Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
42/06.2TAMLG.G1
Relator: CRUZ BUCHO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
DECLARAÇÕES DA VÍTIMA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais.
II- A experiência científica nesta área ensina que as vítimas de crimes sexuais tendem a não verbalizar o sucedido remetendo-se a um penoso silêncio, recatando a traumática experiência e quando a revelam fazem-no de forma sentida e muitas das vezes com retalhos de memória selectivos. É neste contexto muito especial, ademais agravado pela idade do menor, pela sua situação de filho do abusador e pelas suas limitadas capacidades intelectuais decorrentes da desordem de desenvolvimento da personalidade de que padece, que deve ser apreciado o depoimento da vítima.
III- Em inúmeros casos de abuso sexual de crianças o abusador é uma pessoa em quem a criança confia, conhece e muitos vezes ama. Nos casos de abuso sexual intrafamiliar a psicologia refere-se mesmo a uma ambivalência de sentimentos do menor relativamente ao ofensor que, “para além da dor que provoca à criança pode ser também percebido por esta como a principal fonte de atenção e afecto”
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:
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I- Relatório
No processo comum colectivo n.º 42/06.2TAMLG do Tribunal Judicial de Melgaço, por acórdão de 30 de Junho de 2009, o arguido Augusto S..., com os demais sinais dos autos, foi condenado, pela prática, como autor, de um crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 172.°, n.º1, 177.º, n.º1 alínea a) e 30°, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
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Inconformado com tal decisão o arguido dela interpôs recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
«1. Com este recurso pretende o recorrente, obter a revogação da sentença recorrida, que condenou o arguido como autor de um crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p.p. art. 172º, nº1, 177º, nº1 - a) e 30º C.P., na pena de dois anos de prisão efectiva e ao pagamento das custas do processo, e a sua substituição por outra que absolva o arguido e ora recorrente do crime de que vem acusado;
2. A sentença recorrida não realizou um adequado e imprescindível exame crítico da prova produzida em audiência de julgamento;
3. Existe um notório erro na apreciação da prova dada como provada (art. 410º, nº2, c) do CPP);
4. Verifica-se insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos da alínea b) do diploma legal supra referido, pois à factualidade vertida na decisão faltam os elementos necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação.
5. Atendendo, essencialmente, ao depoimento do menor Paulo S..., pouco credível, tendencioso, orientado e sugerido, construído e apoiado em longos silêncios, e monossílabos de discordância e concordância, entrecortados por frases curtas, mas mesmo assim bem pouco esclarecedoras, em muitos aspectos contraditório ao depoimento das restantes testemunhas da acusação, impunha-se que se desse como não provados os factos constantes dos pontos 4 a 12 da matéria fáctica dada como provada devendo, ser a Douta Decisão de que se recorre alterada, considerando-se aqueles factos como não provados;
6. O Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, face às omissões, contradições, inseguranças verificadas nos depoimentos do menor e da sua mãe, Maria I..., bem como às discrepâncias entre ambos os depoimentos, não deveria ter dado como provado que, desde pelo menos o dia 12/03/1997 até finais de Agosto de 2004, o arguido, pelo menos uma vez por semana, à noite quando o Paulo se ia deitar ou à tarde quando fazia a sesta, sempre no interior da residência supra identificada, despia-se e deitava-se com o menor com o menor na cama, esfregando o seu pénis erecto nas nádegas do seu filho. Nessas ocasiões o arguido também acariciava as nádegas do menor e friccionava o seu próprio pénis com as mãos, masturbando-se e ejaculando no exterior do menor, nomeadamente contra o seu corpo (ponto 4 dos factos provados);
7. Pelas razões supra referidas também não deveria ter sido dado como provado, que, em dia não concretamente apurado, mas durante o mês de Agosto de 2004, durante a manhã/tarde, quando o Paulo estava deitado a descansar, o arguido entrou no quarto dele e deitou-se na cama onde o mesmo estava. Acto contínuo, abeirou-se dele e despiu-se, ficando apenas com a roupa interior vestida (cuecas). Nestas circunstâncias, o arguido retirou o seu pénis para fora das cuecas e esfregou o mesmo nas nádegas do menor inúmeras e repetidas vezes, ao mesmo tempo que acariciava as nádegas do menor e friccionava o seu pénis, até que ejaculou sobre a perna do menor, tendo ficado esperma na coxa deste (ponto 5 dos factos provados);
8. O Meritíssimo Juiz do tribunal “a quo”, também não deveria ter dado como provado, mas sim como não provado, que, quando assim procedia, o arguido foi surpreendido pela mulher, tendo esta de imediato abandonado a habitação, levando consigo o menor, pois, também relativamente a estes factos muitas dúvidas se colocam, sendo que a própria esposa do arguido ficou com dúvidas sobre o que tinha visto e também não se provou se foi de imediato que abandonou a habitação (ponto 6 dos factos provados).
9. Também não existe matéria fáctica nos autos que permitisse dar como provado o ponto 7, ou seja, que os comportamentos do arguido – ou seja, os abusos de que o Paulo foi vitima e dos quais sempre se deu conta – agravaram directa e necessariamente a desordem de desenvolvimento da personalidade do menor, nomeadamente: atraso na linguagem de que está afectado (sendo que só a partir dos 3 anos de idade passou a verbalizar as primeiras palavras), necessidade de acompanhamento psicológico e ortofónico a partir do infantário, capacidades intelectuais limitadas, dificuldades de aprendizagem (aos dez anos de idade ainda não sabia escrever o seu próprio nome). O único elemento de prova é o Relatório de Avaliação Psicológica do menor, constante de fls. 25 e seguintes e tal relatório não nos permite concluir, de modo algum, muito menos de forma segura e inequívoca, que a desordem no desenvolvimento da personalidade do menor esteja relacionada com o eventual abuso sexual, assim como também não nos permite concluir que os eventuais abusos sexuais, de que diz ter sido vitima, tenham agravado essa desordem. Além disso, o Ex.mo senhor perito nem sequer conseguiu determinar a “natureza” do alegado traumatismo psíquico, e, por essa razão, muito menos poderia ser determinada a respectiva causa, pelo que não pode, pois, o mencionado relatório ser fundamento para considerar provados os factos constantes do ponto 7, pelo que, também estes factos deverão ser considerados não provados.
10. Ao não serem considerados como provados os factos supra referidos, constantes dos pontos 4 a 7 dos factos dados como provados, também não poderá ser dada como provada a matéria fáctica constante dos pontos 8, 9, 10, 11 e 12, pelo que também deverá ser considerada como não provada.
11. Não se fazendo prova sobre se na verdade os factos ocorreram, a sentença recorrida violou o princípio in dubio pro reo, alicerçado no princípio da presunção da inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença que o condene (art. 32º da CRP);
12. Como consequência do supra exposto, e porque o arguido sempre manifestou e continua a manifestar a sua inocência quanto ao crime por que foi condenado, deveria a decisão final ser de absolvição;
13. Contudo, mesmo que Vªs Exªs assim não considerem, que só por mera hipótese se admite, devem Vªs Exªs Decidir pela verificação dos pressupostos para que a pena de prisão seja suspensa na sua execução, atendendo à pena aplicada (in casu, dois anos) e ao juízo de prognose favorável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição geral e especial;
14. In casu, atendendo-se à personalidade do Arguido, às condições da sua vida (está socialmente bem integrado e com boas relações de vizinhança, ponto 18 dos factos provados) e à conduta anterior e posterior ao crime (não tem antecedentes criminais, ponto 19 dos factos provados), impunha-se a suspensão da execução da pena de prisão (cfr. art.o 50.° nº 1 Cód. Penal); A Douta Sentença recorrida violou as normas dos artigos 40.°, 70.° e 71.° todos, do Código Penal. Os Mm. Juizes "a quo" não consideraram aquando da aplicação da pena de prisão efectiva os pressupostos que deveriam ter sido atendidos para a sua suspensão, pois in casu o juízo de prognose é favorável ao Arguido, não se prevendo que o Arguido possa vir a cometer novos crimes, desta ou de outra natureza, se tiver pendente uma pena de prisão.
15. Não o entendendo assim, a douta decisão em recurso violou, além do mais, o disposto nos artigos, 172º, nº 1, 177º, nº 1, alínea a) e 50º, nº1 do Código Penal.»
Termina pedindo que a revogação da decisão recorrida e a sua substituição “por outra que absolva o arguido e ora recorrente do crime de que vem acusado, ou, caso assim se não entende, o que só por mera hipótese e dever de patrocínio se admite, ser decretada a suspensão da pena de prisão que ao mesmo arguido foi aplicada, com todas as consequência legais.”
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O Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela manutenção do julgado.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 604.
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Nesta Relação, o Mistério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos e realizada a conferência, pelo que cumpre decidir.
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II- Fundamentação
1. É a seguinte a factualidade apurada no tribunal a quo:
A) Factos provados (transcrição)
«1. O arguido casou catolicamente no dia 15.08.1979 com Maria I... ;
2. Da referida união nasceram três filhos: Miguel S... que nasceu a 20.12.1981, Susana S... que nasceu a 20.07.1984, e Paulo S... que nasceu a 12.03.1994;
3. Este agregado familiar viveu junto até Agosto de 2004, altura em que a mulher do arguido, saiu de casa onde estes habitavam sita no lugar de C... , Melgaço, e foi viver para Nice, França, levando consigo o seu filho Paulo;
4. Desde pelo menos o dia 12.03.1997 até finais Agosto 2004, o arguido, pelo menos uma vez por semana, à noite quando o Paulo se ia deitar ou à tarde quando fazia a sesta, sempre no interior da residência supra identificada, despia-se e deitava-se com o menor na cama, esfregando o seu pénis erecto nas nádegas do seu filho. Nessas ocasiões o arguido também acariciava as nádegas do menor e friccionava o seu próprio pénis com as mãos, masturbando-se e ejaculando no exterior do menor, nomeadamente contra o seu corpo;
5. Assim, em dia não concretamente apurado, mas durante o mês de Agosto de 2004, durante a manhã/tarde, quando o Paulo estava deitado a descansar, o arguido entrou no quarto dele e deitou-se na cama onde o mesmo estava. Acto contínuo, abeirou-se dele e despiu-se, ficando apenas com a roupa interior vestida (cuecas). Nestas circunstâncias, o arguido retirou o seu pénis para fora das cuecas e esfregou o mesmo nas nádegas do menor inúmeras e repetidas vezes, ao mesmo tempo que acariciava as nádegas do menor e friccionava o seu pénis, até que ejaculou sobre a perna do menor, tendo ficado esperma na coxa deste;
6. Quando assim procedia, o arguido foi surpreendido pela mulher, tendo esta de imediato abandonado a habitação, levando consigo o menor;
7. Os comportamentos do arguido – ou seja, os abusos de que o Paulo foi vítima e dos quais sempre se deu conta – agravaram directa e necessariamente a desordem de desenvolvimento da personalidade do menor, nomeadamente: atraso da linguagem de que está afectado (sendo que só a partir dos 3 anos de idade passou a verbalizar as primeiras palavras), necessidade de acompanhamento psicológico e ortofónico a partir do infantário, capacidades intelectuais limitadas, dificuldades na aprendizagem (aos 10 anos de idade ainda não sabia escrever o seu próprio nome);
8. O arguido praticou os factos aproveitando-se do ascendente que tinha sobre o seu filho Paulo, bem como da confiança que enquanto progenitor lhe era votada pela mãe do menor, confiança essa que possibilitava que o arguido estivesse sozinho com o mesmo;
9. O arguido tinha consciência de que, à data dos factos, o seu filho era menor e, apesar disso, não se coibiu de praticar tais actos, ofendendo assim o sentimento de criança, de inocência, de modéstia e de vergonha do menor, bem como a integridade física e psicológica daquele;
10. Ao agir como acima descrito, o arguido procedeu de forma deliberada, livre e consciente, praticando acto de relevo em menor de 14 anos, a fim de satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais, o que conseguiu;
11. Sabia o arguido que os factos que praticou com e sobre o seu filho eram adequados prejudicar um livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade deste, e que tinha reflexos na esfera sexual da personalidade do mesmo;
12. O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta lhe estava vedada e era punida criminalmente.
Mais se provou que:
13. O arguido tem origem numa família de fracos recursos sociais e económicas do interior rural do Alto Minho (freguesia de Messegães, Monção);
14. No seu percurso profissional, para além da actividade agrícola que iniciou na infância, após a conclusão da 4ª Classe trabalhou 2 anos como marmorista. Posteriormente, em Melgaço e em França (onde esteve emigrado 4 anos), trabalhou na construção civil com funções diversas (pedreiro, carpinteiro ou pintor). Apesar de trabalhar regularmente, nunca teve estabilidade profissional, trabalhando em regime eventual;
15. Desde que a mulher do arguido saiu de casa e foi viver para França (conforme indicado em 6), o casal vive separado, tendo cortado relações entre si;
16. O arguido está a morar só, em Portugal. Ainda que disponha da casa de morada de família, em C..., Melgaço, que oferece razoáveis condições de habitabilidade, reside actualmente na freguesia de R..., Melgaço, na casa de seus cunhados (irmã e cunhado da mulher), que se encontram emigrados em França;
17. Por motivos de doença (refere ter problemas cardíacos que o impedem de fazer esforços) o arguido não trabalha desde Dezembro de 2008;
18. No meio, de acordo com as referências colhidas pela equipe de Direcção-Geral de Reinserção Social, o arguido não tem problemas de integração social e tem boas relações de vizinhança;
19. À data dos factos, não eram conhecidos ao arguido antecedentes criminais.
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B) Factos não provados (transcrição):

