Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1535/07-1
Relator: ANSELMO LOPES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
AUTOR MATERIAL NÃO IDENTIFICADO
DIREITO DE DEFESA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/01/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I – Quem, à data de uma infracção levantada nos termos do nº 2 do artº 171º do C.E., já não tiver a posse e o uso de um veículo, por o ter vendido, não tem, apesar de ainda ser titular inscrito no documento de identificação, que identificar o autor material da infracção.
II – Com efeito, em tal circunstância, o anterior proprietário e possuidor não sabe, ou não nem tem que saber, quem conduzia o veículo na data da infracção.
III – Seguindo o processo contra o titular inscrito no documento de identificação do veículo, pode este limitar-se a alegar em sua defesa que não foi ele quem cometeu a infracção, devendo tal facto ser conhecido e julgado, quer na decisão da entidade administrativa, quer na impugnação que dela se deduzir.
IV – Em tal situação, se a entidade administrativa ou o Tribunal se convencerem de que o infractor não foi o arguido, como houve um infractor, o principal suspeito é a pessoa a quem o dito veículo foi vendido, pelo que cabe ao Ministério Público promover novo processo, na tentativa de averiguar quem foi o verdadeiro condutor.
V – Dizendo a lei que o autuado pode, se assim o entender, nos termos do nº 3 do artº 171º, e no prazo concedido para a defesa, identificar pessoa distinta como autora da contra-ordenação, pressupõe que o titular do documento de identificação do veículo tem a “sua direcção efectiva”, isto é, tem o domínio da viatura, e está habilitado a saber, ou a apurar, quem é que naquela data a utilizou e a que título, reservando-lhe até a lei (cfr. artº 135º,nº 4 do C.E.) a hipótese de vir demonstrar que houve utilização abusiva.
VI - Assim sendo, nos casos em que, por quaisquer e variadas razões - a venda é apenas uma delas -, a viatura não está na posse do titular inscrito, é óbvio que este não pode indicar quem foi o condutor, autorizado ou abusivo, limitando-se, como o aqui arguido fez, e bem, a dizer: não era eu quem, no momento da infracção, conduzia o veículo.
VII – Os autuados não são obrigados a defender-se perante as autoridades administrativas como condição de, depois, poderem impugnar judicialmente.
VIII – Um auto de notícia que não descrever de forma suficiente a conduta do (alegado) infractor, violando o disposto no artº 170º, nº 1 do Código da Estrada e o prescrito no artº 283º nº 3 al. b) do C.P.Penal, é nulo, pois no citado preceito diz-se expressamente que se deve mencionar os factos que constituem a infracção, e as circunstâncias em que foi cometida, isto é, não basta imputar meras conclusões.
IX – Os autos de notícia, em regra, só dão conta do facto essencial a sancionar - no caso, uma manobra de mudança de direcção -, mas omitem todas as demais circunstâncias também relevantes, nomeadamente as que concretizem certas previsões normativas abertas, como é o caso da do artº 35º, nº 1 do Código da Estrada.
X – No caso, apenas se diz que o condutor efectuou manobra de mudança de direcção para a direita da qual resultou perigo e embaraço para o trânsito, ou seja, dizer isto é formular uma conclusão abstracta onde cabe um sem número de condutas concretas e impedir o efectivo direito de defesa, ficando sem se saber o que é que, em concreto, o condutor fez e de que forma é que causou perigo e embaraço para o trânsito.
XI – O que a lei quer é que se descrevam os factos e não a sua previsão típica, que além de não facultar defesa, também não permite a necessária graduação da ilicitude da conduta.

(Em sentido algo diferente, cf. ac. do Pº 2042/07, rel. Cruz Bucho)
Decisão Texto Integral: Após audiência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

TRIBUNAL RECORRIDO
Tribunal Judicial de Braga – 4 Juízo Criminal – Pº nº 2658/07.6TBBRG

ARGUIDO/RECORRENTE
Mário

RECORRIDO
O Ministério Público
OBJECTO DO RECURSO
O arguido foi condenado pela prática de uma contra-ordenação p. e p. no artº 35º, nº 1 do Código da Estrada, na coima de € 120,00 e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias.
Não se conformou e impugnou judicialmente, mas a impugnação foi julgada improcedente.
Vem agora interposto o presente recurso, resumindo-se assim as conclusões:
.- O artº 171º, nº 2 do Código da Estrada faz referência expressa ao «titular do documento de identificação do veículo», pelo que é titular de tal documento a pessoa que na qualidade de proprietário ou a outro título possa dispor do veículo.
.- A venda de veículos automóveis não está sujeita à forma escrita, pelo que por simples declaração verbal se transmite a propriedade.
.- Por contrato verbal de compra e venda foi o veículo vendido pelo recorrente, em 15-03-06, e na mesma data foi feita a declaração de venda e termo de responsabilidade.
.- Consequentemente, à data da infracção, o recorrente não dispunha já do veículo, sendo sobre o titular do documento de identificação do veículo que recai a responsabilidade e a presunção previstas no artº 135º, nº 2, al. b) do Código da Estrada.
.- É também ao titular de tal documento que é dado o direito de indicar, no prazo concedido para a defesa, pessoa distinta como autora da contra-ordenação.
.- O recorrente não sabe, nem tem de saber, quem conduzia o veículo na data da infracção.
.- Em ambos os acórdãos citados na decisão recorrida, além de diferente previsão legal, verificava-se que os recorrentes eram também proprietários dos veículos, ao passo que o ora recorrente vendeu o veículo em data anterior à da infracção.
.- De todo o modo, uma vez que a notificação ao arguido apenas diz que «se desejar impugnar a autuação, deverá apresentar, até 20 dias após a data da presente notificação, defesa escrita dirigida ao Governador Civil do Distrito», foi violado o disposto na al. f) do artº 175º do Código da Estrada.

RESPOSTA
No Tribunal recorrido, o Ministério Público respondeu de forma a defender o julgado.

PARECER
Nesta instância, o Ilustre PGA também pede a improcedência do recurso.

PODERES DE COGNIÇÃO
O objecto do recurso é demarcado pelas conclusões da motivação – artº 412º do C.P.Penal, sem prejuízo do conhecimento oficioso nos termos do artº 410º, nº 2 do mesmo Código, do qual serão as citações sem referência expressa.

