Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
503/17.8T8VFX.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA PATERNIDADE
CADUCIDADE DA AÇÃO
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
REFORMA DE ACÓRDÃO
CONSTITUCIONALIDADE
RESTRIÇÃO DE DIREITOS
POSSE DE ESTADO
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Tendo o Tribunal Constitucional considerado conforme à Constituição a norma contida no artigo 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, cuja aplicação foi recusada pelo Supremo Tribunal de Justiça, por restrição desproporcionada dos direitos humanos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família, mais não resta do que proceder à reforma do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, e, em consequência, declarar a extinção da ação de impugnação da presunção de paternidade, por ter já decorrido o prazo de 10 anos após a maioridade do filho.
Decisão Texto Integral:    

Acordam, em Conferência, no Supremo Tribunal de Justiça



I - Relatório

1. AA propôs ação declarativa com processo comum contra BB, CC, DD, EE, FF e GG, pedindo que seja reconhecido e declarado que não é filho de HH e que é filho de II, ordenando-se a retificação do seu assento de nascimento em conformidade, designadamente com a eliminação do apelido “HH......” e com a inclusão do apelido “II.......” no seu nome.

Alega, para tanto, que, no seu assento de nascimento, figura como seu pai HH, que era o marido da mãe à data do seu nascimento, mas que a verdade é que foi concebido do relacionamento sexual existente entre a sua mãe (a BB) e II. Mais alega que desde sempre foi tratado como filho por II, que todos os que o rodeavam sabiam que este era seu pai e que com este chegou a viver durante algum tempo.

 Em contestação, vem a CC, para além de se defender por impugnação, invocar a exceção da caducidade do direito de ação, face ao decurso do prazo estabelecido na al. c) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil.

 Também em contestação vem a FF invocar ser parte ilegítima, por não ser herdeira de II ao tempo do seu óbito, dado encontrar‑se divorciada do mesmo. Vem ainda invocar a exceção da caducidade do direito de ação, face ao decurso do prazo estabelecido na al. c) do n.º 1 do artigo 1842º do Código Civil, e defende-se igualmente por impugnação.

Por articulado de 16/10/2017, o A. respondeu à exceção da caducidade do direito de ação, invocando a inconstitucionalidade da norma em questão e a improcedência da exceção.

Foi proferido despacho, ordenando solicitação ao INML sobre “se é possível realizar exames periciais com vista ao apuramento de uma eventual paternidade, sem ser necessário proceder à exumação do cadáver e, em caso afirmativo, quais os procedimentos”, o que foi cumprido.

Tendo sido obtida resposta afirmativa à questão colocada, pronunciaram-se as partes sobre essa resposta, designadamente tendo a CC referido que “a decisão sobre a realização do exame pericial, deverá ser determinada após a decisão das invocadas exceções deduzidas, sob pena de, a determinar-se desde já a realização de prova, estar-se a decidir, como que tacitamente, o julgamento da matéria de exceção que foi invocada”.

Foi designada data para a produção antecipada de prova requerida pelo Autor, bem como para a realização da audiência prévia, tendo sido dada sem efeito tal produção antecipada de prova e sido realizada a audiência prévia, onde foi proferida sentença que, julgando procedente a exceção perentória da caducidade do direito de ação, absolveu as Rés do pedido.


 2. Inconformado, o Autor recorre desta sentença para o Tribunal da Relação ......, que, por acórdão datado de 11 de julho de 2019, decidiu julgar improcedente o recurso e manter a sentença recorrida.


3. Novamente inconformado, o Autor interpõe recurso de revista excecional, ao abrigo das alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC. O recurso foi admitido pela formação a que se refere o artigo 672.º, n.º 3, do CPC, com fundamento no artigo 672.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, dada a relevância jurídica e social da controvérsia, por contender com os direitos fundamentais dos cidadãos e com “interesse gerais e valores sociais do domínio da instituição familiar”, bem como por contribuir para uma melhor aplicação do direito.


 4. O Supremo Tribunal de Justiça decidiu, por unanimidade, em Acórdão proferido em 5 de maio de 2020, recusar a aplicação da norma contida no artigo 1842.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, que estabelece que a ação de impugnação da paternidade pode ser intentada, pelo filho, até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, «por significarem os concretos prazos estabelecidos na lei uma restrição desproporcionada e excessiva dos direitos à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), e a constituir família (artigo 36.º, n.º 1, da CRP), em conjugação com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, nos casos em que o impugnante pretende, não apenas a destruição do vínculo resultante do registo, mas também o estabelecimento da paternidade em relação a um sujeito que, para além do vínculo biológico, tenha gozado da chamada posse de estado em relação a ele, tenha sido reconhecido como seu pai pelo público e o tenha sempre tratado como filho no plano afetivo e social, assim fazendo coincidir a paternidade jurídica com a paternidade afetiva que sempre tenha existido. Em tal situação, o estado civil do filho não tem correspondência social, familiar e afetiva, e, por essa razão, aquele direito à verdade biológica e à identidade pessoal adquire uma densidade mais forte, para a qual é insuficiente a tutela legalmente prevista, devendo os direitos do filho, por isso, prevalecer sobre os valores da segurança jurídica e da proteção da família assente no casamento».