«1. que nas circunstâncias descritas, o arguido com a sua mão tocasse e friccionasse o pénis do seu filho, masturbando assim também o pénis do próprio Paulo.
[Toda a restante alegação contida na acusação constitui matéria conclusiva ou questão de direito, pelo que não foi considerada].»
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C) Motivação (transcrição):
«O Tribunal sedimentou a sua convicção na apreciação crítica e conjugada da aprova produzida em audiência, designadamente e desde logo no depoimento do próprio menor Paulo (hoje com 15 anos), o qual, embora com natural dificuldade – o que, além de ser compreensível (tanto pela sua idade como pela natureza da matéria em causa), reforça até, de certo modo, a sua credibilidade (a recordação dos factos não lhe traz boas memórias por se tratar de episódios negativamente marcantes), sendo certo, por outro lado, que o menor tem uma desordem de desenvolvimento da personalidade (atraso da linguagem, necessidade de acompanhamento psicológico e ortofónico, capacidades intelectuais limitadas e dificuldades na aprendizagem –, relatou as circunstâncias em que decorreram os actos de que foi vítima por parte do arguido. Contou que as práticas do pai começaram quando era ainda muito novo, explicando que, com muita regularidade (cerca de, ou pelo menos, uma vez por semana), quando estava deitado no seu quarto, o pai aparecia e, depois de se despir, deitava-se ao seu lado e apalpava-lhe as nádegas; nessas alturas, relatou que o pénis do pai estava erecto pois sentia-o a esfregar nas suas costas e nádegas (por regra, o menor estava de lado e o pai aproximava-se por trás). Também confirmou a ejaculação, dizendo que “ficava molhado”. Negou, contudo, que o arguido lhe tocasse (a ele, menor) no seu pénis.
Afirmou que tais condutas foram perdurando no tempo – até porque o pai lhe dizia para não contar nada a ninguém – até ao dia em que a mãe surpreendeu pai na sua (do menor) cama, numa atitude em tudo semelhante ao que era habitual. Desde essa altura, saiu de casa com a mãe.
A forma envergonhada, mas séria, com que o menor revelou os episódios supra descritos – ainda que com frequentes pausas no discurso e ainda que em relação a algumas situações não tenha tido a iniciativa de as narrar limitando-se a responder que sim (ou que não) a perguntas muito concretas – levou o Tribunal a acreditar plenamente na bondade do depoimento e a valorá-lo como credível. De resto, as conclusões do Relatório de Avaliação Psicológica do menor (fl.25 ss) vão precisamente no sentido de que o relato deste é credível.
Em sentido semelhante ao do menor depôs Maria I... Sampaio (sua mãe), que descreveu o episódio ocorrido em Agosto de 2004, indicando que o arguido estava apenas de cuecas, com a respectiva parte da frente para baixo, e que encontrou o Paulo “molhado” nas pernas. Também referiu que essa não foi a única ocasião em que presenciou o arguido na cama do filho: já uma outra vez tinha aí visto o arguido com o pénis erecto e depois constatado que o Paulo tinha o pijama “molhado”. Nessa altura perguntou ao arguido o que se estava a passar, tendo este respondido “nada”. Perante esta resposta, e em face do choque e da surpresa pelo que tinha visto, a testemunha afirmou que começou ela própria a ficar confusa e “não quis acreditar”.
Também a testemunha Susana S... (de 24 anos, irmã do menor Paulo) disse ter presenciado um episódio quando o Paulo tinha cerca de 5 anos, em que o arguido o chamou para fazer a sesta e aquele recusou, começando a chorar. Disse também que quando o Paulo foi para França (com a mãe, na sequência do sucedido em Agosto de 2004) tentou falar com ele sobre o que se tinha passado pois ela própria, quando tinha cerca de 4 anos, tinha sido vítima de abusos por parte do pai, descrevendo que este costumava ir ao seu quarto fazer coisas semelhantes. Referiu que de início o Paulo nada contou; porém, com o passar do tempo foi começando a falar embora muito superficialmente. A partir de então a testemunha levou-o a um psiquiatra (a testemunha também foi consultada por um devido ao que se passou consigo própria).
O arguido, à semelhança do que já tinha feito na contestação, negou a autoria dos factos – a sua versão foi, contudo, totalmente rejeitada pelo Tribunal em função do que já ficou escrito a propósito das restantes provas.
A testemunha Leonel O... (amigo do arguido) não trouxe qualquer contributo para a decisão da matéria de facto, limitando-se a referir que o filho mais velho do casal, Miguel, lhe tinha transmitido que a mãe tinha inventado tudo para assim ver facilitado o divórcio, o que, face ao que já ficou escrito, é totalmente de afastar.
As testemunhas Manuel A..., Maria C..., Joaquim A... e Maria A... nada sabiam de relevante, tendo apenas afirmado que têm o arguido como boa pessoa e que sempre lhes pareceu que se tratava de uma família feliz.
Por fim, foram considerados os documentos juntos, de que se destaca o Relatório de Avaliação Psicológica do menor já mencionado (fl.25 ss), o Relatório Social relativo ao arguido (fl.483 ss) e, relação aos antecedentes criminais, o CRC do arguido.»
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2. Conforme é sabido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98)
No presente recurso são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
deficiente exame crítico da prova;
insuficiência para a decisão da matéria de acto provada;
erro notório na apreciação da prova:
impugnação da matéria de facto provada constante dos n.ºa 4) a 12), por a mesma dever ser considerada não provada;
enquadramento jurídico-criminal
violação do princípio in dubio pro reo;
suspensão da execução da pena

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3. A questão do deficiente exame crítico da prova.

