Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
710/21.9T8PTL.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
FACTOS ESSENCIAIS
REMOÇÃO DE OBSTÁCULOS AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE PASSAGEM
FALTA DE PEDIDO
DIREITO DE PROPRIEDADE
SERVIDÃO DE PASSAGEM
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
É improcedente a ação em que é formulado pedido de remoção dos obstáculos ao exercício do direito de passagem e de servidão decorrentes de atuação das rés sem que tenha também sido formulado pedido de declaração de que as autoras são proprietárias dos prédios e que os mesmos beneficiam de servidão predial que onera os prédios das rés porquanto a procedência daquele pedido pressupõe necessariamente a existência e declaração destes direitos.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

RELATÓRIO

AA e BB intentaram a presente ação declarativa com processo comum contra CC, DD, EE, FF e GG, na qualidade de herdeiras da herança aberta por óbito de HH, falecido no estado de casado com a primeira, nos termos da petição inicial apresentada em 19.7.2021, cujo teor integral aqui se dá por reproduzido.
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Regularmente citadas, as rés contestaram invocando a ineptidão da petição inicial e impugnando genericamente a veracidade dos factos alegados pelas autoras, tendo ainda formulado pedido de condenação das autoras como litigantes de má-fé em multa e indemnização de valor não inferior a € 2 500,00.
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Em 7.11.2022, foi proferido despacho (ref. Citius 49461155) convidando as autoras a aperfeiçoar a p.i. de modo a precisarem:
- a causa dos seus direitos;
- a origem e natureza das servidões;
- descrição dos caminhos por onde se processa(m) a(s) servidão(ões) com indicação do local de entrada, de destino, características morfológicas;
- o âmbito e o modo do seu exercício;
- descrição de todos os trabalhos e atos, realizados pelas rés, impeditivos do exercício dos direitos sobre as servidões constituídas;
-  descrição do modo como foi determinado o valor da causa.
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As autoras apresentaram petição inicial aperfeiçoada em 25.11.2022 (cujo teor integral aqui se dá por reproduzido), na qual formularam os seguintes pedidos:

“Nestes termos e nos melhores de direito, que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, deve a presente acção ser considerada procedente por provada, e, em consequência:
a) Proceder-se à remoção de todos os obstáculos (nomeadamente, pedras, terra e rede “malha-sol” com rede verde,) ao exercício pleno do direito de passagem e dos direitos das servidões das ora Requerentes que permita a circulação, a pé e de carro, às habitações e campos de cultivo, existentes há mais de 70 anos, com direito de vistas, com a restituição da posse e da servidão devidas;
b) Condenar-se ainda as Rés a pagarem às Autoras a indemnização que for liquidada em sede de execução de sentença;
c) Condenar-se as Rés nas custas, procuradoria condigna e demais encargos,
d) Mais se requer a fixação de sanção pecuniária compulsória adequada, fazendo-se a costumada justiça!”

