Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
326/20.7T8BGC.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Em matéria de velocidade automóvel vigora o principio geral de que o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular dos vulneráveis, às características e estado da via, às condições meteorológicas ou ambientais e a quaisquer outras relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
II - Quanto à circulação dos peões, os utentes mais vulneráveis e desprotegidos na via pública, decorre das normas estradais que devem circular nos passeios ou passagens que lhes estão destinados, podendo ainda, caso estes não existam, utilizar as bermas da estrada, devendo usar a faixa de rodagem apenas para a atravessar e não devendo parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios e as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito.
III - No caso de atropelamento de peão estaremos perante uma concorrência de culpas entre o peão e o condutor, se aquele, tiver infringido a prescrição do n.º 4 do artigo 101º do Código da Estrada e este circular com velocidade excessiva nos termos dos artigos 24º n.º 1 e 25º n.º 1, do mesmo Código.
IV - A violação pelo condutor do veículo automóvel das regras que estabelecem limites para a velocidade de circulação dos veículos, proibindo a circulação com velocidade excessiva, apresenta-se com um grau de gravidade bastante superior ao da violação, pelo falecido peão, das normas que obrigam as pessoas a, por regra, não transitarem pela faixa de rodagem, e a não pararem na faixa de rodagem, sendo, por isso, de sufragar o juízo de adequação e proporcionalidade formulado pelo tribunal a quo ao repartir as culpas em 1/3 para o peão e 2/3 para o condutor, reduzindo, nessa medida, a indemnização devida.
V- Não existe qualquer motivo para reduzir o montante de €20.000,00 fixado pelo dano não patrimonial sofrido pela vítima entre o momento do acidente e o momento da morte num caso em que o menor ficou imediatamente prostrado no chão, a esvair-se em sangue, numa angústia inenarrável, e se, pese embora lhe tivessem sido prestados todos os cuidados médicos e medicamentosos, atenta a gravidade das lesões corporais sofridas, veio a falecer por volta das 16 h 35 m do mesmo dia e sentiu, durante alguns minutos, dores indiscritíveis, desde o embate violento com o veículo até à sua queda desamparada no pavimento, onde ficou prostrado em sofrimento indiscritível e angústia agonizante, até sofrer uma paragem cardio-respiratória e subsequente falecimento, apercebendo-se que a sua vida estava a fugir-lhe.
VI- De igual modo inexiste qualquer motivo para reduzir a indemnização de €40.000,00 arbitrada a cada um dos progenitores pelos danos morais decorrentes da morte do seu filho menor, considerando a sua idade à data do atropelamento e os efeitos de ordem psicológica decorrentes para os pais.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA e mulher BB, ambos residentes na Estrada ..., ..., ..., ..., ..., vieram intentar ação de processo comum contra EMP01..., S.A., com sede na Avenida ..., ... (que, por fusão/incorporação, passou a denominar-se EMP01..., ..., SA – SUCURSAL EM PORTUGAL) pedindo que se condene a Ré a pagar a quantia global de €224.292,92 a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro, a quantia a liquidar em ampliação do pedido ou em execução de sentença e melhor descrita nos artigos 97) e 98) da petição inicial e os juros moratórios calculados ao dobro da taxa legal e contados desde a citação até efetivo e integral pagamento, atento o disposto no artigo 40.º, n.º 2 do Dec. Lei n.º 291/2007 de 21-8.
Para tanto e em síntese, alegam que o seu filho, CC, à data com 16 anos, solteiro e sem descendentes, no dia 30/12/2018, pelas 16 h, quando se encontrava na EN  n.º ...5, ao quilómetro 236,900 (vulgarmente denominada de “...”, localidade e freguesia ..., concelho ...), foi mortalmente atropelado pelo veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-PL, segurado pela Ré, conduzido por DD e propriedade de EE.
Que no local a EN tem um traçado reto com uma extensão superior a oitocentos metros de comprimento, com 6,10 m de largura e composta por duas hemi-faixas de sentidos opostos, com uma velocidade limitada a 90 km/h no sentido seguido pelo PL e ladeada por diversas casas de habitação, as quais pertencem à localidade de ..., sem qualquer passadeira para peões; que não existiam obstáculos na via, nem mais nenhum veículo circulava mas, atenta a posição do sol, existia encadeamento solar para quem circulasse no sentido de marcha do PL não permitindo ao seu condutor ter uma visibilidade superior a 25 metros.
Mais alegam que, quando o malogrado CC iniciou a travessia da faixa de rodagem, no sentido direita/esquerda, atento o sentido de marcha do PL, este último encontrava-se, nesse momento, a mais de 80/90 metros, seguindo a pelo menos 100 km/h e que o CC, quando tinha percorrido apenas 2/3 passos na faixa, foi violenta e mortalmente embatido pela frente esquerda do PL e projetado, vindo a cair prostrado no pavimento.
Alegam ainda que a culpa pelo atropelamento foi, única e exclusivamente, do condutor do PL que seguia a velocidade excessiva, quer face ao limite geral de velocidade, quer face às condições de visibilidade, indo distraído.
A Ré apresentou contestação impugnando a versão do acidente e alegando, ao invés, e em suma, que o condutor do PL seguia a velocidade moderada, com o sol a incidir frontalmente sobre o condutor, o que dificultava a sua tarefa de condução, ao contrário do malogrado peão, que, se olhasse para a sua esquerda, donde vinha o PL, não teria qualquer perturbação decorrente da incidência da luz solar e teria verificado a presença do PL na EN ...5 a 296 m.
Mais alega que o peão, sem olhar para a sua esquerda, iniciou a travessia da EN quando o PL já se encontrava a 20 m, cortando-lhe, pois, subitamente, a trajetória, de tal forma que o condutor do PL não pode evitar o embate, que ocorreu em plena faixa da estrada, a 1 m da berma direita, atento o sentido de marcha do PL, e com o lado frontal direito do PL.
No mais, a Ré impugna os danos e invoca que teve de aguardar o desfecho do inquérito criminal para poder decidir sobre a assunção de responsabilidade e que face ao arquivamento pelo Ministério Público, declinou-a, então.
Citado o ISS para deduzir pedido de reembolso, nada deduziu.
Foi realizada a audiência prévia, e proferido despacho saneador, bem como despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.

Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:

“Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, nos termos sobreditos. Consequentemente:
1. Condeno a Ré a pagar aos AA, a título de danos não patrimoniais e a repartir em partes iguais por estes, a quantia global de 134.000€ (cento e trinta e quatro mil euros) a que acrescem juros de mora a contar da presente sentença, á taxa legal de 4%, até integral pagamento.
2. Condeno a Ré a pagar aos AA a quantia global de 1039,57€ (mil e trinta e nove euros e cinquenta e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais, a que acrescem juros de mora á taxa de 4%, a contar da citação e até integral pagamento.
 3. No mais peticionado, absolve a Ré.
*
Custas por AA e Ré, na proporção de decaimento.
*
 Registe e notifique”.

Inconformados, apelaram os Autores da sentença concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“(i) O presente recurso vai interposto contra a douta sentença, que julgou a presente ação de processo comum parcialmente procedente, considerando o facto de, no entendimento do tribunal a quo, ter existido um comportamento do peão que veio a concorrer para a verificação do atropelamento de que o mesmo foi vítima;
(ii) Salvo o devido respeito, a decisão recorrida incorreu em manifesto erro de julgamento, já que, o acidente de viação em apreço nos presentes autos ficou a dever-se exclusivamente à responsabilidade do condutor do veículo automóvel de matrícula PL, seguro na Ré;
(iii) Causa adequada na produção do acidente é a condição sem a qual o mesmo não se teria verificado, é a condição com relevo especial no concreto acidente;
(iv) Por isso, para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (sine qua non) do dano; é necessário ainda que, em abstrato ou em geral, o facto seja uma causa adequada do dano. Há que escolher, entre os antecedentes históricos do dano, aquele que, segundo o curso normal das coisas, se pode considerar apto para o produzir, afastando aqueles que só por virtude de circunstâncias extraordinárias o possam ter determinado;
(v) Para apurar se o facto é causa abstrata do evento, e segundo um juízo abstrato de adequação, deve atender-se apenas às circunstâncias reconhecíveis à data do facto por um observador experiente;
(vi) Mais, e para além dessas, devem ser ainda incluídas as circunstâncias efetivamente conhecidas do lesante na mesma data, posto que ignoradas das outras pessoas;
(vii) Em princípio, um facto só deve considerarse causa adequada dos danos que constituem uma consequência normal, típica, provável dele;
(viii) A causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano. É esse processo concreto que há-de caber na aptidão geral ou abstrata do facto para produzir o dano;
(ix) No caso da responsabilidade extracontratual tem de se atender ainda ao fim da norma legal;
(x) O artigo 101.º, n.º 4 do Código da Estrada visa garantir a segurança e boa circulação dos veículos que transitem pela faixa de rodagem; 
(xi) A ratio da norma pretende assim evitar que um peão durante a realização da travessia de uma faixa de rodagem efetue qualquer manobra imprevista (como parar, mudar de sentido, recuar, etc.), por forma a que os condutores dos veículos automóveis saibam sempre com o que contar.
