Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1248/10.5TBBCL-A.G2
Relator: JOSÉ MANUEL ARAÚJO DE BARROS
Descritores: EXECUÇÃO
AVALISTA
INSOLVÊNCIA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – A reclamação em processo de insolvência de crédito avalizado não é obstáculo a simultânea instauração de execução contra o avalista.
II – No entanto, a aprovação do plano da insolvência, no qual esse crédito foi aprovado e qualificado como crédito privilegiado, devendo ser pago na íntegra no prazo de 8 anos, alterando o prazo do cumprimento da obrigação, do que beneficia o avalista, torna inexigível a obrigação exequenda, por causa superveniente, devendo ser julgada extinta a instância executiva.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
M… deduziu oposição a execução contra si intentada por M…, Ldª, arguindo, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 814º do CPC, a falsidade da letra dada à execução, bem como o seu preenchimento abusivo.
A executada apresentou-se a contestar, defendendo a improcedência da oposição.
Na sequência da junção de certidão comprovativa de aprovação de plano de insolvência, em autos de insolvência do devedor avalizado no título ora dado à execução, foi convocada uma conferência ao abrigo do disposto no artigo 266º do CPC, na qual a oponente requereu a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, e a exequente pediu a suspensão da instância.
Após o que foi proferida sentença, que declarou extinta a instância, por impossibilidade ab initio da lide.
Inconformada, veio a oposta interpor recurso, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
II
FUNDAMENTAÇÃO
1. PEÇAS PROCESSUAIS RELEVANTES
Sentença recorrida
(…)
No caso de a insolvência se reportar à pessoa da executada/opoente faria – desde logo - todo o sentido o por si alegado em sede de conferência, ao abrigo do disposto no art. 266º do CPC, ou seja, considerando-se tal hipótese, por força do deliberado pelos credores do insolvente, teriam sido modificados os prazos de cumprimento das obrigações já vencidas. Operava-se, assim, uma novação da obrigação exequenda, só podendo a exequente exigir da executada/opoente o que ficou estabelecido no plano de insolvência aprovado. Em consequência, e como resultado da aprovação daquele plano, a letra dada à execução não constituía, neste momento, título contra aquela executada. Estaríamos, pois, nos termos do art. 287º, alínea e), do C. P. Civil, perante um caso de extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide.
Acontece que não foi a opoente quem foi declarada insolvente, mas a pessoa a favor de quem a mesma prestou o aval, R… (refira-se que ela também aceitou a letra), sendo que a exequente na aludida conferência refere que a demandou como avalista.
Ora, o aval é o acto pelo qual um terceiro garante o pagamento da letra (ou da livrança) por parte de um dos seus subscritores (art. 30°, 31 ° e 32°, 77°, todos LULL, que estipulam que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada): o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário (assim Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial - Letra de Câmbio, 111, p. 196; Ac. do STJ 25/07/1972, BMJ 279-214 e da RL de 23.04.2009, disponível na www.dgsi.pt., de onde extraímos estas breves considerações e alusões doutrinárias e jurisprudenciais, face à sua perspicuidade).
Assim, por via do aval é constituída uma obrigação ou vínculo solidário impróprio correspondente à posição de avalista - cfr. art. 32° e 77°, ambos da LULL.
O património do avalista passa a constituir-se, assim, como uma garantia patrimonial adicional ou paralela do respectivo credor, passando esse património a estar também em causa, já que o crédito assumido teve como base uma responsabilidade solidária.
A solidariedade, mesmo qualificada como imperfeita na caracterização que se faça da responsabilidade adveniente das obrigações cambiárias – que tem especificidades na detecção do alcance do direito de regresso ou da sub-rogação nas relações internas dos devedores solidários aqui em causa –, implica a constituição de uma pluralidade de responsabilidades patrimoniais, podendo cada uma delas ser afectada na garantia do credor – ver Vaz Serra, BMJ 75º-200, nota 274. A solidariedade implica, na sua essência e na palavra de Antunes Varela – Das Obrigações em Geral , I,1986, 747 e ss. - uma pluralidade de obrigações, vínculos esses unidos por uma identidade da prestação (mesmo que a prestação cambiária não caiba, em termos principais, aos obrigados cambiários, mas em termos acessórios) e uma identidade finalística, e esta caracterização não é afastada pelo facto de estarmos perante uma responsabilidade de obrigados cambiários – art. 47°/I da LULL.
