Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
439/14.4T8FIG.1.C2.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: PAULA SÁ FERNANDES
Descritores: TRABALHO SUPLEMENTAR
DOCUMENTO IDÓNEO
MOTORISTA
REEMBOLSO DE DESPESAS
ESTRANGEIRO
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
I- O artigo 337.º, nº 2 do Código do Trabalho, mantendo, com algumas alterações formais, o regime do artigo 381.º, n.º 2 do Código do Trabalho de 2003, prevê que o crédito correspondente ao pagamento de trabalho suplementar, vencido há mais de cinco anos, só pode ser provado por documento idóneo.
II- Os discos de tacógrafos não podem ser considerados, por si só, como documentos idóneos para prova dos factos constitutivos do direito ao pagamento do trabalho suplementar prestado há mais de 5 anos.
III- No caso apurou-se, apenas, a prestação de trabalho do Autor no estrangeiro, em sábados, domingos e feriados, pelo que terá de se considerar que a liquidação, no que ao valor de refeições concerne, terá de limitar-se aos valores devidos ao Recorrente, quando deslocado no estrangeiro, nesses dias que se viessem apurar como tendo sido dias de trabalho.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 439/14.4T8FIG.1.C2. S1

Recurso de revista



Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório

AA deduziu o presente incidente de liquidação da sentença contra Dias & Filhos, Transportes Internacionais, Ld.ª. Alega que o valor em dívida ascende, à data, o total de € 82.691,64, acrescido de juros legais, no valor de € 29.743,70. Pede que o presente incidente de liquidação deve ser julgado procedente e fixado o valor líquido da sentença proferida a 22/04/2015 na quantia de €112.525,41 acrescida de juros, à taxa legal, até integral e efetivo pagamento.

Após a realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que veio a ser revogada por acórdão de 27.09.2019, que determinou a prolação de nova sentença, esta foi proferida em 18.11.2019, com a seguinte Decisão:

Pelos fundamentos expostos, julgo parcialmente procedente o presente incidente de liquidação e, em consequência, liquido a obrigação pecuniária a cargo da R. “Dias & Filhos, Transportes Internacionais, Lda.”, constante da sentença proferida nestes autos e relativa à retribuição do trabalho suplementar prestado pelo A. ao serviço da R. e ao pagamento das refeições do A. quando deslocado no estrangeiro ainda em dívida pela R. ao A., depois de descontados os montantes já pagos pela R. ao A. a título de ajudas de custo, na quantia de € 15.000 (quinze mil euros), a pagar pela R. “Dias & Filhos, Transportes Internacionais, Lda.” ao A. AA, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do vencimento dessas obrigações e até efetivo e integral pagamento.

O Autor e a Ré interpuseram recursos de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que no Acórdão de 25.09.2020, considerou: O A. tinha, assim, direito a receber a quantia total de € 14.400,00 (288 dias x € 50,00) a título de despesas com refeições quando deslocado em serviço no estrangeiro nos dias supra enunciados. Em suma, o A. tinha direito a receber a quantia de € 15.819,12 a título de pagamento do trabalho prestado em dias de descanso e feriados e a quantia de € 14.400,00 a título de despesas com refeições, no montante total de € 30.219,12, no entanto, como a Ré lhe pagou, no respetivo período, a quantia total de € 30.428,00 a título de ajudas de custo nada mais lhe deve. Assim sendo, impõe-se a improcedência da liquidação e revogação da sentença recorrida, inexistindo qualquer fundamento legal para decidir com base na equidade, posto que, foram apurados os créditos do A. e, em cumprimento do determinado na sentença proferida no presente processo, com vista à sua liquidação, foram descontados os montantes já pagos pela Ré.” Em consequência, proferiu a seguinte Decisão:

Nestes termos, sem outras considerações, na procedência do recurso da Ré e na improcedência do recurso do A., acorda-se em revogar a sentença recorrida e, consequentemente, em absolver a Ré Dias & Filhos, Transportes Internacionais, Ld.ª do pedido formulado pelo A. e ora em liquidação.