(xii) É certo que no caso dos autos, podermos afirmar que, pelo menos em tese, poderia estar em causa a segurança do veículo de matrícula PL, quando o peão, durante a realização da travessia, parou na faixa de rodagem, mas, na prática, essa segurança só seria posta em causa se o condutor do veículo de matrícula PL tivesse ficado surpreendido pela súbita realização daquele movimento (parar) por parte do peão;
(xiii) Tal como veio a ficar demonstrado nos autos, o condutor do veículo automóvel apenas se terá apercebido da presença do peão quando se encontrava a cerca de 25 metros, em face do encadeamento solar a que esteve sujeito desde que passou a circular na “...”;
(xiv) Ou seja, ainda que o peão não tivesse parado o certo é que, o condutor do veículo automóvel teria ficado sempre surpreendido com a presença do peão a realizar a travessia da faixa de rodagem; (xv) Como o condutor do veículo de matrícula PL transitava a uma velocidade superior a 90 km/h e como o mesmo não tinha qualquer visibilidade para a sua frente, designadamente para uma distância superior a 25 metros, pelo que foi apenas esse o comportamento que contribuiu de forma necessária, adequada e exclusiva para a eclosão do trágico atropelamento; 
(xvi) Tanto assim foi, que o tribunal recorrido considerou provado que foi pelo facto de não existirem condições de visibilidade que o condutor do veículo de matrícula PL ficou surpreendido pela presença do peão CC na faixa de rodagem;
(xvii) Destarte, não foi pelo facto de o peão estar parado na faixa de rodagem que o condutor do veículo de matrícula PL foi surpreendido, mas antes foi devido ao facto de o mesmo não se ter apercebido da presença do peão na faixa de rodagem (parado ou a transitar); 
(xviii) Se o malogrado peão não tivesse parado teria sido igualmente colhido, já não com o canto direito do veículo de matrícula PL, mas antes com a sua frente ou com o seu canto esquerdo;
(xix) Apesar do condutor do veículo de matrícula PL não ter visibilidade para uma distância superior a 25 metros, o certo é que o condutor do veículo automóvel não se coibiu de circular a uma velocidade nunca inferior a 92 km/h, mesmo que tal implicasse não ter visibilidade para a estrada, a qual se descrevia em reta com mais de 800 metros de extensão, a qual se encontrava ladeada por diversas casas de habitação, as quais pertenciam à localidade de ... e cujas vias de acesso permitem aceder à faixa de rodagem, não existindo em toda essa reta, qualquer passadeira para peões;
(xx) Se em vez do peão CC estivesse naquele local um qualquer outro obstáculo, ainda que devidamente sinalizado, o veículo de matrícula PL sempre iria colidir com o mesmo, já que, a velocidade imprimida e as condições de visibilidade da estrada, nunca lhe permitiriam desviar-se do mesmo, pese embora, existisse mais de 4,5 metros de via livre à sua esquerda e não circulasse qualquer outro veículo em ambos os sentidos de marcha;
(xxi) Pelo que, atentas as concretas circunstâncias que estiveram na génese deste trágico atropelamento, não poderemos nunca falar em violação do fim da norma legal em causa por parte da malograda vítima mortal;
(xxii) O que vale por dizer que a segurança do condutor do veículo de matrícula PL (que é o bem jurídico que a norma do art. 101.º, n.º 4 do CE visa proteger) não foi posta em causa pelo comportamento do malogrado peão, quando parou naquele local específico da faixa de rodagem;
(xxiii) Ao contrário, o comportamento do condutor do veículo de matrícula PL era idóneo a colher a vítima, estivesse a mesma parada ou em movimento (designadamente a efetuar a travessia), já que nada obstava à realização da pretendida manobra;
(xxiv) Ainda que a conduta do peão CC tivesse sido diferente, não teria obstado à verificação do acidente;
(xxv) O facto de um peão parar durante a realização da travessia de uma faixa de rodagem não é, em abstrato, condição de um qualquer atropelamento, salvo se tal comportamento for contemporâneo com a verificação da ocorrência das circunstâncias supra descritas – como seja, por exemplo, a circulação a uma velocidade adequada às condições de visibilidade da estrada – que, in casu, não se verificaram;
(xxvi) Nesses termos, a eventual contraordenação cometida pela infeliz vítima mortal não é causal do acidente em análise, pelo que não se poderá falar em repartição de culpas;
 (xxvii) A única atuação ilícita, culposa e causal deste trágico atropelamento cabe exclusivamente ao condutor do veículo automóvel, por desrespeito dos comandos normativos constantes dos artigos 3.º, n.º 2, 11.º, n.º 2, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alíneas c) e h) e 27.º, n.º 1, todos do Código da Estrada;
(xxviii) Termos em que, deverá o tribunal ad quem revogar o segmento da douta sentença recorrida que considerou que o comportamento do peão teria contribuído em cerca de 1/3 para a ocorrência do atropelamento, considerando, em alternativa, que o mesmo se deveu exclusivamente ao comportamento do condutor do veículo de matrícula ..-..PL, não havendo assim qualquer motivo para se reduzir a indemnização fixada pelo tribunal a quo;
(xxix) Ao não os interpretar da forma acima assinalada, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 483.º, 487.º n.º 2 e 562.º do Código Civil e artigos 3.º, n.º 2, 11.º, n.º 2, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alíneas c) e h), 27.º, n.º 1 e 101.º, n.º 4, todos do Código da Estrada”.
 Pugnam os Recorrentes pela procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que considere que a o acidente de viação em apreço nos presentes autos se ficou a dever, exclusivamente, à responsabilidade do condutor do veículo automóvel de matrícula PL, seguro na Ré.

A Ré veio interpor recurso subordinado, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“1 - Os Peritos FF e GG, cujos esclarecimentos o Tribunal decidiu valorar para a fixação dos nºs 19º e 20º dos Factos Assentes, designadamente quanto à posição em que o menor terá sido embatido, produziram os seus relatórios e respetivos juízos de valor numa perspetiva eminentemente estática, com base em documentos e outros indícios, não tendo, evidentemente, assistido ao embate do veículo no peão.
2 - Então, como é que, verdadeiramente, se pode dar como provado que o menor estava parado e de costas para o veículo? É que, em matéria de acidentes de viação, numa fração de segundo, tudo pode acontecer, ou, pelo menos, muita coisa pode acontecer.
3 - Que os Senhores Peritos se possam pronunciar, quer quanto à velocidade do veículo, quer quanto às lesões que o embate provocou, é admissível e atendível.
4 - MAS MAIS DO QUE ISSO NÃO, designadamente quanto à factualidade dada como provada nos artºs 19º e 20º.
5 - De sorte que se o A. optou por abandonar a atividade privada, não é por impossibilidade de a exercer, mas por escolha própria, pelo que não poderá ser a recorrente responsabilidade pela correspondente perda de rendimentos, a qual não é devida ao acidente versado nos autos.
6 - Quem estava a acompanhar o menor falecido era a testemunha HH, sua prima.
7 - Conforme se retira do seu depoimento supra transcrito, a testemunha HH, do atropelamento, NADA VIU.
8 - Não sabe como ele aconteceu.
9 - Não sabe se o menor estava de costas ou de lado, parado ou em movimento.
10 - O que se sabe é que o menor estava na faixa de rodagem quando foi atropelado,
SEM QUALQUER JUSTIFICAÇÃO PARA TAL.
11 - E SEM QUE NADA O FIZESSE PREVER.
12 - Não obstante não ter sido presenciado por ninguém, o certo é que, em face do local onde o atropelamento ocorreu, este só podia ter ocorrido conforme vem descrito nas alíneas n), o) e p) dos Factos Não Provados.
13 - Desde logo pelas regras da experiência comum, o acidente só podia ter ocorrido quando o menor se encontrava a atravessar a estrada, da direita para a esquerda, portanto, com o seu lado esquerdo virado para o veículo atropelante, e em perfeito e constante movimento.
14 - Logo, não se encontrava, nem parado, nem de costas, o que, de qualquer forma, nunca faria sentido.
15 - E, portanto, o que aconteceu foi que, depois da testemunha HH ter virado as costas, o menor meteu a atravessar a estrada, sem qualquer cuidado nem atenção, jºa quando o veículo se encontrava muito próximo.
16 - Assim sendo, deverá a matéria de facto ser alterada nos moldes supra expostos
17 - Por consequência, deve o peão atropelado ser considerado o único responsável pela produção do sinistro dos autos.
18 - Mas, ainda que assim se não entenda, mantendo-se inalterada a matéria de facto, sempre a demandada deveria ter sido absolvida do pedido, com base na culpa exclusiva do menor atropelado.
19 - Não só o menor não tinha qualquer justificação ou propósito para se colocar na faixa rodagem, ainda por cima de costas para o trânsito, como foi o menor que se meteu à frente do veículo que o veio a atropelar.
20 - Não foi pela velocidade a que seguia o veículo, em local onde a velocidade permitida é de 90 Km/h, que ocorreu o atropelamento, não havendo, pois, qualquer nexo causal entre a velocidade a que seguia o veículo e o atropelamento.
21 - Se o menor não estivesse na estrada, como não deveria ter estado, o veículo tinha passado sem sequer lhe tocar, quanto mais atropelar.
22 - Quanto ao montante atribuído pelo dano moral, encontra-se fixado com manifesto exagero, até porque não existem nos autos qualquer suporte probatório que sustente ou caucione os nºs 28º, 31º e 32º, que deverão ser dados como não provados.
23 - Não existe nada nos autos, nem por depoimento testemunhal, nem tão pouco por documento, que demonstre que o menor tivesse sofrido ou sequer que tivesse algum momento de consciência.
24 - Devendo, por conseguinte, improceder tal pedido ou, se assim se não entender, ser reduzido à quantia de 5.000,00 €, mais consentânea e de acordo com a Jurisprudência.
25 - Mas o dano não patrimonial próprio de cada um dos demandantes se encontra manifestamente excessivo.
26 - É preciso não esquecer que aos demandantes já foi arbitrada uma quantia de 100.000,00 € pelo direito à vida do menor.
27 - Fixar em 80.000,00 € (80% do direito à vida) o dano moral é claramente subverter os princípios da equidade e da proporcionalidade, devendo a indemnização ser reduzida para não mais do que 30.000,00 €.
28 - A Douta Sentença sob censura violou as normas dos artigos 483.º e ss. E 562º de ss., todos do Código Civil”.
Pugna a Recorrente pela procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida.
Os Autores apresentaram contra-alegações sustentando que a Ré não cumpriu os ónus impostos pelo artigo 640º n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2, alíneas a) e b) do Código de processo Civil (de ora em diante designado apenas por CPC), devendo ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto e, de qualquer forma, ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos Recorrentes, são as seguintes:
A) Relativamente ao recurso interposto pelos Autores:
1 - Como questão prévia, saber se deve ser admitida a junção do documento apresentado pelos Autores;
2 - Saber se deve ser alterada a decisão quanto à responsabilidade pela produção do acidente.
B) Relativamente ao recurso subordinado interposto pela Ré:
1 - Saber se houve erro no julgamento da matéria de facto, aferindo-se previamente se deve ser rejeitado o recurso da impugnação da matéria de facto por incumprimento dos ónus previstos no artigo 640º do CPC;
2 - Saber se deve ser alterada a decisão quanto à responsabilidade na produção do acidente;
3 - Saber se deve ser alterado o montante indemnizatório atribuído a título de dano não patrimonial sofrido pela vitima (dano intercalar) e de dano não patrimonial próprio de cada um dos Autores.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:
1. Os AA. são os progenitores de CC (doravante, CC), nascido a ../../2002.
2. CC faleceu no dia ../../2018, no estado de solteiro e sem deixar descendentes, sendo os AA os seus únicos e universais herdeiros.