FUNDAMENTAÇÃO
Vejamos, antes de mais, os factos tidos como provados:
a) - No dia 16 de Março de 2006 foi lavrado auto de contra-ordenação ao abrigo do disposto no artigo 171º do C.E., dando conta que o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula SE, no dia 16 de Março de 2006, pelas 12 horas e 20 minutos, na Avenida António Macedo, em Braga, efectuou manobra de mudança de direcção para a direita da qual resultou perigo e embaraço para o trânsito.
b) – No dia 03 de Maio de 2006 foi remetida carta registada ao arguido para, querendo impugnar a autuação, apresentando defesa escrita.
c) – No prazo concedido, o arguido não identificou qualquer outra pessoa como autora da contra-ordenação e não impugnou por qualquer forma o auto de notícia.
d) – O arguido veio através do presente recurso impugnar a decisão administrativa, argumentando que, no dia, hora e local constantes do auto de contra-ordenação, não era o arguido que conduzia o veículo automóvel, tendo-o vendido em data anterior, embora a mudança de proprietário não tenha sido devidamente inscrita na Conservatória do Registo Automóvel.
*
Para a decisão da impugnação, o Mmº Juiz identificou a seguinte questão prévia:
A questão essencial e a decidir desde já consiste em saber se, tendo o auto de contra-ordenação sido levantado nos termos do artigo 171º, nº 2 do C.E., contra o proprietário inscrito do veículo automóvel e este sido regularmente notificado pela autoridade administrativa competente para exercer a sua defesa, sem que tenha identificado qualquer outra pessoa como autora da contra-ordenação, pode, posteriormente, impugnar judicialmente a decisão administrativa que contra ele venha a ser proferida, identificando o condutor do veículo em causa ou diferente proprietário, embora não inscrito.
Esta questão, tem que se dizer, está correctamente identificada, mas o mesmo já se não diz quanto à solução negativa encontrada.
Vejamos.
A infracção aqui em causa foi observada sem identificação do condutor, pelo que, nos termos do nº 2 do artº 171º do C.E., foi o auto levantado em nome do titular do documento de identificação do veículo - Cfr. o teor do artigo 118.º do Código da Estrada:
Identificação do veículo
1 - Por cada veículo matriculado deve ser emitido um documento destinado a certificar a respectiva matrícula, donde constem as características que o permitam identificar.
2 - É titular do documento de identificação do veículo a pessoa, singular ou colectiva, em nome da qual o veículo for matriculado e que, na qualidade de proprietária ou a outro título jurídico, dele possa dispor, sendo responsável pela sua circulação.
3 - O adquirente ou a pessoa a favor de quem seja constituído direito que confira a titularidade do documento de identificação do veículo deve, no prazo de 30 dias a contar da aquisição ou constituição do direito, comunicar tal facto à autoridade competente para a matrícula.
4 - O vendedor ou a pessoa que, a qualquer título jurídico, transfira para outrem a titularidade de direito sobre o veículo deve comunicar tal facto à autoridade competente para a matrícula, nos termos e no prazo referidos no número anterior, identificando o adquirente ou a pessoa a favor de quem seja constituído o direito., ou seja, o arguido, pois ainda não tinha sido alterado o registo.
Tal procedimento é o único compatível com as regras do Código, sendo para aqui escusada a confusão que o recorrente faz sobre a titularidade e responsabilidade: não se identifica um condutor, …o auto deve ser levantado em nome de quem legitimamente se presume que o conduzia.
O autuado é que pode, se assim o entender, nos termos do nº 3 do artº 171º, e no prazo concedido para a defesa, identificar pessoa distinta como autora da contra-ordenação, sendo então o processo suspenso e sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infractora. Nada mais simples, e só no caso de se verificar que o titular do documento de identificação é uma pessoa colectiva é que esta é demandada para proceder à identificação do condutor, diferença esta, relativamente às pessoas singulares, que bem se compreende, quer porque as pessoas colectivas não conduzem, quer porque, regra geral, elas têm várias pessoas como potenciais condutores.
A questão que se põe é a da oportunidade da reacção à autuação, isto é, até quando pode o autuado dizer que não foi ele a cometer a infracção e identificar pessoa diferente, como a lei prevê? O que levanta outra questão, qual é a de se saber se o autuado tem mesmo que identificar outra pessoa como autora da infracção.
Começando por esta última, tem que se dizer que é esse exactamente o espírito da lei, pressupondo o legislador que o titular do documento de identificação do veículo tem a “sua direcção efectiva”, isto é, tem o domínio da viatura, e está habilitado a saber, ou a apurar, quem é que naquela data a utilizou e a que título, reservando-lhe até a lei (cfr. artº 135º,nº 4 do C.E.) a hipótese de vir demonstrar que houve utilização abusiva.
Ora, assim sendo, nos casos em que, por quaisquer e variadas razões - a venda é apenas uma delas -, a viatura não está na posse do titular inscrito, é óbvio que este não pode indicar quem foi o condutor, autorizado ou abusivo, limitando-se, como o aqui arguido fez, e bem, a dizer: não era eu quem, no momento da infracção, conduzia o veículo.
E é este facto que se lhe é obrigado a conhecer e que aqui se não conheceu, violando-se, além do mais, o direito de defesa, violação esta de um direito constitucional (cfr. artº 32º, nºs 1 e 10 da C.R.P.) e que, processualmente, é muito mais relevante do que qualquer nulidade, mesmo das insanáveis.
O arguido, em rigor, não vem usar da faculdade prevista no artº 171º, nº 2: o que ele vem fazer é, simplesmente, dizer que não era ele quem conduzia o veículo e esse facto devia, indiscutivelmente, ser conhecido e ponderado.
É certo que o arguido também acrescenta que vendera a viatura em Fevereiro e que formalizara a venda no dia anterior ao da infracção, identificando o comprador, mas também é verdade que em lado algum identifica o condutor, pois esse facto lhe desinteressa e apenas, conhecido e ponderado o facto essencial que alega - que não era ele o condutor -, pode o demais interessar ao Ministério Público para, nos termos dos artºs 241º e ss. do C.P.Penal, requerer certidão para novo procedimento contra quem entender.
Imagine-se, de facto, que o Tribunal se convence, por prova testemunhal e/ou documental, de que o infractor não foi o arguido. Está, simplesmente, a julgar aquele caso, onde lhe é dito que não era o ali arguido quem conduzia o veículo e disso - nada demais! - se convence: em tal caso, e porque houve um infractor, o principal suspeito é a pessoa a quem o dito veículo foi vendido, pelo que cabe ao Ministério Público promover novo processo, na tentativa de averiguar quem foi o verdadeiro condutor.
E vistas assim as coisas, está resolvida e superada a questão que o Mmº Juiz identificou - se pode, posteriormente, impugnar judicialmente a decisão administrativa que contra ele venha a ser proferida, identificando o condutor do veículo em causa ou diferente proprietário, embora não inscrito -, verificando-se, pois, um erro patente, já que se considerou, ao contrário do que resulta da impugnação, quer que o arguido indicou o condutor, quer que usou da faculdade prevista no citado artº 171º, nº 3.
E também assim vistas as coisas, fica esclarecida e superada a questão acima colocada sobre o momento até ao qual pode o autuado dizer, simplesmente, que não foi ele a cometer a infracção, ou seja, é indiscutível que, atribua-se à impugnação a natureza que se atribuir - recurso ou mera acusação para a qual a impugnação é a antecipação da defesa - Confiram-se os seguintes sumários, retirados da base de dados da DGSI:
I - Em processo contra-ordenacional os autos objecto de impugnação judicial relativamente à decisão administrativa são apresentados ao juiz pelo Ministério Público, valendo este acto como acusação.
II - Por isso, o juiz não pode posicionar-se relativamente aos autos como se apreciasse um recurso ordinário, pelo que deverá apreciar a decisão administrativa apenas como uma acusação e nunca como decisão recorrida em processo penal.

