Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1360/20.2T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: LIMITES DO CASO JULGADO
FACTOS PROVADOS
FUNDAMENTOS
DECISÃO
QUESTÃO PREJUDICIAL
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O caso julgado resultante do trânsito em julgado da sentença proferida num primeiro processo, não se estende aos factos aí dados como provados para efeito desses mesmos factos poderem ser invocados, isoladamente, da decisão a que serviram de base, num outro processo.

II. Os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente.

III. Os fundamentos da decisão adquirem o valor de caso julgado quando criam uma relação de prejudicialidade entre a decisão transitada em julgado e o objeto da ação posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto de uma ação posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objeto da primeira ação, sendo seu pressuposto lógico indispensável.

IV. Para aferir da repercussão da autoridade deste caso julgado formado sobre os fundamentos de uma decisão final sobre o objeto da ação dela dependente, torna-se, assim, necessário, definir e objetivar, de forma precisa e suficiente, os fundamentos de facto e de direito em que assenta a dita decisão prejudicial, de modo a determinar-se se e em que medida aquela decisão se impõe, indiscutivelmente, como julgada com prejudicialidade sobre o objeto da ação posterior.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




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I. Relatório


1. Em 1.06.2020 AA intentou no Juízo Central Cível ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ......, ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “Socolote - Imobiliária, S.A.”, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK e Massa Insolvente da sociedade “Dekaura -Imobiliária, Lda”, formulando os seguintes pedidos:

«A) Condenarem-se todos os cinco co-réus, fundadores, da ora sociedade primeira ré, a verem, judicialmente, declarada, nula e de nenhum efeito, a escritura pública constitutiva da sociedade e ora primeira ré, com a firma “Pedro Paulo Nunes-Imobiliária, S.A.”, atualmente com a denominação “Socolote - Imobiliária, S.A.”, celebrada em 7 (sete) de outubro de 2002 e lavrada a folhas, 90 e seguintes do livro 276-e do então Cartório Notarial  ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial do concelho ..., sob o n.º .....25, pessoa coletiva n. 506.331.512, porque simulada, dado ter havido divergência intencional entre a vontade formalmente declarada pelos outorgantes e a sua vontade real, com a intenção de defraudar a lei e enganar e ou prejudicar terceiros de boa fé, entre os quais o autor e seu falecido irmão, o que conseguiram.

B) Ordenar-se o cancelamento da respetiva matrícula, n.º ...., junto da Conservatória do Registo Comercial ....

C) Declararem-se nulas e de nenhum efeito, as escrituras públicas de compra e venda, celebradas em, 18 de julho; 27 de julho; 17 de agosto de 2.000, 28 de junho de 2001 e 10 de maio de 2002, todas melhor identificadas nos artigos 6 (sexto); 10 (dez) e 11 (onze), supra referidos, por simuladas, dado ter havido conluio (acordo oculto) entre as partes contratantes, maximé, co-réu, CC e co-ré, KK, bem como, divergência intencional entre a vontade destes, formalmente declarada (pagamento do preço) e a sua vontade real, não pagamento do preço, como se verificou, efetivamente, o que tudo foi feito com a intenção de defraudar a lei e prejudicar o autor e seu falecido irmão, pois nem os réus, CC e KK, pagaram o preço da compra feita, em 18 de julho de 2.000, ao autor e seu falecido irmão, nem a compradora, “Dekaura - Imobiliária, Lda.”, pagou o preço das compras que fez, em 27 de julho e 17 de agosto de 2.000 ao autor e seu falecido irmão; bem como, esta firma, “Dekaura - Imobiliária, Lda.”, em 28 de junho de 2001 e 10 de maio de 2002, não pagou o preço das compras que fez aos réus, CC e KK, o que tudo bem se compreende, dada a promiscuidade então existente entre a sociedade “Dekaura -Imobiliária, Lda.”, ora Massa Insolvente e os seus então dois únicos sócios, CC e KK, pelo que não havia, então, qualquer separação de patrimónios e esferas jurídicas entre a sociedade, ora ré, Massa Insolvente de “Dekaura - Imobiliária, Lda.” e o património pessoal dos ora réus, CC e KK.

D) Ordenar-se o cancelamento das inscrições feitas, na Conservatória do Registo Predial do concelho ..., com base nelas.

E) Condenar-se a ré, Massa Insolvente da “Dekaura - imobiliária, Lda.”, a reconhecer que o autor tem o direito de habitar a Fração “d”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ........, freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob a ficha, n.º ….....99, enquanto vivo for e de modo gratuito, face ao acordo celebrado e supra referido.

F) Condenar-se a ré, Massa Insolvente da “Dekaura - Imobiliária, Lda.”, a ver judicialmente, reconhecida, a nulidade, porque simuladas, das escrituras publicas de compra e venda, celebradas em, 27 de julho e 17 de agosto de 2.000; 28 de junho de 2001 e 10 de  maio de 2002, supra melhor identificadas, já que esta ré compradora, não pagou o respetivo preço, o qual não saiu do seu cofre social, tendo havido, divergência intencional dos outorgantes entre a sua vontade formalmente declarada e a sua vontade real, por acordo oculto entre eles e com intenção de enganar e ou prejudicar o autor e seu falecido irmão, ordenando-se o cancelamento das respetivas inscrições feitas com base nelas, junto da Conservatória do Registo Predial de ....

G) Condenar-se a ré, Massa Insolvente da “Dekaura - Imobiliária, Lda.”, a pagar ao autor, todos os prejuízos, quer patrimoniais quer não patrimoniais e que se vierem a verificar desde a data da entrega efetiva do apartamento e até sua efetiva reocupação e a liquidar em execução de sentença.

H) Condenarem-se, os co-réus, CC e KK, a verem judicialmente reconhecida a nulidade da escritura pública de compra e venda celebrada em 18 de julho de 2000, supra referida, por simulada, dado o comprador nada ter pago a titulo de preço, ao autor e seu falecido irmão, tendo havido divergência intencional entre a vontade declarada e a vontade real, por acordo oculto e no intuito de enganar e ou prejudicar terceiros, in casu, o autor e seu falecido irmão.