3. No dia ../../2018, pelas 16 h, na EN ...5, ao km 236,900, vulgarmente denominada de “...”, na localidade e freguesia ..., concelho ..., ocorreu um acidente de viação em que interveio o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-PL, ... (doravante, PL), conduzido por DD e propriedade de EE, e o CC.
4. O PL estava a ser conduzido com conhecimento e autorização da proprietária do mesmo, que, no dia e hora do acidente, seguia no PL, como passageira. 4-A. II era o condutor habitual do PL.
5. O referido acidente de viação consubstanciou-se num atropelamento.
6. A EN ...5, à data dos factos e no local do acidente, tinha um traçado reto, com uma extensão superior a 800 m e de relevo ascendente, com cerca de 4% de inclinação, atento o sentido de marcha .... 
7. Essa artéria tinha cerca de 6,10 m de largura era constituída por dois corredores de circulação, cada um afeto ao seu sentido de marcha, de piso betuminoso, o qual se encontrava em razoável estado de conservação.
8. Ambos os sentidos de marcha encontravam-se devidamente delimitados ao centro por uma linha longitudinal descontínua.
 9. Existindo bermas em ambos os lados da faixa de rodagem, com cerca de 4050 cms de largura, em pavimento betuminoso, seguido de um prolongamento da berma, em terra batida, irregular e com vegetação rasteira.
10. Nesse dia, o tempo estava bom e o piso seco.
11. Não existiam obstáculos na via, mas, atenta a posição do sol, existia encadeamento solar para quem circulasse no sentido de marcha ..., já que o sol se encontrava de frente, não permitindo ao seu condutor ter uma visibilidade superior a 25 metros.
12. O limite máximo de velocidade para aquela artéria era de 90 km/h para os dois sentidos de trânsito.
13. Nessa via existem diversas casas de habitação, as quais pertencem à localidade de ..., sendo certo que as suas vias de acesso permitem aceder diretamente à faixa de rodagem, não existindo em toda essa recta, qualquer passadeira para peões.
14. Naquele momento e nas proximidades do local do atropelamento, não circulava, no sentido e á frente do PL, qualquer outro veículo na via, nem em sentido contrário.
15. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas supra, o veiculo PL circulava pela EN ...5, no sentido ....
16. Pela hemi-faixa de rodagem mais à direita.
17. Animado de uma velocidade superior a 90 km/h e, concretamente, de 92 km/h, sendo que, no momento do embate/atropelamento, depois de ter iniciado a travagem, a sua velocidade situava-se nos 74 km/h.
17-A. A velocidade máxima a que o condutor do PL poderia circular, para evitar o atropelamento, face á distância de visibilidade de 25 m, referida em 11), seria de cerca de 49 km/h. A velocidade máxima a que o condutor do PL poderia circular, para evitar o atropelamento, face á distância de visibilidade de 40,6 m, seria de cerca de 67 km/h.
17-B. O PL, em condições normais de visibilidade, à velocidade a que seguia, e referida em 17), para se imobilizar, necessitava de 65,4 m; se circulasse a 90 km/h, necessitaria de 62,9 m.
18. Por seu turno, o peão CC, que trajava roupa escura, designadamente, calças e blusão pretos e camisola cinzenta escura, encontrava-se na companhia de HH junto ao veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-ES, o qual se encontrava estacionado, fora da faixa de rodagem, numa pequena reentrância de terra batida, que prolongava a berma direita, considerando o sentido de marcha ....
18-A. Quando ambos se dirigiam para a faixa de rodagem, a fim de iniciarem a sua travessia, HH, porque se apercebeu da falta da carteira, voltou atrás para a ir buscar, abrindo a porta dianteira do veículo ES, e dobrou-se para pegar a carteira.
19. Entretanto, CC deu 2-3 passos, entrando 1-1,3 m dentro da faixa de rodagem, e aí se imobilizou, de costas para o trânsito no sentido ..., a fim de aguardar o regresso de HH.
19-A. Quando CC se encontrava imobilizado, como referido em 19), o PL encontrava-se a uma distância não inferior a 40,6 m.  19-B. Por causa do referido em 11), o condutor do PL ficou surpreendido pela presença do peão CC na faixa de rodagem.
20. Quando se encontrava na posição referida em 19), CC ouviu uma travagem brusca, e iniciou o gesto de se virar para a sua esquerda, quando é violentamente embatido pela esquina da frente direita (ótica direita) do PL.
20-A. Quem estivesse imobilizado na berma direita da EN ...5, atento o sentido de marcha ..., perpendicularmente à estrada, e olhando para a esquerda, em direção a ..., não tinha qualquer perturbação decorrente da incidência da luz solar.
21. Compelido pela violência do embate, o corpo do CC é projetado para o ar, vindo a cair sobre o para-brisas do veículo atropelante (igualmente sobre o seu lado direito) e apanhando também o pilar A do PL, partindo o vidro para-brisas e deformando o referido pilar.
22. Consequentemente, em face da energia cinética inerente à mencionada travagem brusca, o corpo do malogrado CC veio a ser transportado alguns metros pelo veículo atropelante, acabando por ser projetado para o pavimento da sobredita artéria, a uma distância de 31,5 m, local onde veio a ficar prostrado, depois de aí cair de forma totalmente desamparada.
23. O PL continuou a sua marcha, vindo a imobilizar-se a uma distância não apurada, mas não inferior a 20 m.
24. O condutor do PL tinha mais de 4,5 m de via livre á sua frente, contando com a hemi-faixa contrária, para evitar o peão.
25. A responsabilidade pelos prejuízos causados pela circulação do PL havia sido transferida para a Ré, através da celebração de um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...80.
26. O acidente de viação em crise nos presentes autos veio a ser devidamente participado à Ré, em 2-1-2019, a qual respondeu nos termos constantes da missiva de fls. 47; por causa do atropelamento, correu um inquérito-crime, em que foi arguido o condutor do PL, que foi arquivado. 
27. Como causa direta e necessária da referida ocorrência, o filho dos AA. veio a sofrer lesões corporais graves.
28. Tendo ficado imediatamente prostrado no chão, a esvair-se em sangue, numa angústia inenarrável.
29. Atenta a gravidade da situação, foram imediatamente acionados os meios técnicos de socorro, tendo-se deslocado ao local uma ambulância dos BV de ... e uma equipa do INEM juntamente com a VMER.
30. Após a sua chegada, os bombeiros e a equipa do INEM procederam às manobras de suporte básico de vida e demais cuidados médicos julgados necessários pelas equipas médicas. No entanto, e pese embora lhe tivessem sido prestados todos esses cuidados médicos e medicamentosos, o certo é que o mesmo, atenta a gravidade das lesões corporais sofridas, veio a falecer por volta das 16 h 35 m desse mesmo dia.
31. O peão CC sentiu, durante alguns minutos, dores indiscritíveis, desde o embate violento com o PL até á sua queda desamparada no pavimento, como descrito em 20), 21) e 22), onde ficou prostrado em sofrimento indiscritível e angústia agonizante, até sofrer uma paragem cardio-respiratória e subsequente falecimento.
 32. Apercebeu-se que a sua vida estava a fugir-lhe.
33. O peão CC era um filho exemplar e dedicado. Era um rapaz feliz, com uma vida toda pela frente que, por um lado, gostava de fazer o que qualquer jovem daquela idade gostava de fazer, designadamente, conviver com os colegas e tinha uma intervenção social relevante na comunidade onde estava inserido (naquele fatídico dia estava a realizar um peditório para o “JJ”).
34. CC faleceu no estado de solteiro, e dedicava todo o seu afeto, amor, carinho e ternura aos seus progenitores de quem era muito amigo, e, bem assim, ao seu irmão mais novo, com quem formavam uma família muito unida e feliz, harmoniosa e cúmplice.
35. A sua falta provocou e vai continuar a provocar por toda a vida dos aqui AA uma profunda tristeza, consternação e pesar, sendo uma verdadeira lacuna nas suas vidas que jamais será preenchida, tendo mergulhado numa áurea de tristeza e descrença.
36. O sofrimento dos AA permanece intenso, pois estes revivem, quase diariamente, vários episódios passados com o seu malogrado filho, tanto mais quanto o fatídico acidente ocorreu perto da sua residência, pelo que passam várias vezes por dia no local onde o seu filho CC veio a perder a vida.
37. Essas revivescências têm afetado muito os AA, designadamente ao nível psicológico, tendo perdido a alegria de viver; andam abatidos, deixaram de conviver socialmente, raramente saem de casa, chorando amiúde.
38. Os AA andam envolvidos numa áurea de tristeza ímpar, estando a aprender a viver com o facto de já não terem consigo o seu filho que tanto amavam; foram ambos seguidos em psicologia e o A/marido em psiquiatria.
39. Por causa do falecimento do seu filho CC, os AA estiveram de baixa médica. A A/mulher faltou ao serviço, como professora, em consequência de tal baixa, entre ../../2019 e ../../2019, deixando de auferir a quantia de 145,27€. O A/marido faltou ao serviço, na GNR, em consequência de tal baixa, entre a data do acidente e fevereiro de 2020, deixando de auferir 2.596,06€.
40. Com a morte de seu filho CC, os AA tiveram, ainda, as seguintes despesas: 1.210,00€ com o funeral; 150,00€ com a sepultura/campa; 191,59€ com a feitura da escritura de habilitação.
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:
a) a EN ...5 não tinha qualquer marcação nas extremidades,
b) no sentido ... – ..., o limite máximo de velocidade era de apenas 50 km horários, em face da existência de sinalização vertical existente no local,
c) a velocidade do PL não era inferior a 100 km/h,
d) o PL seguia a uma velocidade situada entre os 60 e os 70 km/h,
e)… ou entre os 75 e os 85 km/h,
f ) no momento do acidente e na ..., não havia qualquer trânsito, seja em que sentido de marcha fosse,
g) HH era irmã do CC,
h) CC estava imobilizado junto ao ES,
i) HH, apercebeu-se da falta do telemóvel,
j) porque o PL se encontrava a mais de 80/90 metros e porque não circulava mais nenhum outro veículo automóvel em qualquer dos dois sentidos de marcha, o peão resolve iniciar a travessia da faixa de rodagem da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha do veículo automóvel e estava a atravessar a faixa de rodagem quando é embatido pelo PL,
k) CC é violentamente embatido pela esquina da frente esquerda do PL (farol do lado esquerdo),
l) CC estava imobilizado na berma direita da EN ...5, atento o sentido de marcha ..., perpendicularmente á estrada,
m) o peão atropelado, se olhasse para a sua esquerda, conseguia ver o PL a pelo menos 296 m,  
n) Quando o PL se aproximou do local onde veio a ocorrer o atropelamento, encontrando-se a cerca de 20 m, foi o seu condutor súbita, brusca e inesperadamente, surpreendido pela conduta do peão, que se fez á estrada, iniciando a a travessia da EN sem olhar para a esquerda e cortando-lhe a linha de marcha,
o) o condutor do PL ainda tentou uma manobra de salvamento,
p) o embate ocorreu porque o PL se encontrava muito próximo, a cerca de 20 m, quando o peão iniciou a travessia da faixa de rodagem,
p) CC foi projetado a 50 m,
q) a Ré, pese embora as evidências, não quis tomar posição sobre o acidente,
r) CC, depois de projetado para o chão, ficou a gemer numa angústia inenarrável,
s) CC ficou a agonizar durante todo o período temporal em que foi alvo de manobras de assistência médica, agonia que apenas cessou quando veio a falecer e que durou cerca de 35 mn,
t) CC gostava de jogar futebol, andar de bicicleta, correr, ir ao ginásio, e, igualmente de assumir algumas responsabilidades, como ajudar o pai a realizar alguns trabalhos agrícolas, era o representante dos alunos no Conselho Geral da Escola ... e já namorava,
u) o sofrimento e agonia dos AA tem-se agravado paulatinamente com o decurso do tempo,
v) o A/marido mantém-se de baixa.