I - O Juiz, ao julgar o recurso em matéria contra-ordenacional, não está subordinado aos factos que a autoridade administrativa teve em conta na sua decisão visto que, equivalendo a remessa dos autos a juízo à acusação, o limite é determinado pelo próprio processo. -, sempre o seu exercício é tempestivo, pois é ponto assente que os arguidos não são obrigados a defender-se perante as autoridades administrativas como condição de, depois, poderem impugnar judicialmente.
Conclui-se, pois, que em casos como o presente, em que o titular do documento de identificação do veículo já não tem a sua “direcção efectiva”, não podendo identificar terceira pessoa que o conduza e, por isso, apenas refutando a prática da infracção, deve esta defesa ser conhecida nos seus precisos termos.
E, aliás, a mesma solução teria que se dar no caso de o veículo ainda estar no domínio do titular do documento de identificação.
Vejamos.
O que o nº 3 do artº 171º diz é que se, no prazo concedido para a defesa, o titular do documento de identificação do veículo identificar, com todos os elementos constantes do n.º 1, pessoa distinta como autora da contra-ordenação, o processo é suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infractora e o nº 4 acrescenta que o processo é arquivado quando se comprove que outra pessoa praticou a contra-ordenação ou houve utilização abusiva do veículo.
Ou seja, o autuado pode, no prazo concedido para a defesa, vir indicar a pessoa que o conduzia na data da infracção, obtendo com isso a suspensão do processo contra si instaurado e, posteriormente, o seu arquivamento, se vier a provar-se que, de facto, foi essa outra pessoa quem praticou a contra-ordenação.
Porém, não utilizando essa faculdade, nem por isso se fica impossibilitado de, mais tarde, em impugnação judicial, vir o autuado a defender-se com a não comissão da infracção, indicando, ou não, terceira pessoa como autora. Por um lado, nada na lei impede tal atitude e, por outro, a amplitude do direito de defesa assim o postula, sem que, como já acima se indicou, se exija qualquer prévia defesa perante as autoridades administrativas.
O argumento de que apenas no prazo concedido para a defesa se pode vir indicar terceira pessoa, sob pena de demora processual e inoportunidade de reacção contra o indicado infractor, não colhe, pois além dos argumentos que antecedem se deve ter presente que as maiores demoras provêm das próprias entidades administrativas (e dos Tribunais), atingindo-se números absurdos de prescrições por essa via, sem que alguém se incomode muito com isso.
Os arguidos, seja por que razões for, podem não usar da citada faculdade e nem por isso podem ser impedidos de, pelo menos, mesmo não indicando terceira pessoa, alegarem e tentarem provar que não foram eles os autores da infracção. É tudo uma questão de julgamento. A que, repete-se, têm pleno direito.
A propósito da alegação de factos novos na fase da impugnação judicial, vejam-se excertos do Parecer elaborado pelo Ilustre P.G.A., Dr. Ribeiro Soares, no Pº nº 1.404/02, deste Tribunal.
Dizia assim:
O despacho colocado sob sindicância, posiciona a apreciação do recurso sob dois ângulos argumentativos:
1. a oportunidade da defesa e
2. alegação de novos factos em sede de impugnação judicial da contraordenação.
No primeiro, considera, na decorrência do disposto no art. 50 do DL 433/82 de 27/10 e art. 32, nº 8 [nº 10] da Constituição da República, que o arguido deve oferecer toda a sua defesa aquando da notificação que para tal lhe for feita pela entidade administrativa.
No segundo pondera e conclui pela impossibilidade de alegação na impugnação judicial de factos que não foram tidos em conta pela autoridade administrativa e que para esta revestiriam, portanto, de absoluta novidade, pois que, sendo a impugnação judicial daquela decisão um verdadeiro recurso, com uma estrutura unitária, a fase - de recurso - consistiria “numa reapreciação de facto ou de direito da situação já avaliada pela autoridade administrativa”. Doutra forma, estaria o Tribunal a apreciar o que a autoridade administrativa poderia fazer, caso o arguido lhe tivesse (devesse ter) apresentado a sua defesa com toda a sua amplitude. Assim sendo, a impugnação judicial que revele factos não apresentados à autoridade administrativa deve ser rejeitada “por falta de alegações admissíveis e válidas” e por não possuir o Tribunal competência para instruir e decidir o processo de contra-ordenação.

3.
3.1
Posta a questão, há que manifestar, por forma breve, e se possível concisa, a nossa posição sobre o recurso, tanto mais que o MºPº na 1ª instância não o fez, por certo seguro de que a sua posição já estava nos autos através da promoção de rejeição da respectiva impugnação judicial.
Vamos reproduzir nos seus precisos termos o parecer que elaboramos no proc. 1114/02 desta Secção. A situação é a mesma, sendo o tribunal de origem o mesmo: o de Esposende.
Assim, em primeiro lugar, temos a afirmar que discordamos da posição assumida no despacho judicial criticado. Por várias razões.
É indiscutível que é direito do arguido pronunciar-se sobre a contra-ordenação que lhe é imputada. É o que dispõe o art. 32, nº 8 [nº 10] da Constituição da República concretizado em disposição legal infra constitucional, no art. 50º do DL 433/82 citado. Naquele normativo diz-se que ao arguido são assegurados, nos processos por contra-ordenação, os direitos de audiência e defesa. Note-se que não é só direito de defesa: é esta e o de audiência.
Toda a construção adjectiva deve estar, pois, norteada por estes princípios basilares: assegurar os direitos de defesa e audiência, pois que a mesma é instrumental daqueles.
E ao nível dos princípios, não reveste qualquer dúvida de que o direito de mera ordenação social está imbuído de todos os comandos que presidem, na sua essência, ao direito penal. Com efeito, logo no art. 32º do DL 433/82 se deixa dito que “em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal”.
O mesmo ocorre ao nível adjectivo pois que, nos termos do art. 41º do mesmo diploma legal: 1- Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo penal.
Porém, se as coisas se passam assim ao nível da aplicação dos princípios com apelo quer ao direito penal, quer ao direito processual penal, esclareça-se que o direito de mera ordenação social é completamente distinto do que se prevê nos ordenamentos subsidiários. Com efeito, tendo naturezas distintas, diferentes serão, naturalmente, as soluções que poderão ocorrer para questões eventualmente semelhantes.
(…)