Inconformado o Autor interpôs recurso de Revista, com as seguintes Conclusões:

A) Procedem as presentes alegações de recurso do acórdão, datado de 25.09.2020, na medida em que considera procedente o recurso da Ré e improcedente o recurso do A., revogando a sentença recorrida e absolvendo a Ré do pedido formulado pela A. em liquidação.

B) No acórdão de que ora se recorre, considerou-se que não poderia ser considerado o trabalho suplementar compreendido entre janeiro de 2006 e 26/10/2009 por não existir documento idóneo que comprove o mesmo.

C) Não pode de forma alguma o recorrente concordar com tal entendimento.

D) O acórdão começa por considerar que os discos do tacógrafo, conjugados com os depoimentos das testemunhas, constituem prova bastante dos dias concretos que o A. passou no estrageiro em viagens ao serviço da R.

E), Mas, de seguida, já não considera aqueles documentos como inidóneos para a prova do trabalho suplementar no período compreendido entre 2006 e 2009.

F)  O aparelho tacógrafo regista discos de tacógrafo de forma automática o tempo de trabalho do condutor ao longo do período de 24 horas.

G) Ou seja, trata-se de uma função própria do aparelho sobre o qual o condutor não exerce qualquer tipo de influência.

H) No presente caso todos os períodos de trabalho do A. foram devidamente registados.

I) Conseguindo-se precisar através da análise dos discos de tacógrafo, com bastante grau de certeza, que os dias indicados pelo A. no seu incidente de liquidação, correspondem ao trabalho suplementar prestado pelo Recorrente.

J) Se os discos de tacógrafo são documentos idóneos perante as autoridades policiais, perante o Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, perante a Autoridade Para as Condições do Trabalho e perante o Tribunal da Relação de Coimbra para aferir os dias que o A. passou no estrangeiro em viagens ao serviço da R., também o serão para aferir do trabalho suplementar realizado.

K) Até porque na realidade as questões estão conexionadas.

L) Se os discos de tacógrafo provam os dias concretos em que o A. estava no estrangeiro em viagem ao serviço da R., caso esse dia seja um sábado, domingo ou feriado, está automaticamente a provar igualmente o trabalho suplementar.

M) Assim, os discos de tacógrafos sempre terão que ser considerados como documentos idóneos quer para prova dos dias concretos de trabalho que o A. passou no estrangeiro, como para prova de todo o trabalho suplementar prestado ao longo de todo o tempo que perdurou a relação laboral existente entre o A. e o R.

N) Da mesma forma não se pode concordar com o entendimento plasmado no acórdão que considera que todos os valores referentes a título de trabalho suplementar e refeições no estrangeiro se encontram pagos.

O) Conforme se encontra provado o que a R. fazia era, independentemente da legalidade desse procedimento que agora não se encontra a ser discutida, era pagar ao A. a quantia de 0,07€ por quilómetro percorrido.

P) Ora, para que o A. atingisse a meta dos 50,00€ diários e falamos só das despesas com refeições, teria que percorrer diariamente 714,29 kms.

Q) O que num veículo pesado com a velocidade máxima dos mesmos, com as paragens, os tempos de descanso, os outros trabalhos, etc. é praticamente impossível.

R) Por isso, o A. ficou desde logo prejudicado relativamente ao valor da refeição praticamente todos os dias.

S) Por outro lado o A. tinha direito ao pagamento dos 50€ a título de despesas com refeições todos os dias e não apenas aos sábados, domingos e feriados.

T) Se os discos constituem prova bastante dos dias concretos que o A. passou no estrangeiro ao serviço da R., tanto fazem essa prova aos sábados, domingos e feriados, como a faz nos restantes dias da semana, entrando mais uma vez o presente acórdão em contradição.

U) Estando junto aos autos todos os discos de tacógrafo, está feita a prova de todos os dias que o A. esteve no estrangeiro, quer à semana, quer ao fim de semana e é essa prova que tem que ser valorada.