Como fundamento dos pedidos formulados alegaram, em síntese, que:
- são proprietárias e usufrutuária de vários prédios (que identificaram) os quais adquiriram por herança;
- os referidos prédios beneficiam de servidão sobre os prédios (que identificaram) de que as rés são proprietárias;
- para além de gozarem da presunção da existência dos direitos constante do art. 7º do CRP, as autoras e antepossuidores há mais de 70 anos (14/02/1948), encontram-se na posse dos prédios, ignorando lesar direito de outrem, à vista de toda a gente, sem violência ou oposição de quem quer que seja e praticando sobre o mesmo os atos próprios de proprietários, explorando as terras, cultivando, semeando, colhendo os frutos, bem como a alegada habitação, entrando e saindo pelas alegadas servidões;
- as servidões (que descreveram) destinam-se a permitir o acesso aos prédios dominantes, no sentido de cultivar os mesmos, o que têm feito, cultivando, plantando e colhendo os frutos dos mesmos;
- as rés procederam à colocação de vários penedos (pedras de grande porte), barras de betão, arame, correntes e terra, impedindo a cabal circulação pelas servidões a favor dos prédios dominantes das autoras;
- as rés efetuaram obras que impedem e limitam o acesso das autoras aos direitos de servidão, colocando ferros e muros com mais de 5 metros, a que acresce a colocação, da rede “malha-sol” com rede verde;
- a atuação das rés impede a passagem da autora pelo carreiro junto à sua habitação, e do caminho que permitia o acesso ao cultivo e produção das suas terras, com todos os consequentes danos emergentes, lucros cessantes, danos patrimoniais e danos não patrimoniais, danos esses cuja quantificação não é ainda possível;
- as autoras requerem a restauração natural na sua esfera jurídica do direito de passagem, no exercício do direito de servidão.
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As rés apresentaram contestação à petição aperfeiçoada invocando a sua ineptidão e impugnando genericamente a veracidade dos factos alegados pelas autoras, reiterando o pedido de condenação das autoras como litigantes de má-fé já anteriormente formulado.
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Foi proferido despacho, em 24.2.2023, conferindo às autoras a possibilidade de se pronunciarem sobre a exceção de ineptidão da petição inicial, faculdade que as autoras exerceram, mediante apresentação do requerimento de 10.3.2023, no qual se pronunciaram no sentido de dever ser julgada improcedente tal exceção bem como o pedido da sua condenação como litigantes de má-fé.
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Em 31.5.2023, realizou-se a audiência prévia na qual foi proferido despacho referindo que “[o] Tribunal entende que, não tendo sido alegados factos essenciais referentes à causa de pedir, existem já nos autos elementos suficientes que permitam, conhecer imediatamente do mérito da causa”, tendo, de seguida, sido conferido às partes o prazo de 10 dias para se pronunciarem.
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As rés pronunciaram-se, nos termos do requerimento de 12.6.2023 (cujo teor integral se dá qui por reproduzido), defendendo que deve ser declarada a nulidade todo o processo por ineptidão da petição inicial decorrente da falta ou ininteligibilidade da causa de pedir.
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As autoras pronunciaram-se, nos termos do requerimento de 13.6.2023 (cujo teor integral se dá qui por reproduzido), defendendo que alegaram factos que permitem julgar a ação procedente.
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Foi proferido saneador-sentença que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu as rés dos pedidos formulados pelas autoras, tendo fixado à causa o valor de € 30 000,01.
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As autoras não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“I.
Vêm as ora Autoras recorrerem da Sentença que decidiu absolver as Rés dos pedidos formulados pelas Autoras, por “total ausência de alegação de factos integradores do direito de que se arrogam titulares”, “os elementos essenciais ao preenchimento dos direitos que as Autoras se arrogam ser titulares. E, ademais, não se formula qualquer pedido contra as Rés referentes às alegadas servidões, o que redundaria sempre na improcedência do pedido.”
II.
A questão que constitui objecto do presente recurso não carecerá de demoradas explicações para se justificar, como se crê, uma decisão diferente, no sentido de provimento do presente Recurso.
III.