I) Ordenar-se o cancelamento de todas as inscrições feitas na Conservatória do Registo Predial de ..., com base nessa escritura publica de compra e venda, de 18 de julho de 2.000.

J) Condenarem-se, todos os réus, solidariamente, dada a sua má-fé e conduta dolosa, em conjugação de esforços e em fraude à lei e em prejuízo de terceiros de boa-fé, entre os quais o autor e seu falecido irmão, a pagarem ao autor, a quantia de € 211.385,96, acrescida dos juros de mora já vencidos e calculados até à data da propositura desta ação, no montante de € 50.000,00 e vincendos à mesma taxa de 4% ao ano, até efetivo e integral pagamento.

Subsidiariamente e para a hipótese de assim se não entender;

Dada a má-fé, abuso de direito e fraude à lei, consistente em, sobreposição de esferas jurídicas, confusão de patrimónios e domínio por uma única pessoa física, ou seja o co-réu, CC, supra revelados, de forma reiterada, com intuito de prejudicar terceiros, entre os quais, o autor e seu falecido irmão, deve desconsiderar-se a atribuição, por lei, da personalidade jurídica coletiva, de que gozam as sociedades, co-rés, “Socolote -Imobiliária, S.A.” e “Dekaura - Imobiliária, Lda.”, esta, ora, massa insolvente, face à conduta ilícita supra descrita e em consequência condenarem-se, estas, solidariamente, a pagarem ao autor, a referida quantia de € 211.385,96, acrescida dos juros já vencidos até à data da propositura desta ação, calculados à taxa legal de 4% ao ano, no montante de € 50.000,00 e vincendos à mesma taxa, até efetivo e integral pagamento, tudo com as legais consequências, pois, só, assim, será, efetuada, a costumada, justiça.».

Alegou, para tanto e em síntese, que:

É o único e universal herdeiro do seu irmão LL, falecido o em 16 de junho de 2004

No dia 3 de julho do ano de 2000, no Cartório Notarial ..., o autor e seu  irmão LL outorgaram instrumento público avulso, de procuração irrevogável, aos ora réus, CC e KK, então casados entre si, a quem  conferiram  poderes  para venderem pelos preços e condições que entendessem, em conjunto ou separadamente, quaisquer prédios rústicos e ou urbanos deles outorgantes, desde que sitos na dita freguesia ..., concelho ..., podendo os mesmos  fazer negócio consigo próprios, receber o preço e dar quitação, procedendo à entrega do preço recebido ou prestando contas do mandato conferido  aos seus representados.

Por via destes poderes conferidos e por escrituras públicas lavradas no Cartório Notarial do concelho ..., no dia 18 de julho de 2000, o réu CC vendeu em nome do autor e do seu irmão LL, e comprou para si próprio, no estado de casado com a ré KK, quatro prédios urbanos, sitos na dita freguesia ..., inscritos na matriz  com os artigos ...63, ...64, ...83 e ...84, pelo preço global PTE 29.900.000$00, que não entregou ao autor nem ao seu irmão LL; no dia 27 de julho de 2000, os réus CC e KK venderam, em nome do autor e do seu irmão LL, e  compraram,  na qualidade de únicos sócios da sociedade Dekaura-Imobiliária, Ldª, para esta sociedade, 20 prédios rústicos sitos na dita freguesia ..., pelo preço global de PTE 15.160.000$00, que não entregaram ao autor nem ao seu irmão LL; no dia 17 de agosto de 2000, o réu CC vendeu, em nome do autor e do seu irmão LL, e comprou,  na qualidade de sócio e único gerente da sociedade Dekaura-Imobiliária, Ldª, para esta sociedade, o prédio rústico  sito na dita freguesia ..., inscrito  na matriz no artigo ...99, pelo preço de PTE 2.200.000$00, que não entregou ao autor nem ao seu irmão LL.

Por escritura pública de compra e venda, de 10 de maio de 2002, lavrada no Cartório Notarial ..., os réus CC e KK, então no estado de casados entre si, revenderam à sociedade “Dekaura-Imobiliária, Ldª”, pelo preço total de € 139.810,00, o prédio urbano inscrito na matriz  no artigo ...63  e dois prédios rústicos, sitos na dita freguesia  ... que haviam comprado para si através da escritura pública outorgada no dia 18 de julho de 2000.

Por escritura pública de 28 de junho de 2001, lavrada no Cartório Notarial ..., os réus CC e KK, revenderam à sociedade “Dekaura-Imobiliária, Ldª, pelo preço de PTE 14.000.000$00, os dois prédios urbanos sitos na dita freguesia ..., inscritos na matriz nos artigos ...83 e ...84 e que haviam comprado para si através da  escritura pública outorgada no dia 18 de julho de 2000.

Por escritura pública de 26 de abril de 2001, lavrada no Cartório Notarial ..., os réus CC e KK, revenderam a MM, pelo preço de PTE 3.500.000$00, o prédio urbano sitos na dita freguesia ..., inscrito na matriz no artigo ....64 e que haviam comprado para si através da escritura pública outorgada no dia 18 de julho de 2000, não tendo procedido à entrega daquele monante ao autor e ao seu irmão LL.

Por escritura pública de 10 de setembro de 2001, lavrada no Cartório Notarial …, o réu CC, na qualidade de sócio gerente da sociedade Dekaura-Imobiliária, Ldª”, vendeu a NN, pelo preço de PTE 11.000.000$00, os prédios rústicos  da freguesia de ..., inscritos na matriz nos artigos, artigos, ..94.-...96-...97-...99 e ...02, bem como um urbano da mesma freguesia, inscrito na matriz no artigo ..., que haviam sido adquiridos ao autor e seu falecido irmão.

Por escritura subsequente a divórcio, em 31.01.2003, foram partilhados os bens comuns do dissolvido casal, composto pela ré KK e o réu CC, tendo aquela recebido tornas.

Por escritura de 31.01.2003, a ré KK cedeu ao réu CC, este na qualidade de sócio e único administrador da sociedade anónima “Pedro Paulo Nunes -Imobiliária, S.A.”, ora ré, “Socolote - Imobiliária, S.A.”, pelo seu valor nominal, a quota social de que era titular na sociedade por quotas, Dekaura-Imobiliária, Lda.