V) Por cada dia que o A. esteve no estrangeiro tem direito a receber os 50,00€ a título de ajudas com refeições.

 W) Bem como tem igualmente direito ao trabalho suplementar prestado em sábados domingos e feriados.

 X) Todas as contas apresentadas pelo A. têm por base a análise dos discos de tacógrafo e dos recibos de vendimento, com os montantes pagos e aqueles que lhe eram efetivamente devidos.

Y) Ainda que se tivesse só em conta 22 dias (não obstante a maior parte dos meses este número ser superior) no estrangeiro, teríamos a quantia de 1100,00€ mensais só de ajudas nas refeições.

Z) Multiplicando aquele valor pelos 85 meses que o contrato perdurou atingiríamos a quantia de 93.500,00€.

AA) E a este valor ainda teríamos que acrescer o trabalho suplementar aos fins de semana.

BB) Ora, tendo a R, pago ao A. a título de ajudas de custo a quantia de 75.679,00€ ao longo de todo o contrato.

CC)   Esse valor não se revela sequer suficiente para o valor referente às refeições.

DD) Pelo que não se percebe nem se aceita que o acórdão considere que foi tudo pago ao A.

EE) Além   disso   o   tribunal   de   primeira   instância   analisou   todos   os documentos e toda a prova existente no processo.

FF) Se decidiu remeter algumas questões para sede de liquidação de sentença é porque entendia qua existiam direitos do A. que não eram passíveis de apuramento e liquidação imediata.

GG) Caso estivesse tudo pago com certeza que o tribunal da primeira instância teria decidido de imediato a questão.

HH) Pelo que, o acórdão recorrido deverá ser substituído por outro que considere os discos de tacógrafo documentos idóneos à prova do trabalho suplementar e dos dias de trabalho que o A. esteve no estrangeiro, que considere como provado que o Recorrente trabalhou efetivamente 652 dias de dias de descanso e feriados, com as devidas refeições, devendo ser condenada no pagamento de 82.691,64€ a título de capital e de juros vencidos e vincendos, ou quando muito, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, seja aplicado o critério da equidade mas seja a Recorrida condenada a pagar ao Recorrente a quantia de 80.000,00€ acrescida de juros vencidos e vincendos, tendo em conta todo o trabalho desenvolvido por aquele.”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

A Exma. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, junto deste Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se no sentido da improcedência da Revista.

As partes nada disseram.

II. Fundamentação

As questões suscitadas nas conclusões do recurso de revista interposto pelo Recorrente/Autor, que delimitam o seu objeto, são:
1. Saber se os discos de tacógrafo juntos aos autos constituem, por si só, documentos idóneos à prova do trabalho suplementar, designadamente de janeiro de 2006 até 26/10/2009.
2. Impugnação da matéria de facto.
3. Saber se a Ré procedeu ao pagamento integral dos montantes devidos ao Autor a título de trabalho suplementar e refeições no estrangeiro.

Fundamentos de facto

Foram considerados provados os seguintes factos:

1º Por sentença proferida neste processo, já transitada em julgado (e ora dada por integramente reproduzida), a R. foi condenada a pagar ao A. “quantia a liquidar posteriormente e nunca podendo exceder os montantes peticionados a este título pelo A., relativa à retribuição do trabalho suplementar prestado pelo A. ao serviço da R. e ao pagamento das refeições do A. quando deslocado no estrangeiro ainda em dívida pela R. ao A., depois de descontados os montantes já pagos pela R. ao A. a título de ajudas de custo, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do vencimento dessas obrigações e até efetivo e integral pagamento;”. (Respostas aos Artigos 12 a 45 da Petição Inicial e aos Artigos 1º a 4º da Contestação)

Segundo as ordens, instruções e conhecimento da R. e desde a sua admissão, o A. prestou trabalho no estrangeiro nos seguintes dias de descanso e feriados:

Ano de 2009: 8 sábados, 7 domingos e 3 feriados

Ano de 2010: 43 sábados, 43 domingos e 8 feriados

Ano de 2011: 45 sábados, 42 domingos e 8 feriados

Ano de 2012: 40 sábados, 34 domingos e 7 feriados,

sendo que a R. pagou ao A. as quantias que constam dos recibos de vencimentos juntos de fls. 15 a 67 verso e de fls. 624 a 650 do processo em papel (aqui dados por reproduzidos na sua totalidade), tendo a R. também emitido o recibo de fls. 68 do processo em papel (igualmente dado por reproduzido na sua totalidade) - (redação alterado pela Relação).