§1. Na conclusão 2ª o recorrente sustenta que o acórdão recorrido “não realizou um adequado e imprescindível exame crítico da prova produzida em audiência de julgamento.”

Na motivação o recorrente explicita que tal deficiência ficou a dever-se ao facto de a sentença recorrida não ter justificado devidamente porque não deu credibilidade às declarações do arguido.

No que se reporta concretamente às declarações do arguido a sentença recorrida é muito clara nela se exarando em sede de motivação da decisão de facto que “O arguido, à semelhança do que já tinha feito na contestação, negou a autoria dos factos – a sua versão foi, contudo, totalmente rejeitada pelo Tribunal em função do que já ficou escrito a propósito das restantes provas.”

Também relativamente às testemunhas Manuel A... e Leonel O...cujos depoimentos, segundo o recorrente, corroborariam a tese da vingança por parte da esposa do arguido, o tribunal a quo primou uma vez mais pela clareza:

“A testemunha Leonel O... (amigo do arguido) não trouxe qualquer contributo para a decisão da matéria de facto, limitando-se a referir que o filho mais velho do casal, Miguel, lhe tinha transmitido que a mãe tinha inventado tudo para assim ver facilitado o divórcio, o que, face ao que já ficou escrito, é totalmente de afastar.

As testemunhas Manuel A..., Maria C..., Joaquim A... e Maria A... nada sabiam de relevante, tendo apenas afirmado que têm o arguido como boa pessoa e que sempre lhes pareceu que se tratava de uma família feliz.”

Pode, pois, concluir-se que basta um breve relance sobre a motivação de facto acima transcrita para logo se concluir que o tribunal a quo deu cabal cumprimento ao disposto no n.º2 do artigo 374º do CPP, por ter indicado claramente os meios de prova em que fundou a sua convicção, e por ter procedido ao exame crítico daquelas provas, expondo claramente as razões da opção efectuada, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão da acusação e permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção dos julgadores.

Improcede, por conseguinte, a arguida nulidade.
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4. As questões da insuficiência para a decisão da matéria de acto provada e do erro notório na apreciação da prova.
§1. Sustenta o recorrente que houve erro notório na apreciação da prova (art. 410º, n.º2, al. c) do CPP) pois “da prova produzida e gravada resulta que não poderiam ter sido dados como provados os factos fixados sob os pontos 4 a 12”
Por outro lado, funda a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada na circunstância de o depoimento da vítima ter sido construído “essencialmente apoiado em longos silêncios e monossílabos de discordância ou de concordância”, para além de as respostas do menor serem “produto de um interrogatório tendencioso, orientado e sugerido.”
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§2. Como é sabido os conceitos de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” e de “erro notório na apreciação da prova”, constantes da alíneas a) e c) do n.º 2 do citado artigo 410º, foram já suficientemente trabalhados pela doutrina e pela jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal.

À luz de tais ensinamentos é hoje pacífico que:
a) só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando se faz a formulação incorrecta de um juízo em que a conclusão extravasa as premissas ou quando há omissão de pronúncia pelo tribunal, sobre os factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.

Como se observou no Ac. do S.T.J. de 20-4-2006 (proc.º n.º 363/03, rel. Cons.º R. Costa):
“A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ser apurados na audiência vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.”

b) O “erro notório na apreciação da prova” é a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência por se ter decido contra o que se provou ou não provou ou por se ter dado por provado o que não podia ter acontecido (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Lisboa/S.Paulo, 1994, pág. 327, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 65 a 69, estes últimos com amplas referências jurisprudenciais).

Por outro lado, conforme resulta do n.º2 daquele artigo 410º, os vícios da matéria de facto enumerados no artigo 410º do Código de Processo Penal têm, de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, por conseguinte, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo, nem podem basear-se em documentos juntos ao processo (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 71 os quais salientam “que não se pode ir fora da decisão buscar outros elementos para fundamentar o vício invocado, nomeadamente ir à cata de eventuais contradições entre a decisão e outras peças processuais, como por exemplo recorrer a dados do inquérito, da instrução ou do próprio julgamento”; no mesmo sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 324 e a jurisprudência do STJ citada naquela primeira obra).
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§3. À luz dos ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais que acima deixámos mencionados, é forçoso reconhecer que nenhuma lacuna existe ao nível da matéria de facto provada para fundamentar a decisão de direito a que o tribunal recorrido chegou.

Por outro lado, não pode dizer-se que o tribunal tenha deixado de investigar toda a matéria com interesse para a decisão final.

O tribunal investigou tudo o que podia e conseguiu investigar dentro do objecto do processo, tal como ele foi delimitado pela acusação e pela defesa, sendo que se não vislumbra que a prova produzida em audiência justificasse qualquer outra investigação suplementar, que o recorrente, de resto, se absteve de mencionar.

Como se fundadamente se afirmou no Ac. da Rel. de Lisboa de 18-1-2008, proc.º n.º 7071/2005-3, rel. Carlos Almeida in www. dgsi.pt:
«A ‘insuficiência para a decisão da matéria de facto provada’, vício previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, refere-se à possibilidade de se basear na matéria de facto assente uma decisão jurídica, ou seja, relaciona a matéria de facto com a de direito e não [como pretende o aqui recorrente] a prova produzida e valorada em audiência com a decisão de facto proferida. A ‘insuficiência para a decisão da matéria de facto provada’ não significa, de forma alguma, insuficiência da prova produzida e valorada em audiência para a decisão de considerar provados determinados factos»

Não ocorre, por conseguinte, o apontado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Também se não vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova.

Aliás, analisadas as conclusões bem com a respectiva motivação logo se conclui que o recorrente incorre numa confusão muito frequente. Na verdade o que recorrente questiona é o modo como o tribunal a quo valorou a prova pessoal produzida, ou seja, o uso que o tribunal recorrido fez do princípio da livre apreciação da prova.

O recorrente confunde, deste modo, o vício do erro notório que invoca com o erro de julgamento, que existe “quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que tivesse sido feita prova do mesmo e como tal deveria ter sido considerado como não provado; ou quando se dá como não provado um facto, que em face da prova produzida, deveria antes ter sido considerado provado” (cfr. Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra, 2008, pág. 909, com numerosas referências jurisprudenciais).
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5. A questão da impugnação da matéria de facto
§1. O recorrente impugna a matéria constante dos n.ºs 4) a 12) dos factos provados, por entender que os mesmos deveriam ter sido considerados não provados.
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§2. Dado que no caso houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva transcrição integral, pode o tribunal de recurso reapreciá-la na perspectiva ampla prevista no art. 431º do C. P. Penal.

Com efeito, estatui o citado preceito que “Sem prejuízo do disposto no art. 410°, a decisão do tribunal de 1ª instância pode ser modificada (…): b) Se, a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º3 do artigo 412º(…)”.

No entanto, ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.

Como já em diversos lugares salientou o Prof. Germano Marques da Silva, presidente da Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal que justamente introduziu o recurso também em matéria de facto nos crimes julgados perante tribunal colectivo:
- “E o recurso não é tudo, é um remédio para os erros, não é novo julgamento” (conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol.II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65);
- “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/99);
- “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Por isso também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e sobretudo que tenha de indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal. Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol I, Coimbra 2001)- no mesmo sentido cfr. José Manuel Damião da Cunha, A Estrutura dos Recursos na proposta de Revisão do CPP-Algumas Considerações, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8º, fasc. 2, Abril/Junho 1998, págs. 259-260 onde salienta a exigência formulada ao recorrente para apresentar os pontos de facto que mereçam a censura de “incorrectamente decididos”; Id., O Caso Julgado Parcial, Porto, 2002, especialmente a págs. 516, 527, 529 e 567,
Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º, n.º l do CPP).

Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria - cfr. artigo 412º, n.º 1, 3 e 4 do CPP.

Dever esse que não se basta com a remissão mais ou menos genérica para os depoimentos prestados em audiência, devendo especificar, ponto por ponto, não só os pontos que se reputam de indevidamente decididos, como ainda quais as provas que deveriam levar a decisão diversa, por referência aos suportes técnicos, no caso de ter havido gravação.

Como se salientou no Ac. desta Rel. de Guimarães de 20-3-2006, proc.º n.º 245/06-1ª, rel. Fernando Monterroso, in www. dgsi.pt , depois de se citar o Prof. Germano Marques da Silva, quando refere que o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância:

«Não concretiza aquele Professor a que vícios se refere, mas alguns poderão ser sumariamente indicados.
Por exemplo, se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto, então estaremos perante um erro manifesto no julgamento. Aproveitando ainda o mesmo exemplo, também haverá um erro no julgamento da matéria de facto se, apesar da testemunha Z afirmar que A bateu em a B souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiros. Aqui estaremos perante uma indevida valoração de meio de prova proibido (arts. 129 e 130 do CPP), que pode ser sindicada pela relação.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127 do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma "convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais" - Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, voI. I, ed.1974, pago 204.
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis "a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal". E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre apreciação é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” Anotado, vol. IV, págs. 566 e ss.
O art. 127 do CPP indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Tudo o que ficou dito está em harmonia com as normas processuais que regulam o recurso em matéria dt facto.
Dispõe o art. 412º n.° 3 do CPP:
Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
Os pontos de facto que considera incorrectamente provados; e
As provas que impõem decisão diversa da recorrida.
....
Note-se que a lei refere as provas que «impõem» e não as que “permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.»
*
§3. A questão do relacionamento sexual, da sua reiteração, da sua periodicidade mensal bem como à indumentária do arguido, e a tese da vingança.