O valor real e ou de mercado desta mesma quota, era, nessa data, muito superior ao nominal e da ordem das centenas de milhares de euros, atento o ativo patrimonial, imobiliário, de que era, então, titular, a sociedade.

A conduta que os  réus, CC e KK, vêm mantendo ao  longo de quase 20 anos, é  abusiva, de má-fé e dolosa, sendo manifesta a sua intenção de prejudicar o autor e o seu irmão, que, para além de terem ficado sem os seus bens imóveis não receberam o peço das respetivas vendas, pelo que, não sendo possível anular, em parte, os atos praticados, impõe-se  a sua  condenação  no pagamento do  montante  de € 211.385,96, acrescido dos juros de mora já vencidos e calculados até à data da propositura desta ação, no montante de € 50.000,00 e vincendos à mesma taxa de 4% ao ano, até efetivo e integral pagamento.


2. Citados, os réus CC, II, DD, JJ, FF e Socolote-Imobiliária S.A., contestaram, excecionando a ineptidão da petição inicial e a ilegitimidade ativa do A.

Invocaram ainda a exceção de caso julgado formado pela decisão final proferida na ação especial de prestação de contas nº 468/09.... que  condenou o ora  réu CC “a pagar ao autor AA a quantia de € 211.385,96, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data do trânsito em julgado da decisão que determinou a obrigação do réu de prestar contas e até efectivo e integral pagamento, à taxa legal de 4%.”, sustentando que, se por via daquela ação o réu CC foi condenado a pagar ao autor € 211.385,96 respeitante à venda dos prédios referidos em 6.º da petição inicial e pelos poderes que foram conferidos pelo autor e pelo seu irmão pela procuração referida em 4.º da p.i., não pode agora vir o autor pedir que as referidas escrituras sejam declaradas nulas, pois há caso julgado quanto a tal relação material controvertida.

Mais sustentaram que a pretensão do autor em obter, com base nos mesmos factos (procuração irrevogável, mandatos e venda de imóveis), vantagem patrimonial indevida, integra abuso de direito.

Concluíram pedindo que sejam julgadas procedentes as invocadas exceções dilatórias de ilegitimidade ativa do autor, de caso julgado e de ineptidão da petição inicial, absolvendo-se os réus da instância. E, para o caso de assim não ser entendido, concluíram pela improcedência da ação com a consequente absolvição dos réus do pedido e pela condenação do autor, como litigante de má fé, em multa exemplar a favor dos cofres do Estado e em indemnização que, para além do reembolso de todas as despesas e prejuízos que os réus tiveram com a presente lide, deverá incluir também os honorários da sua mandatária.


3. A ré Massa Insolvente da sociedade “Dekaura - Imobiliária, Lda.” também contestou, deduzindo a exceção do caso julgado.


4. A ré KK contestou, invocando a exceção de caso julgado com o fundamento de que os factos alegados pelo autor nos presentes autos são exatamente os mesmos discutidos e já decididos na providência cautelar nº 3/09.... do extinto ... Juízo do Tribunal Judicial ..........; na ação especial de prestação de contas nº 468/09.... do extinto ... Juízo do Tribunal Judicial de ....... e transitada para este Tribunal ....... Inst. Central - Secção Cível - J.…; na ação declarativa de condenação nº 1321/09.... do extinto ...º Juízo do Tribunal Judicial ........; na ação declarativa de condenação nº 1733/15…, Juízo Central Cível ... - Juiz ... e na ação declarativa de condenação nº 3161/18…, que corre termos no Juízo Central Cível ... – Juiz ....

Concluiu pela procedência das invocadas exceções e pela improcedência da ação, pedindo ainda a condenação do autor, como litigante de má-fé, em indemnização a liquidar a final e que deverá consistir no reembolso de todas as despesas e prejuízos que a Ré teve com a presente lide, incluindo os honorários do seu Mandatário, bem como numa multa exemplar a favor dos cofres do Estado. Mais se requer que seja reconhecida a responsabilidade pessoal e direta do mandatário do autor pela má-fé, dando-se conhecimento da mesma ao Conselho de Deontologia ……. da Ordem dos Advogados.


5. O autor respondeu, pugnando pelo desentranhamento das contestações, por intempestivas, e pela improcedência das invocadas exceções.

Concluiu pedindo a condenação dos réus, por litigância de má fé, em multa e indemnização, que deverá incluir os honorários e despesas do seu mandatário, relegando para final, a fixação do respetivo quantum.


6. Em 22.11.2020 foi proferido saneador-sentença, que, considerando que a autoridade de caso julgado formado pela decisão final proferida na ação especial de prestação e contas nº 468/09....  determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a mesma relação material controvertida «não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade prevista no art. 498º do C.P. C.» «e impede que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material objeto do litígio, ficando preteridas as demais questões invocadas pelos Réus, nomeadamente o incidente de intervenção » , decidiu:

« (…)

a) absolver todos Réus das pretensões deduzidas, novamente, pelo Autor por força do caso julgado, nos termos dos art.º 577.º, al. i), art.º 578.º e art.º 576.º, n.º 2, todos do C.P.Civil, ficando preteridas as demais questões invocadas pelos Réus, nomeadamente o incidente de intervenção.

b) condenar o Autor numa multa de montante igual a três vezes o valor da taxa de justiça devida na ação declarativa, bem como numa indemnização a pagar aos Réus KK, CC, II, DD, JJ, FF e “Socolote”, consistente no reembolso das despesas que a má fé do litigante os tenha obrigado, incluindo os honorários dos mandatários, cuja liquidação se relega para momento posterior.

c) absolver os Réus do pedido de condenação como litigante de má fé.

(…) ».


7. Inconformado com esta decisão, dela apelou o autor para o Tribunal da Relação .... que, por acórdão proferido em, 11.05.2021, julgou parcialmente procedente o recurso e, em consequência, decidiu manter, ainda que com base em diversa fundamentação jurídica, a decisão recorrida de absolvição dos réus e absolver o autor do pedido de condenação por litigância de má fé.