3.2
(…)
No DL 433/82 citado prevêem-se três momentos durante os quais o arguido pode reagir à imputação citada: o primeiro é o consignado no já mencionado art. 50º; o segundo é o previsto no artº 59º e o terceiro é o art. 73º.
No primeiro momento – o do art. 50º – consigna-se o princípio de que antes da aplicação de qualquer coima ou sanção acessória, tem de se assegurar ao arguido a prévia possibilidade de se pronunciar sobre a imputada contra-ordenação e sobre as sanções. No preceito diz-se “...sem antes”, o que inculca a ideia de que a defesa que o arguido pode fazer, deve ocorrer necessariamente antes da decisão administrativa.
É aqui se afirma a primeira fase do procedimento contra-ordenacional. É a fase administrativa.
A fase que começa com a notícia da contra-ordenação - Art. 48 do DL 433/82 - e termina com a decisão da entidade administrativa. Mas se o art. 50 dá corpo ao direito constitucional à defesa do arguido, porventura condiciona-o, mormente em termos de forma?
A resposta a dar é, para nós, negativa.
O ordenamento a que se vem aludindo no que concerne a tal questão, nada, absolutamente nada prevê, nesta fase. E nada prevendo, significa que o arguido se poderá “pronunciar”, ou usando a forma escrita, ou explorando o seu direito de audição. Ou poderá, ainda, exercendo igualmente um direito próprio, manter-se em silêncio, sendo certo que o exercício de tal direito não pode ser processualmente valorado contra ele.
Nesta fase, nenhum condicionalismo a lei consignou, nenhuma obrigação formal prescreveu para o exercício do direito de defesa.
Aliás no âmbito do direito processual penal isso mesmo está vigente. Ou seja, não impendem sobre o arguido, neste ordenamento, outras obrigações que não as previstas no nº 3 do art. 61 do CPPenal. E nestas, desde já o afirmamos, não constam deveres de alegação, obrigações de conteúdo definido. E se no processo penal onde as sanções têm uma fundamentação ético-jurídica as coisas assim se passam, o mesmo deverá ocorrer, por maioria de razão, no âmbito das contra-ordenações onde tal fundamentação não se descortina.
Assim, surge completamente infundado exigir ao arguido que logo na primeira fase do procedimento contra-ordenacional – a administrativa –, tenha de oferecer, de alegar factos junto da acoimante, para, dessa forma, no futuro poder discutir, poder contestar a decisão daquela. Ou seja, prefigurar uma defesa por antecipação.
Mas uma outra razão se poderá adiantar e que resulta da própria concepção desta fase processual. Exigir-se o dever de alegação por parte do arguido aquando do cumprimento do aludido art. 50 – opinião sufragada no despacho criticado, significaria, na prática, como é bom de ver, a emergência de um dever de constituição de advogado, de defensor. Na verdade, que cidadão comum estaria à vontade para perante a imputação de um ilícito de mera ordenação social atingir o real alcance daquele, elegendo os factos pertinentes e escolhendo o melhor direito aplicável? Por certo que pouquíssimos. Seria totalmente fora do bom senso obrigar-se o arguido na fase administrativa a constituir advogado, um profissional devidamente habilitado para, compreendendo desde logo os contornos da imputação, ter o dever, a obrigação, quiçá o ónus, de apresentar a sua defesa, sob pena de ver definitivamente precludido o seu direito. Só um especialista é que estaria em condições de fazer a devida alegação junto da autoridade administrativa, tendo em atenção o facto e a sanção previsível.
Mas a lei vigente não instituiu tal regime e isso resulta, inequivocamente, do disposto nos arts. 53 e 59 do mesmo DL 433/82. No art. 53 prevê-se, na sequência do direito de defesa que assiste ao arguido, o direito deste ser assistido por advogado “em qualquer fase do processo”. E no art. 59, se consigna, no seu nº 2, o seguinte:
“O recurso de impugnação poderá ser interposto pelo arguido ou pelo seu defensor”.
Da conjugação destes normativos resulta claro que no processo contra-ordenacional, na fase administrativa a que se vem aludindo, não é obrigatória a constituição de defensor. Uma coisa é ter o direito, outra é ter o dever. Mas também se retira dos normativos em causa, de forma evidente, que o arguido pode impugnar a decisão da autoridade administrativa sem necessidade de se socorrer de um defensor, de um advogado. O recurso de impugnação - um concreto exercício do direito de defesa - pode ser apresentado pelo próprio arguido. A conjunção “ou” não consente outra interpretação.
Se aquando da passagem de uma fase administrativa para uma fase judicial do procedimento contraordenacional o legislador se satisfaz com o que um leigo, um cidadão comum, possa elaborar em termos de reacção a uma decisão condenatória aplicada pela entidade administrativa, que concretos valores se impõem para que aquele seja obrigado aquando do cumprimento do art. 50 supra referido, a constituir defensor?
Se a lei permite que o cidadão comum possa, de moto próprio, impugnar a decisão administrativa, é porque o legislador, claramente, quis instituir um regime onde impere a facilidade do acesso ao direito e à justiça, um regime completamente afastado de exigências e escaninhos jurídicos. Apenas criou três exigências, mas de forma: o recurso tem que ser escrito, tem que conter alegações, tem que terminar com conclusões.
Pelo exposto, neste ponto, nos parece que não é acertado o juízo veiculado no despacho sob sindicância.

