “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços, ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”, conceito que aqui adoptamos.
Sufragamos, pois, o entendimento de L. Miguel Pestana de Vasconcelos, segundo o qual «o art. 755.º, n.º 1, alínea f), é uma norma material de protecção do consumidor e deve ser interpretada restritivamente para o beneficiar somente a ele.»[14].
No caso em apreço, o promitente-comprador, sendo uma sociedade por quotas, não é um consumidor, tal como este é definido no art. 2º, nº 1, da Lei nº 24/96 de 31 de Julho, sendo que a opção legislativa foi a de conferir, como já referido, primazia à tutela dos interesses dos consumidores na protecção da confiança na consolidação de negócios jurídicos, no confronto com os direitos das instituições de crédito e inerente confiança do registo predial.
Conclui-se, portanto, que não existe qualquer violação do princípio da igualdade explicitado no art. 13º da Constituição, pois são diversas as situações de um promitente-comprador que é consumidor ou de um promitente-comprador que é uma sociedade comercial, justificando-se plenamente, pela razões acima apontadas, uma diversidade de tratamento em relação a cada um deles.
Improcedem, pois, as conclusões em sentido contrário da recorrente.

Sumário (art. 713º, nº 7, do CPC)
I – Os contratos-promessa de compra e venda com eficácia obrigacional em que tenha havido tradição da coisa e insolvência do promitente-vendedor, conferem ao promitente-comprador direito de retenção sobre as fracções objecto do contrato prometido.
II – Em caso de recusa do administrador da insolvência em cumprir o contrato-promessa de compra e venda, só no caso do promitente-comprador tradiciário ser um consumidor é que goza do direito de retenção; não sendo consumidor não lhe assiste tal direito, sendo um credor comum da insolvência.

IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Guimarães, 30 de Maio de 2013
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Rita Romeira
____________________________
[1] In Recursos, edição da AAFDL, 1980, p. 44.
[2] Das Obrigações em Geral, vol. 2º, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 1992, p. 572.
[3] Cfr. Ac. desta Relação de 14.12.2010 (Manso Rainho), proc. 6132/08.0TBBRG-J.G1, in www.dgsi.pt, onde se concluiu que a promitente compradora não gozava nem do direito à indemnização fixada no art. 442º do CC, nem do direito de retenção sobre a coisa traditada, mas apenas direito a ser reintegrada no valor do sinal prestado. Este acórdão foi confirmado pelo Ac. do STJ de 14.06.2011 (Fonseca Ramos), proc. 6132/08.0TBBRG-J.G1.S1, também disponível in www.dgsi.pt.
[4] Ac. do STJ de 22.02.2011 (Azevedo Ramos), proc. 1548/06.9TBEPS-D.G1.S1, in www.dgsi.pt.
[5] Cfr., por todos, Oliveira Ascensão, Insolvência: Efeitos sobre os Negócios em Curso, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, II, 2005, p. 281.
[6] Almeida Costa, Contrato-Promessa: uma síntese do regime vigente, 8ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 73.
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 778 e Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, p. 220.
[8] Cfr. Acórdãos 374/03, de 15 de Julho, 594/03, de 3 de Dezembro, e 356/04, de 19 de Maio.
[9] É esta a posição defendida, nomeadamente, por Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito de Retenção contrato-promessa e insolvência, Cadernos de Direito Privado, nº 33, Jan./Mar. 2011, pp. 20 e ss. e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Almedina, Coimbra, 2010, p. 401;
[10] Menezes Cordeiro, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 57, Abril, 1997, pp. 547 e ss, p. 551.
[11] Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência, cit., p. 7.
[12] Proc. 214/01, in www.dgsi.pt.
[13] Neste sentido, cfr., inter alia, os Acs. do STJ de 27.11.2007 (Silva Salazar), proc. 07A3680 e de 14.06.2011, (Fonseca Ramos), proc. 6132/08.OTBBRG-J.G1.S1, e Ac. da Relação do Porto de 31.03.2009, (Mário Serrano), proc. 708/07.0TBPRD-G.P1 e da Relação de Guimarães de 25.09.2012, (Raquel Rego), proc. 1936/07.3TBFAF-S.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[14] Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência, cit., p. 21.