Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4269/10.4TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: AVALISTA
LIVRANÇA
RELAÇÕES MEDIATAS
RELAÇÕES IMEDIATAS
CREDOR
Data do Acordão: 11/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 5º J CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32º E 77º DA LULL
Sumário: 1. Em princípio, o avalista da subscritora de uma livrança posiciona-se fora das relações imediatas que se estabelecem entre o emitente desta e a subscritora, encontrando-se apenas numa relação de imediação com a subscritora avalizada.
2. Mas já estará naquelas relações imediatas, podendo defender-se com os vícios da relação fundamental perante o credor-emitente-portador da livrança, se, tendo assinado o título em branco, for envolvido por esse emitente no pacto de preenchimento, ou com ele participar numa relação extra-cartular que interfira nas condições para esse preenchimento.
3. O avalista pode sempre opor ao credor cambiário o pagamento total ou parcial do crédito causal da emissão da livrança, ainda que esse pagamento tenha sido efectuado pelo avalizado.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

No 5º Juízo Cível de Leiria A... deduziu oposição à execução comum para pagamento de quantia certa que tendo como título executivo a livrança junta a fls. 99-100 aí lhe move BANCO C..., S.A..
Alega, para tanto, que o exequente não faz qualquer alusão à origem da obrigação exequenda, nem indica a forma como calculou o seu montante, omissão essa que configura inexistência ou, pelo menos, insuficiência de causa de pedir; tendo a livrança sido por si assinada em branco, e assim entregue ao exequente pelo oponente e pela sociedade subscritora, não houve qualquer pacto quanto ao seu preenchimento, pelo que é abusiva a aposição dos demais elementos que dela constam; por conta da obrigação que esteve subjacente à emissão da livrança – um contrato de leasing tendo por objecto um semi-reboque, celebrado com o exequente em 23.10.2004, com o valor total de € 26.950,26, pagável em 60 prestações mensais – foram pagas ao exequente todas as prestações devidas até 23.10.2009, tendo este recebido já o montante de € 12.724,84.
Termina com a procedência da oposição.

Contestando, o exequente BANCO C... veio aduzir:
Que o oponente conhece bem o contrato de locação financeira que subjaz à livrança exequenda pela simples razão de que no mesmo outorgou; pelas condições gerais desse contrato e pelo pacto de preenchimento da livrança exequenda em que interveio, o oponente autorizou o exequente a completá-la nos termos em que este o fez; a sociedade locatária entrou logo em incumprimento a partir de 23.09.2006, deixando de pagar parte da renda que então se venceu; em consequência, o exequente preencheu a livrança pelo montante correspondente a todos os valores em dívida, conforme o convencionado e comunicou-o aos devedores por carta de 27.10.2010, mas nenhum pagamento se verificou. Remata com a improcedência da oposição.

No final dos articulados foi proferido saneador-sentença a julgar totalmente improcedente a oposição e a ordenar o prosseguimento dos termos normais da execução.

Inconformado, deste veredicto interpôs recurso o oponente, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos da oposição, e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos cumpre decidir.

São os seguintes os pressupostos de facto em que assentou a decisão recorrida:

1) A exequente tem em seu poder uma “livrança”, com data de emissão de 27.10.2008, vencimento em 07.11.2008, na importância de € 24.554,14;
2) Em tal livrança consta que “No seu vencimento pagarei(emos) por esta única via de livrança à D... Leasing, SA ou à sua ordem a quantia de vinte e quatro mil quinhentos e cinquenta e quatro euros e catorze cêntimos”;
3) Em tal livrança, e no lugar destinado ao “nome e morada dos subscritores”, consta aposto, manuscritamente, o dizer: “E..., Lda.”, Rua (...)Leiria”;
4) No lugar destinado à aposição da assinatura do subscritor consta aposto um carimbo com os dizeres “ E..., Lda.”/ A gerência” e, sob este, uma rubrica ilegível;
5) No verso da livrança, constam apostas manuscritamente duas assinaturas dos executados, B... e A..., aduro, F..., e Maria G..., cada uma após os dizeres “Bom para aval ao(s) subscritor(es);
6) A mencionada “livrança” foi entregue à exequente pelos executados, contendo a assinatura da subscritora e dos executados.
7) No exercício da sua actividade, em 13 de Outubro de 2004, a exequente “ D... Leasing SA” (entretanto incorporada pelo Banco C..., SA), celebrou com a “ E..., Lda.” o acordo escrito de fls. 27-30, denominado “Contrato de locação financeira nº 60188”, que tem por objecto “ um equipamento semi-reboque marca Invepe, matrícula L-173718”, com o preço de € 26.950,26, acrescido de IVA no montante de € 5.120,55, no valor total de € 32.070,81, adquirido pela primeira a solicitação da segunda;
8) Nos termos do mencionado acordo, a locatária comprometeu-se ao pagamento de 60 (sessenta) rendas mensais, sendo a primeira no montante de € 5.000,00, as seguintes até à renda nº 60 no valor de € 425,51 cada uma e o valor residual de € 531,01, ajustadas de acordo com a evolução da Taxa Euribor a 3 meses, todas acrescidas de IVA à taxa legal em vigor;
9) Nos termos ajustados sob a cláusula sexta das condições particulares do contrato, a locatária subscreveu e entregou à locadora, na data da assinatura do contrato, livrança a favor desta, com montante e data de vencimento em branco, avalizada pelos executados, para garantia e segurança do bom e pontual cumprimento das obrigações decorrentes da operação do contrato aludido em 7) (conforme “Pacto de Preenchimento” junto a fls. 31, subscrito pela 1ª executada e pelos avalistas);
10) Por cartas datadas de 28.02.2008, registadas com aviso de recepção, enviadas para as moradas da subscritora e dos avalistas constantes dos contratos, a exequente comunicou que resolveu o contrato, comunicando-lhes que à data eram devedores da quantia de € 23.257,85;
11) E por cartas datadas de 27.10.2008, enviadas nos mesmos termos para os mesmos destinatários, comunicou-lhes que iriam proceder ao preenchimento da livrança de caução avalizada, com vencimento em 07.11.2008, no valor de € 24.554,14.

                                                                       *

A apelação.

O recorrente fecha a sua alegação como um conjunto de conclusões em que se surpreendem as seguintes questões:
Se a sentença é nula por não se ter pronunciado sobre a invocada inexistência de causa de pedir decorrente de o exequente não ter alegado qualquer facto (para além de juntar o título executivo);
Se, sendo avalista da livrança exequenda, o oponente podia suscitar as excepções do preenchimento abusivo e do pagamento parcial da obrigação subjacente à emissão do título.

O exequente não contra-alegou.

Cumpre decidir.


1ª Questão: a nulidade da decisão por omissão pronúncia.

Aduz o recorrente que o saneador-sentença recorrido é nulo dado que não apreciou nem aflorou a questão por si levantada na oposição, relativa à falta de alegação de factos que consubstanciariam a causa de pedir (o que se traduziria numa verdadeira ausência desta).
Compulsando aquela decisão, temos de concordar com o apelante.

Na verdade, embora este tenha então invocado a total falta de alegação de factos do requerimento executivo, o que para ele integraria uma falta de causa de pedir – cfr. os art.ºs 1 a 24 da oposição – o certo é que nenhuma abordagem desse tema aparece na decisão.
Está, assim, a mesma inquinada do vício de omissão de pronúncia, gerador da respectiva nulidade (art.º 668, nº 1, alínea d), do CPC), pelo que há que desencadear agora a substituição do tribunal recorrido nos termos da alínea e) do nº 1 do art.º 668 e 715, nº 1, ambos do CPC.
É o que se passará a fazer.