3.3
Mas como se referiu já, ultrapassada a fase administrativa, entra-se numa nova fase, a judicial do procedimento contra-ordenacional. É a fase que se inicia com o disposto no art. 59 mencionado. Nesta o impulso cabe ao arguido que apresenta a sua impugnação à entidade administrativa. E esta não é uma mera receptadora e encaminhadora do recurso. A lei atribui-lhe direitos e ao fazê-lo consigna-lhe obrigações.
De facto, apresentada a impugnação, a acoimante deve apreciá-la, deve conhecer do seu conteúdo, deve apreciá-la na sua substância. Dispõe o art. 62, nº2 do DL 433/82 que até ao envio dos autos ao MºPº, a autoridade administrativa pode “revogar a decisão de aplicação da coima”. Aquela perante a argumentação apresentada, ou seja, perante a oferta de novos factos, de uma diferente leitura jurídica das normas aplicadas na decisão condenatória, pode alterá-la. Ou seja, é aqui, neste momento, que o arguido poderá oferecer, com mais cuidado, até face às mencionadas exigências de forma, um conjunto de factos, eventualmente novos para a entidade administrativa, que poderão ter a virtualidade de fazer alterar a decisão daquela. Nada alterando esta, então os autos são remetidos para o MºPº.
Chegados à esfera do MºPº, os autos deverão ainda ser analisados por este que, com a concordância do arguido, poderá não fazer a introdução em juízo. É o que determina o art. 65-A do mesmo DL. Enfim, tudo procedimentos formais visando a não sujeição do pleito à via judicial.
Porém, não ocorrendo a retirada da acusação, deve ser presente pelo MºPº ao juiz todo o processo, dispondo o art. 62 já citado, mas no seu nº 1, que a decisão administrativa vale como acusação.
Na verdade, a decisão administrativa, como acusação que é, define, delimita o “thema decidendum”, representando a impugnação judicial apresentada pelo arguido a contestação àquele. Assim, estabiliza-se a instância, ficando a conhecer-se os factos que deverão ser apreciados em julgamento, um direito que assiste ao arguido, pois que o julgamento só não se realiza se o arguido nisso concordar – art. 64. Para apreciação em audiência vão os factos vertidos na decisão administrativa e os que foram oferecidos pelo arguido na sua contestação. É este, em nosso ver, o figurino traçado para este concreto momento processual.
Como seria possível o arguido defender-se de uma acusação se não a pudesse contrariar, oferecendo, eventualmente, novos factos, novas provas? Se tal não acontecesse, como seria possível entender a imediata acção processual, a audiência de julgamento? Esta ficaria vazia de sentido se o arguido não pudesse, por forma ampla, como impõe a Constituição da República, defender-se da acusação, da decisão administrativa. Mais, seria completamente irracional exigir-se ao arguido uma defesa por antecipação, ou seja, prevenindo já a decisão administrativa, a sua eventual condenação, criando a obrigação de condução para o processo, mal se desse conta da existência do mesmo, toda a defesa que achasse pertinente. Então o arguido não teria o direito de defesa, tinha antes o dever de defesa. É postura com a qual não concordamos, obviamente.
A defesa do arguido deverá acontecer, por forma efectiva, perante uma concreta acusação. E tanto assim quis o legislador que, na sequência de decisão do Tribunal Constitucional, foi aumentado o prazo para que o arguido pudesse reagir à decisão condenatória da entidade administrativa. Antes o prazo para impugnação era de 5 dias e foi alterado para 20 dias pelo DL 244/95 de 14/04 (ver art. 59, nº3 do DL 433/82 referido). Esta alteração traduz uma clara preocupação: o arguido, neste momento, poderá produzir a sua defesa, sem qualquer restrição, por forma a poder alterar a decisão sancionatória, oferecendo provas, alegando os factos que entender convenientes à sua defesa. É, por isso, o momento fulcral para a defesa do arguido.
*
Como se vê, este douto Parecer suscita questões de elevada pertinência, cujas ilações são fáceis de intuir, no sentido já acima propugnado.
A posição do Tribunal de Esposende à qual o Ilustre P.G.A. assim reagia era fundamentada nos seguintes termos:
Assim, é incompreensível que o arguido possa, de forma arbitrária, menosprezar a dita fase, pura e simplesmente ignorando a possibilidade que a mesma lhe confere de se defender (artigo 50º do supramencionado diploma legal), e assim limitar a possibilidade de a sua defesa ser aí considerada, remetendo a apreciação ex novo da questão para os tribunais que eventualmente farão aquilo que a autoridade administrativa poderia ter feito, se tivesse tido oportunidade.
Admitir isto equivaleria a esvaziar absolutamente de conteúdo útil a fase administrativa do processo contra-ordenacional, pois tudo se passaria como se tal fase não tivesse qualquer interesse, já que o arguido, notificado para apresentar a sua defesa, nada faria (não obstante lhe assistir o direito de ser ouvido e de se defender e à administração o correspondente dever), remetendo posteriormente para o tribunal a apreciação ex novo da questão, deixando o tribunal, como tem vindo a suceder, de funcionar como verdadeira instância de recurso (numa altura em que se tem vindo a tentar subtrair questões de menor dignidade aos tribunais, com o crescente movimento de desjudicialização).
Tudo ponderado, assumindo que estamos perante um verdadeiro recurso, conclui-se pela inadmissibilidade da alegação de factos novos - na medida em que não foram alegados perante a administração - circunstância que, a ser assim, não pode ser atendida, devendo o recurso ser rejeitado por falta de alegações admissíveis e válidas.
Com efeito, de acordo com o art. 59º nº3 do DI 433/82, o recurso interposto deve conter alegações e conclusões, acrescentando o art. 63° nº1 do mesmo decreto, que o juiz rejeitará o recuso que não respeite as exigências de forma.
No caso vertente, porque de novos factos se tratam, não são válidas (e como tal admissíveis) as alegações apresentadas, o que determina, desde logo, a rejeição do recurso interposto.
Por outro lado, e ainda que não se entendesse ser possível a rejeição do recurso por falta de alegações válidas, sempre se diria que a avaliação por parte do tribunal das novas questões suscitadas, sem que a entidade administrativa tivesse tido a possibilidade de sobre elas se pronunciar, configuraria um caso de incompetência material do tribunal, por não ser o juiz a entidade legalmente competente para instruir o processo de contra-ordenação e decidir da aplicação de coimas, atento o estatuído nos arts. 33° e 34º nº 1 do citado DL 433/82.
E tal raciocínio evidentemente terá aplicação à totalidade do recurso interposto, pois os factos ora trazidos a tribunal, que traduzem verdadeiras "circunstâncias atenuantes", podiam e deviam ter sido levadas à consideração da entidade administrativa, sendo certo que a inibição de conduzir não é uma surpresa para o arguido, nem quanto à sua aplicabilidade nem quanto à sua medida, visto que a mesma consta já do auto de noticia como uma possibilidade. O mesmo se passa quanto às possibilidades de suspensão, condicionada ou não à prestação de boa conduta.
Em suma, porque se tratam de factos que o arguido já tinha conhecimento e não os referiu em sede de defesa do processo administrativo, não pode em suma alegá-los agora perante uma entidade de recurso.