No que se refere à matéria do relacionamento sexual, da sua reiteração, da sua periodicidade mensal bem como à indumentária do arguido (constante dos n.ºs 4 e 5 dos factos provados), analisando a motivação e as conclusões do recurso constata-se que o recorrente não alega que a descrição que a sentença faz do conteúdo das declarações e dos depoimentos das testemunhas, não corresponde ao que na realidade disseram aqueles declarantes e testemunhas.

O que o recorrente faz é coisa totalmente diferente.

Pretende fundamentalmente retirar qualquer valor probatório ao depoimento do ofendido, alegando que as respostas do menor são produto de “um interrogatório tendenciosos, orientado e sugerido” para além de construído “essencialmente apoiado em longos silêncios e monossílabos de discordância e de concordância, em que “não existe vontade, nem iniciativa, nem espontaneidade, nem voluntarismo, nem convicção, em praticamente nenhuma dessas respostas.
*
§4. O ataque à decisão da matéria de facto realizado pelo recorrente é deste modo, feito pela via da credibilidade que o tribunal deu a determinados meios de prova.

No fundo o que o recorrente faz é invocar erro de julgamento na apreciação da prova.

A este nível compete-nos avaliar se a decisão do julgador, é ou não uma solução plausível segundo as regras da experiência, sendo que em caso afirmativo ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.

Ora, antecipando a conclusão dir-se-á desde logo que a opção levada a cabo pelo julgador não foi feita de forma caprichos ou arbitrária. Pelo contrário, mostra-se plenamente objectivada e com absoluta transparência.
Lendo a motivação da decisão de facto, facilmente se constata que foram essenciais à formação da convicção do tribunal as declarações do ofendido, que o recorrente pretende a todo o custo desvalorizar.

É sabido que em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante (cfr. v.g. Ac. da Rel. do Porto de 6-3-1991, in Col. de Jur., ano XIII, tomo 2, pág. 287, Ac. do STJ de 2-2-2004 apud Ac. da Rel. de Coimbra de 9-3-2005, Col. de Jur. ano XXX, tomo 2, pág. 38 e Ac. da Rel. de Coimbra de 22-4-2009, proc.º n.º 376/04.0GAALB.C1, in www.dgsi.pt), pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais.

Em função das especialidades dos crimes sexuais e do especial valor que as declarações do ofendido assumem no âmbito daquela criminalidade, quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, opostas, em maior ou menor medida, ao do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso. O velho aforismo “testis unus testis nullus”, carece, pois, de eficácia jurídica num sistema como o nosso em a prova já não é tarifada ou legal mas antes livremente apreciada pelo tribunal [sobre aquela regra unus testis, testis nullius, cujas origens remontam a Moisés, as criticas que lhe foram sendo dirigidas ao longo da história (De Arnaud, Blackstone, Bentham, Meyer, Bonnier), a sua abolição e a possibilidade de um único depoimento, nomeadamente as declarações da vítima, poderem ilidir a presunção de inocência e fundamentarem uma condenação, cfr., desenvolvidamente, Aurélia Maria Romero Coloma, Problemática de la prueba testifical en el proceso penal, Madrid, 2000, Cuadernos Civitas, págs. 69 a 91; muito antes, no domínio do processo civil português, Alberto dos Reis afirmara que “No seu critério de livre apreciação o tribunal pode dar como provado um facto certificado pelo testemunho duma única pessoa, embora perante ela tenham deposto várias testemunhas” (Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimp., Coimbra, 1981, pág. 357)].

Esta questão - que não é, naturalmente, privativa do direito português - tem merecido um desenvolvimento assinalável na doutrina e jurisprudência do País vizinho onde se tem vindo reiteradamente a declarar que um único testemunho, ainda que da vítima e inclusivamente de uma criança, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram as seguintes notas: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança: o testemunho há de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória e; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (cfr. v.g. Antonio Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, págs.181-187, Carlos Climent Duran, La prueba penal, Valencia, 1999, págs. 129-156, J.J. Bégué Lezaún, Delitos Contra la Libertad e Indemnidad Sexuales, Barcelona, 1999, pág. 246 e seguintes, Miguel Angel Montañes Pardo, La Presunción de Inocencia-Análisis Doctrinal e Jurisprudencial, Pamplona, 1999, pág.180-182 e José Manuel Alcaide González, Guia Prática de la Prueba en el Processo Penal, Valencia, 1999, pág.133-136, Fernado Gascón Inchausti, El control de la fiabilidad probatoria:‘Prueba sobre la prueba’ en el proceso penal, Valencia, 1999, págs. 127-128 Andreu Enfedaque i Marco, El desarrolo del juico oral. La prueba en el juicio oral, in La prueba en el proceso penal, Madrid, 2000, pág. 289, M.ª Angels Vila Muntal, La Declaracion del Testigo, in Pedro Martín Garcia y otros, La prueba en el proceso penal, Valencia, 2000, págs. 187-191, Aurélia Maria Romero Coloma, Problemática de la prueba testifical en el proceso penal, Madrid, 2000, Cuadernos Civitas, págs. 69-91, Antonio Pablo Rives Seva, Casos extravagantes de testimonio: el coimputado y la vitima (III) Fevereiro de 2001, in http://noticias.jurídicas.com).
Estas regras jurisprudenciais vigentes no pais vizinho revelam-se instrumentos úteis na valoração das declarações da vítima, mas não podem ser erigidos em princípios vinculativos na ordem jurídica portuguesa onde vigora o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do Código de Processo Penal) e onde não se prevê qualquer regra de corroboração necessária (cfr. neste sentido, o Ac. da Rel. de Èvora de 24-6-2008, proc.º n.º 437/08-1, rel. António João Latas, in www.dgsi.pt)

No caso em apreço, conforme resulta da motivação da decisão de facto, o Tribunal recorrido deu credibilidade às declarações do ofendido fazendo consignar, para além de um resumo das mesmas, que “a forma envergonhada mas séria, com que o menor revelou os episódios supra descritos (…) levou o Tribunal a acreditar plenamente na bondade do depoimento e a valorá-lo como credível”

Nada, rigorosamente nada, permite retirar àquelas declarações a credibilidade que o colectivo lhes emprestou.

Pretende o recorrente que o depoimento em causa não foi “espontâneo, consistente e unívoco”. Mas, não basta adjectivar, catalogar. É preciso demonstrar.

A este respeito a alegada falta de espontaneidade, consistência e univocidade resultariam, segundo a motivação e as conclusões da circunstância de tais declarações terem sido claramente induzido para respostas “sim”, “não, “era”, sendo que as perguntas efectuadas foram claramente sugeridas/induzidas a respostas simples.

Não pode, como é bom de ver acolher-se tal tipo de argumentação.

Em primeiro lugar, importa acentuar que, conforme se salienta no no douto Ac. do STJ de 27-2-2003, proc.º n.º140/03, rel. Cons.º Carmona da Mota :
II O valor da prova, isto é a sua relevância enquanto reconstituinte do facto delituoso imputado ao arguido, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade. III A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais características e atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detectáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através do contacto pessoal e directo com as pessoas. IV. O tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido".

Contrariamente ao asseverado pelo recorrente, as declarações do ofendido não possuem incongruências, contradições, falhas de memória, inexactidões ou hiatos que sejam adequados a suscitar dúvidas sobre a sua veracidade.

Como o colectivo teve oportunidade de salientar em sede de motivação da decisão de facto e resulta à evidência da audição do respectivo registo magnetofónico, o depoimento da vítima menor foi-lhe extremamente penoso.

Mas, como o mesmo colectivo adiantou, a dificuldade sentida pelo menor é perfeitamente compreensível “tanto pela sua idade como pela natureza da matéria em causa”, conjugada com a circunstância de o menor ter uma desordem de desenvolvimento da personalidade (atraso da linguagem, necessidade de acompanhamento psicológico e ortofónico, capacidades intelectuais limitadas).

Como também o Exmo PGA salientou no seu douto parecer:
“E não é de estranhar, como parece entender a defesa, o silêncio, as pausas, as hesitações, os lapsos do depoimento da vítima
É brutal para a vítima (no caso filho do arguido, relembre-se) neste tipo de crime, o voltar a reviver a situação através do relato dos factos, é um fardo pesado que a acompanhará durante a vida inteira.”

Com efeito, a experiência científica nesta área ensina-nos que as vítimas de crimes sexuais tendem a não verbalizar o sucedido remetendo-se a um penoso silêncio, recatando a traumática experiência e quando a revelam fazem-no de forma sentida e muitas das vezes com retalhos de memória selectivos. É neste contexto muito especial, ademais agravado pela idade do menor, pela sua situação de filho do abusador e pelas suas limitadas capacidades intelectuais decorrentes da desordem de desenvolvimento da personalidade de que padece, que deve ser apreciado o depoimento da vítima.

Como o próprio colectivo reconheceu, aquele depoimento foi prestado “com frequentes pausas no discurso e ainda que em relação a algumas situações não tenha tido a iniciativa de as narrar limitando-se a responder que sim (ou que não) a perguntas muito concretas”

Não há, porém, o mínimo indício de tais declarações terem sido induzidas, sendo certo que o recorrente esteve sempre assistido por advogado que se não demonstra que em momento algum se tenha oposto à formulação das perguntas efectuadas.

Pelo contrário, o que a audição do registo magnetofónico evidencia é o extremo cuidado, rigor, equilíbrio, paciência e profissionalismo do M.º Juiz Presidente na tomada de declarações ao menor e a extrema prudência do ilustre julgador em evitar que qualquer pergunta sua pudesse sugerir a resposta por parte da vítima.