Afirma o recorrente que não está o exequente dispensado de alegar a origem e demais requisitos da obrigação que visa executar.
Estaríamos aqui diante de um ónus geral de alegação destinado ao exercício do contraditório pelo executado-devedor.
Salvo o respeito devido, não é assim que as coisas se passam.
Se não vejamos.
Decorre do art.º 45, nº 1, do CPC que toda a execução tem por base um título. Este confunde-se com o documento que o materializa e prova a aquisição de um determinado direito a favor do credor[1]. Através do título, judicial ou extrajudicial, o executado pode, em princípio, conhecer o direito que está a ser objecto de execução porque nele participou de alguma forma.
O contraditório e a defesa do executado podem, por isso, desenrolar-se a partir da inspecção do título.
Sem título não há fundamento executivo.
Mas a causa de pedir na acção executiva não é o título: é antes a obrigação do executado que nele deve ter o seu suporte essencial.
Pode o exequente ter de alegar factos para completar ou esclarecer o direito inscrito no título, como acontece, p. ex., quando a correspondente obrigação do devedor é incerta, ilíquida ou de exigibilidade condicionada (art.ºs 802 a 805 do CPC), ou emerge de declaração unilateral em que é reconhecida sem menção de causa (art.º 458 do CC). Só que isso nada tem que ver com a criação do título: este já existe previamente.
Tratando-se de obrigações cambiárias, o devedor cambiário e a sua obrigação derivam da mera assinatura do título e dos efeitos que à mesma são outorgados pela lei cambiária respectiva (no caso da livrança, a LULL).
Ou seja, o exequente, portador de uma livrança na qual o oponente apôs a sua assinatura como avalista da subscritora, nada mais tinha que alegar relativamente a esta obrigação, a qual, como se sabe, se caracteriza por ser literal e abstracta.
Com a emissão da livrança e a sua assinatura pelo devedor, o título perfecciona a obrigação deste, não sendo necessário alegar qualquer outro facto.
Pelo que, não se descortinando qualquer falta ou, tão pouco, insuficiência da causa de pedir, a questão em apreço não pode deixar de improceder.


2ª Questão: a de saber se o executado-oponente, como avalista da subscritora da livrança, pode defender-se com as excepções do preenchimento abusivo e do pagamento parcial da dívida. 


Considerou-se no saneador-sentença ora sob censura que não seria permitido ao oponente aduzir excepções fundadas na relação extra-cartular pois enquanto avalista não era “sujeito da relação subjacente à emissão da livrança”.
Sendo de aplaudir o princípio em que repousa esta premissa – no sentido de que, em princípio, o avalista da subscritora não está directa e imediatamente relacionado com o credor cambiário emitente da livrança e seu portador – não nos merece idêntica reacção aquela conclusão.
Desenvolvendo.

Está aqui centralmente em jogo a definição do posicionamento do avalista face ao credor cambiário de uma letra ou livrança, no tocante às excepções cuja oposição perante este lhe é ou não consentida.
Questão que se prende umbilicalmente com o escrutinar do que sejam as “relações imediatas” da obrigação cambiária em que se acha inserido o avalista de uma letra ou livrança, e cujo resultado tem que ver com a possibilidade ou impossibilidade de ele se defender do credor cambiário recorrendo aos mecanismos dos art.º 10 e 17º da LULL.
Trata-se, no fundo, de encontrar solução para o problema da oponibilidade pelo avalista das excepções do preenchimento abusivo do título e, em geral, das que se possam inscrever no âmbito das relações imediatas do credor cambiário.  