Como menciona Paulo Sendim, Letra de Câmbio; LU de Genebra, II, 127, “o avalista pela sua declaração de confiança constitui um valor patrimonial correspondente ao da operação que avaliza a favor do destinatário desta, portador legitimado do título”. O aval constitui mesmo “uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao lado formal, uma vez que a lei estabelece o princípio de que a obrigação do avalista se mantém, ainda que a obrigação garantida seja nula – e abre uma única excepção a este princípio para o caso de a nulidade desta segunda obrigação provir de um vício de forma” (assim, Ferrer Correia, ob. cit., p. 207).
A questão que se coloca é, então, a de saber se a obrigação da opoente/avalista, face ao novo título executivo criado, que assegurou o pagamento privilegiado do seu crédito, reclamado na execução principal, deve permanecer, mantendo-se a mesma adstrita a tal garantia até ao termo do prazo estabelecido no plano. Vimos que o aval constitui uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao lado formal, uma vez que a lei estabelece o princípio de que a obrigação do avalista se mantém, ainda que a obrigação garantida seja nula e abre uma única excepção a este princípio para o caso de a nulidade desta segunda obrigação provir de um vício de forma.
No caso em apreço não estamos perante qualquer nulidade por vício de forma.
Mas, a verdade é que o título que serve de base à execução se transmudou e agora passou a existir um novo título. Ora, foi com base no antecedente título dado à execução (ver o escrito que serve de suporte à mesma) que a exequente viu reconhecido na insolvência o seu crédito. Ou seja, esse título extinguiu-se. Passou a existir outro título, o plano de insolvência homologado por sentença.
A exequente poderia ter optado por não reclamar o crédito no processo da insolvência e promover uma execução contra a ora opoente. Mas, reclamou o seu crédito no processo da insolvência e, concomitantemente, usou o título primitivo título para demandar a avalista e, assim, está a obter o ressarcimento do seu créditos por dois lados, o que não é aceitável e legítimo. E isto sem discutirmos as razões que ressaem da oposição e subsequente contestação. A exequente passou a ficar com dois títulos executivos e utiliza-os.
Assim, apelando a uma interpretação prudente dos arts. 30°, 31 ° e 32°, 77°, da LULL e outrossim aos princípios gerais de direito aceites pelas nações civilizados (a este propósito e fazendo, insistentemente, apelo a estes princípios no âmbito dos direitos fundamentais na ordem jurídica comunitária, ver os vários acórdãos proferidos pelo TJCE).
Refira-se que a posterior sugestão da oposta para ver suspenso o presente processo não é vinculativa para o desenvolvimento da presente lide, sendo ademais contrária à celeridade e segurança jurídicas, pois iria aprisionar a opoente por mais oito anos. Como referido, a exequente foi livre de optar. Terá agora que aceitar as consequências da sua escolha.
Dest´arte, somos de concluir que, para além de tudo o exposto, estarmos, neste segmento, perante uma causa de extinção da instância, por impossibilidade ab initio da lide, ou seja, da instância executiva e, na sua decorrência, da presente instância, que se mostra dependente daquela.
Conclusões das alegações de recurso da recorrente
1. Salvo o devido respeito, não tem qualquer razão a sentença recorrida.
2. A executada prestou o seu aval numa letra aceite por si e por R…, que constitui título executivo nestes autos.
3. Ora, sendo o aval o acto pelo qual um terceiro garante o pagamento de uma letra por parte dos seus subscritores, estipulando-se que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por si afiançada, a executada tornou-se pessoalmente responsável pela dívida por si garantida.
4. A executada responde pela prestação integral pois foi constituída uma obrigação solidária correspondente à posição de avalista.
5. Assim, foi intentada a presente acção executiva contra a devedora M….
6. O devedor R… foi declarado insolvente e apresentada reclamação de créditos no processo de insolvência exactamente no mesmo dia em que deu entrada em Tribunal a acção executiva contra M….