8.  Inconformado, de novo, com esta decisão o autor dela interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:

«A) A proteção, do caso julgado material, ANTERIOR, na sua vertente de AUTORIDADE, proferido nas ditas duas ações, ou seja, a especial de prestação de contas, nº. 468/09…. e n. 1733/15…, consubstanciava-se e consubstancia-se, nestes autos, de duas formas, ou seja, levando à matéria de facto, ASSENTE, a mesma factualidade coberta pela autoridade caso julgado, como foi efetuado nesta última, ou expurgando a mesma factualidade, considerando-a, como NÃO escrita, prosseguindo os autos os seus regulares termos, quanto à demais matéria de facto e de direito, que pudesse e ou DEVESSE ser conhecida.

B) Ou seja, a parte afetada, nestes autos, com o caso julgado material anterior, na sua vertente de AUTORIDADE, NÃO impedia o prosseguimento dos mesmos autos, para conhecimento dos demais pedidos NÃO AFETADOS.

C) O Tribunal, a quo, por inércia e falta de sentido crítico, NÃO ponderou a subsistência da parte não afetada e feriu-a, como se o estivesse.

D) Impunha-se, pois, nestes autos, avaliar o CONTEÚDO e ALCANCE do caso julgado, material, anterior, na sua vertente de AUTORIDADE, sem prejuízo de se aproveitar a parte não afetada e que pudesse ser conhecida, o que NÃO foi efetuado e daí a violação verificada, tendo-se optado pela solução mais fácil.

E) Além disso, o Tribunal, a quo, tinha a especial obrigação de o ter feito, ou seja, separar, o trigo do joio, como sói dizer-se, dado ter ao seu dispor, como alegado, um precedente valioso, consistente na douta decisão, transitada, proferida no mui douto, saneador/sentença, do processo n. 1733/15...., supra referido, que respeitou, totalmente, o caso julgado, anterior, proferido na dita ação especial de prestação de contas, , sem prejuízo do prosseguimento dos autos, para conhecimento dos demais pedidos NÃO afetados.

F) Verifica-se, pois, pelo Tribunal, a quo, uma violação FRONTAL do caso julgado material, anterior, que foi respeitado, mas com a amplitude NÃO permitida por lei, prejudicando, gravemente, o autor e ora recorrente, pelo que DEVE ser reduzido, em conformidade.

G) O Tribunal a quo devia ter feito o trabalho de sapa, que se lhe impunha, máxime, destrinçar o que estava ou não coberto pelo caso julgado material, anterior, tendo optado pela solução mais fácil e drástica e sem qualquer espírito crítico, o que urge reparar.

H) Como supra referido, máxime, os pedidos PRINCIPAIS, formulados nas alíneas A); B); E) e G) e o pedido SUBSIDIÁRIO, nada têm a ver com o caso julgado material, anterior, na sua vertente de AUTORIDADE, pelo que a ação DEVE prosseguir, pelo menos, quanto a estes.

I) Caso, assim, se NÃO entenda, o que só se aceita por mera cautela, sempre teriam os Réus de serem, ABSOLVIDOS DA INSTÂNCIA e não dos pedidos, quanto aos pedidos e causas de pedir NÃO abrangidos pelo caso julgado.

J) O caso julgado, material, anterior, da ação especial de prestação de contas, na sua vertente de AUTORIDADE, NÃO abrange os factos, noutra ação, que sejam, SUBJETIVAMENTE SUPERVENIENTES, como os alegados, nem quando as partes demandadas, sendo as mesmas, o são, com diferentes, QUALIDADES JURÍDICAS.

K) Como já se referiu, foi suscitada a questão da INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL E CONCRETA, como se alcança, quer dos artigos 48 e 52 das alegações de recurso e alínea V das conclusões, quer dos artigos 13 a 15 e conclusão B) da reclamação de nulidades, para a conferência, apresentada em Juízo no dia 24 de Maio de 2021, pelo que se impõe se conheça do seu objeto.

L) Do mesmo modo, se dá por reproduzida, a vexata questio, da INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL E CONCRETA, suscitada, EX NOVO, em sede de reclamação de nulidades para a conferência, como tudo melhor se alcança, dos artigos, 19 a 31 e conclusão E), da mesma peça processual, quanto ao artigo 657 do C.P.CIVIL, quando este interpretado, como o fez o Tribunal recorrido, o que colide, NÃO SÓ, com a colegialidade do órgão, em termos SUBSTANCIAIS, AGRAVANDO O RISCO DE ERRO NA TOMADA DE DECISÃO e contribuindo para a UNIPESSOALIDADE do órgão, com prejuízo para a segurança jurídica, MAS TAMBÉM, com o com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, o direito a uma justa composição do litígio, o direito a um processo orientado para a JUSTIÇA MATERIAL, a um direito à FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO e a um processo JUSTO, de que urge conhecer. (art. 2 e 20 da Lei Fundamental).

M) Como, supra referido, no artigo 10, máxime, princípios fundamentais, aí formulados, impõe-se, uma análise criteriosa, da factualidade, que está, EFETIVAMENTE, coberta, pela autoridade de caso julgado anterior, prosseguimento os presentes autos, quanto à parte NÃO afetada pela AUTORIDADE de caso julgado anterior, proferido na ação especial de prestação de contas, n. 468/09......, ou caso, assim se não entenda, devem os Réus serem ABSOLVIDOS DA INSTÂNCIA, na parte NÃO coberta pelo caso julgado material, anterior.

N) O douto acórdão recorrido, por erro de subsunção jurídica, violou o caso julgado proferido no processo n. 1733/15....

O) Violou, o douto acórdão recorrido, por erro de subsunção, o disposto no artigo 621º, do C. P. Civil, máxime, quando INTEREPRETADO, como o fez, quanto ao CONTEÚDO e ALCANCE, do caso julgado material anterior, na sua vertente de AUTORIDADE, o que urge corrigir, prosseguindo os autos quanto à parte NÃO coberta pelo caso julgado, sendo certo que o Tribunal tinha um caso paradigmático e já decidido, com trânsito em julgado, proferido no dito processo n. 1733/15....,que era do SEU conhecimento e a que devia obediência.