Ora já no Acórdão desta Relação proferido na Apelação nº 800/09.6TBCBR-A.C1 foi este mesmo colectivo chamado a pronunciar-se sobre os temas da natureza do aval e da relação do avalista na cadeia cambiária, tendo então produzido a seguinte reflexão:
“Economicamente, não há dúvida quanto a ser a obrigação do avalista uma obrigação de garantia. No entanto, à face do regime resultante do art.º 32 da LULL (aplicável às livranças por força do art.º 77, in fine) tem entendido a doutrina que o aval não é uma fiança, desde logo porque a obrigação do avalista não é subsidiária da do avalizado ou seja, da obrigação do signatário em atenção ao qual foi prestado o aval, na medida que não se extingue com a nulidade da obrigação garantida, salvo se esta advier de vício de forma. Por isso há quem fale, impropriamente, de fiança objectiva, com o propósito de significar que a obrigação do avalista se caracteriza por ser independente e materialmente autónoma da obrigação do avalizado. Perante o credor cambiário, o avalista aparece com uma responsabilidade abstracta pelo pagamento do título (letra ou livrança), com o limite apontado (do vício de forma da obrigação garantida)[2]. No plano da responsabilidade pelo pagamento do título, inexistindo vício de forma da obrigação garantida, tudo se passa como se para o portador a obrigação do avalista fosse perfeitamente independente da do avalizado, acrescendo a esta, como que a replicando em favor do credor. Significativa desta independência ou autonomia perante o credor é a expressão “responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”, que é utilizada na 1ª parte do art.º 32 da LULL. (…)
 Verdadeiramente, pode asseverar-se que a acessoriedade do aval face à obrigação garantida, que alguns autores classificam de acessoriedade típica, só tem expressão quando a obrigação avalizada é nula por vício de forma e, bem assim, quando o avalista paga o título e adquire os direitos do portador contra o avalizado e obrigados para com este (art.º s 77 e 32, III, da LULL).
No mais, a obrigação derivada do aval é um valor patrimonial que se soma ao da obrigação avalizada, estando totalmente autonomizada diante do credor cambiário.
Por força desta nota de perfeita autonomia, o avalista não pode servir-se de qualquer dos meios de defesa que pertencem ao avalizado.
Assim sendo, os vícios da relação fundamental que tenham ocorrido entre os subscritores originários - no caso vertente, mutuários e o mutuante - não podem ser apropriados pelo avalista, ainda que situados no âmbito das relações imediatas que entre aqueles se firmaram, visto que atinentes a uma sequência imediata de sujeitos da relação cambiária”.
Também no acórdão prolatado na Apelação nº 619/10.1TBTMR-A.C1 veio este colectivo a tomar a seguinte posição sobre a distinção entre relações mediatas e imediatas numa letra:  
“Diz-se que a letra está no domínio das relações imediatas “quando está no domínio das relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado, sacador-tomador, tomador-primeiro endossado, etc.), isto é, nas relações nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente das convenções extracartulares”[3].
Já se dirá que a letra estará no domínio das relações mediatas quando ela se achar na posse de uma pessoa estranha às convenções extracartulares.