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3.2. Questão prévia: da admissibilidade da junção do documento apresentado pelos Autores
Os Autores vieram requerer a junção aos autos da certidão do despacho de acusação deduzida no âmbito do Processo de Inquérito n.º 62/18.... contra o condutor do veículo ligeiros de passageiros de matrícula ..-..-PL, a qual tem por objeto o acidente de viação em apreço nos presentes autos, ao abrigo do disposto nos artigos 651º, n.º 1 e 423º, ambos do CPC.
Alegam para o efeito que a mesma apenas veio a ser deduzida no passado dia 31/01/2024, pelo que lhes era completamente impossível ter procedido à sua junção até ao encerramento da discussão em primeira instância, entendendo ainda que a sua junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância, pois o despacho de arquivamento constituiu o esteio da defesa apresentada pela Recorrida e veio igualmente a constar do elenco dos meios de prova que vieram a ser considerados pelo tribunal recorrido na motivação da decisão ora impugnada, pelo que, tendo sido agora alterada essa decisão, impunha-se que a mesma viesse ao conhecimento do tribunal ad quem, servindo, assim, como mais um elemento de prova, cuja relevância será livremente apreciada.
A Ré, no que toca a este documento, veio impugnar quer o conteúdo da acusação, quer o alcance probatório pretendido, desde logo porque não é, nem foi, parte no inquérito; mais sustenta que a decisão que consta da acusação não constitui qualquer caso julgado para os presentes autos e não alcança a utilidade pretendida com a sua junção.
Vejamos então a admissibilidade da apresentação do documento.
Resulta do preceituado no artigo 651º nº 1 do CPC que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.
Temos para nós como inquestionável que a junção de prova documental “deve ocorrer preferencialmente na 1ª instância, regime que se compreende na medida em que os documentos visam demonstrar certos factos, antes de o tribunal proceder à sua integração jurídica” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, 2014, Almedina, p.191).
Quanto à junção de documentos prevê o artigo 425º do CPC que, depois “do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”, resultando do artigo 423º do mesmo diploma que os documentos deverão “ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes” (nº 1), ou “até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado” (nº 2), ou até ao encerramento da discussão, desse que a sua “apresentação não tenha sido possível ate aquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior” (nº 3).
Assim, e havendo recurso, como acontece no nosso caso, em face do preceituado nos artigos 425º e 651º n.º 1 do CPC, a admissibilidade da junção de documentos depois do encerramento da discussão e na pendência do recurso assume caracter excecional e ocorre apenas em duas situações: a) se a junção do documento não foi possível até àquele momento, isto é, nos casos de impossibilidade objetiva ou subjetiva de junção anterior do documento ou b) se a junção do documento se tornou necessária em virtude do julgamento proferido pela 1ª Instância.
A parte que pretenda juntar documentos nessas circunstâncias deve justificar o carácter superveniente da junção, seja ela de ordem objetiva seja ela de ordem subjetiva (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit, p.191).
Quanto à impossibilidade objetiva a mesma decorre de o documento só ter sido produzido após o prazo-limite previsto no artigo 423º n.º 2 do CPC e a prova da impossibilidade da sua junção aos autos pela parte até àquele prazo limite decorre naturalmente da análise do teor do próprio documento.
Quanto à impossibilidade subjetiva a mesma decorre da parte só ter tido conhecimento da existência do documento ou dos factos a que o mesmo se reporta após o decurso daquele prazo limite, apesar do documento respeitar a factos anteriores ao decurso desse prazo e poder ser anterior ao mesmo; nesta, a prova da impossibilidade da junção do documento no prazo previsto no referido artigo 423º n.º 2 não se basta com a mera alegação que a parte só teve conhecimento da existência do documento após o decurso do prazo, antes deverá ser alegado e provado que o desconhecimento em relação à existência do documento não ficou a dever-se a negligência da parte, uma vez que a impossibilidade pressupõe que o desconhecimento da existência do documento não derive de culpa sua.
No caso concreto, os Recorrentes invocam desde logo a impossibilidade objetiva alegando que a acusação apenas veio a ser deduzida no dia 31/01/2024, pelo que lhes era completamente impossível ter procedido à sua junção até ao encerramento da discussão em primeira instância ocorrida em 08/07/2022.
Analisada a certidão cuja junção é requerida constata-se que efetivamente a acusação foi apenas proferida no dia 31/01/2024, isto é, após o prazo previsto no artigo 423º n.º 2 do CPC e depois do encerramento da discussão.
Assim, em face da impossibilidade objetiva da sua junção dentro do referido prazo, deve ser considerado justificado o carácter superveniente da junção do documento apresentado pelos Recorrentes.
Por outro lado, constata-se que a Ré efetivamente invocou na sua contestação o despacho de arquivamento que havia sido anteriormente proferido no âmbito do Processo de Inquérito n.º 62/18...., constando do ponto 26) dos factos provados que por causa do atropelamento correu um inquérito crime em que foi arguido o condutor do PL e que foi arquivado.
Em face do exposto admite-se a junção aos autos da certidão.
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3.3. Reapreciação da decisão da matéria de facto
3.3.1. Enquadramento preliminar
Iremos começar por apreciar o recurso subordinado interposto pela Ré uma vez que o recurso dos Autores se restringe a matéria de direito e, por razões de coerência lógica, entendemos que se impõe apreciar em primeiro lugar a questão da alteração da decisão de facto e só depois se deverá apreciar a pretendida alteração da decisão quanto à responsabilidade na produção do acidente, sendo que o conhecimento daquela é necessariamente prévio ao conhecimento destas.
Decorre do n.º 1 do artigo 662º do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Vejamos então.
*
3.3.2. Do cumprimento pela Ré/Recorrente do ónus previsto no artigo 640º do CPC
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do CPC que dispõe que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”.
Os Autores nas contra-alegações que apresentam sustentam que a Ré/Recorrente não cumpriu o ónus imposto pelo n.º 1, alíneas b) e c), e n.º 2 alíneas a) e b) deste preceito.
De acordo com o referido artigo 640º é de exigir ao recorrente que obrigatoriamente especifique:
i.  Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
ii. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
iii. Quando a impugnação dos pontos da decisão da matéria de facto se baseie em provas gravadas deverá ainda indicar com exatidão as passagens da gravação relevantes e proceder se o entender à transcrição dos excertos que considere oportunos;
iv. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O legislador impõe de forma expressa ao recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto tal ónus de especificar, e o seu incumprimento implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.
A este propósito escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, Almedina, 2014, p. 133) que o Recorrente “deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem no reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)” mas também que importa que “não se exponenciem os requisitos a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a pretendida reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador” e que, por outro lado, “quando houver sérios motivos para rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto; quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia; ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afetados (…)”.
Temos entendido como essencial que das conclusões formuladas pelo recorrente constem efetivamente os pontos da matéria de facto que impugna; é que são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, que definem as questões a reapreciar pela Relação, pelo que o cumprimento do ónus decorrente do referido artigo 640º (alínea a) do n.º 1) impõe que nas mesmas sejam indicados todos os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar (v. a este propósito, entre vários outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/2019, Relator Conselheiro António Leones Dantas, disponível em www.dgsi.pt, bem como todos os demais que se irão citar).
Por outro lado, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem distinguindo, para efeitos do disposto no referido artigo 640º, a previsão constante das alíneas a), b) e c) do n.º 1 (exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir) considerando que constituem um ónus primário “na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto” (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019, Relatora Conselheira Rosa Tching) da exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, a que se refere a alínea a) do nº 2 e que constitui um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.
Como se afirma no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019, salientando-se ainda que os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, “enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso”.
De qualquer forma, a concretização do ónus de indicação das passagens da gravação deve ser considerada atendendo ao fim ou objetivo, à ratio legis da norma que lhe está subjacente, e que é responsabilizar o recorrente pelas afirmações em que funda o seu recurso, sujeitando-o, no limite, à disciplina legal da litigância de má-fé, e impedir também impugnações da decisão da matéria de facto sem um mínimo de concretização e de assento na prova pessoal produzida em audiência.
Assim, o cumprimento do ónus de indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser analisado casuisticamente e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não se justificando a imediata e liminar rejeição do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto; aliás, a indicação de forma cirúrgica de partes do depoimento, com especifica menção  à concreta passagem da gravação, pode nem corresponder à forma como o depoimento da testemunha foi prestado, ao contexto em que a resposta foi dada e a pergunta formulada, ou aos subsequentes esclarecimentos que foram prestados, designadamente pelo confronto com prova documental, enfim de todo o enquadramento que se estabelece no decurso do depoimento da testemunha e que muitas vezes as vezes nem sequer deve (pode) ser extrapolado para afirmações isoladas e delimitadas, que comprometem na maior parte dos casos toda a lógica do depoimento.
Como já referimos, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o n.º 2, alínea a), e tendo por base o principio da proporcionalidade, a imediata rejeição só se justificará nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.
Do mesmo modo, não deve determinar a imediata rejeição do recurso o facto do recorrente proceder à impugnação por “blocos de factos” quando “os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão revelando-se alguns deles incindíveis e o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua análise um esforço anómalo, superior ao normalmente suposto” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/04/2023, Processo n.º 2054/21.7T8BRG.G1.S1, Relator Sousa Pinto).