7. No processo de insolvência do devedor R… foi aprovado plano de insolvência com vista ao pagamento da dívida à aqui exequente, como credor privilegiado e o seu pagamento no prazo de oito anos.
8. Todavia, o facto de ter sido aprovado o plano de insolvência não significa que efectivamente a exequente venha a receber a quantia em dívida ou que o plano de insolvência seja pontualmente cumprido.
9. Pelo que assiste o direito à exequente de exigir à avalista, e aqui executada, o pagamento da dívida a que esta se obrigou.
10. É certo que, regra geral, o credor que exigir judicialmente a prestação apenas a um dos devedores fica inibido de proceder judicialmente contra os demais.
11. Porém, ressalvam-se os casos em que exista razão atendível, nomeadamente os casos de insolvência ou risco de insolvência do devedor a quem o credor exigiu a prestação – cfr. art. 519º nº. 1 in fine do Código Civil.
12. Ora, a aprovação de um plano de insolvência não é garantia de que a exequente venha a receber qualquer quantia.
13. Estamos por isso perante um caso em que será difícil à exequente receber o valor em dívida do devedor R….
14. Por isso é legítimo à exequente exigir a prestação da executada nos termos do art. 519º nº. 1 do Código Civil.
15. Ademais, no caso concreto a exequente aceita a suspensão da instância enquanto o plano de insolvência esteja a ser cumprido, pois não é seu intuito fazer-se pagar duas vezes da mesma dívida.
16. Assim, andou mal a Meritíssima Juiz a quo quando decidiu a extinção da instância por impossibilidade ab initio da lide invocando a inexistência de título.
17. Finalmente, não se poderá extinguir a presente instância com fundamento no facto da aqui executada ficar “aprisionada por mais oito anos”, como refere a Meritíssima Juiz no segundo parágrafo da última folha da sentença.
18. Pois, ninguém forçou a executada a obrigar-se solidariamente ao pagamento das dívidas de R… Os credores é que não podem deixar de ser ressarcidos dos seus créditos.
19. Ao não admitir como título executivo a letra aceite e avalizada pela executada, a sentença recorrida violou o artigos 46º do Código de Processo Civil e o artigo 519 nº. 1 do Código Civil.
20. E ao extinguir a instância por impossibilidade ab initio da lide violou o artigo 287º nº 1 alínea e) do CPC.
21. A letra aceite e avalisada pela executada é título executivo, sendo que o seu pagamento é exigível, nos termos do artigo 46º do CPC.
22. E, como supra ficou exposto, era legítimo à exequente exigir judicialmente da executada o pagamento da quantia exequenda, nos termos do disposto no artigo 519º. nº. 1 do CC.
23. Ainda, quando não haja despacho liminar, o Juiz só pode rejeitar a execução nos casos previstos no artigo 820º do Código de Processo Civil.
24. No caso em concreto, a Meritíssima Juiz teria que analisar todos os contornos do processo e ligações entre as partes para poder tecer considerandos acerca da exigibilidade do título executivo o que, só por si afasta a aplicação dos casos de rejeição da execução oficiosamente por falta ou insuficiência de título executivo.
25. O despacho que decide a extinção da instância viola ainda o disposto no artigo 820º do C.P.C.
26. Pelo que, a douta sentença em apreço não merece acolhimento e enferma de erro de direito, devendo ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos ou a suspensão da instância enquanto o plano de insolvência no âmbito da insolvência do devedor R… esteja a ser cumprido.
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2. DISCUSSÃO
2.1. Factos
O título executivo que serve de suporte à execução (entrada em juízo aos 8.04.2010) é uma letra de câmbio, tendo a executada M…, aqui opoente, assumido a qualidade de aceitante, juntamente com R…, e ainda de avalista.
No decurso dos presentes autos, constatou-se que este R… foi declarado insolvente por sentença proferida aos 15.03.2010 e transitada em julgado, no âmbito do processo nº 483/10.0 que corre termos no 4º juízo cível deste tribunal.
Na assembleia de credores que viria a ter lugar nesses autos foi aprovada pelos credores (entre os quais as ora exequente e executada) a proposta de plano de insolvência que, por sentença proferida aos 29.10.2010, foi homologada.
