Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2475/18.2T8VFX-A.L1.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: NÃO ADMITIDA A REVISTA EXCECIONAL.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

É de rejeitar liminarmente o recurso de revista excecional quando não foram indicadas razões concretas e objetivas reveladoras de eventual complexidade ou controvérsia jurisprudencial ou doutrinária da questão, com a consequente necessidade de uma apreciação excecional com o objetivo de encontrar uma solução orientadora de casos semelhantes.

Decisão Texto Integral:



Processo n.º 2475/18.2T8VFR-A. L1.S2 (Revista excecional) - 4ª Secção

           

Acordam na formação a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA veio interpor um recurso de revista excecional com fundamento no disposto no artigo 672º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, tendo apresentado as seguintes razões para justificar a admissão do referido recurso:

 «Vem o presente recurso interposto do Acórdão que julgou improcedente a nulidade invocada pelo Recorrente e manteve a decisão impugnada do tribunal a quo referente ao processo n.º 2475/18…, que corre seus termos na Comarca ...– Juízo de Trabalho  ...– J….

Deixando sem provimento direitos inalienáveis do trabalhador que são só pela sua importância, protegidos pela Constituição da República Portuguesa, pelas Convenções Internacionais de Direito Laboral e pelo Ordenamento Jurídico Português, sob pena de descurar a proteção de tais direitos e deixando-os cair num vazio….

É, pois, esta a questão que integra o thema decidendum e que delimita o objeto e as conclusões do presente recurso.»

Terminou as suas alegações com as seguintes conclusões:

« a) Realça-se o facto da responsabilidade por acidentes de trabalho, ter sido transferida para a seguradora, pela entidade empregadora, no entanto, esta não responde integralmente pelos danos, assumindo apenas o montante da retribuição anual, ou seja, os, danos patrimoniais emergentes do acidente, no qual não estão contemplados danos não patrimoniais (dano biológico) emergentes do evento lesivo, ficando estes desta forma sem a tutela do direito, o que não se nos afigura, salvo melhor opinião aceitável;

b) Porquanto, está subjacente à lei geral, à lei especifica para o setor, à doutrina e à prática que os danos não patrimoniais, deverão ser assegurados pela Entidade Patronal, ou pela Companhia de Seguros da Entidade Patronal, que no caso em análise terá direito de regresso;

c) Nos termos do artigo 79.º alínea a) da Lei 102/2009 de 10 de setembro, o Autor exercia/ exerce uma atividade de risco elevado;

d) De acordo com a Diretiva nº 89/391/CEE de 12 junho, transposta para o ordenamento jurídico Português pela Lei 102/2009 de 10 Setembro, o artigo 5º nº 1, faz impender sobre a entidade patronal a obrigação genérica de proteção de segurança e saúde dos trabalhadores, como elemento fundamental da política comunitária da proteção social no ambiente de trabalho, tendo a entidade patronal o poder/dever de “atender a alterações das circunstâncias e tentar melhorar as situações existentes” (artigo 6.° n° 1 da Diretiva), impondo uma maior adaptação às circunstâncias concretas e aos constantes progressos técnicos;

e) Para além das obrigações especificas a entidade patronal é responsável, por todos os danos (patrimoniais e não patrimoniais) ocorridos na saúde dos seus trabalhadores;

f) Não se encontra plasmado, quer na Diretiva 89/391/CEE de 12 de junho, quer no diploma que a transpôs Lei 102/2009 de 10 setembro, nem da lei geral, qualquer razão impeditiva do pagamento de uma compensação de danos não patrimoniais no âmbito dos acidentes de trabalho;

g) Tendo o trabalhador, objeto do presente processo, sofrido um acidente que o fez portador de uma incapacidade parcial permanente, ou seja, para todo o sempre, o mesmo deverá ser ressarcido de todos os danos não patrimoniais inerentes à mesma, pela entidade patronal com base no supra exposto, sendo que a reparação dos danos não patrimoniais ao trabalhador, é responsabilidade da entidade patronal com base no regime geral da responsabilidade contratual, estando esta na origem da relação existente à época do evento lesivo;

h) A transferência da responsabilidade por danos patrimoniais para a companhia de seguros, parte no presente processo, não exonera a responsabilidade por danos não patrimoniais da entidade patronal, conforme a legislação em vigor;

i) A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a perda e diminuição de capacidades funcionais, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado, implica um maior esforço no exercício dessa atividade, assim como e/ou a supressão e restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora da sua profissão habitual, uma vez que a incapacidade parcial permanente o vai acompanhar no decurso de toda a sua vida;

j) De acordo com, Antunes Varela os danos não patrimoniais são os “(…) prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome), não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com uma obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação (…) do que uma indemnização.”