Como é sabido, a norma em apreço destina-se a proteger a circulação dos títulos e boa fé de terceiros, ou seja, os adquirentes do título não intervenientes numa anterior convenção, pondo-os a coberto da invocação de excepções e meios de defesa dos obrigados cambiários com os quais não se relacionaram. Ela consagra os princípios da literalidade, abstracção e autonomia das letras e livranças, como títulos cambiários vocacionados para a múltipla e sucessiva negociação. Cessa, porém, a protecção dos terceiros quando se evidencia que eles não adquiriram o título de boa fé, tendo esta a extensão que precisamente lhe é atribuída pela última parte do artigo”.
Não se vê razão para abandonar aqui esta perspectiva do aval.
Ela decorre do princípio teórico – inteiramente válido no plano abstracto – que permite compreender a natureza da mera prestação do aval cambiário.
Se a relação subjacente ou imediata que justifica o aval é a que liga o avalista ao avalizado, é essa “bilateralidade” que, em princípio, o coloca fora do círculo das relações do sujeito cambiário imediato, nomeadamente das que respeitam ao portador e emitente ou criador do título[4].
Todavia nada obsta a que o avalista seja intencionalmente envolvido na relação causal da obrigação do avalizado.
Como observa Carolina Cunha[5], “o avalista é um puro obrigado de garantia, cujo ingresso no círculo cambiário supõe, de forma estrutural e estruturante, uma ligação à posição jurídica de um obrigado de referência que recebe a designação corrente de avalizado. Mas a ´bilateralidade explicativa’ da vinculação cambiária do avalista não coincide de forma necessária com essa (aparência de) ligação ao avalizado. Depende, isso sim, do modo concreto como o avalista foi determinado a subscrever o título (…). Não é raro, contudo, que a relação subjacente se estenda ao sujeito que é credor do avalizado e que fica (pelo menos inicialmente) portador do título. O fenómeno é sobretudo visível nos casos de subscrição de títulos em branco em que o avalista outorga no acordo de preenchimento celebrado entre avalizado e credor. Mas mesmo fora do contexto da subscrição em branco, também é possível que interceda uma relação extra-cartular de carácter atípico e variável, entre avalista e credor. (…)”
Esta necessidade de olhar ao contexto do aval para a inclusão ou exclusão do avalista do círculo das relações imediatas do credor cambiário é depois sublinhada por aquela mesma autora com esta explicação[6]:
“Nesta medida, se é exacto afirmar que ‘a relação subjacente no que respeita ao aval é constituída pela relação que fundamenta o aval, a invocar nas relações entre avalista e avalizado’, já nos parece injustificado sustentar que a relação entre o portador-credor e o avalista ‘não constitui uma relação imediata, revelando, isso sim e sempre, uma relação mediata’”.
Tudo depende, por conseguinte, da existência de um acordo ou convenção extra-cartular que vincule ou implique o próprio avalista, envolvendo-o na relação causal que diz directamente respeito ao avalizado e ao credor deste.
Ora, havendo um pacto de preenchimento a que o avalista adere, está construído o elo de ligação deste com a relação subjacente à obrigação cambiária do avalizado e ao direito do atinente credor.
Forma-se então aqui uma relação causal do tipo triangular: se o avalista não pode opor-se ao preenchimento do título pelo credor da obrigação subjacente nos termos do pacto, também lhe é lícito defender-se com a mesma relação fundamental que autorizou o preenchimento do título nesses mesmos termos. A participação no acordo para o preenchimento associa o avalista à relação causal da subscrição do título, que, por isso, a pode discutir livremente com o respectivo credor. Idêntico efeito advirá de o avalista ter intervindo na relação contratual causante da emissão do título.
Revertendo agora aos autos.