Termos em que, REVOGANDO-SE, o douto acórdão recorrido, o qual deve ser substituído por douto acórdão que fixe, OBJETIVAMENTE, qual a matéria de facto, coberta pela autoridade de caso julgado material, ANTERIOR, na sua vertente de AUTORIDADE, proferido na ação especial de prestação de contas, n. 468/09......, levando-a à MATÉRIA DE FACTO ASSENTE, como efetuado na dita ação n. 1733/15...., ou, então, EXPURGANDO-A, considerando-a como NÃO ESCRITA, ordenando-se, de seguida, o prosseguimento dos autos, para conhecimento dos demais pedidos e causas de pedir NÃO AFETADOS, como supra indicado, ou, caso, assim se NÃO entenda, absolverem-se os Réus da INSTÂNCIA, quando aos factos NÃO abrangidos pelo caso julgado material, anterior, conhecendo-se das INCONSTITUCIONALIDADES SUSCITADAS»


9. Os réus não responderam.


10. Por acórdão proferido em 13.07.2012, o Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no art. 617º, nº 1, ex vi art. 666º, nº 1, ambos do CPC, apreciou a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, invocada pelo autor, julgando-a improcedente.


12. Após os vistos, cumpre apreciar e decidir.



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II. Questão prévia da admissibilidade do recurso

O presente recurso de revista vem interposto do acórdão do Tribunal da Relação ....  proferido em 11.05.2021 que, não obstante confirmar a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância quanto aos segmentos decisórios ora impugnados, discordou do “enquadramento dogmático da figura do caso julgado” feito naquela decisão.

Com efeito, enquanto o Tribunal de 1ª Instância limitou-se a considerar que a autoridade de caso julgado formado pela decisão final proferida no processo nº 468/09.... obstava, sem mais, à propositura da presente ação e absolveu todos os réus das pretensões deduzidas pelo autor, diferentemente entendeu o acórdão recorrido existir, no caso, uma relação de prejudicialidade entre os fundamentos daquela  decisão  e o objeto da presente ação, pelo que, constituindo tais fundamentos pressuposto lógico indispensável  da presente ação, é a autoridade de caso julgado por eles formada que, no caso dos autos, obsta ao conhecimento dos pedidos formulados  pelo autor nas alíneas A) a I) da petição inicial bem como ao pedido formulado subsidiariamente.

Mas sendo assim, ou seja, tendo o acórdão recorrido confirmado, por unanimidade, a decisão da 1ª instância, que dirimiu da mesma forma mas com fundamentação jurídica essencialmente diferente, dúvidas não restam não ocorrer uma situação de dupla conformidade obstativa da interposição do recurso de revista, nos termos gerais, face ao disposto no n.º 3 do artigo 671.º do CPC.

E se é certo ter o autor interposto recurso de revista, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 629º, nº 2, al. a), e 671, nº 2, al. a), ambos do CPC,  a verdade é que, tendo o acórdão recorrido decidido precisamente no sentido  de que a  autoridade do caso julgado formado pela decisão final proferida na referida ação nº 468/09...., obstava  a que, na presente ação,  se voltasse a reapreciar a  questão da validade dos contratos de compra e venda em causa e absolvido os réus de todos os pedidos, manifesto se torna que, como refere Abrantes Geraldes[1], uma tal  decisão fica sujeita às regras gerais sobre a recorribilidade.

Por tudo isto e porque, nos termos do art. 641º, nº 5 do CPC, a decisão que admitiu o recurso não vincula este Tribunal Superior, admite-se o presente recurso como sendo de revista normal, nos termos do disposto no art. 671º, nº 1, do CPC.



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III.  Delimitação do objeto do recurso

Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação dos recorrentes, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[2].


Assim, a esta luz, as questões a decidir consistem em saber se:

1ª- o caso julgado abrange todos os factos dados como provados no processo nº 468/09…;

2ª- a decisão final proferida no processo nº 468/09.... não goza de força ou autoridade de caso julgado relativamente aos pedidos formulados pelo autor nas alíneas A), B), E) e G) da petição inicial nem quanto ao pedido subsidiário.

3ª- Da violação do disposto nos artigos 657º, nº 2 do CPC e 2º e 20º, nº 4, ambos da CRP.


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IV. Fundamentação


4.1. Fundamentação de facto


Factos provados

1. O autor, ora recorrente, intentou em março de 2009, contra os réus, ora recorridos CC e KK I – Providência cautelar - Processo nº 3/09.... do extinto ... Juízo do Tribunal Judicial ...........

A referida providência veio a ser julgada totalmente improcedente, tendo a decisão transitado em julgado.

2. O autor, ora recorrente, intentou em março de 2009, contra a ora ré/recorrida, KK, em 17.06.2015, ação declarativa de condenação que correu termos sob o nº Processo: 1733/15…, Juízo Central Cível  ... - Juiz ....

A referida ação foi julgada improcedente, tendo a decisão transitado em julgado.

3. O autor, ora recorrente, intentou em março de 2009, contra os réus, ora recorridos CC e KK a ação especial de prestação de contas (Processo 468/09.... do extinto ... Juízo do Tribunal Judicial ....... e transitada para o Tribunal ....... Instância Central – Secção Cível - J....), pedindo que os réus apresentassem contas relativamente à utilização de mandatos/procurações para venda dos prédios referidos nesta ação.

4. Na referida ação foi proferida sentença em 09.12.2014, com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, decide-se condenar o réu CC a pagar ao autor AA a quantia de €211.385,96 (duzentos e onze trezentos e oitenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data do trânsito em julgado da decisão que determinou a obrigação do réu de prestar contas e até efectivo e integral pagamento, à taxa legal de 4%.».

A referida decisão judicial transitou em julgado.