k) O pedido de ressarcimento de danos não patrimoniais, à entidade patronal, está indissociavelmente ligado ao facto de o trabalhador ter sofrido graves danos, traduzindo-se em lesão corporal, perturbação funcional e redução da capacidade de trabalho, na percentagem de 10%, conforme relatório do Dr. BB, na atualidade, com tendência real a agravamento, com o consequente envelhecimento do corpo humano, para além do que, se encontra consubstanciado no Código Civil e na Lei de Acidentes de Trabalho, não nos podemos esquecer que o direito à indeminização é de natureza imperativa, sendo subjacente a toda a legislação;

l) Assim, salvo melhor opinião, as dores físicas, sofrimentos morais, privação da qualidade de vida, são condições, sine qua non, relativamente a todo o trabalhador que tenha sofrido um acidente de trabalho, devendo no caso em análise, AA, ser ressarcido pela entidade patronal, Lizmotagem, Lda. de acordo com as regras gerais da responsabilidade civil;

m) A “Condenação extra vel ultra petitum” consubstanciada no artigo 74.º do CPT como bem se observa, trata-se de um mecanismo jurídico-processual único no ordenamento jurídico português, visto que confere ao Juiz o poder de garantir a prevalência da Justiça Material sobre a Justiça Formal.

n) Nesta esteira, há autores que o consideram um Princípio Geral de Direito Processual Laboral, entendendo-o como uma “emanação do princípio da verdade material”, consistindo” numa das pedras de toque do processo laboral.”

o) Pelo que no caso em apreço a “Condenação extra vel ultra petitum”, é uma consequência indispensável a todas as normas e princípios que defendem o trabalhador e constroem a paz social, constituindo também um reflexo processual da irrenunciabilidade dos direitos substantivos do trabalhador;

p) Em caso de acidente de trabalho a “Condenação extra vel ultra petitum” e o princípio “favor laboratoris” são corolários na proteção do trabalhador frente ao infortúnio que representa o acidente de trabalho, por lhe darem efetivação concreta, assegurando a proteção almejada pela Constituição».

2. Foi proferido despacho liminar, no qual se considerou: que o recurso é tempestivo; que o recorrente tem legitimidade; que estão preenchidas as demais condições gerais relativas à admissibilidade do recurso, bem como a existência de dupla conforme.

3. O processo distribuído a esta formação, para se indagar se estão preenchidos os pressupostos para a admissibilidade da revista excecional referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

           

4. A revista excecional é um verdadeiro recurso de revista concebido para as situações em que ocorra uma situação de dupla conforme, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

A admissão do recurso de revista, pela via da revista excecional, não tem por fim a resolução do litígio entre as partes, visando antes salvaguardar a estabilidade do sistema jurídico globalmente considerado e a normalidade do processo de aplicação do Direito.

Assim, só é possível a admissão do recurso pela via da revista excecional se estiverem preenchidos os pressupostos gerais de admissão do recurso de revista e se esta não for possível pela existência da aludida situação de dupla conforme.

Nos presentes autos, como resulta do despacho liminar estão preenchidos os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso decorrentes do artigo 629.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, sendo certo que, como já se referiu, a decisão recorrida confirmou, sem mais, a decisão proferida pela 1.ª instância, pelo que estamos perante uma situação de dupla conforme, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil.

O recorrente invoca como fundamento da admissão do recurso o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, que referem o seguinte:

1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:
a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;
b) Estejam em causa interesses de particular relevância social.

Relativamente à primeira exceção à regra da irrecorribilidade em situações de dupla conforme, prevista na referida alínea, a) pode ler-se em anotação ao art.º 672.º do CPC, anotado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. P. Sousa (Almedina Vol. I, 2018), «Para esta primeira exceção são elegíveis situações em que a questão jurídica suscitada apresente um carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação aos interesses das partes envolvidas. Na verdade, a intervenção do Supremo apenas se justifica em face de uma questão cujo relevo jurídico seja indiscutível, embora a lei não distinga entre questões que emergem do direito substantivo ou do direito adjetivo. Não bastará, pois, o mero interesse subjetivo da parte.»

Com maior desenvolvimento, Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2020, 6.ª Edição, pág. 433) refere: «Outra linha de força aponta para a recusa da pretensão quando a decisão recorrida se enquadrar numa corrente jurisprudencial consolidada, denotando a interposição de recurso mero inconformismo perante a decisão recorrida.