Importa também ter presente o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023, de 17 de outubro de 2023 (publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 14/11/2023) que uniformizou jurisprudência no sentido de que “[n]os termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa”.
In casu, analisadas as alegações apresentadas pela Recorrente ressalta que delas constam os pontos da matéria de facto impugnados e que pretende ver alterados, constando do corpo das alegações de forma expressa o sentido da decisão que pretende seja proferida.
Quanto aos concretos meios probatórios que em seu entender impunham essa decisão, importa distinguir a alegação da Recorrente relativamente aos pontos 19) e 20) dos factos provados e n), o) e p) dos factos não provados, relativamente aos quais indica expressamente os meios probatórios, designadamente as declarações do Perito FF e da Dr.ª GG, e da prima do falecido menor HH, tendo ainda procedido à transcrição das partes dos depoimentos com indicação das passagens da gravação.
Quanto ao ónus de indicar com exatidão as passagens da gravação verificamos que efetivamente é feita essa indicação com a referida transcrição, mencionando ainda a Recorrente que as passagens em que funda o seu recurso se encontram sublinhadas e em carregado.
Considerando o exposto, entendemos que se deverão considerar cumpridos pela Recorrente os ónus impostos pelo artigo 640º do CPC relativamente à impugnação respeitante aos referidos pontos 19) e 20) dos factos provados e n), o) e p) dos factos não provados, não sendo de rejeitar o recurso na parte respeitante à reapreciação dessa matéria de facto, pelo que iremos conhecer do mesmo.
Já relativamente aos pontos 28), 31) e 32) a Recorrente limita-se nas suas conclusões, bem como no corpo das alegações, a concluir de forma absolutamente genérica que “não existem nos autos qualquer suporte probatório que sustente ou caucione os nºs 28º, 31º e 32º”.
A Recorrente não só não faz referência a qualquer meio de prova, e veja-se que o tribunal a quo baseou a sua convicção em meios de prova que expressamente indicou quanto a estes pontos da matéria de facto, como não formulou qualquer análise crítica sobre a prova produzida, concretamente sobre a indicada na decisão recorrida de forma a justificar e evidenciar o alegado erro de julgamento que àquele imputa, tanto mais que o tribunal a quo justificou de forma crítica e circunstanciada os motivos porque julgou provados estes factos.
Assim, é de concluir que a Recorrente, quanto aos pontos 28), 31) e 32) não respeitou os ónus impostos pelo artigo 640º do CPC impondo-se rejeitar o recurso nessa parte, o que não prejudica o conhecimento da parte restante já referida a que iremos proceder.
Impõe-se por último mencionar que a Recorrente faz referência logo no inicio das suas alegações ao ponto j) dos factos não provados, em conjunto com os pontos n), o) e p), o que entendemos ter ocorrido seguramente por manifesto lapso uma vez que posteriormente, quer no corpo das alegações, quer nas conclusões que formula nunca mais é feita qualquer menção ao ponto j); dir-se-á contudo, que ainda que assim não fosse, e pretendesse a Recorrente efetivamente impugnar o ponto j) dos factos não provados, sempre seria também de rejeitar o recurso nessa parte pois que, quanto ao mesmo, efetivamente não se mostraria cumprido o ónus do artigo 640º do CPC, desde logo porque nenhuma referência é feita ao mesmo nas conclusões apresentadas.
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3.3.3. Da modificabilidade da decisão de facto
Questão distinta, e que de seguida iremos apreciar, é se existe erro no julgamento matéria de facto nos termos invocados pela Recorrente.
O n.º 5 do artigo 607º do CPC preceitua que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, o que resulta também do disposto nos artigos 389º, 391º e 396º do Código Civil, respetivamente para a prova pericial, para a prova por inspeção e para a prova testemunhal; desta livre apreciação do juiz o legislador exclui os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (2ª parte do referido nº 5 do artigo 607º).
Cumpre realçar que a “livre apreciação da prova” não se traduz obviamente numa “arbitrária apreciação da prova”, pelo que impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a “menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655).
 “Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respetiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância” (Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, p. 591).
De facto, dispõe o n.º 1 do artigo 662º do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa; incumbe à Relação, enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) a prova de molde a formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, vier a formar uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto.
No caso concreto, a Recorrente sustenta que houve erro no julgamento da matéria de facto ao serem dados como provados os pontos 19) e 20) e como não provados os pontos n), o) e p).
Para conhecer das questões suscitadas pela Recorrente iremos seguir a mesma ordem e modo como foram colocadas.
Vejamos.

QUANTO AOS PONTOS 19) e 20) DOS FACTOS PROVADOS

A matéria de facto em causa tem a seguinte redação:
“19. Entretanto, CC deu 2-3 passos, entrando 1-1,3 m dentro da faixa de rodagem, e aí se imobilizou, de costas para o trânsito no sentido ..., a fim de aguardar o regresso de HH.
20. Quando se encontrava na posição referida em 19), CC ouviu uma travagem brusca, e iniciou o gesto de se virar para a sua esquerda, quando é violentamente embatido pela esquina da frente direita (ótica direita) do PL”.
Da motivação da sentença recorrida consta o seguinte:
“(…)
Facto nº 19): no doc. de fls. 234 (folha de medições feita pelo Cabo da GNR KK – o qual, de resto, o confirmou em audiência – e que demonstra que o rasto de travagem da roda direita, atento o sentido de marcha do PL, iniciou-se a 1 m da linha de guia e acabou a 1,2 m da mesma), conjugado com o já referido depoimento de HH (quanto ao local do embate – perpendicular ao local de estacionamento da viatura no largo em terra batida, mais precisamente no enfiamento da porta) com as fotos do PL batido (na esquina direita – pisca, ótica – e no para brisas partido, junto ao pilar A, deformado, visíveis nas fotos de fls. 129 v. a 133, 254 v. a 256 v.), com o relatório pericial de fls. 481 a 517 e esclarecimentos em audiência do Perito Eng. FF (o peão atropelado estava a cerca de 1,30 m dentro da faixa de rodagem; o peão estava parado, o que é demonstrado na p. 14 do relatório pericial e foi bem explicado pelo Sr. Perito em audiência: os danos no veículo “vão todos na mesma direção”, ou seja, “são retilíneos” e se estivesse a andar os danos “não o seriam”) e com o relatório pericial da autopsia fls. 366 e esclarecimentos prestados em audiência pela Perita Dra GG (as lesões cranioencefálicas e dos membros superior direito e inferior esquerdo, descritos no relatório, com maior incidência á esquerda, foram causa da morte de CC, e  tais lesões resultaram de violento traumatismo de natureza contundente, como o que pode ter sido devido a acidente de viação; em audiência, a Sra. Perita explicitou que o esfacelo da perna esquerda – a fratura exposta e cominutiva referida no relatório – era “muito grande” e incidiu “na parte posterior e lateral, interna e externa, da perna esquerda” ou seja, “na parte de trás da perna esquerdo, de trás para a frente e enviesada”, concluindo a Sra. Perita que o CC estava de costas, ligeiramente enviesado para a esquerda.
(…)
Facto nº 20): resulta dos danos do lado direito do PL (esquina), remetendo se para o referido em 19) quanto a isso e, também, para o aí referido quanto ao peão estar de costas e enviesado para a esquerda (o que significa que se estava a virar de costas para a sua esquerda quando foi atropelado); sobre a violência do embate já dissemos o suficiente”.
Sustenta a Ré/Recorrente que os Peritos FF e GG produziram os seus relatórios e juízos de valor numa perspetiva eminentemente estática, com base em documentos e outros indícios, não tendo assistido ao embate do veículo no peão pelo que não é possível dar como provado que o menor se encontrava parado e de costas para o veículo, podendo os peritos pronunciar-se apenas quanto à velocidade do veículo e quanto às lesões; e relativamente à testemunha HH, prima do falecido menor, que o acompanhava, também nada viu, não sabendo como aconteceu o atropelamento, se o menor estava de costas ou de lado, parado ou em movimento.
O Perito FF procedeu à perícia destinada à reconstituição técnico-científica do acidente objeto dos presentes autos, juntando aos autos o relatório que consta de fls. 442 e seguintes; conjugando o teor do relatório com os esclarecimentos prestados em audiência, resulta dos mesmos que o peão estaria de costas e parado, considerando as lesões no peão e os danos existentes no veículo que são todos no mesmo sentido, na mesma direção, apresentando um perfil retilíneo, o que não ocorreria se estivesse a andar ou a correr, pois neste caso os danos seriam mais na diagonal (e não na mesma direção); e quanto às lesões no peão, tendo por base o relatório da autopsia, considerando que o “osso está de trás para a frente” o impacto teria de ser nesse sentido.
Do relatório da autopsia (fls. 366 e seguintes), em particular das conclusões que do mesmo consta, verificamos a morte do CC foi devida a lesões cranioencefálicas e dos membros superior direito e inferior esquerdo resultantes de violento traumatismo de natureza contundente, como o que pode ter sido devido a acidente de viação, tendo a Dr.ª GG, nos esclarecimentos prestados em audiência, concretizado poder afirmar que é um embate por trás,  considerando que o esfacelo da perna esquerda era muito grande, apanhando a parte lateral, interna e externa, da perna e posterior, tudo na parte de trás da perna, podendo ter sido também lateral ou ligeiramente lateral (do lado esquerdo), mas sempre de trás para a frente, pelo que o CC estava de costas ou um bocadito enviesado.
Assim, ainda que os referidos Peritos não tenham, obviamente, assistido ao embate do veículo no peão, retiraram de forma clara e legitima em face dos danos existentes no veículo e das lesões apresentadas pelo peão, a conclusão de que o CC no momento do atropelamento tinha de estar parado e de costas ou ligeiramente enviesado, pois se estivesse a andar ou a correr e estivesse de frente os danos existentes no veículo e as lesões apresentadas pelo CC não seriam os mesmos.
Do exposto decorre que, ainda que em matéria de acidentes de viação numa fração de segundos muito possa acontecer como sustenta a Recorrente, no caso concreto os danos existentes no veículo e as lesões no peão, permitem concluir que no momento do atropelamento o peão tinha de estar necessariamente de costas ou ligeiramente enviesado (veja-se que o esfacelo da perna esquerda era muito grande e na parte de trás da perna), e parado, o que também vai de encontro ao declarado pela testemunha HH, prima do CC que, não obstante não ter assistido ao concreto momento do atropelamento (por se encontrar curvada para dentro do carro que estacionara), esclareceu que momentos antes se preparavam ambos para atravessar a estrada quando reparou que se tinha esquecido da carteira no carro, tendo-lhe dito “espera ai que eu vou buscar a minha carteira”.