5. Na ação de prestação de contas n.º 468/09...., o autor apresentou a petição cuja cópia se mostra junta aos autos [págs. 1610 a 1623] na qual alegava a mesma factualidade nuclear que alega na presente ação: falecimento do seu irmão em 16.06.2004; qualidade de único e universal herdeiro por parte do autor; outorga pelo autor e irmão da procuração irrevogável a favor dos réus CC e KK, em 14.03.2020; outorga pelo autor e irmão de segunda procuração irrevogável a favor dos réus CC e KK, em 3.07.2020; escrituras de compra e venda celebradas pelos réus com base nas procurações irrevogáveis, referentes aos imóveis ali identificados, que correspondem aos imóveis identificados na petição da presente ação.


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Factos aditados

Em desenvolvimento dos factos provados e supra descritos no ponto 2 e ao abrigo do disposto no art. 607º, nº 4, aplicável por via da sucessiva remissão dos arts. 663º, nº 2 e 679º, todos do CPC, considera-se ainda assente que: 

2.1. Na ação aludida no ponto 2, instaurada em 17.06.2015, o ora autor demandou também o ora réu CC, pedindo a condenação, solidária, de ambos os réus, atento o invocado proveito comum do casal, a pagarem ao autor a quantia de 211.385,96, acrescida dos juros moratórios já vencidos até à data da propositura da ação, no montante de € 14.000,00, contados à taxa legal de 4% ao ano e vincendos à mesma taxa até efetivo e integral pagamento.

Para o caso de assim não ser entendido, pediu, subsidiariamente e com fundamento em enriquecimento sem causa, a condenação de ambos os réus a pagarem ao autor a dita quantia de € 211.385,96, atualizada de acordo com os índices de preços ao consumidor publicados pelo Instituto nacional de estatística, desde 2000, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da prolação da sentença e até efetivo pagamento.

 

2.2. Proferido despacho saneador na referida ação nº 1733/15…, nele considerou-se que os factos alegados pelo autor quanto à pretensão deduzida contra o réu CC eram exatamente os mesmos que foram discutidos e decididos na ação de prestação de contas n.º 468/09.... e, julgando-se existir identidade da causa de pedir e, em consequência, autoridade de caso julgado no que respeita à pretensão deduzida, a título principal, contra o aquele mesmo réu, absolveu-se o réu CC de tal pretensão. 


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4.2. Fundamentação de direito


4.2.1. Do caso julgado dos factos dados como provados.

Neste capítulo, começa o recorrente por sustentar que impendia sobre o tribunal recorrido o dever de dar como assente a matéria de facto constante do processo nº 468/09....  por a mesma estar a coberta pela autoridade de caso julgado da decisão final nele proferida.


Que dizer?

Desde logo, ser manifesta a falta de razão do recorrente, porquanto basta atentar nos factos descritos nos nºs 3, 4 e 5 do ponto 4.1., para facilmente se constatar terem as instâncias dado como provados, ainda que de forma muito sintética, os factos constantes do processo nº 468/09.... e que, por condicionarem a apreciação do objeto da presente ação, sendo seu pressuposto lógico indispensável, ficam cobertos pelo caso julgado formado por aquela decisão.

Toda a demais matéria de facto dada como provada na ação nº 468/09.... não pode ser levada em consideração, pois, como é consabido e constitui entendimento unânime, quer na doutrina, quer na jurisprudência, os fundamentos de facto, por si só, não formam caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo.

Com efeito, pronunciando-se expressamente sobre esta matéria, afirma Remédio Marques[3], que o caso julgado «não se estende, em princípio, aos fundamentos de facto da sentença final».

No mesmo sentido, refere Antunes Varela[4] que «os factos considerados provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final».

Dito de outro modo e ainda nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa[5], «os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado», porquanto «esses fundamentos não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta».

É também este o entendimento seguido pela nossa jurisprudência, conforme se vê do Acórdão do STJ, de 02.03.2010 (processo nº 690/09.9YFLSB)[6], onde se afirma que «a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se, sobretudo, a nível da decisão, da sentença propriamente dita e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela», pelo que  «os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente» e do Acórdão do STJ, de 08.10.2018 (processo nº 478/08.4TBASL. E1.S1)[7], onde se refere que «Os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram.

Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objetivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo»[8]

Equivale tudo isto a dizer que, no caso dos autos, para além dos factos supra referidos nos nºs 3, 4 e 5 do ponto 4.1, ponto 5, todos os demais factos dados como provados no processo nº 468/09....  não valem com autoridade de caso julgado para efeito de poderem ser dados como provados na presente ação, sob pena de se estar a conferir à decisão sobre a matéria de facto um valor de caso julgado que, manifestamente, a mesma não tem. 


Termos em que improcede, nesta parte, o recurso.


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4.2.2. Do conteúdo e alcance da autoridade de caso julgado

Sustenta  ainda o autor impender sobre o tribunal recorrido a obrigação de  determinar o conteúdo e alcance da autoridade do caso julgado formado pela decisão final proferida no processo nº 468/09...., pois contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, a mesma não abrange todo o objeto do presente processo,  não impedindo que nesta ação se aprecie os  pedidos principais formulados  nas alíneas A), B), E) e G) da petição inicial nem o pedido subsidiário nela deduzido, impondo-se, quanto a estes, o prosseguimento dos autos. 


Trata-se de questão que tem a ver com o conteúdo e alcance do caso julgado material, na sua vertente positiva,  ou seja,  com a extensão da autoridade do caso julgado por ela formado, sendo que, nesta matéria, dispõe o art. 619º, n.º 1, do C. P. Civil que: « transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida de mérito da causa, a decisão sobre a relação jurídica material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º », estabelecendo o art. 621º, do mesmo código que  « a sentença constitui caso julgado  nos precisos limites  e termos em que julga (…) ».

Ora, consabido que o caso julgado só previne decisões concretamente incompatíveis, há, na verdade, que definir os limites subjetivos e objetivos do caso julgado, nomeadamente quanto aos respetivos fundamentos, o que pressupõe que sejam suficientemente identificados ou objetivados os fundamentos de facto e de direito em que assentou a decisão proferida naquele processo nº 468/09…, pois só assim se poderá aferir da sua repercussão sobre o objeto da presente ação.