As expressões adverbiais empregues na formulação normativa (“excecionalmente” e “claramente necessária”) não consentem que se invoque como fundamento da revista excecional a mera discordância quanto ao decidido pela Relação. Tão pouco bastará a verificação de uma qualquer divergência interpretativa, sob pena de vulgarização do referido recurso em situações que não estiveram no espectro do legislador.

Constituindo um instrumento processual em que fundamentalmente se pretendem tutelar interesses ligados à “melhor aplicação do direito”, a intervenção do Supremo apenas se justifica em face de questões cujo relevo jurídico seja indiscutível, o que pode decorrer, por exemplo, da existência de legislação nova cuja interpretação suscite sérias divergências, tendo em vista atalhar decisões contraditórias (efeito preventivo), ou do facto de as instâncias terem decidido a questão ao arrepio do entendimento uniforme da jurisprudência ou da doutrina (efeito reparador).»

O Autor citado refere que «A sua concretização no foro laboral pode verificar-se, designadamente, em face de questões submetidas a soluções diversas causadoras de forte perturbação ou insegurança, ou quando surja legislação nova geradora de dúvidas interpretativas que, afetando negativamente os destinatários diretos da decisão recorrida, sejam suscetíveis de se repercutir na resolução de casos semelhantes».

No que concerne à segunda exceção à regra da irrecorribilidade em situações de dupla conforme, prevista na referida alínea b), os autores já citados Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. P. Sousa (Almedina Vol. I, 2018), referem que «Na segunda exceção, por estarem em causa interesses de particular relevo social, serão de incluir ações cujo objeto respeite, designadamente, a interesses importantes da comunidade, à estrutura familiar, aos direitos dos consumidores, ao ambiente, à ecologia, à qualidade de vida, à saúde ou ao património histórico e cultural, valores que naturalmente se sobrepõem também ao mero interesse subjetivo da parte da admissibilidade do terceiro grau de jurisdição».

Abrantes Geraldes, na obra citada (Recursos…), no que se refere aos interesses de particular relevo social salienta que «…o direito do trabalho tem, por natureza, uma dimensão social mais saliente, tendo em conta a transversalidade das normas que regulam as relações jurídico-laborais. A interpretação que seja dada pelos tribunais a determinado preceito é passível de se refletir positiva ou negativamente em sujeitos que não são partes no processo, mas que se encontram em situação similar. Deste modo, pode justificar-se o recurso de revista quando se detete um interesse social que prevaleça sobre o interesse das partes no processo, no sentido de tornar conveniente a fixação de jurisprudência que, sem embargo da aplicação ao caso, seja suscetível de induzir a produção de efeitos externos».

Mais adiante, sublinha que «No quadro das relações jurídico-laborais, pode justificar-se, por exemplo, a intervenção excecional do Supremo, apesar da dupla conforme, quando se esteja perante questões cuja resolução implique operações exegéticas de assinalável dificuldade e em que, no plano prático, seja de prever o ressurgimento em casos futuros; questões que careçam de clarificação jurisdicional superior ou cuja decisão tenha sido afetada por erro grosseiro, prevenindo-se a possibilidade de repetição; questões que tenham surgido  ex novo  e cuja resolução se afigure difícil, tendo em vista evitar decisões contraditórias (efeito preventivo) ou cuja decisão venha ao arrepio do entendimento uniforme ou consolidado da jurisprudência ou da doutrina (efeito reparador); questões cuja resolução seja difícil ou sobre as quais exista divergência jurisprudencial ou doutrinal.»

No caso concreto dos autos lidas as alegações e conclusões, de onde poderiam decorrer as razões que legitimam a admissão do recurso, constata-se que o recorrente se limita a discordar da posição assumida no acórdão recorrido sustentando que o mesmo deixa «sem provimento direitos inalienáveis do trabalhador que são só pela sua importância, protegidos pela Constituição da República Portuguesa, pelas Convenções Internacionais de Direito Laboral e pelo Ordenamento Jurídico Português, sob pena de descurar a proteção de tais direitos e deixando-os cair num vazio….».

O recorrente não indicou quaisquer razões consistentes que permitam a caracterização da questão suscitada como uma questão que pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, nem as razões pelas quais os interesses são de particular relevância social.

Assim, não foram apresentados à formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do CPC, quaisquer elementos que permitam uma ponderação das questões suscitadas no plano dos valores e dos princípios que estão subjacentes às alíneas a) e b) do n.º 1 do referido artigo 672.º do Código de Processo Civil.

Pelo exposto, acorda-se em rejeitar liminarmente o recurso de revista excecional interposto pelo recorrente do acórdão do Tribunal da Relação.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 10 de novembro de 2021.

Chambel Mourisco (Relator)

Maria Paula Moreira Sá Fernandes

Júlio Manuel Vieira Gomes