Esta posição foi unanimemente refutada neste Tribunal, salientando-se, de entre vários, o Acórdão proferido no Pº nº 332/02, relatado pelo Venerando Juiz Desembargador Dr. Tomé Branco, do qual se cita:
(…)
E não tem qualquer sentido falar em incompetência material do tribunal para decidir as questões suscitadas no recurso e não postas à apreciação da autoridade que proferiu a decisão administrativa impugnada, por aplicação dos falados artºs 33º e 34º, pois o que está em causa não é a instrução do processo de contra-ordenação nem a aplicação de qualquer sanção por parte do tribunal na fase administrativa do processo, mas a impugnação judicial da decisão proferida nessa fase pela autoridade administrativa, para o que o tribunal tem obviamente competência, face ao mo 61º do citado DL nº 433/82.
Assim, nunca o tribunal recorrido podia rejeitar o recurso com o fundamento invocado.
E não é correcto o entendimento de que no recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa não podem suscitar-se questões não submetidas à apreciação dessa autoridade.
Na verdade, essa impugnação, apesar de chamada de recurso pela lei, tem pouco a ver com os recursos interpostos das decisões judiciais, pois que o que nela se aprecia é uma acusação feita ao arguido.
E no julgamento dessa acusação, ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, o tribunal não funciona como instância de recurso. Só se pode falar em instância na fase judicial do processo. Instância de recurso é, pois, a Relação. O tribunal junto do qual é impugnada a decisão administrativa é sem dúvida a 1ª instância. É o que dizem os artºs 65º-A ("sentença em 1ª instância") e 66º ("audiência em 1ª instância") do referido DL nº 433/82.
Estando em causa o julgamento de uma acusação feita ao arguido, a este tem de ser dada a máxima possibilidade de se defender dela, em obediência ao comando do artº 32º, nº 10, da Constituição. E isso só é garantido se lhe for permitido alegar para esse julgamento quaisquer factos susceptíveis de serem valorados a seu favor na decisão a proferir.
A fase judicial do processo de contra-ordenação tem de comportar, pois, um efectivo direito de defesa, que só existe se houver a possibilidade de contrapor aos da acusação quaisquer factos que o arguido entenda serem-lhe favoráveis.
Aliás, o artº 268º, nº 4 da Constituição garante uma efectiva tutela jurisdicional dos direitos e interesses dos cidadãos afectados por actos da Administração. E só há verdadeira tutela jurisdicional desses direitos e interesses se na impugnação judicial de tais actos não estiver fechada a matéria de facto a ter em conta.

E é isso que resulta daquele artº 66º, pois, ao dizer que "a audiência em 1ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções", remete para o DL nº 17/91, de 10/1, onde se prevê a possibilidade de no julgamento o arguido alegar factos em sua defesa.

Em conformidade com o exposto, conclui-se que a decisão recorrida não pode manter-se”.