Neste concernente, entendem os ora Recorrentes, com o devido respeito por posição diferente, que o Tribunal a quo não fez a interpretação cabal do referido, porquanto estarão cumpridos os requisitos do alegado em sede da presente acção, nomeadamente pela existência de actos integradores do direito de que se arrogam titulares, bem como proceder-se à remoção de todos os obstáculos (nomeadamente, pedras, terra e rede “malha-sol” com rede verde,) ao exercício pleno do direito de passagem e dos direitos de servidões das ora Requerentes que permita a circulação, a pé e de carro, às habitações e campos de cultivo, existentes há mais de 70 anos, com direito de vistas, com a restituição da posse e da servidão devidas, isto é, reconhecendo as mesmas.
IV.
Na verdade, as Autoras não se conforma com a decisão de absolvição nos presentes autos, Neste concernente, entendem as ora Recorrentes, com o devido respeito por posição diferente, que o Tribunal a quo não terá decidido em conformidade com a interpretação cabal do referido.
V.
Na verdade, na esteira do alegado, “é nosso entendimento que se encontram reunidos nos presentes autos elementos suficientes para decidir a presente acção procedente e condenar as Rés a proceder à remoção de todos os obstáculos (nomeadamente, pedras, terra e rede “malha-sol” com rede verde) ao exercício (reconhecimento) pleno do direito de passagem e dos direitos das servidões das ora Autoras, que permita a circulação, a pé e de carro, às habitações e campos de cultivo, existentes há mais de 70 anos (...).”
VI.
Face ao expendido e com o devido respeito, estarão cumpridos os requisitos do alegado em sede da presente acção, nomeadamente pela existência de actos integradores do direito de que se arrogam titulares, bem como procederse à remoção de todos os obstáculos (nomeadamente, pedras, terra e rede “malha-sol” com rede verde,) ao exercício pleno do direito de passagem e dos direitos de servidões das ora Requerentes que permita a circulação, a pé e de carro, às habitações e campos de cultivo, existentes há mais de 70 anos, com direito de vistas, com a restituição da posse e da servidão devidas, isto é, reconhecendo as mesmas.
VII.
Pelo que poder-se-á concluir que a sentença ora recorrida poderá estar afectada na sua validade jurídica, nos termos e para os efeitos das alíneas c) e d), do artigo 615.º, do CPC”
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As rés contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“A) As Recorrentes, face ao convite ao aperfeiçoamento, persistiram em não concretizar os elementos essenciais ao preenchimento dos direitos que se arrogam ser titulares.
B) As Recorrentes não invocam a aquisição originária dos seus direitos.
C) A petição traduz uma total ausência de alegação fáctica.
D) As Recorrentes, no que às servidões diz respeito, não formulam qualquer pedido dirigido às Rés.
E) É manifesta a falta de razão que assiste às Recorrentes, porquanto é inepta a petição.
F) As alegações de recurso cingem-se à afirmação da existência na petição de suficiente alegação dos elementos essenciais ao preenchimento dos direitos de que as Autoras se arrogam titulares.
G) As alegações de recurso limitam-se a transcrever, ipsis verbis, os artigos e o texto constantes da petição declarada inepta, não satisfanzendo, assim, o ónus da impugnação.
H) As Recorrentes não apontam qualquer vício concreto à sentença.
I) As recorrentes não identificam na sentença qualquer erro de juízo, nem identificam qualquer ponto de censura.
J) As alegações das Recorrentes não satisfazem o ónus da impugnação, não sendo inteligível a causa para qualquer alteração ou anulação da sentença.
K) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das recorrentes, não podendo ser apreciadas ou conhecidas questões que delas não constem.
L) Face às alegações constantes do recurso apresentado pelas Autoras (que se limitam a transcrever partes da petição) o objeto do recurso (a existir) cingir-se-á a sindicar se a petição inicial contém, ou não, a alegação das necessárias factualidade consubstanciadora dos direitos que as Recorrentes se arrogam ser titulares.
M) A sentença não sofre de qualquer vício e encontra-se devidamente e profusamente fundamentada.”
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:
I - saber se a sentença padece do vício de nulidade previsto nas alíneas c) e d), do artigo 615º, do CPC;
II - saber se a ação deve, ou não, ser julgada improcedente face à factualidade alegada pelas autoras e aos pedidos formulados.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão a proferir são os que se encontram descritos no relatório e os mesmos resultam do iter processual.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I - Nulidade da sentença