A este respeito e sufragando o entendimento seguido no Acórdão do STJ, de 28.03.2019 (processo n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1)[9],  considerou o Tribunal da Relação, no essencial, que:

«(…) na autoridade do caso julgado, a identidade do objeto da relação jurídica é meramente parcial: uma determinada questão decidida na primeira ação configura-se como questão prévia ou prejudicial na segunda, não podendo aí ser decidida em termos diversos, obviando-se assim a que a relação jurídica material definida por uma decisão com trânsito em julgado possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica.

É, manifestamente, o que se passa nestes autos.

Tendo o autor requerido ao Tribunal a condenação dos réus a favor de quem foram emitidas as procurações irrevogáveis, no pagamento do saldo devido pela não prestação de contas, relativamente aos valores recebidos pelas vendas efetuadas ao abrigo das referidas procurações, sem colocar em causa a validade dos negócios em apreço, obtendo assim a condenação definitiva do réu no valor de € 211.385,96 acrescidos de juros de mora, esta decisão configura-se como questão prejudicial relativamente à pretensão formulada pelo autor nestes autos, não podendo aqui ser decidida em termos diversos, isto é, declarando nulos os mesmos negócios, com base nos quais o réu/recorrido foi condenado a pagar ao autor os valores recebidos.

Acresce, como atrás se referiu, a absoluta incompatibilidade entre a condenação do réu no pagamento ao autor dos valores recebidos pelas vendas e o pedido feito na presente ação, de declaração de nulidade dos negócios, por alegadamente não ter sido pago qualquer preço».

E com base nesta fundamentação, concluiu ser manifesta a verificação dos requisitos da autoridade do caso julgado, confirmando a decisão do Tribunal de 1ª Instância que absolveu todos os réus das pretensões deduzidas pelo autor nas alíneas A) a I), da petição inicial e considerou preteridas as demais questões invocadas pelos réus.

Ora, não obstante sufragarmos o entendimento da  extensão da autoridade do caso julgado aos fundamentos da decisão nos casos em que  exista uma relação de prejudicialidade entre a decisão  transitada em julgado e o objeto da ação posterior, ou seja,  quando o fundamento da decisão transitada  condiciona a apreciação  do objeto de uma ação posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objeto da primeira ação, sendo seu pressuposto lógico[10], a verdade é que, como já afirmamos no Acórdão de 25.03.2021 (processo nº 453/14.0TBVRS-A.L1.S1)[11] e sublinha também o supra citado Acórdão do STJ, de 28.03.2019 , não podemos deixar de ter em conta, por um lado,  que, mesmo numa  relação deste tipo, só  adquirem o valor de caso julgado  os fundamentos  da decisão transitada que são pressuposto lógico indispensável da apreciação  do objeto de uma ação posterior, e, por outro lado, que  o efeito de caso julgado só vincula  quem tenha sido parte na anterior ação ou quem, não sendo parte, se encontre, por determinação legal, abrangido  por via da sua eficácia direta ou reflexa[12].

Daí entendermos, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, que, atenta a multiplicidade de pedidos formulados na presente ação e da causa de pedir invocadas bem como a coincidência apenas parcial entre os sujeitos, a força ou autoridade de caso julgado formada pelos fundamentos da decisão final proferida no processo nº 468/09.... relativamente à questão da validade das escrituras públicas de compra e venda celebradas em 18 de julho de 2000, 27 de julho de 2000, 17 de agosto de 2000, 28 de junho de 2001 e 10 de maio de 2002, não se estende, sem mais, a todo o objeto do presente processo, impondo, antes, uma análise mais aprofundada por forma a determinar-se se e em que medida aquela decisão se impõe, indiscutivelmente,  como julgada com prejudicialidade sobre todos os pedidos formulados pelo autor na presente ação, prejudicando o conhecimento de todas as demais exceções e questões suscitadas  nos presentes autos.

Todavia e porque o autor não impugna o acórdão recorrido na parte em que decidiu estarem os pedidos formulados nas alíneas C), D), F), H) e I) da petição inicial abrangidos pela força de caso julgado da sobredita decisão, restringiremos a nossa análise aos pedidos constantes das alíneas A), B), E) e G) da petição inicial e ao pedido subsidiário.

E a este respeito há que reconhecer assistir razão ao autor quando sustenta que os fundamentos da decisão final proferida no processo nº 468/09.... não gozam de força ou autoridade de caso julgado relativamente a estes pedidos.

É que, se é certa a existência de uma relação de prejudicialidade entre a decisão transitada em julgado no processo nº 468/09.... e o objeto da presente ação, seguro é também que essa conexão não se estende a todo o objeto desta ação, verificando-se apenas e tão só quanto à questão da validade das escrituras públicas de compra e venda celebradas em 18 de julho de 2000, 27 de julho de 2000, 17 de agosto de 2000, 28 de junho de 2001 e 10 de maio de 2002.

Vale tudo isto por dizer que os fundamentos da decisão final proferida no processo nº 468/09.... só adquirem  o valor de caso julgado única e exclusivamente no tocante a esta matéria, obstando, tal como decidiu o acórdão recorrido, a que nesta ação se declare «nulos os mesmos negócios, com base nos quais o réu/recorrido foi condenado a pagar ao autor os valores recebidos», naquele processo, mas já não  impedem que, nesta ação, se aprecie os pedidos formulados pelo autor nas alíneas A), B), E) e G) da petição inicial, que não ficam cobertos  pelo efeito da autoridade de caso julgado material decorrente da decisão proferida naquele processo, por esta, em relação a tais pedidos,  não se apresentar  como prejudicial, ou seja, como seu pressuposto ou antecedente lógico.

Desde logo porque os pedidos formulados pelo autor nas alíneas A) B), não só assentam em diferente causa de pedir – nulidade, por simulação, da escritura pública constitutiva da sociedade “Pedro Paulo Nunes-Imobiliária, S.A.”, atualmente com a denominação “Socolote - Imobiliária, S.A.”, celebrada em 7 de outubro de 2002 - como são dirigidos contra os réus CC, Socolote - Imobiliária, S.A.”, BB, DD e EE.