Não vemos, por isso, que deva ser alterada ou julgada não provada a matéria constante dos pontos 19) e 29) dos factos provados.

QUANTO AOS PONTOS n), o) e p) DOS FACTOS NÃO PROVADOS

A matéria de facto em causa tem a seguinte redação:
“n) Quando o PL se aproximou do local onde veio a ocorrer o atropelamento, encontrando-se a cerca de 20 m, foi o seu condutor súbita, brusca e inesperadamente, surpreendido pela conduta do peão, que se fez á estrada, iniciando a a travessia da EN sem olhar para a esquerda e cortando-lhe a linha de marcha,
o) o condutor do PL ainda tentou uma manobra de salvamento,
p) o embate ocorreu porque o PL se encontrava muito próximo, a cerca de 20 m, quando o peão iniciou a travessia da faixa de rodagem,
p) CC foi projetado a 50 m”.
Sustenta a Recorrente que não obstante o atropelamento não ter sido presenciado por ninguém, em face do local onde o atropelamento ocorreu, só podia ter ocorrido conforme descrito em n), o) e p) dos factos não provados.
Importa começar por referir que a Recorrente alegando que os peritos, não tendo assistido ao embate do veículo no peão, podem apenas pronunciar-se quanto à velocidade do veículo e quanto às lesões, pelo que não podia o tribunal a quo dar como provado que o menor se encontrava parado e de costas para o veículo, pretende sustentar a sua pretensão de ver julgada provada a matéria de facto contante destes pontos apenas em face do local onde ocorreu o atropelamento, omitindo os demais elementos decorrentes da prova produzida nos autos.
Pretende a Recorrente, no essencial, que seja dada como provada a versão por si apresentada na contestação de que o embate ocorreu porque veículo se encontrava muito próximo, a cerca de 20 m, quando o CC iniciou a travessia da faixa de rodagem, e que o seu condutor foi súbita, brusca e inesperadamente, surpreendido pela conduta deste, que se fez á estrada, iniciando a travessia da EN sem olhar para a esquerda e cortando-lhe a linha de marcha do veículo.
Não é, porém, o que decorre da análise da prova produzida nos autos, designadamente do relatório pericial e do relatório da autopsia, conjugados com os esclarecimentos prestados em audiência, e nem o que é evidenciado pelos danos existentes no veículo e as lesões provocadas no peão.
Por uma questão de economia processual, e por se revelar manifestamente inútil, abstemo-nos de reproduzir tudo quanto já referimos a propósito dos pontos 19) e 20) dos factos provados, que mantivemos e dos quais resulta que, não obstante ter entrado 1-1,3 m dentro da faixa de rodagem, o CC aí se imobilizou, de costas para o trânsito no sentido ..., a fim de aguardar o regresso de HH e tendo ouvido uma travagem brusca, e iniciado o gesto de se virar para a sua esquerda, foi violentamente embatido pela esquina da frente direita (ótica direita) do veículo. Aliás, tendo improcedido a pretensão da Recorrente e mantendo-se como provada a matéria constante dos pontos 19) e 20), mostra-se desde logo afastada a possibilidade, por contraditória, de julgar provada a matéria constante dos pontos n), o) e p).
Inexiste, pois, fundamento para que seja alterada a matéria de facto no sentido pretendido pela Recorrente.
Pelo exposto, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida pela 1ª Instância, conforme com a prova constante dos autos, mantêm-se inalterada a matéria de facto impugnada pela Ré.
Importa, contudo, em face da certidão apresentada pelos Autores e cuja junção se admitiu aditar à matéria de facto provada onde conste que foi deduzida acusação, o qual passará a ser o n.º 26-A) e terá a seguinte redação:
“26-A. Em 31 de janeiro de 2024 foi deduzida acusação no âmbito do processo de inquérito referido em 26) contra o condutor do PL pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio por negligência.
***
3.4. Reapreciação da decisão de mérito da ação
3.4.1. Enquadramento preliminar
Importa agora apreciar se deve manter-se a decisão jurídica da causa, analisando os fundamentos constantes do recurso interposto pelos Autores e os demais fundamentos invocados pela Ré no recurso subordinado.
Vejamos.
Os Autores intentaram a presente ação, destinada a efetivar a responsabilidade civil emergente do atropelamento que vitimou o seu filho, pedindo a condenação da Ré a pagar a quantia global de €224.292,92 a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro, a quantia a liquidar em ampliação do pedido ou em execução de sentença e melhor descrita nos artigos 97) e 98) da petição inicial e os juros moratórios calculados ao dobro da taxa legal e contados desde a citação até efetivo e integral pagamento, atento o disposto no artigo 40.º, n.º 2 do Dec. Lei n.º 291/2007 de 21-8.
Pelo tribunal a quo foi decidido condenar a Ré a pagar aos Autores, a título de danos não patrimoniais e a repartir em partes iguais por estes, a quantia global de €134.000 a que acrescem juros de mora a contar da presente sentença, à taxa legal de 4%, até integral pagamento e a quantia global de €1.039,57 a título de danos patrimoniais, a que acrescem juros de mora á taxa de 4%, a contar da citação e até integral pagamento.
Analisados os recursos e os respetivos fundamentos constata-se que no recurso interposto a titulo principal os Autores questionam a responsabilidade na produção do acidente, pugnando pela imputação do mesmo exclusivamente e a título de culpa ao condutor do veículo PL, sustentando a Ré, no recurso subordinado, em sentido oposto, a culpa exclusiva do peão atropelado; a Ré questiona ainda os montantes indemnizatórios fixados pelo tribunal a quo a título de dano não patrimonial sofrido pela vitima (dano intercalar) e de dano não patrimonial próprio de cada um dos Autores.
Assim, por razões de coerência, lógica e economia processual, as questões de um e outro recurso serão apreciadas conjuntamente e pela ordem seguinte:
- Em primeiro lugar, as questões relativas à imputação da responsabilidade na produção do acidente, suscitadas em ambos os recursos;
- Em segundo lugar, as questões respeitantes à determinação dos montantes indemnizatórios, suscitadas no recurso subordinado da Ré:
a) Quanto ao dano não patrimonial sofrido pela vitima (dano intercalar).
b) Quanto ao dano não patrimonial próprio de cada um dos Autores.
*
3.4.2. Quanto à imputação da responsabilidade pela ocorrência do acidente
Na sentença recorrida foi decidido que ambos os intervenientes tiveram culpa na ocorrência do atropelamento, e que, “considerando que o local do atropelamento é uma reta extensa, que não se demonstrou que o peão soubesse do encadeamento do condutor do PL, que estava a, pelo menos, 40,6 m do PL, que este seguia a velocidade muito excessiva para o local e condições climáticas, que a condução de um veículo, não sendo embora perigosa por natureza, não deixa de constituir uma fonte de causação de danos muitas vezes catastróficos, como foi o caso dos autos,” seria “justo e adequado repartir as culpas em 1/3 para o peão e 2/3 para o condutor do PL, reduzindo-se, pois, nessa medida, a indemnização devida”, tendo em atenção o disposto no artigo 570º n.º 1 do Código Civil.
Os Autores vêm questionar que assim seja, sustentando que o acidente deve ser exclusivamente imputado a título de culpa ao condutor do veículo PL, seguro na Ré; em sentido contrário, sustenta a Ré que o atropelamento ocorreu por culpa exclusiva do peão.
A factualidade que importa considerar é a seguinte:
- No dia ../../2018, pelas 16 h, na EN ...5, ao km 236,900, vulgarmente denominada de “...”, na localidade e freguesia ..., concelho ..., ocorreu um acidente de viação em que interveio o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-PL, ... (doravante, PL), conduzido por DD e propriedade de EE, e o CC;
- O PL estava a ser conduzido com conhecimento e autorização da proprietária do mesmo, que, no dia e hora do acidente, seguia no PL, como passageira, sendo II o condutor habitual do PL;
- A EN ...5, à data dos factos e no local do acidente, tinha um traçado reto, com uma extensão superior a 800 m e de relevo ascendente, com cerca de 4% de inclinação, atento o sentido de marcha ...; 
- Essa artéria tinha cerca de 6,10 m de largura era constituída por dois corredores de circulação, cada um afeto ao seu sentido de marcha, de piso betuminoso, o qual se encontrava em razoável estado de conservação;
- Ambos os sentidos de marcha encontravam-se devidamente delimitados ao centro por uma linha longitudinal descontínua, existindo bermas em ambos os lados da faixa de rodagem, com cerca de 4050 cms de largura, em pavimento betuminoso, seguido de um prolongamento da berma, em terra batida, irregular e com vegetação rasteira;
- Nesse dia, o tempo estava bom e o piso seco;
- Não existiam obstáculos na via, mas, atenta a posição do sol, existia encadeamento solar para quem circulasse no sentido de marcha ..., já que o sol se encontrava de frente, não permitindo ao seu condutor ter uma visibilidade superior a 25 metros;
- O limite máximo de velocidade para aquela artéria era de 90 km/h para os dois sentidos de trânsito;
- Nessa via existem diversas casas de habitação, as quais pertencem à localidade de ..., sendo certo que as suas vias de acesso permitem aceder diretamente à faixa de rodagem, não existindo em toda essa reta, qualquer passadeira para peões;
- Naquele momento e nas proximidades do local do atropelamento, não circulava, no sentido e á frente do PL, qualquer outro veículo na via, nem em sentido contrário;
- Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas supra, o veiculo PL circulava pela EN ...5, no sentido ...;
- Pela hemi-faixa de rodagem mais à direita;
- Animado de uma velocidade superior a 90 km/h e, concretamente, de 92 km/h, sendo que, no momento do embate/atropelamento, depois de ter iniciado a travagem, a sua velocidade situava-se nos 74 km/h;
- A velocidade máxima a que o condutor do PL poderia circular, para evitar o atropelamento, face à distância de visibilidade de 25 m, seria de cerca de 49 km/h.