Para o efeito, atente-se nos seguintes excertos daquele registo:
«JP (Juiz Presidente): Sabes que o teu pai está aqui a ser julgado e que ele é o réu, o arguido, como se diz agora, o teu pai está aqui na posição de arguido e está a ser acusado de determinados factos, nomeadamente de alguns factos que fez contigo. Pronto, nós queremos que nos fales, queremos que nos diga, que nos digas alguma coisa sobre isso, se é que há, se não há ... é que tu, eu faço-te uma pergunta e tu ficas calado, remetes-te ao silêncio e eu não sei o que é que isso significa, se significa que, por exemplo, quando eu te perguntei se o teu pai te fazia alguma coisa que tu achavas que não era bem, isso é verdade ou não? Mas tens que nos dizer alguma coisa, que nós assim .. ", eu não sei o que é que tu estás a pensar. Isso é verdade? O teu pai fazia-te coisas que não gostavas, ou não é verdade, isso é mentira?
PR (Paulo Rafael) : Sim é verdade.
JP- É verdade, e que coisas eram essas então? PR: Silêncio.
JP- Tens que ser tu a tomar a iniciativa de nos dizeres que coisas eram essas, porque se elas aconteceram tens que ter conhecimento delas. Eu também não quero estar a dizer aqui o que é que está aqui escrito, pelo menos sem tentar que tu digas, que sejas tu próprio a dizer isso.
PR- Silêncio.
JP- Estás nervoso? Estás nervoso, Paulo?
PR: Sim.
JP- Queres fazer um intervalo, queres que seja ouvida outra pessoa? (…).
JP- Então vamos, Paulo.
Preferes falar, preferes responder em Francês à Sra. Tradutora, que está aí e depois ela dizer-me em português? (…)
PR- Eu respondo em francês.
JP- Então, eu faço as perguntas em português e tu respondes em francês, não é? (…)»

Não há razões que levem a admitir que o ofendido tivesse quaisquer motivos para inventar os factos que narrou ao tribunal, sobretudo quando a própria perícia que foi realizada em França não lhe retira, qualquer credibilidade. Note-se que o Exmo perito subscritor do relatório daquela perícia é peremptório no sentido de que não foi detectada qualquer fractura com a realidade ou descompensação sobre o modo psicótico” e se teve o cuidado de relatar que o conjunto “das desordens do desenvolvimento da personalidade e suas capacidades intelectuais e cognitivas parecem limitadas, mais abaixo da média e da norma das crianças da idade dele” “poderia em parte, alterar a percepção dos factos”, logo afirmou que “no entanto a importância da reacção emocional deixa entrever a realidade dos factos.”

No caso em apreço as declarações do ofendido, embora preponderantes, não foram sequer o único meio de prova em que ao tribunal se alicerçou para considerar provada a matéria de facto.

Conforme resulta da motivação da decisão de facto, e é corroborado pela audição dos respectivos registos magnetofónicos, aquelas declarações do ofendido foram também corroboradas pelo depoimento da sua mãeMaria I... que surpreendeu o episódio ocorrido em Agosto de 2004, depois de nessa mesma semana ter tido fortes suspeitas do que se passava e pelo depoimento da testemunha Susana S..., a quem o menor mais tarde e já em França confidenciou que o pai abusava dele.

Cai assim por terra a tese da vingança insinuada pelo recorrente, alicerçada nas declarações do arguido, na interpretação puramente especulativa de uma frase proferida pelo menor e nos depoimentos das testemunhas Manuel A... e Leonel O...que referiram que o filho mais velho do casal; Miguel S... lhes dissera que tudo fora inventado pela esposa do arguido com o objectivo de conseguir obter provas para o divórcio, depoimentos indirectos que não podem sequer ser valorados uma vez que aquele Miguel não chegou a ser ouvido porque, contrariamente ao que consta da acta, não compareceu em julgamento.

Em reforço desta tese o recorrente adianta, ainda, se os abusos tivessem acontecido, certamente isso se reflectiria na atitude do menor para com o pai, não se compreendendo que sendo o menor vítima de abusos sexuais por parte do pai, gostasse da sua companhia. Mas, também aqui claudica a argumentação do recorrente uma vez que é sabido que em inúmeros casos de abuso sexual o abusador é uma pessoa em quem a criança confia, conhece e muitos vezes ama.

Na verdade, nos casos de abuso sexual intrafamiliar a psicologia refere-se a uma ambivalência de sentimentos do menor relativamente ao ofensor.

Assim, A Drª Ana Isabel Sani destaca que “o abusador, para além da dor que provoca à criança pode ser também percebido por esta como a principal fonte de atenção e afecto”- Abuso Sexual de Crianças, Características e Dinâmicas, in Polícia e Justiça, 2004, III, n.º especial(Família, Violência e Crime), págs. 127-128

Também a Prof. Isabel Alberto refere que “tanto a vítima como os restantes elementos da estrutura familiar têm uma apreciação ambivalente para com o abusador, pois ele não é tão só o que faz mal, mas tem igualmente um lado positivo, representado na função parental e conjugal, de protecção, de coesão, de manutenção económica do agregado familiar”- O Abuso Sexual de Menores, Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia, Coimbra, 2002, pág. 54

Conclui-se, deste modo, que o acórdão recorrido, nesta parte, expôs de forma clara e segura os elementos de facto que fundamentam a sua decisão, o processo lógico que lhe subjaz, optando por uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, suportada pelas provas invocadas na fundamentação da sentença, conforme é corroborado pela audição dos respectivos registos magnetofónicos não se detectando nenhum erro patente de julgamento, nem tendo sido utilizados meios de prova proibidos.

Por isso que tal decisão seja inatacável, porque proferida de acordo com a sua livre convicção (artigo 127º do Código de Processo Penal).

E, sem prejuízo do que adiante se dirá terminam-se estas considerações com a seguinte síntese conclusiva constante do Ac. T.C. 198/2004 de 24-03-2004 (DR, II Série, de 2-6-2004), que não podemos deixar de subscrever:
"A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode, consequentemente, assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão" (itálico nosso).
*
§5. A data do início do relacionamento sexual.
Segundo os factos provados o início do relacionamento sexual como menor teria ocorrido em 12-3-1997 [“Desde pelo menos o dia 12/03/1997 (n.º4 do factos provados)

Aquele relacionamento teria assim começado no dia anterior àquele em que o menor completaria três anos (13-3-1994, uma vez que nasceu em 12-3-1994) e perdurou até Agosto de 2004.

Ora a respeito daquela primeira data, nenhuma prova foi produzida nesse sentido, conforme resulta nomeadamente da leitura do registo de prova respeitante à inquirição do menor, da sua mãe e da sua irmã, ignorando-se o motivo pelo qual o colectivo indicou tal data.

Atente-se no seguinte segmento da inquirição do menor:
JP (Juiz presidente)- “Em 2004. E essas situações que tu disseste que aconteceram várias vezes, durante quantos anos é que isso aconteceu? Portanto, vocês foram para França em 2004, tu sabes mais ou menos em que ano ... , Tu em 2004 tinhas 10 anos, quando foste para França, tu sabes mais ou menos quantos anos antes ou que idade é que tu tinhas quando o teu pai começou ater esses comportamentos que tu disseste? Se foi durante um ano, se foi durante dois anos?
PR- Silêncio. Não sei (disse para a tradutora). Silêncio.
JP- Foi mais de um ano? Foi durante um ano, por exemplo? Podemos dizer que foi durante um ano?
PR- Não, mais.
JP- Mais de um ano. Dois anos?
PR- Não, mais.
JP- Mais de dois anos. Três anos?
PR- Mais do que três anos”
Haverá, pois, que eliminar dos factos provados a referência a “Desde pelo menos o dia 12/03/1997”, substituindo-a por “Durante pelo menos três anos.”
*
§6. O momento do relacionamento: à noite ou à tarde quando o menor fazia a sesta.
Segundo o acórdão recorrido o comportamento do arguido ocorria “à noite quando o Paulo se ia deitar ou à tarde quando fazia a sesta”

Mas, como bem assinala o recorrente nem o menor nem a sua mãe referiram que os abusos tivessem ocorrido à tarde, quando o menor fazia a sesta, sendo peremptórios que os mesmos ocorriam à noite.

Aliás, a testemunhaMaria I... esclareceu claramente que trabalhava numa “maison de retraite” e à noite tratava de uma idosa numa povoação vizinha “e ele [o arguido] ficava com o Rafael na casa, deitava-o e ficava com ele e eu ia fazer esse trabalho e vinha às 10horas ou mais tarde e ele deitava-se na cama com o pequeno até eu vir e eu quando vinha acordava-o”
*
§7. A questão do momento do abandono da habitação.
Por reporte aos factos ocorridos em Agosto de 2004, o tribunal colectivo considerou provado que “Quando assim procedia, o arguido foi surpreendido pela mulher, tendo esta de imediato abandonado a habitação, levando consigo o menor”(n.º 6) ,

Conforme decorre da parte final deste número, o colectivo considerou provado que logo após ter surpreendido o arguido em flagrante a sua esposa abandonou a habitação, levando consigo o menor.

Se depois de ter abandonado a habitação a esposa do arguido ainda esteve, juntamente com o menor, a viver algum tempo em casa da sua irmã ou se regressaram à casa de família, antes de se deslocarem para França, ou se logo após aqueles factos se deslocaram imediatamente para França onde desde então passaram a viver são factos que, para além de não constarem nem da acusação nem da contestação, são inteiramente inócuos para a decisão da causa.
*
§8. A questão do agravamento da desordem de desenvolvimento da personalidade do menor.
Neste ponto assiste inteira razão ao recorrente.