E o mesmo vale dizer quanto aos pedidos de condenação  da  ré, Massa Insolvente da “Dekaura - imobiliária, Lda.” «a reconhecer que o autor tem o direito de habitar a Fração “d”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ........, freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob a ficha, n.º .......99, enquanto vivo for e de modo gratuito» e «a pagar ao autor, todos os prejuízos, quer patrimoniais quer não patrimoniais e que se vierem a verificar desde a data da entrega efetiva do apartamento e até sua efetiva reocupação e a liquidar em execução de sentença», formulados nas alíneas E) e G) da petição inicial, que têm como causa de pedir o acordo verbal alegado  nos artigos  144º e 145º da petição inicial.

Daí  não estar o tribunal, por via da autoridade de caso julgado formado pelos fundamentos da decisão final  proferida no processo nº 468/09....,  impedido de julgar os   pedidos formulados pelo autor nas alíneas A), B), E) e G) da petição inicial e, em caso de improcedência destes, do pedido formulado subsidiariamente, nos termos do disposto no artigo 554º, nº 1, do CPC,  nem  de apreciar as demais exceções invocadas pelos réus  na presente ação, impondo-se,  antes, que os autos prossigam para que estas matérias sejam apreciadas e julgadas como objeto principal do thema decidendum, com todas as garantias  postuladas pelos princípios do dispositivo e do contraditório.


Procede, por isso, nos termos referidos, o recurso interposto pelo autor.


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4.2.3. Da violação do disposto nos artigos 657º, nº 2 do CPC e 2º e 20º, nº 4, ambos da CRP.

Argumenta o autor que, a decisão de não proferir despacho a convidar à junção aos autos da contestação e do saneador sentença proferido no processo nº 1733/15...., na medida em que não permitiu que fosse valorada tal factualidade, é «arbitrária, injusta, desproporcional e constitucionalmente desconforme, sem fundamento válido, de um direito a um processo justo e equitativo» de acordo com o disposto no art. 20º, nº. 4 da Constituição da República Portuguesa.

Mais sustenta estar o acórdão recorrido ferido de inconstitucionalidade material, atento o não concurso real e efetivo dos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos, na formação da vontade coletiva, consubstanciando violação do disposto no art. 657º, nº 2 do CPC e nos arts. 2º e 20º da CRP. 


Mas, em nosso entender, não lhe assiste qualquer razão, quer por não  se vislumbrar que no caso dos autos se impusesse a prolação de um qualquer despacho de aperfeiçoamento, quer porque evidenciam os autos que, em 30.04.2021, foi proferido pelo Senhor Juiz Desembargador relator, despacho a remeter aos vistos, nos termos  do disposto no art. 657º, nº 2, do CPC,  que os Senhores Juízes Desembargadores, 1º e 2º  Adjuntos, apuseram, respetivamente, o visto em 03.05.2021 e 04.05.2021 e que em 11.05.2021  o julgamento foi  realizado em conferência, conforme o  disposto no art. 659 º, nº 2, do CPC.


Termos em que carece de fundamento a invocada inconstitucionalidade, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto pelo autor.


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V – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal  em julgar parcialmente procedente a revista interposta pelo autor, AA, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que confirma o despacho saneador-sentença  que absolveu os réus dos pedidos formulados nas alíneas A), B), E) e G) da petição inicial, ordenando-se a baixa dos autos ao Tribunal de 1ª Instância para decisão das demais exceções invocadas e para apreciação e julgamento destes pedidos e, em caso de improcedência dos mesmos, do pedido formulado subsidiariamente, nos termos do disposto no artigo 554º, nº 1, do CPC .

Custas da revista a cargo da parte vencida a final.

Notifique.


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Supremo Tribunal de Justiça, 11 de novembro   de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

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[1] In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª ed. , págs. 50 e 51.
[2] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[3] In, “Acção Declarativa à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 2007, pág. 447. 
[4] In, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1984, pág. 697.
[5] In “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, págs. 580.
[6] Acessível  in www.dgsi/stj.pt.
[7] Acessível  in www.dgsi/stj.pt.
[8] No mesmo sentido já se decidiu nos Acórdãos do STJ, de 17.05.2018 (processo nº 3811/13.3TBPRD.P1.S1) e de 13.09.2018 (processo nº 837/13.0TBMTS.P1.S2), ambos relatados pela ora relatora e acessíveis in www.dgsi/stj.pt.
[9] Acessível in www.dgsi/stj.pt.
[10] Neste sentido, cfr. , na doutrina,  entre outros,  Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, págs. 578 e 580; Remédio Marques, in “Ação Declarativa à Luz do Código Revisto”, 2ª ed., pág. 663; António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa, in “ Código de Processo Civil, Anotado”, 2ª ed. Almedina 2020, págs. 122 e 123; Mariana França Gouveia, in “ A Causa de Pedir na Ação Declarativa”, 2019, págs. 501-503 e, na jurisprudência, cfr. ,entre muitos outros, os Acórdãos do STJ de 20.06.2012 (processo nº 241/07.0TLSB.L1.S1); de 30.03.2017 (processo nº 1375/06.3TBSTR.E1.S1); de 06.06.2019 (processo nº 276/13.3T2VGS.P1.S2)  e  de 11.07.2019 (processo nº 13111/17.4T8LSB.L1.S1), todos acessíveis in www.dgsi/stj.pt.
[11] Acessível in www.dgsi/stj.pt.
[12] Tal como acontece nos casos de solidariedade entre devedores, de solidariedade entre credores (arts. 522, 2ª parte e 531º, 2ª parte, ambos do C. Civil); de pluralidade de credores de prestação indivisível (art. 538º, nº 2, do C. Civil); nas relações entre o credor, o devedor e o fiador ( art. 635º do C. Civil) e na ação popular (art. 19º, nº 1 da LPPAP), situações em que  um terceiro beneficia  do efeito favorável  do caso julgado.  Neste mesmo sentido, os recentes Acórdãos do STJ, de 25.03.2021 (processo nº 1219/18.0T8LSB-L1.S1); de 23.09.2021 (processo nº 1201/19.3T8LRA.C1.S1) e de 14.10.2021 (processo nº 557/16.4T8VIS.C1.S1), todos acessíveis in www.dgsi/stj.pt.