Fundamentos de direito

1.ª Questão - Saber se os discos de tacógrafo juntos aos autos constituem documentos idóneos, por si só, à prova do trabalho suplementar, designadamente de janeiro de 2006 até 26/10/2009.

No que concerne ao trabalho suplementar prestado até 26.10.2009 (até 5 anos antes da entrada da presente ação), prevê o artigo 337º, nº 2 do CT, mantendo, com algumas alterações formais, o regime do 381, n.º 2 do Código do Trabalho de 2003 (vigente à data da alegada prestação de trabalho suplementar), que o crédito correspondente ao pagamento de trabalho suplementar, vencido há mais de cinco anos, só pode ser provado por documento idóneo. Trata-se de uma norma que exige expressamente uma certa espécie de prova (documento idóneo) para a existência de um facto (prestação de trabalho suplementar há mais de 5 anos), pelo que caberá ao STJ apreciar o cumprimento deste preceito pelo Tribunal da Relação, configurando-se como a questão essencial do objeto do presente recurso.

Vejamos então

No caso, o Recorrente pretende que os discos de tacógrafos sejam considerados como documentos idóneos, por si só, para a prova do trabalho suplementar prestado há mais de cinco anos.

Os discos de tacógrafos juntos aos autos são referentes a tacógrafos analógicos.

O tacógrafo é um equipamento instalado a bordo dos veículos rodoviários para indicação, registo e armazenamento dos dados sobre a marcha desses veículos e sobre certos períodos de trabalho dos condutores, cuja instalação e utilização era, à data do período temporal em apreço, obrigatória, em regra, para os veículos pesados de mercadorias e passageiros e decorria dos Regulamentos (CEE) n.ºs 3820/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro e 1360/2002, da Comissão, de 13 de Junho.

No tacógrafo é colocada uma folha de registo, vulgo “disco” que recebe e fixa os registos da distância percorrida, a velocidade de referência, os tempos de trabalho e a velocidade instantânea. A tais registos efetuados pelo aparelho, acrescem espaços destinados ao preenchimento manual pelo motorista, com os seguintes campos: (i) identificação do condutor; (ii) local de saída e local chegada; (iii) data de utilização (viagem); (iv) identificação da viatura; (v) quilómetros à saída e quilómetros à chegada.

Assim sendo, no disco do tacógrafo são registados alguns elementos pelo próprio tacógrafo e outros pelo motorista.

Deste modo, admitindo-se que o disco de tacógrafo poderá ser um documento idóneo para comprovar os registos automatizados gerados pelo próprio tacógrafo (distância, velocidade e tempos de trabalho, que são elementos que as autoridades de trânsito controlam), sem necessidade de recurso a outros meios de prova, já quanto aos elementos preenchidos manualmente pelo motorista, nada de substancial o distingue de qualquer outro documento particular elaborado e preenchido pelo trabalhador. A este propósito importa ter presente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que entre outros acórdãos, afirmou no acórdão de 16.11.2011, no processo n.º 2026/07.4TTPRT.P1.S1 - 4ª secção, quando refere « documento idóneo”, para prova do trabalho suplementar, realizado há mais de cinco anos, terá de consistir num documento escrito, emanado da própria entidade empregadora e que, por si só, tenha força probatória bastante para demonstrar a existência dos factos constitutivos do crédito, sem necessidade de recurso a outros meios de prova, designadamente a prova testemunhal.» (vide, neste sentido, ainda os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 17-12-2014 no Proc. n.º 397/11.7TTMTS.P. S1 - 4.ª Secção, de 19-12-2007, no Proc. n.º 3788/07 - 4.ª Secção).