Recorda-se que o acórdão recorrido deu como provado que:
“Os comportamentos do arguido – ou seja, os abusos de que o Paulo foi vítima e dos quais sempre se deu conta – agravaram directa e necessariamente a desordem de desenvolvimento da personalidade do menor, nomeadamente: atraso da linguagem de que está afectado (sendo que só a partir dos 3 anos de idade passou a verbalizar as primeiras palavras), necessidade de acompanhamento psicológico e ortofónico a partir do infantário, capacidades intelectuais limitadas, dificuldades na aprendizagem (aos 10 anos de idade ainda não sabia escrever o seu próprio nome)”(n.º7).

A este respeito, uma vez que os depoimentos das testemunhasMaria I... e Susana S..., para além de insuficientes e contraditórios, não merecem qualquer credibilidade, por estar em causa a percepção e a apreciação de factos que exigem especiais conhecimentos científicos de que aquelas, manifestamente, não dispõem, o único e relevante elemento de prova constante dos autos é a perícia psicológica a que se reporta o Relatório de Avaliação Psicológica do menor, junto a fls. 25 e seguintes

Esta parece ter sido também a opinião do colectivo embora deficientemente expressa em sede de motivação da decisão de facto [“…foram considerados os documentos juntos, de que se destaca o relatório de Avaliação Psicológica do menor já mencionado (fls. 25)…”]

Ora, como bem assinala o recorrente, o referido relatório não permite concluir, de modo algum, muito menos de forma segura e inequívoca, que a desordem no desenvolvimento da personalidade do menor esteja relacionada com os abusos sexuais de que foi vítima, e muito menos que tenham agravado aquela desordem.

Com efeito, o Ex.mo senhor perito situa a desordem da personalidade do menor como tendo início na primeira infância [“ayant débuté dans la prime infance”], e embora conclua pela vivência de uma realidade traumática não se pronuncia sequer sobre qualquer relação de causa e efeito entre esta [possible agressions sexuelles… potentielllement probable] e aquela desordem.

Consequentemente, o agravamento da desordem do menor alegadamente provocado pelo comportamento do arguido deverá ser remetido para os factos não provados
*
§9. A matéria de facto considerada provada sob os números 8 a 12.
Segundo o recorrente, “Ao não serem considerados como provados os factos supra referidos, constantes dos pontos 4 a 7 dos factos dados como provados, também não poderá ser dada como provada a matéria fáctica constante dos pontos 8, 9, 10, 11 e 12, pelo que também deverá ser considerada como não provada.” (conclusão 10ª).

Segundo alega, na motivação, “Não há matéria suficiente nos autos para se poder considerar que o arguido abusou sexualmente do seu filho menor Paulo Rafael, nem sequer que, tendo praticado alguns desses factos, o tenha feito de forma consciente e que o seu filho se tenha apercebido dos mesmos.”

Utilizando a técnica argumentativa do recorrente dir-se-à que improcede necessariamente a impugnação do recorrente, uma vez que, como vimos, não deve ser alterada a matéria de facto que integra ou dá corpo àqueles abusos sexuais.

Em reforço da sua argumentação, pretendendo também descredibilizar o depoimento do ofendido, o recorrente alega que aquele, de ambas as vezes que a mãe desconfiou que alguma coisa de anormal se estava a passar estava a dormir.

Para o efeito cita algumas passagens do depoimento da mãe do menor, a qual, segundo ele, não revelou certezas sobre o facto e uma passagem do depoimento do menor para concluir com a seguinte interrogação “Assim sendo, se o menor estava a dormir, como teve conhecimento dos factos, como pode ter-se apercebido da ocorrência dos factos?”

Salvo o devido respeito, esta linha argumentativa é puramente retórica porquanto o facto de um menor adormecer no decurso do abuso ou depois de este ter sido consumado, não o impede, obviamente, de se ter apercebido da ocorrência dos factos.

Depois, o recorrente utiliza uma “técnica” conhecida que consiste em respigar do depoimento apenas o que lhe aproveita, limitando-se a “fazer vista grossa e a varrer para debaixo do tapete aquilo que não lhe interessa” (Ac. da Rel. do Porto de 13-7-2005, proc.º n.º 0540595, rel. António Gama, in www.dgsi.pt).

Atente-se no seguinte excerto final das declarações do menor, não referenciado pelo recorrente:
«JP: Tu, quando o teu pai te fazia isto, se calhar esta pergunta ... , estavas acordado?
PR: Ia dormir
JP: É que tu há bocado disseste que estavas a dormir ou que ias dormir, o que é que tu querias dizer com isto?
PR : Ia dormir.
JP: Ias dormir e estavas acordado e era quando esta situação ... enfim ... Tu alguma vez falaste com o teu pai, o teu pai quando fazia isto dizia-te alguma coisa, ameaçava-te ou era, fazia aquilo, retirava-se e não falava mais nisso?
PR: Só dizia para não dizer nada.»
*
6. A questão da violação do princípio in dubio pro reo;
Segundo o princípio in dubio pro reo «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra pág 215).

Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo -, quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.

O recorrente pretende ter sido violado o princípio in dubio pro reo, como resultado das deficiências que apontou à decisão.

Tais elementos foram já analisados nos números precedentes, tendo-se concluído pela improcedência da argumentação do recorrente no que se reporta à insuficiência da prova para preencher os elementos constitutivos objectivos e subjectivos do conceito de acto sexual de relevo que adiante melhor explicitaremos.

Acresce que o princípio “in dubio pro reo” só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”(Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615) .

Por isso a sua violação exige a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido (cfr. v.g., o Ac. do STJ de 29-4-2003, proc.º n.º 3566/03-5ª, rel. Simas Santos, in www.pgdlisboa.pt/).

Por isso também que para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição não baste, como parece pretender o recorrente, que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias (cfr., v.g. os acs. desta Rel. de Guimarãs de 9-5-2005, proc.º n.º 475/05, rel. Maria Augusta, e da Rel. de Coimbra de 24-2-2010, proc.º n.º 138/06.0GBStr.C1, rel. Gomes de Sousa, ambos in www.dgsi.pt).

Para que se imponha ao tribunal a aplicação deste princípio é necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador - e não no das partes - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que há-de ser razoável e insanável.

Ora, em momento algum resulta do acórdão recorrido que o tribunal tivesse tido qualquer dúvida sobre factos relevantes e tenha decidido contra o arguido/recorrente, nem da decisão recorrida resulta que o seu não uso seja censurável.

Deste modo, conclui-se que a decisão recorrida não patenteia a alegada violação do princípio in dubio pro reo.
*
7. Alteração da factualidade provada e não provada
Consequentemente, nos termos do artigo 431º, alínea b) do Código de Processo Penal, altera-se a matéria de facto (provada e não provada) nos seguintes moldes:

a) O n.º 4 da matéria de facto provado fica redigido do modo seguinte:
"4. Durante pelo menos três anos e até finais Agosto 2004, o arguido, pelo menos uma vez por semana, à noite, quando o Paulo se ia deitar, sempre no interior da residência supra identificada, despia-se e deitava-se com o menor na cama, esfregando o seu pénis erecto nas nádegas do seu filho. Nessas ocasiões o arguido também acariciava as nádegas do menor e friccionava o seu próprio pénis com as mãos, masturbando-se e ejaculando no exterior do menor, nomeadamente contra o seu corpo”;

b) O n.º5 da matéria de facto provada fica redigido do modo seguinte:
“5. Assim, em dia não concretamente apurado, mas durante o mês de Agosto de 2004, quando o Paulo estava deitado a descansar, à noite, o arguido entrou no quarto dele e deitou-se na cama onde o mesmo estava. Acto contínuo, abeirou-se dele e despiu-se, ficando apenas com a roupa interior vestida (cuecas). Nestas circunstâncias, o arguido retirou o seu pénis para fora das cuecas e esfregou o mesmo nas nádegas do menor inúmeras e repetidas vezes, ao mesmo tempo que acariciava as nádegas do menor e friccionava o seu pénis, até que ejaculou sobre a perna do menor, tendo ficado esperma na coxa deste;

c) O n.º7 da matéria de facto provada fica redigido do modo seguinte:
“7. O menor Paulo sempre se deu conta dos comportamentos do arguido.
O menor padece de desordem de desenvolvimento da personalidade, nomeadamente: atraso da linguagem de que está afectado (sendo que só a partir dos 3 anos de idade passou a verbalizar as primeiras palavras), necessidade de acompanhamento psicológico e ortofónico a partir do infantário, capacidades intelectuais limitadas, dificuldades na aprendizagem (aos 10 anos de idade ainda não sabia escrever o seu próprio nome)”.

d) Aditam-se três números à matéria de facto não provada, com a seguinte redacção:
“2. Que os factos referidos em 4) tenham ocorrido “desde pelo menos o dia 12.03.1997”, à tarde quando o menor fazia a sesta;”
“3. Que os factos descritos em 5) tivessem ocorrido “durante a manhã/tarde”;”
“4. Que os comportamentos do arguido tenham agravado directa e necessariamente a desordem de desenvolvimento da personalidade de que o menor Paulo Rafael padece.”
*


8. A questão do enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido
Embora com muito deficiente tradução ao nível das conclusões, na motivação o recorrente questiona o enquadramento jurídico-penal da sua conduta, porquanto “os actos que lhe são imputados, nos precisos termos que constam dos factos provados, para além de não revelarem a dita intenção libidinosa, também não integram o conceito de “acto sexual” e muito menos “acto sexual de relevo”, e por isso não preenchem o tipo objectivo do crime de abuso sexual de crianças, da previsão do n.º1 do artigo 172º do Código Penal, por que foi condenado.”