O oponente não impugnou a assinatura nem o texto do contrato de locação financeira e do pacto de preenchimento cujas cópias estão juntas a fls. 27-30 e 31.
Limitou-se a afirmar que este pacto não existiu (cfr. o art.º 44 da respectiva oposição). Sem a admissão desta existência não pode obviamente colher a defesa através da excepção do preenchimento abusivo.
Donde que esta excepção – a do preenchimento abusivo – se deva ter por obviamente improcedente e, neste segmento, de nenhuma crítica seja passível o que em consonância se escreveu na decisão recorrida.
Em todo o caso, o conteúdo do acordo do preenchimento que integra o documento não poderá deixar de se considerar reconhecido pelo oponente, “ex vi” da imputação da autoria da letra e assinatura dos documentos particulares que resulta das regras sobre a prova documental (art.º 374, nº 1, do CC).

Mas o executado-oponente e ora apelante também se defendeu com o pagamento parcial da dívida. Não da dívida cambiária, mas da concernente à relação causal, isto é, às prestações da locação financeira cuja satisfação competia à locatária e subscritora da livrança E.., Lda – cfr. os art.ºs 58 e 59 da oposição.
Entendeu a decisão recorrida que essa defesa lhe não era lícita ou consentida, pois que, sendo um mero avalista, seria alheio à relação extra-cartular, nada podendo aduzir a tal respeito.
Só que já vimos que se em tese o avalista não pode socorrer-se da relação causal, já o pode fazer quando os sujeitos desta nela o implicam, designadamente vinculando-o a um certo pacto de preenchimento da livrança, a emitir em caso de incumprimento da obrigação subjacente.
É verdade que o oponente nega o acordo do preenchimento e que essa negação até surge como contraditória com a sua conexão com a relação cartular[7]. Mas alega a origem da relação cambiária, ou seja, a relação causal – o contrato de locação financeira com as prestações convencionadas a cargo da locatária.
No que concerne ao pagamento (parcial) efectuado pelo avalizado, não obstante tratar-se de facto jurídico por este praticado, “o meio de defesa que o avalista dele extrai não é ex iure tertii, nem extra-cartular: é um meio de defesa próprio e cambiário”[8] .

É isto que acontece no concreto caso sub judicio.
O oponente pode excepcionar o pagamento parcial da obrigação a que causalmente a sociedade subscritora D...ficou adstrita, uma vez que, por se inscrever na imediação da sua relação com o exequente, tal pagamento constitui excepção que lhe é consentida deduzir pelo âmbito do art.º 17 da LULL. Mas também teria de aproveitar da satisfação parcial do crédito levada a cabo pelo avalizado, na medida em que essa satisfação extingue em parte o fundamento do direito do portador, não sendo para este um facto que se possa dizer estranho ou alheio (“res inter alios acta”).     
Daí que, à luz do disposto nos art.º 817, nº 2, e 797, nºs 1 a 3, todos do CPC, se impusesse o prosseguimento dos autos após o despacho saneador para averiguação daquele excepcionado pagamento.
Em função dessa imposição, a ora recorrida decisão de pôr termo ao processo – no segmento em que se baseia na inadmissibilidade da oposição do avalista fundada na obrigação causal da livrança – não se pode manter.

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam o saneador-sentença recorrido, determinando que os autos prossigam com vista ao apuramento da factualidade excepcional incluída nos art.ºs 53 a 60 da oposição, eventualmente com dispensa de audiência preliminar e da selecção da matéria de facto controvertida, tudo nos termos do art.º 817, nº 2 e 787 do CPC.       
Custas pela parte vencida a final.

Freitas Neto (Relator)
Carlos Barreira
Barateiro Martins

[1] Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3ª ed., p. 13.
[2] Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, 2ª ed., 1957, 2º V., Fasc.V, As letras, 2ª parte.
[3] Abel Delgado, Lei Uniforme da Letras e Livranças, Petrony, 5ª ed. , p.118.
[4] Hipótese que é, de longe, a que mais frequentemente ocorre.
[5] Letras e Livranças, Paradigmas Actuais e Recompreensão de Um Regime, Colecção Teses, Almedina, pág. 286.
[6] Autora, ob. e ed. citadas, páginas 290-291.
[7] Segundo o Ac. do STJ de 22/10/2013, disponível www.dgsi.jstj., relatado pelo Ex.mo Cons. Alves Velho, a mera alegação da invalidade do contrato de preenchimento acarreta a ineptidão da oposição do avalista com os vícios da relação fundamental, por isso que o desliga da imediação com o credor-portador do título. Se nesta situação é aceitável que se recuse ao avalista a defesa do que afinal ele próprio considera que lhe não diz respeito, já se nos afigura que no caso de apenas ser alegada ausência de acordo para o preenchimento mas emergindo o mesmo do conteúdo de um documento particular cuja assinatura pelo avalista se tem por reconhecida, a respectiva existência (do acordo) não poderá deixar de ser tida em consideração.
[8] Carolina Cunha, ob. e ed. citadas, p. 315 e seguintes. Esta autora respalda-se no art.º 50 da LULL e, aparentemente, na perda de legitimidade do portador do título para exigir o montante que nele continua plasmado, apesar de já não ser o devido.