Ao trabalhador que pretenda fazer valer o direito à remuneração do trabalho suplementar prestado, incumbe a alegação e prova dos factos constitutivos do direito, ou seja, a prova da prestação efetiva desse trabalho e de que foi efetivado com o conhecimento e sem oposição da entidade empregadora, pelo que o Recorrente pretendendo a remuneração de trabalho suplementar prestado no estrangeiro, cabia-lhe alegar e provar em que condições de tempo, modo e lugar foi prestado esse trabalho e o conhecimento e não oposição da Ré.

Ora, os elementos registados pelo próprio tacógrafo nas folhas de registos (discos) não se referem, desde logo, a um trabalhador específico, nem ao dia e local de circulação, nem mesmo atestam qual o veículo em concreto em causa. Tais elementos, que se reportam a factos constitutivos do direito invocado pelo recorrente, apenas se conseguiriam obter através da análise da parte manuscrita pelo trabalhador, que não tem por isso força probatória bastante, carecendo de conjugação com outros meios de prova.

Concluímos assim, que os discos de tacógrafo não podem ser considerados como documentos idóneos, por si só, para prova dos factos constitutivos do direito ao pagamento do trabalho suplementar prestado há mais de 5 anos, pelo que consideramos que o Tribunal da Relação ao não considerar provada a prestação de trabalho suplementar pelo Recorrente em fins-de-semana e feriados no período que antecedeu o dia 26.10.2009, não violou qualquer norma que fixe uma espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

2.ª Questão - Impugnação da matéria de facto

O Recorrente pretende, também, que o STJ altere a decisão relativa à matéria de facto tomada pelo Tribunal da Relação no que concerne aos factos relativos à prestação de trabalho suplementar prestado há mais de 5 anos, desde a entrada da ação (para efeitos remuneratórios) e dos dias de trabalho em que esteve no estrangeiro (com repercussões no valor devido relativo a refeições).

Vejamos as duas situações:
a) Trabalho suplementar prestado há mais de cinco anos

Na sentença do Tribunal de 1ª instância, proferida em 12.05.2015, na ação declarativa comum a que se refere no facto nº 1, e com base na qual foi intentada a presente liquidação de sentença, aquele Tribunal considerou provado, no facto n. º2, que:  Segundo as ordens e instruções e conhecimento da R. e desde a sua admissão, o A. prestou trabalho no estrangeiro em sábados, domingos e feriados não concretamente apurados dos referidos pelo A., na sua Petição Inicial, …. (resposta aos Artigo 58º da petição Inicial e aos Artigos 33º, 34º, 35º, 36º, 54º. 55º e 61º da Contestação”).  

O Tribunal de 1ª instância havia condenado a Ré a pagar ao Autor, «a quantia a liquidar posteriormente e nunca podendo exceder os montantes peticionados a este título pelo A., relativa à retribuição do trabalho suplementar prestado pelo A. ao serviço da R. e ao pagamento das refeições do A. quando deslocado no estrangeiro ainda em dívida pela R. ao A., a título de ajudas de custo, acrescida de juros de mora, á taxa legal, desde a data do vencimento dessas obrigações e até efetivo e integral pagamento» (facto n.º 1).

O Tribunal da Relação, na apreciação do recurso quanto à matéria de facto considerou apenas provado que segundo as ordens, instruções e conhecimento da Ré e desde a sua admissão, o Recorrente prestou trabalho no estrangeiro nos seguintes dias de descanso e feriados:

Ano de 2009: 8 sábados, 7 domingos e 3 feriados

Ano de 2010: 43 sábados, 43 domingos e 8 feriados

Ano de 2011: 45 sábados, 42 domingos e 8 feriados

Ano de 2012: 40 sábados, 34 domingos e 7 feriados, … (facto n.º2).