A alegação é deveras surpreendente, até porque a compreensão e aplicação dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência citados pelo recorrente conduz, inexoravelmente, a conclusão contrária àquela que foi arrojadamente formulada pelo recorrente.
*
§1. Recorda-se que o arguido foi acusado e condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 172º, n.º1 do Código Penal, na redacção anterior à Reforma de 2007.
Nos termos do citado normativo legal é punido (com pena de prisão de 1 a 8 anos) quem “praticar acto sexual de relevo com um menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa”.

Embora o conceito de “acto sexual de relevo” tenha suscitado alguma polémica na doutrina e jurisprudência nacionais, afigura-se-nos que o mesmo tem de ter uma relação com o sexo (relação objectiva), tem de tratar-se de um comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais embora possa não haver envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes, e em que haja da parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais (esta intencionalidade ou motivação específica do agente não é, porém exigida por um sector minoritário da doutrina e jurisprudência - cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 12-1-1996, Col. de Jur. ano tomo 1, pág. 165 e Inês Ferreira Leite, Pedofilia, Coimbra, 2004, págs. 76-77 e 86-88).

Para além disso o tipo está limitado pelo uso da expressão restritiva “de relevo” pelo que a liberdade/autodeterminação sexual só está tutelada criminalmente contra acções que constituam grave entrave para a liberdade ou autodeterminação sexual da vítima [tais como o beijo na boca, a exposição dos órgãos genitais, o apalpar os seios, pressionar a zona púbica, ejacular ou urinar sobre a vítima, esfregar o pénis no rabo da menor simulando a cópula - exemplos colhidos da doutrina e da jurisprudência, para além dos indicados no n.º 2 do citado artigo 172º (cópula, coito anal, coito oral, introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos) - sobre o conceito de “acto sexual de relevo” cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 17ª ed., Coimbra, 2005, pág. 578-579, Fernando João Ferreira Ramos, Notas sobre os crimes sexuais no projecto de revisão do Código penal de 1982, RPCC, ano 3º, fasc. 1 (Janeiro-Março 1993), pág.55 Sénio Reis Alves, Crimes Sexuais, Coimbra, 1995, págs. 7-12; José Mouraz Lopes, Os Crimes contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal, 4ª ed., Coimbra, 2008, págs. 23-31, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra, pág. 447 a 450, §§7 a 13 inclusive, e pág. 543, §6 e Inês Ferreira Leite, Pedofilia, cit., págs. 75 e seguintes; na jurisprudência dos tribunais superiores merecem destaque os Acs. do S.T.J. de 31-10-1995, B.M.J. n.º 450, pág. 165, de 16-5-1996, proc.º n.º 136/94, de 17-10-1996 e de 20-10-1996, os dois últimos in Col. de Jur.- Acs. do S.T.J., ano IV, tomo 3, pág. 170 e B.M.J. n.º 460, pág. 605, respectivamente, e de 12-7-2005, proc.º n.º 05P2442, in www. dgsi.pt, o Ac. da Rel. de Coimbra de 12-1-1996, in Col. de Jur. ano XXI, tomo 1, pág. 165, o Ac. da Rel. de Évora de 14-11-2006, proc. n.º 2864/05-1 , rel. João Gomes de Sousa, e o recente Ac. da Rel. do Porto de 27-1-2010, proc.º n.º 1044/07.7GGMTS.P1, rel. Olga Maurício, ambos in www. dgsi.pt.
*
§2. Ora, afigura-se-nos inequívoco que a o apurado comportamento do arguido não pode deixar de ser considerado com um acto sexual de relevo.

Não estão em causa actos “insignificantes ou bagatelares” (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Tomo I, cit., pág. 449, §11), mas antes actos que representam um grave entrave para a autodeterminação sexual da vítima.

Está em causa a fricção do pénis nas nádegas do menor, com ejaculação sobre a vítima.
*
§3. Quanto ao elemento subjectivo que integra aquele conceito de acto sexual de relevo (intenção de satisfazer apetites sexuais), o recorrente está claramente equivocado, senão mesmo distraído, uma vez que conforme resultou provado, ao agir da forma que ficou descrita o arguido actuou com o propósito “de satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais, o que conseguiu” (facto n.º10)
*

9. Duas notas complementares
a) O tribunal recorrido integrou a conduta do arguido numa continuação criminosa.

Todavia, segundo a melhor interpretação que tem vindo a ser sustentada pelo STJ para casos como o presente, os vários actos criminosos devem ser tratados como constituindo um único crime de trato sucessivo, uma vez que “no crime continuado há uma diminuição da culpa à medida que se reitera a conduta, mas não se vê que tal diminuição exista no caso de abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem” (Ac. do STJ de 29-03-2007, proc.º n.º 07P1031, rel. Cons.º Santos Carvalho; cfr. no mesmo sentido o Ac. do STJ de 23-1-2008, proc.º n.º 07P4830, rel. Cons.º Maia Costa, ambos in www.dgsi.pt).

Como se assinala no Ac. do STJ de 1-10-2008, proc.º n.º 08P2872, rel. Cons.º Santos Monteiro, “o que se pode afirmar é que a tese da continuação criminosa, em casos de menores que convivem com os pais, que deles abusam - de punição do arguido por um só crime ou seja pelo crime de maior gravidade, nos termos do art.º 79.°, do CP, que não identifica, deixando-o à perscruta deste STJ, mais cabido sendo que o fizesse -, choca profundamente ao sentimento jurídico, carece de qualquer apoio legal e jurisprudencial, sendo pura e simplesmente rejeitada e de há anos a esta parte - cfr. os Acs., entre tantos, deste STJ , de 5.9.2007 , in CJ , STJ , Ano XV , III , 2007 , pág .189, de 22.1. 2004, in CJ, STJ, Ano XII, TI, 179 e segs., de 1.4.98, in CJ, STJ, Ano VI, tomo II, pág. 175, de 28.1.93, in CJ, STJ, TI, pág. 177, de 14.2.2007, P.º n.º4100/06-3.ª Sec., de 15.6.2005, P.º n.º 1558/05 -3.ª Sec., de 24.11.2004, P.º n.º 3227/04-3.ª Sec., de 12.3.2002, P.º n.º 4454/01, da 3ª Sec., de 16.1.2008, P.º n.º 07P4735, da 3.ª Sec., todos acessíveis in www.stj.pt (os l.°s 4) e www.dgsi.pt o último.”

Atente-se, ainda, no seguinte excerto do recente Ac. do STJ de 20 de Janeiro de 2010, proc.º n.º 19/04.2JALRA. C2.S1, rel. Cons.º Armindo Monteiro, in www.dgsi.pt:

«Não é de excluir nos crimes sexuais a continuação criminosa, mas sempre que mais do que a um momento exterior ao agente, condicionante da prática do crime, se prove que a reiteração, menos que a tal disposição, fique a dever-se a uma certa tendência da personalidade do agente não poderá falar-se em atenuação da culpa e fica excluída a figura da continuação -cfr. op.cit., 251 . Esta a hipótese dos autos.
A manifestação reiterada do dolo é inconciliável com a constatação de uma culpa sensivelmente atenuada, e com o crime continuado, escreve o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág. 451 , a propósito do crime de violação, por que o arguido não foi acusado e nem condenado, relativamente à manutenção de cópula contra a vontade da filha, para além dos seus 14 anos (referimo-nos aos factos de 29/11 e 4/12/2003), ut art.º 164.º n.º 2 , do CP. na redacção actual, com um campo de previsão alargado relativamente ao seu antecessor .
A exigência legal de que o agente aja na mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa significa que aquela tem, além disso, de ser tal que, objectivamente, facilite a execução do facto criminoso ou "prepare as coisas para a repetição" do facto, de modo a afastar do âmbito do instituto do crime continuado aquelas situações em que sejam total ou predominantemente razões endógenas do agente a conduzir ou a "aconselhar" a repetição do facto - cf. Lobo Moutinho, Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, pág. 1226.
Se, pois, o agente cria ou se aproveita de circunstâncias que lhe não são exteriores, como é o caso de a filha, assistente, viver sob o mesmo tecto, e prevalecendo-se da natural proximidade, ascendência sobre ela e do receio que lhe infundia, pratica os actos supracitados, a culpa do agente não resulta à evidência diminuída, de outra sorte tem de entender-se, o que nos parece um absurdo, que quem tinha o especial e mais vincado dever de respeitar outrém, mercê da relação legal e natural estabelecida, de filiação, nos termos do art.º 1878.º, do CC, se acha mais desprotegida, desamparada, ante um instinto sexual desabrido e sem qualquer contenção de pai.»

Não pode, porém, esta Relação alterar a qualificação jurídica do colectivo relativa à existência de um crime continuado, uma vez que o recurso foi interposto pelo arguido e em seu benefício.
*
b) O recorrente não impugnou a medida da pena, limitando-se a contestar a decisão de não suspender a execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.

A alteração da matéria de facto nos moldes operados, em pontos tão importantes como a duração dos abusos e a gravidade das suas consequências deveria, normalmente, ter reflexos na medida da pena, uma vez que aquelas alterações implicam uma redução da gravidade do ilícito e das suas consequências [artigo 71º, n.º2, alínea a), do Código Penal].

Mas, nem sempre é assim, bastando pensar nos casos em que a pena aplicada na decisão recorrida peca por excessiva benevolência.