Nesses autos, foi reconhecida à aqui exequente/oposta o valor do crédito de € 29.513,56, sendo o capital reclamado o correspondente ao título dado à execução, ou seja, € 25.200,00.
O plano de insolvência qualificou o crédito da exequente/oposta como crédito privilegiado, por se tratar de crédito garantido por aval de terceiro, o que conduziu a que o mesmo seja pago na íntegra no prazo de 8 anos.
2.2. Direito
A solução do dissídio em causa tem a ver, em uma primeira linha, com a repercussão na presente execução da reclamação em processo de insolvência do crédito avalizado pela ora executada. E, depois, com as eventuais consequências da aprovação do plano da insolvência, no qual esse crédito foi aprovado e qualificado como crédito privilegiado, devendo ser pago na íntegra no prazo de 8 anos.
Dispõe o nº 1 do artigo 519º do Código Civil que «o credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, ou parte dela, proporcional ou não à quota do interpelado; mas, se exigir judicialmente a um deles a totalidade ou parte da prestação, fica inibido de proceder judicialmente contra os outros pelo que ao primeiro tenha exigido, salvo se houver razão atendível, como a insolvência ou risco de insolvência do demandado, ou dificuldade, por outra causa, em obter dele a prestação».
Face a este preceito, constata-se que a reclamação em processo de insolvência do crédito avalizado pela ora executada nunca seria óbice à instauração desta execução contra a avalista.
Já não será tão evidente a mesma conclusão quanto às consequências da aprovação do plano da insolvência, no qual esse crédito foi aprovado para ser pago na íntegra no prazo de 8 anos.
Não cuidando de repetir os considerandos da douta sentença recorrida quanto ao regime da solidariedade passiva que resulta do aval dado pela executada, apenas se reterá que decorre do artigo 512º, nº 1, daquele código que “a obrigação se diz solidária, pelo seu lado passivo, quando o credor pode exigir a prestação integral de qualquer dos devedores e a prestação efectuada por um destes os libera a todos perante o credor comum” – Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6º Ed., pág. 719.
Ora, com a aprovação do plano da insolvência e sua homologação por sentença, foi alterado o prazo de cumprimento da obrigação. E anote-se que se não trata de uma novação pois a obrigação permanece a mesma – cfr. o artigo 857º do Código Civil.
A esta modificação, com eficácia subsequente à declaração de insolvência, deixa de se verificar o pressuposto “dificuldade de obtenção da prestação”, como a “insolvência” ou “risco de insolvência”, do referido artigo 519º. No entanto, pareceria que nada obstaria a que o crédito pudesse ser exigido do devedor solidário, pois o procedimento judicial contra o avalizado tinha terminado.
Acontece, porém, que foi alterado o prazo de cumprimento da obrigação. A qual, não sendo imediatamente exigível, se repercute necessariamente na relação processual estabelecida entre a exequente e o avalista, no processo executivo contra este instaurado. Nesse sentido se pronunciou o acórdão da Relação do Porto de 12.02.96 (Guimarães Dias), sumariado in dgsi.pt: “I - A modificação dos créditos obtida por acordo em assembleia definitiva de credores, efectuada em processo especial de recuperação de empresa não constitui novação, porquanto o crédito primitivo não se extingue, por substituição de novo crédito. II - A modificação de créditos aproveita aos terceiros garantes, na medida dessa modificação. III - A dívida avalizada só é exigível quando estiver vencida. IV - Procedem os embargos deduzidos em execução com fundamento em violação do disposto nos artigos 63º, parte final, do Código das Falências e 802º do Código de Processo Civil.”
Assim, por causa superveniente conexa com a modificação da obrigação, tornou-se esta inexigível, por ainda não ter decorrido o prazo de seu cumprimento. Nos termos do disposto no artigo 814º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil, passou a existir fundamento válido de oposição à execução.
Pelo exposto, embora com fundamento ligeiramente diverso (impossibilidade superveniente da lide – artigo 287º, alínea e), do Código de Processo Civil), confirma-se a sentença recorrida, que julgou extinta a instância.
III
DISPOSITIVO
Acorda-se em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente - artigo 446º do Código de Processo Civil.
Notifique.
Guimarães, 24 de Março de 2012
Araújo de Barros
Ana Cristina Duarte
Fernando F. Freitas