- A velocidade máxima a que o condutor do PL poderia circular, para evitar o atropelamento, face à distância de visibilidade de 40,6 m, seria de cerca de 67 km/h;
- O PL, em condições normais de visibilidade, à velocidade a que seguia, para se imobilizar, necessitava de 65,4 m; se circulasse a 90 km/h, necessitaria de 62,9 m;
- Por seu turno, o peão CC, que trajava roupa escura, designadamente, calças e blusão pretos e camisola cinzenta escura, encontrava-se na companhia de HH junto ao veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-ES, o qual se encontrava estacionado, fora da faixa de rodagem, numa pequena reentrância de terra batida, que prolongava a berma direita, considerando o sentido de marcha ...;
- Quando ambos se dirigiam para a faixa de rodagem, a fim de iniciarem a sua travessia, HH, porque se apercebeu da falta da carteira, voltou atrás para a ir buscar, abrindo a porta dianteira do veículo ES, e dobrou-se para pegar a carteira;
- Entretanto, CC deu 2-3 passos, entrando 1-1,3 m dentro da faixa de rodagem, e aí se imobilizou, de costas para o trânsito no sentido ..., a fim de aguardar o regresso de HH e quando se encontrava nessa posição ouviu uma travagem brusca, e iniciou o gesto de se virar para a sua esquerda, quando é violentamente embatido pela esquina da frente direita (ótica direita) do PL;
- Quando CC se encontrava imobilizado, o PL encontrava-se a uma distância não inferior a 40,6 m;
- Por causa do referido encandeamento solar e da visibilidade que permitia, o condutor do PL ficou surpreendido pela presença do peão CC na faixa de rodagem;
- Quem estivesse imobilizado na berma direita da EN ...5, atento o sentido de marcha ..., perpendicularmente à estrada, e olhando para a esquerda, em direção a ..., não tinha qualquer perturbação decorrente da incidência da luz solar;
- Compelido pela violência do embate, o corpo do CC é projetado para o ar, vindo a cair sobre o para-brisas do veículo atropelante (igualmente sobre o seu lado direito) e apanhando também o pilar A do PL, partindo o vidro para-brisas e deformando o referido pilar;
- Consequentemente, em face da energia cinética inerente à mencionada travagem brusca, o corpo do malogrado CC veio a ser transportado alguns metros pelo veículo atropelante, acabando por ser projetado para o pavimento da sobredita artéria, a uma distância de 31,5 m, local onde veio a ficar prostrado, depois de aí cair de forma totalmente desamparada;
- O PL continuou a sua marcha, vindo a imobilizar-se a uma distância não apurada, mas não inferior a 20 m;
- O condutor do PL tinha mais de 4,5 m de via livre à sua frente, contando com a hemi-faixa contrária, para evitar o peão.
Entendem os Autores que o artigo 101º n.º 4 do Código da Estrada visa garantir a segurança e boa circulação dos veículos que transitem pela faixa de rodagem e que a ratio da norma pretende evitar que um peão durante a realização da travessia de uma faixa de rodagem efetue qualquer manobra imprevista (como parar, mudar de sentido, recuar, etc.), por forma a que os condutores dos veículos automóveis saibam sempre com o que contar.
Mais entendem que, como o condutor do veículo de matrícula PL transitava a uma velocidade superior a 90 km/h, e como não tinha qualquer visibilidade para a sua frente, designadamente para uma distância superior a 25 metros, foi apenas esse seu comportamento que contribuiu de forma necessária, adequada e exclusiva para a eclosão do atropelamento, sendo que se o malogrado peão não tivesse parado teria sido igualmente colhido, pelo que ainda que a conduta do peão tivesse sido diferente, não teria obstado à verificação do acidente.
Concluem dessa forma os Autores que a eventual contraordenação cometida pelo peão CC não é causal do acidente não se podendo falar em repartição de culpas.
A Ré, em sentido contrário, sustenta que se deve concluir pela culpa exclusiva do peão, o qual não tinha qualquer justificação ou propósito para se colocar na faixa de rodagem, ainda por cima de costas para o trânsito, e se meteu à frente do veículo, inexistindo nexo causal entre a velocidade a que seguia o veículo e o atropelamento.
Conclui que se o menor não estivesse na estrada o veículo tinha passado sem sequer lhe tocar, quanto mais atropelar.
Na decisão recorrida foi considerado que perante a factualidade provada se estava perante culpas concorrentes, sendo de atribuir 1/3 ao peão e 2/3 ao condutor do veículo segurado na Ré.
Vejamos então.
Entendemos que o tribunal a quo de forma assertiva sintetizou as circunstâncias em que ocorreu o atropelamento em discussão nos presentes autos, em face da factualidade que ficou demonstrada.
E, atenta a matéria de facto provada e supra elencada, temos como certo que o condutor do veículo é efetivamente merecedor de juízo de censura, já que omitiu deveres de cuidado que lhe eram impostos pelas regras de circulação rodoviária, desde logo pelo dever geral de cuidado a que estão adstritos todos os utentes das vias públicas ou adstritas ao trânsito público (veja-se o artigo 3º do Código da Estrada), e pelo dever geral que recai sobre os condutores de, durante a condução, se absterem da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança e de não poderem pôr em perigo os utilizadores vulneráveis (cfr. artigo 11º n.º 2 e 3 do Código da Estrada).
Mas também pelo especial dever de adequação da velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente. (v. artigo 24º n.º 1 do Código da Estrada).
Veja-se ainda que na definição legal (artigo 1º alínea q) do Código da Estrada), o peão é um utilizador vulnerável para efeitos da circulação rodoviária e que, sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade à aproximação de utilizadores vulneráveis (artigo 25º n.º 1 alínea e) do Código da estrada).
Conforme bem se refere na decisão recorrida “(…) a velocidade, de per si excessiva (porque superior a 90 km/h), do condutor do PL, e, sobretudo, a circunstância de não ter adequado/moderado a sua velocidade á falta de visibilidade, tendo em conta o encadeamento solar e que se tratava de uma EN ladeada por casas – ao contrário, até seguia a velocidade de per si excessiva, porque superior a 90 km/ - não foi, de jeito nenhum, indiferente á produção do resultado, pois o âmbito de proteção das normas violadas visa, como é de meridiana clareza, evitar os embates contra os restantes utilizadores da via, entre os quais, os peões.(…) É particularmente impressivo que, mau grado uma enorme limitação da visibilidade, que afetava todos quantos circulavam no sentido do PL (só se via a 25 m e, tendo uma visibilidade de tal forma reduzida, não podia confiar na inexistência de eventuais obstáculos) o condutor do PL, longe de reduzir a velocidade, seguia em velocidade que seria sempre excessiva face aos limites máximos permitidos”.
No caso concreto, não só o condutor do veículo seguia a velocidade que sempre excederia o limite máximo de 90 Km/h permitido, como não regulou a velocidade às condições de visibilidade que, em face do encandeamento solar (já que o sol se encontrava de frente), não permitiam ter uma visibilidade superior a 25 metros (não obstante a EN no local ter um traçado reto com uma extensão superior a 800 m); a velocidade máxima a que o condutor do PL poderia circular, para evitar o atropelamento, face à distância de visibilidade de 25 m, seria de cerca de 49 km/h e a velocidade máxima a que poderia circular, para evitar o atropelamento, face à distância de visibilidade de 40,6 m (o PL encontrava-se a uma distância não inferior a esta quando CC se encontrava imobilizado) seria de cerca de 67 km/h.
Acresce ainda que tendo a via cerca de 6,10m, e tendo o peão entrado 1-1,3m dentro da faixa de rodagem, aí se imobilizando, naquele momento e nas proximidades do local do atropelamento, não circulava, à frente do PL, qualquer outro veículo na via, nem em sentido contrário, dispondo o seu condutor de mais de 4,5m de via livre à sua frente, contando com a hemi-faixa contrária [pontos 7), 14) e 24) dos factos provados].
É possível, pois, a partir de tal circunstancialismo, formular um juízo de valor de imprudência e inconsideração pelas regras estradais que obrigavam o condutor do PL a reduzir a velocidade considerando a visibilidade reduzida por força do encandeamento, devendo ponderar e estar atento à possibilidade de poder vir a deparar com eventuais obstáculos que se poderiam interpor no espaço livre e visível à sua frente, designadamente, ponderar a existência ou o atravessamento de peões na via pública, tanto mais que na via existem diversas casas de habitação, cujas vias de acesso permitem aceder diretamente à faixa de rodagem, não existindo em toda a reta qualquer passadeira de peões.
Ao condutor do PL era de exigir que regulasse a velocidade e o conduzisse de forma a, atendendo à possibilidade da presença de outros utilizadores, em particular dos peões, considerando as características da via e do local, e à visibilidade reduzida por força da posição do sol, prevenir qualquer acidente e, em concreto, a evitar o atropelamento mortal que veio a ocorrer, pelo que, não o tendo feito, a sua condução foi causa efetiva do mesmo.
Mas também a conduta do peão não é de considerar isenta de censura.
Vejamos.
Estabelece o n.º 1 do artigo 99º do Código da Estrada que os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas; apenas podendo transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, no que aqui releva, quando efetuem o seu atravessamento [alínea a) do n.º 2) e na falta dos locais referidos no n.º 1 ou na impossibilidade de os utilizar, alínea b) do n.º 2].

Prevê também o artigo 101º do Código da Estrada que:
“1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.
2 - O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível.
3 - Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.
4 - Os peões não devem parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios e as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito”.

Assim, e quanto à circulação dos peões, os utentes mais vulneráveis e desprotegidos na via pública, decorre das normas estradais que devem circular nos passeios ou passagens que lhes estão destinados, podendo ainda, caso estes não existam, utilizar as bermas da estrada, devendo usar a faixa de rodagem apenas para a atravessar e não devendo parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios e as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito.
Como se refere na sentença recorrida é indiscutível que o peão violou as referidas disposições pois, não obstante a existência de bermas, e sem justificação, entrou 1 a 1,3 m dentro da faixa de rodagem e aí se imobilizou, de costas para o veículo, sendo certo que ao contrário do que ocorria para o condutor do veículo, para o peão, se olhasse para a sua esquerda (para o sentido em que transitava o veículo) não tinha qualquer perturbação decorrente da incidência solar, sendo que como já referimos a EN ...5 no local tinha um traçado reto com extensão superior a 800 m, de relevo ascendente com cerca de 4% de inclinação [pontos 6) e 20-A) dos factos provados).
É, por isso, certo, tal como se afirma na sentença recorrida e reconhecem os próprios Autores nas alegações de recurso, que o peão desrespeitou o estatuído no n.º 4 do referido artigo 101º uma vez que, tendo entrado na faixa de rodagem por onde circulava o veículo cerca de 1-1,3 m, aí se imobilizou de costas para o trânsito que, como o PL, circulava no sentido ...; e não podemos também esquecer que omitiu deveres de cuidado que lhe eram impostos pelas regras de circulação rodoviária, desde logo pelo dever geral de cuidado a que já nos referimos e a que estão adstritos todos os utentes das vias públicas. O n.º 2 do artigo 3º do Código da Estrada, estabelecendo que as pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, ainda que refira a especial atenção que merecem os utilizadores vulneráveis, também se impõe a estes, designadamente aos peões.