È precisamente o caso dos autos em que a pena de 2 anos de prisão excessivamente benévola perante os factos considerados provados continua benévola, não obstante a matéria de facto extirpada por força da alteração da matéria de facto, considerando - para além do mais que no caso já de si é muito - que a vítima padecia de desordem de desenvolvimento da personalidade, nomeadamente de capacidades intelectuais limitadas.

Todavia, por força da proibição da reformatio in pejus aquela pena deve manter-se.
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10. A questão da suspensão da execução da pena
§1.Analisemos, por último, a questão da suspensão da execução da pena.

Nos termos do n.º1 do artigo 50º do Código Penal “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.

O citado artigo 50º atribui, deste modo, ao tribunal o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão não superior a cinco anos, sempre que, reportando-se ao momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo e prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido (cfr. Figueiredo Dias, “Velhas e novas questões sobre a pena de suspensão da execução da pena”, Rev. de Leg. e Jur. ano 124º, pág. 68, e Direito Penal Português, -As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, §518, págs.342-343)

Como justamente se salientou no Ac. do S.T.J. de 8-5-1997 (Proc.º n.º 1293/96) “factor essencial à filosofia do instituto da suspensão da execução da pena é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio da valoração do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir”.
*
§2. No acórdão recorrido, com o aplauso do Ministério Público em ambas as instâncias, depois de se transcrever o citado artigo 50º na versão decorrente da Lei 59/07, de 4 de Setembro, “por concretamente se mostrar mais favorável ao arguido”, justificou-se a não suspensão da execução da pena nos seguintes termos:

«Trata-se de uma medida de carácter reeducativo e pedagógico, a aplicar quando, por um lado, em face de um juízo de prognose favorável à maneira de ser comportamental do arguido, seja de prever que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para o afastar da criminalidade e, por outro lado, à suspensão se não opuserem as necessidades de reprovação e de prevenção do crime (F. Dias, As Consequências… cit, pp.342-344).
No caso concreto, se pode aceitar-se que considerações ligadas à prevenção especial de socialização (o tal prognóstico favorável ao arguido) sugeririam a suspensão da pena – estamos a pensar, p.e, na ausência de antecedentes criminais –, já, todavia, é inegável que razões de prevenção geral (as tais necessidades de reprovação e de prevenção do crime) apontam em sentido contrário. Com efeito, numa situação de abuso sexual de uma vítima menor, filho do arguido, de forma continuada, sempre no interior da própria residência da família, em que o arguido se despe e se deita com o menor na cama deste, esfregando o seu pénis erecto nas nádegas do menor e masturbando-se até ejacular, o sentimento de reprovação social do crime é elevadíssimo! Admitir aqui uma suspensão da pena chocaria profundamente o sentimento jurídico geral da comunidade e significaria gorar as expectativas desta e esvaziar a sua confiança na validade das normas jurídicas, descurando por completo a defesa do ordenamento jurídico, i.e, a prevenção geral positiva (de integração) entendida como reforço do sentimento de segurança da comunidade face à violação da norma. Como atrás se disse, a pedofilia merece da comunidade a maior reprovação porque esta coloca a integridade sexual das crianças e o desenvolvimento adequado da sua sexualidade num patamar muito alto dos valores e bens jurídicos merecedores de tutela jurídico-penal, tendo em conta que condutas de natureza sexual com vítimas de pouca idade podem, por mais simples que sejam ou pareçam ser, e mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, a qual se encontra ainda em fase de crescimento e de maturação. Nestas hipóteses – em que, mau grado o juízo de prognose benéfico para o arguido, as exigências de reprovação e de prevenção do crime não podem ser desprezadas –, deve o Tribunal negar a suspensão da pena (F.Dias, As Consequências… cit, 344).
Decide-se, portanto, pela não suspensão da pena [cf, p.e, o caso menos grave tratado no Ac STJ 5Jun03, proc.03P1656, www.dgsi.pt – arguido que, aproveitando-se das relações de confiança que mantinha com os pais de uma menor e com a avó de outra, e às quais oferecia guloseimas, num número indeterminado de vezes tirou-lhes as cuecas e tocou-lhes na vagina, acariciando-a, e outras vezes sentou-as no colo e acariciou-lhes a zona púbica, sendo que também se tratava de arguido sem antecedentes criminais e que, aliás, confessou os factos (o que o arguido agora julgado não fez) –, onde também foi negada a suspensão da pena (o arguido foi aí condenado por dois crimes continuados de abuso sexual de crianças na pena de 2 anos de prisão por cada um e 3 anos em cúmulo jurídico).
Escreveu-se nesse aresto: “Posto isto, coloca-se a interrogação: no contexto social em que nos inserimos, os sentimentos de confiança e segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais, bastar-se-ão, in casu, com a condenação do arguido numa pena de 3 anos de prisão suspensa na sua execução por um período de 3 anos (ou 5 anos como refere a fundamentação da decisão?), mesmo acompanhada de plano individual de readaptação social? A nossa resposta é, em absoluto, negativa. Como se evidencia no acórdão deste Supremo Tribunal supracitado, «quando, como hoje, se assiste com uma frequência preocupante ao autêntico escárnio dos mais sagrados sentimentos de crianças indefesas, tantas vezes transformadas sem escrúpulo em meros instrumentos de satisfação libidinosa, não raro por actuação perversa e cobarde até dos próprios progenitores, ou de quem, acobertado pelo recato do lar, e em regra, por isso, portador da sua inocente confiança total, não hesita em conspurcar esse sacrário de inocência no seu próprio chafurdo sexual, não pode o sistema jurídico-penal dar outra resposta que não seja um inequívoco sinal de segurança, enfim, proporcionando porto de abrigo a quem dele tão veementemente mostra necessitar: as crianças»”].»
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§3. Na defesa da sua pretensão, isto é da suspensão da execução da pena, o recorrente põe o acento tónico nas necessidades de prevenção especial:

«In casu, atendendo-se à personalidade do Arguido, às condições da sua vida (está socialmente bem integrado e com boas relações de vizinhança, ponto 18 dos factos provados) e à conduta anterior e posterior ao crime (não tem antecedentes criminais, ponto 19 dos factos provados), impunha-se a suspensão da execução da pena de prisão (cfr. art.º 50.° nº 1 Cód. Penal); A Douta Sentença recorrida violou as normas dos artigos 40.°, 70.° e 71.° todos, do Código Penal. Os Mm. Juizes "a quo" não consideraram aquando da aplicação da pena de prisão efectiva os pressupostos que deveriam ter sido atendidos para a sua suspensão, pois in casu o juízo de prognose é favorável ao Arguido, não se prevendo que o Arguido possa vir a cometer novos crimes, desta ou de outra natureza, se tiver pendente uma pena de prisão.»
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§4. Conforme resulta do citado artigo 50º, n.º1 do Código Penal, a pena de substituição em causa deve ser aplicada, na sugestiva formulação do Sr. Cons.º Oliveira Mendes (cfr. v.g. Acs do STJ de 23-4-2008, proc.º n.º 08P912 e de 28-5-2008, proc.º n.º 08P1129, ambos in www. dgsi.pt):

«a) Sempre que o julgador se convença, face à personalidade do condenado, suas condições de vida, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos (prevenção especial) e;

«b) Desde que não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade (prevenção geral)». Como sublinha o Prof. Figueiredo Dias, “Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização - a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem “as necessidades de reprovação e prevenção do crime”. Já determinámos que estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise” (Direito penal Português-As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pág. 344).»

Conforme resulta do excerto acima transcrito, o tribunal recorrido considerou que “considerações ligadas à prevenção especial de socialização (o tal prognóstico favorável ao arguido) sugeririam a suspensão da pena.”

Negou, porém, a suspensão porque a isso se opunham razões de prevenção geral.

Embora reconhecendo que neste domínio “os interesses a prosseguir, seja a prevenção geral de integração seja da prevenção especial de socialização, interagem em verdadeira tensão dialética” (Ac. da Rel. do Porto de 17-12-2008, proc.º n.º 0816924, rel. Des.º Melo Lima, in www.dgsi.pt), a questão deve ser, desde logo, apreciada e decidida sob o prisma da prevenção geral.

Ora, a este respeito, não podemos deixar de sufragar a posição assumida pelo tribunal recorrido.

Pode mesmo dizer-se que, em regra, no âmbito dos crimes de abuso sexual de crianças agravados, salvo circunstâncias excepcionais ou verificadas razões ponderosas – inexistentes no caso dos autos – não deve ser suspensa a execução da pena de prisão, por a isso se oporem inultrapassáveis razões de prevenção geral.

O sentimento jurídico da comunidade impõe que o arguido cumpra em clausura a pena que lhe foi aplicada, por só assim se cumprirem as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (neste sentido, no âmbito dos crimes de abuso sexual de menores, e para além do Ac. do STJ de 5-5-2003, proc.º n.º03P1656, rel. Costa Mórtagua, citado no acórdão recorrido, cfr., v.g., os Acs do STJ de 9-1-2008, proc.º n.º 07P3748, rel. Cons.º Santos Monteiro; 8-5-2003, proc.º n.º 03P1090, rel. Cons.º Pereira Madeira, 17-1-2008, proc.º n.º 07P3985, rel. Cons.º Rodrigues da Costa, 17-1-2008, proc.º n.º 07P2592, rel. Cons.º Arménio Sottomayor, todos in www.dgsi.pt).
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III- Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em alterar a matéria de facto provada e não provada nos moldes supra referidos.
No mais, negam provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 8 UC.
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Oportunamente, na 1ª instância, deverá proceder-se à correcção da acta de julgamento por forma a que dela conste quer a realização das várias vídeo-conferências, quer a falta de comparência da testemunha Miguel S....
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Guimarães, 12 de Abril de 2010