Dispõe o art. 615º, nº 1, do CPC, (diploma ao qual se referem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem) que é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da decisão são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da decisão.
As nulidades da decisão, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).

As recorrentes, na conclusão VII, dizem que a decisão “poderá estar afectada na sua validade jurídica, nos termos e para os efeitos das alíneas c) e d), do artigo 615.º, do CPC”.
Não obstante essa alegação, nem nas restantes conclusões, nem na motivação explicitam ou analisam em que termos é que os fundamentos estão em oposição com a decisão; qual a ambiguidade ou obscuridade que tornam a decisão ininteligível; qual a questão que não foi apreciada ou qual a questão que foi apreciada e não o devia ter sido.

Lendo a decisão recorrida, considera-se que a mesma não padece de nenhuma das patologias elencadas nas als. c) e d) pois a decisão está em consonância com os fundamentos, a decisão não é ambígua nem obscura, não deixou de apreciar questão que devesse ter apreciado, nem apreciou questão sobre a qual não pudesse emitir pronúncia, pelo que a mesma não padece de nulidade.

Por conseguinte, improcede esta questão recursória.

II - Improcedência da ação face à factualidade alegada pelas autoras e aos pedidos formulados

As rés, nas contra-alegações, invocam que “as Recorrentes não satisfazem o ónus impugnação, dado que não indicam os fundamentos por que pedem a alteração ou anulação da decisão.

Não reconhecemos razão a esta afirmação porquanto, lendo a motivação e conclusões do recurso, consegue-se depreender, sem esforço de maior, que as autoras entendem que alegaram os factos essenciais para a procedência dos pedidos formulados na ação e que é por esse motivo que pretendem a revogação da decisão recorrida, a qual perfilhou o entendimento contrário.

Assim, não foi incumprido o ónus de impugnação e nada obsta a que se conheça da questão recursória elencada.
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A decisão recorrida julgou a ação improcedente com base em dois fundamentos essenciais:
- por um lado, por não terem sido alegados os elementos essenciais ao preenchimento dos direitos de que as autoras se arrogam titulares;
- por outro lado, por não ter sido formulado qualquer pedido contra as rés relativamente às servidões.

As autoras consideram que na petição inicial aperfeiçoada alegaram os factos essenciais à procedência da ação.

Embora a petição inicial aperfeiçoada não prime pela clareza e objetividade, considera-se que na mesma foram alegados os factos essenciais pois aí as autoras identificam os prédios de que são proprietárias e usufrutuária (arts. 1º a 5º), alegam que os adquiriram por sucessão (art. 6º), alegam que esses prédios beneficiam de servidões de passagem sobre prédios pertencentes às rés que identificam (arts. 7º e 17º), referem que beneficiam da presunção legal da existência e titularidade dos direitos à luz do art. 7º do CRP e que há mais de 70 anos, as autoras e ante possuidores praticam atos de posse sobre os prédios, atos que descreveram, e que entram e saem pelas servidões (art. 9º).
Descrevem os caminhos por onde passam as servidões com referência aos prédios servientes, indicando a sua largura e comprimento (arts. 10º e 11º); enunciam os termos em que usam esses caminhos e desde quando o fazem (arts. 12º a 15º e 18º e 19º).
Alegam que as rés praticaram vários atos que impedem a circulação das autoras por essas servidões (arts. 20º a 23º, 25º a 31º) e que sofreram danos decorrentes dessa atuação que não podem ainda antecipar nem computar (arts. 41º e 46º).

Estes factos constituem os elementos essenciais dos direitos invocados pelo que se diverge da decisão recorrida quando refere que as autoras não invocam as aquisições originárias dos seus direitos, que não descrevem a forma como as servidões foram constituídas, que fins deveriam servir, os caminhos por onde passam, as caraterísticas morfológicas e o seu âmbito ou modo de exercício, quais os prédios servientes e quais os dominantes, pois as autoras fazem-no nos artigos da p.i. aperfeiçoada que atrás referimos, que, embora não primando pela clareza e objetividade, ainda assim são suficientemente percetíveis.