5. O Ministério Público veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, do acórdão proferido em 05 de maio de 2020, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nºs 1-a), e 3, da Constituição da República Portuguesa, e nos artigos 70º, n.º 1, al. a) e 72º nºs 1- a) e 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro.


6. O Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 445/2021, datado de, decidiu o seguinte:

«a) não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 1842.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, que estabelece que a ação de impugnação da paternidade pode ser intentada, pelo filho, até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, quando aplicada aos casos em que o impugnante pretende não apenas a destruição do vínculo resultante do registo, mas também o estabelecimento da paternidade em relação a um sujeito que, para além do vínculo biológico, tenha gozado da chamada posse de estado em relação a ele, tenha sido reconhecido como seu pai pelo público e o tenha tratado como filho no plano afetivo e social; e, consequentemente,

b) julgar procedente o recurso, determinando a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a fim de que este reforme a decisão em conformidade com a presente decisão sobre a questão de inconstitucionalidade».

   

7. Cumpre, pois, proceder à reforma do Acórdão, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de maio de 2021, conforme o disposto no artigo 80.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.

                    


II - Fundamentação 


1. No caso vertente, o autor, nascido em 24 de junho de 1972, época em que o estabelecimento da paternidade fora do casamento era legalmente dificultado e, na prática, impedido pela inexistência de provas científicas, impugnou a paternidade presumida do marido da sua mãe, com quem alegou não ter qualquer vínculo biológico nem afetivo, mas antes ser filho de outro indivíduo, em relação a quem gozou de posse de estado, porque foi tratado como filho e reputado como tal pelos demais.

O Supremo Tribunal de Justiça, recusou a aplicação do artigo 1842.º, n.º 1, al. c), que estabelece prazos para interposição da ação de impugnação da paternidade presumida, por tal preceito, implicando a caducidade da ação pelo decurso do prazo, representar uma restrição desproporcionada aos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família de acordo com a verdade biológica e afetiva.

No acórdão de 5 de maio de 2020, proferido neste processo, o Supremo Tribunal de Justiça defendeu a seguinte orientação, dando primazia aos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos do filho sobre a segurança jurídica e a proteção da família fundada no casamento: 

«A ação de impugnação da paternidade visa possibilitar a correção de uma atribuição legal e automática de paternidade que se julgue não corresponder ao vínculo real de parentesco, sendo o único instrumento disponível para o autor exercer os direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família consagrados, respetivamente, nos artigos 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, ambos da Constituição.

(…)

A interpretação normativa, cuja aplicação agora se recusa, reporta-se, portanto, somente aos casos em que o impugnante pretende, não apenas a destruição do vínculo resultante do registo, mas também o estabelecimento da paternidade em relação a um sujeito que, para além do vínculo biológico, tenha gozado da chamada posse de estado em relação a ele, tenha sido reconhecido como seu pai pelo público e o tenha sempre tratado como filho no plano afetivo e social, assim fazendo coincidir a paternidade jurídica com a paternidade afetiva que sempre tenha existido.

Em tal situação, o estado civil do filho não tem correspondência social, familiar e afetiva, e, por essa razão, aquele direito à verdade biológica e à identidade pessoal adquire uma densidade mais forte, para a qual é insuficiente a tutela legalmente prevista, devendo os direitos do filho, por isso, prevalecer sobre os valores da segurança jurídica e da proteção da família assente no casamento».


2. Todavia, tendo o Tribunal Constitucional proferido o Acórdão n.º 445/2021, na sequência de um recurso do Ministério Público, e considerado conforme à Constituição a interpretação normativa extraída do artigo 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, cuja aplicação foi recusada por Supremo Tribunal, fazendo prevalecer a segurança jurídica, enquanto interesse coletivo, sobre os direitos humanos fundamentais do filho, mais não resta do que proceder à reforma do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, e, em consequência, declarar a extinção da ação de impugnação da presunção de paternidade, por ter já decorrido o prazo de 10 anos após a maioridade do filho.


3. Anexa-se sumário elaborado nos termos do n.º 3 do artigo 667.º do CPC

I - Tendo o Tribunal Constitucional considerado conforme à Constituição a norma contida no artigo 1842.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, cuja aplicação foi recusada pelo Supremo Tribunal de Justiça, por restrição desproporcionada dos direitos humanos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família, mais não resta do que proceder à reforma do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, e, em consequência, declarar a extinção da ação de impugnação da presunção de paternidade, por ter já decorrido o prazo de 10 anos após a maioridade do filho.

 


III – Decisão

Pelo exposto, reforma-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de maio de 2021, nos termos decididos pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 445/2021, e declara-se procedente a exceção de caducidade do direito de ação pelo decurso do prazo.

Sem custas.


Lisboa, 4 de novembro de 2021


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Fernando Samões (2.º Adjunto)