Como acima se analisou, o Tribunal da Relação ao não considerar provada a prestação de trabalho suplementar pelo Recorrente em fins-de-semana e feriados no período que antecedeu o dia 26.10.2009, não violou qualquer norma que fixe uma espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, pelo que tem de improceder a requerida alteração à matéria de facto.
b)  Dias de trabalho do Autor no estrangeiro

O Tribunal da Relação considerou, apenas, os 288 dias de trabalho suplementar acima referidos. Com efeito, o Tribunal da Relação, aquando da análise dos valores devidos a título de refeições, (fls. 22 do acórdão) referiu que «não se apurou nem foi alegada na p.i. de forma autónoma e concretizada, quantos dias o A. passava no estrangeiro ao serviço da Ré, para além dos sábados domingos e feriados supra enunciados, ou seja, dos citados 288 dias».

O incidente de liquidação de sentença é balizado pelo teor da sentença que se pretende liquidar, pelo que a atividade probatória terá de conter-se não só no quadro da causa de pedir e do pedido, mas, também, dentro da factualidade provada que constituiu o objeto da liquidação.

No caso apurou-se, apenas, a prestação de trabalho do Autor em sábados, domingos e feriados, pelo que se terá de considerar que a liquidação, também, no que ao valor de refeições concerne, terá de limitar-se aos valores devidos ao Recorrente, quando deslocado no estrangeiro, nesses dias que se viessem apurar como tendo sido dias de trabalho.

Considerando os poderes do STJ em matéria de facto, importa esclarecer que, quanto à matéria da prestação de trabalho (não suplementar) não existe qualquer previsão legal que permita afastar as regras gerais do ónus da prova, da força probatória dos documentos e, em especial, o princípio da livre apreciação da prova, sendo que não foi alegado qualquer desrespeito por alguma disposição legal relativa à força probatória dos meios de prova. Significa isto que, quanto a tal factualidade pagamento das refeições, nos dias de trabalho no estrangeiro, a Relação agiu no âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 662º, nºs 1 e 2 do CPC, estando vedada ao STJ a sindicância de tal decisão, na medida em que não pode apreciar se ocorreu algum erro de julgamento, como pretende o Recorrente (neste sentido, vide, o Acórdão do STJ de 19-05-2021, proferido no Proc. n.º 28320/18.0T8LSB.L1.S1 - 4.ª Secção).

Assim sendo, estando fora do âmbito deste incidente o apuramento dos outros dias em que o trabalhador prestou trabalho no estrangeiro (que não correspondessem a sábados e domingos e feriados), e consequentemente, o apuramento de outros valores devidos a título de refeições em tais dias, improcede igualmente a pretendia alteração à matéria de facto.

3ª Questão - Saber se a Ré procedeu ao pagamento integral dos montantes devidos ao Autor a título de trabalho suplementar e refeições no estrangeiro.

O Tribunal, apenas, sobre a matéria de facto provada pode apreciar o pagamento dos valores devidos a título de trabalho suplementar e de refeições no estrangeiro.

No caso, o Recorrente não coloca em causa o cálculo efetuado pelo Tribunal da Relação, quer quanto à remuneração do trabalho suplementar nos 288 dias fixados, quer quanto às refeições de tais dias. Com efeito, a alegação do Recorrente de que as quantias a título de trabalho suplementar e de refeições que não se encontram pagas, pressupunha a alteração da matéria de facto precisamente quanto ao trabalho suplementar prestado nos 5 anos antes da entrada da ação e aos demais dias de trabalho prestados no estrangeiro.

Não tendo sido alterada a matéria de facto, não tendo sido colocados em causa os cálculos efetuados pelo Tribunal da Relação, e tendo em conta a factualidade provada, terá de se considerar improcedente o recurso de revista interposto, devendo confirmar-se o acórdão recorrido.  

III. Decisão

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de Revista, interposto pelo Autor e confirmar-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

STJ, 10 de novembro de 2021.

Maria Paula Sá Fernandes (Relatora)

Leonor Cruz Rodrigues

Júlio Vieira Gomes