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O ora relator, em diversos acórdãos por si relatados veio a acrescentar algumas notas não despiciendas a esta questão da admissibilidade ou não de defesa na fase judicial e que se traduziam no seguinte:
No artº 50º estabelece-se que “não é permitida a aplicação de uma coima (...) sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.
O que a lei exige é tão somente que seja assegurada ao arguido a sua audição e a possibilidade de se defender - Conforme salientam Simas Santos e Lopes de Sousa, Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral, 2001, pág.293, o texto do artigo reporta-se apenas ao direito de audição, enquanto a epígrafe refere expressamente o “Direito de audição e defesa do arguido”. e não lhe advindo qualquer cominação se não exercer esses direitos - Sobre o tema, cf. EDUARDO CORREIA, Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX, pág. 275).
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Assim sendo, será que o arguido pode pura e simplesmente aguardar a decisão da entidade administrativa e, caso não se conforme com ela, vir depois, então sim, a Tribunal apresentar as suas razões?
A grande maioria das pessoas está ciente desta possibilidade e de facto assim procede, tanto mais que, apesar da inexigência de forma, é-lhes difícil, por si sós, elaborarem defesa adequada e o patrocínio forense, mesmo que por via de apoio judiciário, causa transtornos e custos incompatíveis.
Por isto, só depois do desagrado da decisão administrativa, quer pelo montante das coimas, quer pelo âmbito das sanções acessórias (em especial, nas contra-ordenações estradais, da de inibição de conduzir) é que as pessoas investem no recurso aos Tribunais.
Um dos argumentos da tese da impossibilidade de defesa posterior é a da inutilidade em que se transformaria o processo administrativo.
Pois bem: já se pensou no caos em que se tornariam os serviços administrativos se não estivesse garantido o recurso para um Tribunal sem o exercício prévio de defesa?
As pessoas passariam, em muito maior número, a deduzir defesa perante a entidade administrativa, com um aumento exponencial de trabalho (audição de testemunhas, com depoimentos escritos, realização de outras diligências requeridas, etc.) e, mesmo assim, nada garante que diminuíssem os recursos para Tribunal e antes é de se admitir que também esses aumentassem substancialmente.
Outro dos argumentos é o da incompetência material do Tribunal quando o arguido apenas se vem defender em impugnação judicial, sem que a entidade administrativa tenha oportunidade de apreciar a defesa e uma vez que, nos termos dos artºs 33º e 34º, é a tais entidades que está deferido o processamento e as consequentes decisões.
Este argumento não tem qualquer validade porquanto o regime legal não confunde as competências: a entidade administrativa, com ou sem defesa, decide; o Tribunal, havendo defesa junto daquela entidade, também tem que decidir e é ponto assente que tem que conhecer de facto e de direito - cf. artº 64º, nº 4.
No caso de não ter havido defesa na fase administrativa é que se suscita a questão de dever ou não conhecer, mas então o argumento reconduz-se a si próprio: não conheço porque sou materialmente incompetente!
Estes argumentos - e todos os que se quiserem invocar, a favor ou contra - só encontram alguma validez se se descobrir uma razão essencial da qual os possíveis argumentos sejam consequência. Ou seja, deve partir-se de uma razão fundamental que acolha certas circunstâncias e não destas para encontrar aquela.
E essa razão essencial é a pura opção de política jurisdicional.
Praticamente todas as infracções que passaram a ser objecto do direito de mera ordenação social - crimes, contravenções e transgressões - eram processadas na jurisdição comum, com subordinação a regimes substantivos e processuais específicos.
Justificando-se a transferência dessas infracções para aquele novo ramo do direito, haveria que se criar um regime geral, tanto no plano substantivo como no processual, sem prejuízo de se manterem de fora, por excepção, algumas condutas ilícitas com características próprias, como sucedeu, por exemplo, com as infracções laborais, fiscais e outras.
Atenta a natureza do direito de mera ordenação social, a função da sua aplicação teria que caber a órgãos da administração pública, mas garantindo-se sempre, e até por imperativo constitucional, o direito de impugnação.
Como ensina Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 148), “todas aquelas questões que são susceptíveis de decisão jurisdicional em sentido material devem, num Estado de Direito, ser deixadas à decisão dos Tribunais ou ser, pelo menos, sujeitas a controle jurisdicional. Pois é justamente a Jurisdição que, não só pela sua imparcialidade e independência, mas ainda pela sua específica competência para (num processo em que a ambas as partes são garantidas todas as possibilidades de alegação e defesa) decidir os litígios do estrito ponto de vista da juridicidade e sem se deixarem influenciar por considerações de qualquer natureza, oferece a maior garantia de objectividade e correcção jurídica da decisão”.
Ora, neste particular, conforme se diz no preâmbulo do citado Decreto-Lei nº 232/79, “após algumas hesitações, optou-se por atribuir aos tribunais comuns a competência para conhecer do recurso de impugnação judicial”.
Reconhece-se de boamente, acrescenta-se, que a pureza dos princípios levaria a privilegiar a competência dos tribunais administrativos. Ponderadas, contudo, as vantagens e desvantagens que qualquer das soluções irrecusavelmente comporta, considerou-se mais oportuna a solução referida, pelo menos como solução imediata e eventualmente provisória.
E isso por ser a solução normal em direito comparado. E ainda por se revelar mais adequada a uma fase de viragem tão significativa como a que a introdução do direito de mera ordenação social representa. Além do mais, afiguram-se mais facilmente vencíveis as naturais resistências ou reservas da comunidade dos utentes do novo meio de impugnação judicial”.
O legislador teve perfeitas noções das consequências da inovação introduzida e acautelou a sua minimização através da opção da deferência os Tribunais comuns da competência para conhecimento das (eventuais) impugnações das decisões das entidades administrativas.
E, ao fazê-lo, teria necessariamente que distinguir as fases processuais de cada uma das jurisdições - a administrativa e a judicial - e subordiná-las, no todo, às regras de cada uma dessas jurisdições: na fase administrativa valeria a “ordem jurisdicional administrativa”; na fase judicial valeria a “ordem jurisdicional comum”.
Como elemento intermediário de ligação entre as duas jurisdições, foi eleita a figura da impugnação, definindo-se-lhe regras exclusivas que nada têm a ver com os recursos ordinários.
A partir do momento da separação das fases processuais, com a entrada na fase judicial, há absoluta autonomia desta jurisdição, ficando a fase administrativa totalmente ausente em termos do objecto a decidir, mas sem prejuízo da sua participação na fase judicial (jurisdicionalizada), quer por colaboração, quer para defender o ponto de vista administrativo.
As diversas jurisdições de uma ordem jurídica, apesar de poderem ter pontos substantivos e adjectivos comuns e mecanismos processuais complementares entre si, repelem-se naturalmente umas às outras, reivindicando-se cada uma como um “sistema” próprio.
Os domínios dos direitos de defesa e da prova são aqueles em que mais se fazem sentir as exigências próprias da natureza de cada uma das jurisdições, não havendo identidade entre as normas respectivas. Cada jurisdição tem, pode dizer-se, uma morfologia e uma sintaxe jurídicas próprias cuja unidade e autonomia há que preservar.
Em coerência, o legislador definiu uma série de preceitos tendentes a acentuar a absoluta autonomia da fase judicial, sem prejuízo do aproveitamento, por economia, mas com o acordo do Ministério Público e/ou do arguido, de elementos processuais da fase administrativa - cf. artºs 64º, nº 2 e 68º.
Saliente-se, aliás, que nestes dois casos é que há alguma ligação à fase administrativa, pois em tudo o mais ela fica totalmente afastada e a própria decisão deixa de subsistir - Veja-se o que se diz no Ac. do S.T.J. de 04-07-00:
I - Na impugnação judicial em sede de contra-ordenação, a remessa dos autos ao Ministério Público vale como acusação.
II - Assim, a decisão administrativa "qua tale" deixou de subsistir, competindo ao tribunal de 1ª instância apreciar, não a dita decisão, mas os factos que a suportam, produzindo uma decisão " ex novo".
III - Ora, alegando o recorrente (na impugnação) factos nos quais pretende suportar, verbi gratia, a suspensão da inibição de conduzir e a prestação de caução de boa conduta (em sede de contra-ordenação ao Código da Estrada), impõe-se a realização de julgamento no dito tribunal, não sendo correcto dizer-se que tal alegação deveria ter sido feita em sede administrativa e registar-se a impugnação judicial.
, já que não faria qualquer sentido que um “produto” administrativo passasse a ser objecto e a ter relevância noutra jurisdição. Foi exactamente isto que o legislador não quis ao eleger a jurisdição comum como local de conhecimento da impugnação - Num acórdão do STA, de 17-03-99, diz-se que “sendo a impugnação respectiva destinada ao tribunal e ao exercício da função jurisdicional, a autoridade recorrida comporta-se como mera intermediária e receptáculo do órgão jurisdicional”.