Portanto, no que toca ao fundamento de não terem sido alegados os elementos essenciais ao preenchimento dos direitos de que as autoras se arrogam titulares, consideramos que o mesmo não pode alicerçar uma decisão de improcedência da ação, pelo que, quanto a este fundamento, têm razão as recorrentes.

Exceciona-se do atrás dito a servidão de vistas pois, quanto a esta, efetivamente não há qualquer alegação fáctica. Todavia, tal apenas implicaria a improcedência da ação no que a essa servidão respeita e não a improcedência total.

Não obstante a anterior conclusão, tal não significa, sem mais, que a decisão recorrida deva ser revogada, pois a mesma não se baseou unicamente no fundamento analisado.

O segundo fundamento da decisão recorrida para decretar a improcedência da ação baseou-se na circunstância de não ter sido formulado qualquer pedido contra as rés relativamente às servidões.

Vejamos, a questão.

Como supra referimos, as autoras limitaram-se a pedir:
- a remoção dos obstáculos ao exercício pleno do direito de passagem e dos direitos das servidões que permitam a circulação, a pé e de carro, às habitações e campos;
- a fixação da indemnização que for liquidada em sede de execução de sentença;
- a fixação de sanção pecuniária compulsória adequada.

Não formularam qualquer pedido no sentido de ser declarado que são proprietárias dos prédios e que esses prédios beneficiam de servidões prediais, com determinadas caraterísticas, que constituem encargo dos prédios de que são proprietárias as rés.
As autoras alegaram factualidade que permitia a dedução destes pedidos (com exceção da atinente à servidão de vistas), mas não os formularam, tendo deduzido apenas os pedidos que anteriormente referimos.
Ora, os pedidos de remoção dos obstáculos ao exercício pleno do direito de passagem e dos direitos das servidões, a fixação da indemnização e a fixação de sanção pecuniária compulsória adequada só podem proceder caso seja declarado que as autoras são proprietárias de prédios que gozam de servidão predial que onera os prédios de que são proprietárias as rés, constituindo a existência destes direitos um pressuposto prévio e necessário do qual decorre o direito de exigir o livre exercício do direito de servidão e a indemnização pela sua violação.
Não tendo as autoras formulado esses pedidos, o tribunal não pode deles conhecer e declarar a sua existência pois tal possibilidade está-lhe vedada pelo disposto no art. 608º, nº 2, do CPC, segundo o qual o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, sendo que a violação deste normativo tem como consequência a nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, que ocorrerá, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Uma vez que a declaração da existência do direito de propriedade das autoras sobre os prédios e a existência de servidões prediais a favor desses prédios impostas como encargo sobre os prédios das rés não constitui matéria de conhecimento oficioso, o tribunal só poderia declarar esses direitos se as autoras tivessem formulado os correspondentes pedidos.
Como tal não sucedeu e a declaração desses direitos constitui um pressuposto prévio e necessário sem a verificação do qual não é possível condenar as rés na remoção dos obstáculos ao exercício pleno do direito de passagem e dos direitos das servidões e no pagamento de indemnização e de sanção pecuniária compulsória, temos de concluir que a ação é efetivamente improcedente, tal como decidido no saneador-sentença recorrido.
Consequentemente, improcede o recurso.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente, são as recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando o saneador-sentença recorrido, embora com fundamentação apenas parcialmente coincidente.
Custas da apelação pelas recorrentes.
Notifique.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

É improcedente a ação em que é formulado pedido de remoção dos obstáculos ao exercício do direito de passagem e de servidão decorrentes de atuação das rés sem que tenha também sido formulado pedido de declaração de que as autoras são proprietárias dos prédios e que os mesmos beneficiam de servidão predial que onera os prédios das rés porquanto a procedência daquele pedido pressupõe necessariamente a existência e declaração destes direitos.
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Guimarães, 4 de abril de 2024

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Maria Gorete Morais
(2º/ª Adjunto/a) Pedro Maurício