Cremos que iniciar a travessia da via, entrando na mesma e ocupando 1-1,3 m da faixa de rodagem por onde circulava o veículo, aí se imobilizando de costas voltadas para o trânsito que circulava por essa via, como era o caso do veículo PL, é conduta suscetível de embaraçar o trânsito e de comprometer a segurança, ou pelo menos a comodidade, de quem, como o condutor do veículo PL, circulava no referido sentido, e a própria segurança do peão que assim se imobilizou voltando as costas para o trânsito que circulava pela faixa de rodagem em causa.
Se, como se afirma no Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 19/04/2018 (Processo n.º 595/14.1TVLSB.L1.S1, Relator Tomé Gomes) “no caso de acidente de viação em que ocorreu um atropelamento, a mera verificação da violação da norma estradal, por parte do peão, ainda que revestindo natureza contraordenacional, não é por si só suficiente para estabelecer o nexo causal com a produção do acidente, tornando-se necessário indagar se tal comportamento ilícito e culposo consubstancia, em concreto, causa adequada do evento ocorrido”, a verdade é que no caso dos autos entendemos que a conduta do falecido peão foi também causal do atropelamento.
Temos, por isso, como certo que quer o condutor do PL, quer o peão, ofenderam os princípios de diligência que se lhes impunham, agindo ambos com culpa, e contribuindo dessa forma para a produção do acidente, sendo quanto a nós inequívoca a concorrência de culpas, quer do condutor do veículo segurado da Ré, quer do falecido peão; em caso de acidente de viação com atropelamento de peão, estaremos perante concorrência de culpas entre o peão e o condutor, se aquele, tiver infringido a prescrição do artigo 101º, n.º 4, do Código da Estrada e este circular com velocidade excessiva nos termos dos artigos 24º n.º 1, e 25º n.º 1, do mesmo Código.
Como bem se refere na sentença recorrida, e não é contestado pelos Recorrentes, importa considerar o disposto no artigo 570º do Código Civil que estabelece no seu n.º 1 que “[q]uando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
Assim, sempre que esteja em causa a concorrência de culpas importa determinar a medida em que a conduta ilícita e culposa de cada um foi causal da produção do acidente, à luz da teoria da causalidade adequada.
“Quando lesante e lesado tenham contribuído, por atuação com negligência inconsciente de ambos – para o que aqui releva -, para a produção do acidente e os danos dele resultantes, a quota parte de responsabilidade haverá de fixar-se em razão da gravidade relativa do ato culposo de cada interveniente. O qual, por sua vez tem de obter-se através da ponderação da perigosidade imanente às proibições ou restrições de circulação vial que cada um violou, ou, em outro registo, da gravidade dos factos que essas regras pretendem evitar” (Acórdão de 17/03/2021, Processo n.º 417/16.9T9MAI.P1.S1, Relator Nuno Gonçalves).
Considerando as circunstancias do caso concreto já referidas, podemos afirmar que a violação pelo condutor do PL das regras que estabelecem limites para a velocidade de circulação dos veículos, proibindo a circulação com velocidade excessiva, apresenta-se com um grau de gravidade bastante superior ao da violação, pelo falecido peão, das normas que obrigam as pessoas a, por regra, não transitarem pela faixa de rodagem, e a não pararem na faixa de rodagem, sendo, por isso, de sufragar o juízo de adequação e proporcionalidade formulado pelo tribunal a quo ao “repartir as culpas em 1/3 para o peão e 2/3 para o condutor do PL, reduzindo-se, pois, nessa medida, a indemnização devida”, sendo certo que nem os Autores e nem a Ré, sustentando a responsabilidade exclusiva do condutor e do peão, respetivamente, não questionaram concretamente a repartição constante da sentença recorrida, em caso de concorrência de culpas.
Deste modo, não merecendo censura a contribuição ou responsabilidade fixada na sentença recorrida, improcede a pretensão dos Autores de imputação da responsabilidade exclusiva pelo atropelamento ao condutor do veículo e improcede na integra o recurso por si interposto, que se circunscrevia a essa questão, e improcede também a pretensão da Ré de imputação da responsabilidade exclusiva pelo atropelamento ao peão, improcedendo nessa parte o recurso subordinado.
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3.4.3. Quanto aos montantes indemnizatórios
Voltando ao recurso subordinado da Ré ressalta das suas conclusões que entende que não deve ser fixado qualquer valor pelo dano não patrimonial sofrido pela vitima (dano intercalar), ou pelo menos, deve ser a indemnização reduzida à quantia de €5.000,00, e quanto ao dano não patrimonial próprio de cada um dos Autores, sustenta que o valor fixado em 1ª Instância é excessivo uma vez que foi arbitrada a quantia de €100.000,00 pelo direito à vida do menor, devendo a indemnização ser reduzida a €30.000,00
Na sentença recorrida foram fixados os seguintes montantes indemnizatórios:
i.Uma compensação pela perda do direito à vida do menor no montante de €100.000,00;
ii.Uma compensação pelo dano não patrimonial sofrido pela vítima entre o momento do acidente e o momento da morte (dano intercalar) de €20.000,00;
iii.Uma compensação para cada um dos pais pelos danos não patrimoniais próprios de €40.000,00.
Vejamos.
Tanto quanto nos é dado conhecer, julgamos ser jurisprudência uniforme e reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, quanto ao preceituado no artigo 496º n.º 2 do Código Civil, a atribuição desta compensação pecuniária tripartida: compensação pela perda da vida da vítima, pelos sofrimentos da vítima que antecederam a morte e pelos sofrimentos próprios dos familiares por causa da morte da vítima.
In casu, decorre da matéria de facto provada [pontos 28), 30), 31) e 32] que o falecido menor ficou imediatamente prostrado no chão, a esvair-se em sangue, numa angústia inenarrável; que após a sua chegada, os bombeiros e a equipa do INEM procederam às manobras de suporte básico de vida e demais cuidados médicos julgados necessários pelas equipas médicas mas, e pese embora lhe tivessem sido prestados todos esses cuidados médicos e medicamentosos, atenta a gravidade das lesões corporais sofridas, o mesmo veio a falecer por volta das 16 h 35 m do mesmo dia  e que o menor sentiu, durante alguns minutos, dores indiscritíveis, desde o embate violento com o PL até à sua queda desamparada no pavimento, onde ficou prostrado em sofrimento indiscritível e angústia agonizante, até sofrer uma paragem cardio-respiratória e subsequente falecimento, apercebendo-se que a sua vida estava a fugir-lhe.
É inquestionável, por isso, o acerto da sentença recorrida ao fixar uma indemnização pelo dano não patrimonial sofrido pela vítima entre o momento do acidente e o momento da morte.
O dano intercalar, que medeia entre o momento em que ocorre o ato lesivo e a morte da vítima resultante do mesmo, abrange o sofrimento, designadamente pela perceção da eminência da própria morte e dores físicas sentidas pela vítima durante o período em causa.
Quanto a este dano, atendível em termos compensatórios, os valores indemnizatórios devem ser calculados em função do caso concreto, ponderando, designadamente, a gravidade das lesões sofridas, a intensidade das dores, o período de tempo durante a qual as dores se prolongam e eventual pressentimento da morte (neste sentido, entre vários outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019, Processo n.º 20121/16.7T8PRT.P1.S1, Relatora Maria da Graça Trigo).
E a compensação deve ser quantificada de acordo com juízos de equidade que não poderá (nem deve) desligar-se dos resultados que vêm fixados em casos semelhantes; como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/02/2021 (Processo n.º 625/18.8T8AGH.L1.S1, Relator Abrantes Geraldes) “como já se decidiu em muitos outros acórdãos relatados pelo ora relator e com intervenção do mesmo coletivo, assim como em numerosíssimos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça, não se mostra fácil a quantificação nem sequer a justificação do valor das indemnizações, designadamente em casos de morte do sinistrado, de modo que deve servir de apoio o que tenha sido decidido de forma consistente noutros arestos semelhantes”.
Considerando o que decorre da referida factualidade provada quanto à gravidade das lesões sofridas, à intensidade das dores, e ao pressentimento da morte, entendemos não existir qualquer motivo para reduzir o montante de €20.000,00 que, ademais, se inscreve na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça; veja-se a título exemplificativo o citado Acórdão de 21/03/2019 que julgou demasiado reduzido o valor fixado pela sentença, considerando justo e adequado fixá-lo antes em €20.000,00.
Quanto ao montante da compensação para cada um dos Autores pelos danos não patrimoniais próprios, começamos por referir em primeiro lugar que, como se nos afigura óbvio, o valor a arbitrar pelos danos não patrimoniais próprios de cada um dos Autores não se encontra dependente do valor fixado pela perda do direito à vida do menor, cujo valor a Recorrente não questionou.
Também aqui entendemos não existir motivo para reduzir o montante de €40.000,00 fixado na sentença recorrida, o qual se situa de igual forma nos padrões que vêm sendo assumidos pela jurisprudência, designadamente do Supremo Tribunal de Justiça; veja-se a título exemplificativo o citado Acórdão de 11/02/2021 onde num caso de atropelamento da filha menor, considerado especialmente grave, não só pela idade da vítima, mas facto de ser filha única, como ainda pela ponderação dos efeitos de ordem psicológica em cada um deles, se afirmou “não existem motivos para reduzir a indemnização de € 40.000,00 arbitrada a cada um dos progenitores pelos danos morais decorrentes da morte da única filha”. Ainda que no caso dos autos o falecido menor não fosse filho único, a verdade é que considerando a sua idade à data do atropelamento e os efeitos de ordem psicológica decorrentes para os pais, aqui Autores, traduzidos na factualidade provada nos pontos 35) a 39), se nos afigura adequado o valor fixado pelo tribunal a quo.
Em face de todo o exposto, improcede também integralmente a apelação da Ré.
As custas de cada um dos recursos são da responsabilidade dos respetivos Recorrentes, atento o seu integral decaimento (artigo 527º do CPC).
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:
a) admitir a junção aos autos do documento apresentado pelos Autores;
b) rejeitar o recurso da Ré quanto à impugnação dos pontos 28), 31) e 32) da matéria de facto não provada;
c) julgar improcedentes os recursos dos Autores e da Ré e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas de cada um dos recursos pelos respetivos Recorrentes.
Guimarães, 11 de abril de 2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
José Cravo (1º Adjunto)
Alexandra Rolim Mendes (2ª Adjunta)