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“Local” e não “instância”, pois, conforme se vem aduzindo, não pode um Tribunal de uma determinada jurisdição funcionar como instância de recurso de outra jurisdição.
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A primeira atitude denunciadora do corte com a fase administrativa, e que melhor esclarece a resposta à questão aqui em análise, é a da natureza da apresentação dos autos pelo Ministério Público ao Juiz, dizendo expressamente o artº 62º, nº 1 que tal acto vale como acusação.
As consequências disto são a aplicação imediata, e salvo no que respeita a regras próprias, das regras do processo criminal, incluindo as atinentes à prova, nos termos do artº 315º do Código de Processo Penal - Neste sentido, dizem Simas Santos e Lopes de Sousa, op. cit., 335:
“Não se refere neste artº 59.º a necessidade de o arguido indicar no requerimento de interposição do recurso as provas que pretende ver produzidas perante o tribunal, ao contrário do que se prevê expressamente no n.º 2 do artº 213.º do C.P.T., para os processos de contra-ordenações fiscais não aduaneiras.
Esta omissão de tal exigência nos processos a que é aplicável o R.G.C.O, parece ter de considerar-se como intencional, designadamente porque não foi incluída neste artº 59º uma referência idêntica à contida naquela norma do C.P.T., apesar de a redacção actual ser posterior à vigência deste Código.
Sendo assim, por força do preceituado no n.º 1 do art.º 41.º deste R.G.C.O, será aplicável o regime do processo criminal, em que há a possibilidade de o arguido indicar a prova a produzir na audiência de julgamento nos 20 dias posteriores à notificação do despacho que designa dia para audiência de julgamento (art. 315.º, n.º 2, do C.P.P.)..
No artº 59º, nº 3 apenas se exige (mesmo através de acto do próprio arguido, note-se bem) que o recurso deve constar de alegações e conclusões, podendo ou não ser indicada a prova respectiva
- Não se argumente que ao prever que o recurso deve constar apenas de alegações e conclusões se quer dizer que nele não cabem os meios de prova, pois a sua indicação decorre naturalmente da defesa que se deduz, mesmo que ela não contenha factos novos e se limite aos constantes do auto de notícia.
A questão da admissão ou não de defesa exclusivamente na fase judicial é exactamente o que se está a apreciar, mas, mesmo no caso de a ter havido na fase administrativa, não está o arguido impedido de, para a fase judicial, vir acrescentar nova prova..
O arguido limita-se a manifestar a sua discordância quanto à decisão e a pedir, fundamentando, que o seu caso seja apreciado por via judicial, isto é, noutra jurisdição e não noutra instância.
”A remessa do processo ao Ministério Público e não directamente ao juiz, anotam Simas Santos e Lopes de Sousa (op. cit., 352), visa possibilitar àquele promover a prova dos factos que considere relevantes para a decisão (artº 72.º,n.º 1, do R.G.C.O.), para além de lhe proporcionar tomar conhecimento do processo em que irá ter intervenção na fase judicial, e apreciar da legalidade da condenação.
Ao fazer esta apreciação, o Ministério Público pode chegar à conclusão de que a condenação é ilegal.
Porém, não pode deixar de apresentar o processo ao juiz, como resulta dos termos imperativos do n.º 1 deste art. 62.º”.
Depois da entrada dos autos em juízo - isto é, na fase judicial comum -, tudo decorre de acordo, como já se disse, com as regras adaptadas ao R.G.C.O. e com as do Código de Processo Penal, com a particularidade de a entidade administrativa, nos termos do artº 70º, dever ser notificada da data da audiência e de aí levar “os elementos que reputem convenientes para uma correcta decisão do caso, podendo um representante daquelas autoridades participar na audiência”, ou seja, a autoridade administrativa também pode contrariar a defesa que o arguido apresentar.
O mesmo se passa com as impugnações de medidas das autoridades administrativas previstas no artº 55º e cujos trâmites têm que ser iguais aos da impugnação da decisão final - Neste sentido, cf. Simas Santos e Lopes e Sousa, op.cit., 316, nota 3..
Também nestes recursos de impugnação de medidas tomadas no decurso da fase administrativa, os arguidos podem não ter apresentado defesa e prova sobre o objecto concreto dessas medidas e nem por isso ficam impedidos de apresentar provas para serem atendidas na fase judicial desses recursos que têm apenas a particularidade de serem conhecidos em última instância pelo Tribunal comum.
E se tudo é assim no regime geral (dispensam-se, por ora, outros aspectos justificados pela razão essencial), por maioria de razão parece ser quanto às infracções ao Código da Estrada, que tem, nos artºs 150º a 157º um recanto de normas processuais próprias, dizendo-se no artº 155º, nº 2 que “os interessados podem, no prazo de vinte dias a contar da notificação, apresentar a sua defesa...”.
Tal faculdade, sem qualquer cominação ou preclusão, só pode significar a não obrigatoriedade da defesa imediata e bem assim a possibilidade de diferimento dela para momento posterior, noutra fase e noutra (numa) jurisdição.
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Assim, e sem que haja necessidade de aqui se abonarem mais justificações, decorre de todo o exposto que:
1º - Como regime geral, para controlo das decisões administrativas em processos de contra-ordenação, o legislador optou pela jurisdição comum;
2º - Por virtude de tal opção, nem o acto de impugnação equivale a um recurso ordinário nem a jurisdição comum funciona como segunda instância;
3º - Considerando a autonomia e características próprias de cada uma das jurisdições, a passagem da fase administrativa à fase judicial, sem prejuízo de regras próprias do regime geral, potencia a aplicação imediata do regime legal da jurisdição comum, em especial do Código de Processo Penal;
4º - O arguido pode ou não apresentar defesa perante as autoridades administrativas;
5º - Não o fazendo, tem a possibilidade de apresentar a defesa apenas na fase judicial, podendo fazê-lo logo na interposição do recurso ou no prazo de 20 dias após a notificação da data da audiência;
6º - Mesmo que se tenha defendido na fase administrativa, o arguido pode sempre voltar a defender-se e apresentar prova na fase judicial.
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Como já acima se disse, ao não conhecer da impugnação nos precisos termos em que ela foi apresentada, e que deveria conhecer, o Tribunal violou o direito de defesa consagrado no artº 32º, nºs 1 e 10 da Constituição, vício que tem maior relevo processual do que as nulidades, mesmo as insanáveis.
De todo o modo, sempre se identifica na decisão recorrida a nulidade de omissão de pronúncia (artº 379º, nº 1, al. c), quer por não se conhecer da impugnação, quer por os factos alegados não constarem sequer como não provados, o que, afinal, tudo se traduz no vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, vício previsto no artº 410º, nº 2, al. a), pois não podem restar dúvidas de que outra poderá ser a decisão se os factos trazidos pelo arguido forem conhecidos e ponderados e, de qualquer modo, sempre aqueles factos têm que constar da decisão a proferir.
Este vício, só por si, determina o reenvio do processo nos termos dos artºs 426º e 426º-A e, atenta a natureza dos factos imputados e dos alegados para defesa, convém que o novo julgamento abranja a totalidade do objecto do processo.
Porém, tem que se aproveitar a oportunidade para se salientar uma outra nulidade que poderá, eventualmente, prejudicar a prossecução dos termos dos autos.
Referimo-nos à nulidade do auto de notícia por não descrever de forma suficiente a conduta do (alegado) infractor, violando o disposto no artº 170º, nº 1 do Código da Estrada e o prescrito no artº 283º nº 3 al. b) do C.P.Penal.
No artº 170º citado diz-se expressamente que o auto de notícia deve mencionar os factos que constituem a infracção, e as circunstâncias em que foi cometida, isto é, não basta, como foi o caso, imputar meras conclusões.
Com efeito, os autos de notícia, em regra, só dão conta do facto essencial a sancionar - no caso, uma manobra de mudança de direcção -, mas omitem todas as demais circunstâncias também relevantes, nomeadamente as que concretizem certas previsões normativas abertas, como é o caso da do artº 35º, nº 1 do Código da Estrada.
No caso, como se vê do auto, apenas se diz que o condutor efectuou manobra de mudança de direcção para a direita da qual resultou perigo e embaraço para o trânsito.
Ora, dizer isto é formular uma conclusão abstracta onde cabe um sem número de condutas concretas e impedir o efectivo direito de defesa.
O que é que, em concreto, o condutor fez e de que forma é que causou perigo e embaraço para o trânsito?
O que a lei quer é que se descrevam os factos e não a sua previsão típica. Dizer-se que alguém causou perigo e embaraço para o trânsito não é nada, e além de não facultar defesa, também não permite a necessária graduação da ilicitude da conduta.
Assim, e nos termos do artº 311º, nº 1, há-de ser proferida decisão de saneamento em conformidade.

ACÓRDÃO
Pelo exposto, acorda-se em se julgar procedente o recurso e, ao abrigo do disposto nos artºs 426º e 426º-A, reenviam-se os autos para novo julgamento sobre a totalidade do objecto.
Sem custas.
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Guimarães, 1 de Outubro de 2007