Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
40/20.3PBRGR.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: EDUARDO LOUREIRO
Descritores: RECURSO PENAL
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A previsão legal do art. 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93 (segue-se nos passos mais próximos da exposição muito de perto o ac. STJ de 5.6.2013, Proc. n.º 7/11.2GAADV.E1.S1, sumariado em www.stj.pt.) contém a descrição típica do crime de tráfico de estupefacientes, de maneira compreensiva e de largo espectro, definindo o tipo base ou matricial.
II - Trata-se de um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm o denominador comum da aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação.
III - O crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade do art. 25.º, do Decreto-Lei n.º 15/93 é um tipo legal específico, constituindo uma variante dependente do tipo fundamental do art.º 21º do qual se aparta em razão da substancial diminuição da ilicitude do facto por comparação à suposta por este, (positivamente) aferida em função da imagem global do episódio e com atenção à modulação da acção típica e, ou, do seu objecto, ou seja, sempre referenciada ao desvalor da conduta ou da execução do facto, que não a considerações relativas ao desvalor da atitude interna do agente.
IV- Uma actividade de tráfico que:
- Envolveu a venda de heroína, uma das substâncias mais perniciosas do ponto de vista do bem jurídico protegido saúde pública.
- Se prolongou por mais 6 anos, de heroína entre 2014 e Abril de 2020, de cannabis desde esta altura até Outubro seguinte.
- Embora de distribuição directa ao consumidor, não deixou de envolver, no seu conjunto, quantidades de algum significado, como claramente o indicia o facto de, por ocasião da busca que acabou por pôr termo à traficância do arguido, lhe terem sido apreendidos mais de 12 kg de cannabis, suficientes para a feitura de 9 091 doses médias individuais.
- Não se revestindo de grande sofisticação não deixou de, quanto à cannabis, envolver duas modalidades de acção típica, o cultivo/preparação e a venda,
não denota grau de ofensividade dos bens e interesses protegidos aquém do limiar do que justifica o tipo, normal, do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, a ponto de se dizer que, quando o legislador o congeminou, na sua modulação típica e na dimensão da sua sanção, não teve em vista situações com esse recorte.
V - Uma tal actividade, releva, por isso, do tipo, fundamental, do art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, que não do tipo, privilegiado, do seu art. 25.º, al. a).
VI - Numa moldura abstracta, assim, de 4 a 12 anos de prisão e num quadro de, relativa, moderação das exigências de prevenção geral, mas de mais elevadas necessidades de ressocialização e de grau de culpa já acentuado, não se afigura minimamente desajustada a medida da pena de 5 anos e 4 meses de prisão que vem decretada no acórdão recorrido.
Decisão Texto Integral:


Autos de Recurso Penal
Proc. n.º 40/20.3PBRGR.S1
5ª Secção

acórdão
Acordam em conferência os juízes na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. relatório.
1. Julgado pelo Tribunal Colectivo do Juiz .... do Juízo Central Cível e Criminal ...... foi, para o que ora interessa, o arguido AA – doravante, Recorrente – condenado por acórdão de 27.5.2021 – doravante, Acórdão Recorrido –, na pena de 5 anos e 4 meses de prisão pela prática em autoria material singular e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 165/93, de 22.1, e tabelas I-A e I-C anexas.

2. Inconformado, recorre per saltum para este Supremo Tribunal de Justiça, extraindo da motivação as seguintes conclusões e formulando o seguinte pedido:
─ «1 – O Recorrente foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo n.º 1 art. 21.º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, na pena de cinco anos e quatro meses de prisão.
Não nos parece, porém, que assim devesse ter sido.
Vejamos.
2        – Do crime de tráfico de estupefacientes
A jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que o art. 21.º do D.L. n.º 15/93, de 22 de janeiro, respeita a casos de grande tráfico de droga, enquanto o art. 25.º se destina ao enquadramento da conduta dos casos de médio e pequeno tráfico (vide, entre outros, Ac. do STJ de 23/11/2011).
3 – Sufragando esta tese e volvendo ao caso concreto, verifica-se que a atividade do arguido se desenrolava mediante contato direto entre este e os consumidores da área da sua residência, sem recurso a operações de embalagem e/ou corte muito sofisticadas, realizando parcos proventos com a transação do produto estupefaciente.
4 – Por tudo o exposto, subsumindo a situação sub iudice no crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo art. 25.º do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, crê-se que ao arguido nunca deveria ter sido aplicada pena superior a três anos e cinco meses de prisão.
5 – Da medida da pena
Sem prescindir, e para o caso de assim se não entender, sempre se dirá que ante os fundamentos invocados no ponto 3 das presentes conclusões e a circunstância do arguido ter admitido parcialmente a cedência de produto estupefaciente a terceiros, se encontrar inserido familiarmente e, à data dos factos, não registar antecedentes criminais, a pena de prisão aplicada excedeu as necessidades de prevenção especiais e gerais, prejudicando qualquer possibilidade de reinserção social do Recorrente.
6        – Por tudo o exposto, ao Recorrente devia ter sido aplicada pena nunca superior a quatro anos e dez meses de prisão.
7        – Assim não o tendo entendido o Acórdão recorrido violou, entre outros, o disposto nos arts. 40.º, 70.º, 71.º C.P. e os arts. 21.º e 25.º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser o acórdão recorrido substituído por outro condene o Recorrente na pena de três anos e cinco meses de prisão, ou, subsidiariamente, por outro que condene o Recorrente em pena nunca superior a quatro anos e dez meses de prisão […].».

3. O recurso foi admitido por douto despacho de 12.7.2021, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.

4. A Senhora Procuradora da República ......... respondeu doutamente ao recurso, rematando a peça com as seguintes conclusões:
─ «1. O acórdão impugnado não merece qualquer censura, pois que não enferma de omissões, nulidades ou vícios.
2. Os factos dados como provados integram o crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., pelo art.º 21º, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/1.
3. A pena concretamente aplicada mostra-se equilibrada e justa.
[…].».

5. No momento previsto no art.º 416º n.º 1 do CPP[1], o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o proficiente parecer que, expurgado do breve relatório, segue transcrito:
─ «[…].
3.
A definição típica das condutas que relevam do tráfico de substâncias estupefacientes, prevista em legislação penal avulsa, tem a sua sede no DL. n º 13 /95, de 22 de Janeiro, tendo o legislador criado um crime-base- hoc die o de tráfico e outras actividades ilícitas, previsto no art.º 21º, do referido DL. n º 13 /95, um crime agravado -o do art.º 24º, que conforme resulta das suas alíneas a) a l), tem em vista situações em que a ilicitude do facto se traduz em condutas que atentam de forma especialmente relevante contra os bens jurídicos que com a incriminação se quer tutelar. No sentido, diametralmente oposto, temos o crime p. e p. no que aqui importa considerar, no art.º 25º, alínea a), igualmente do diploma legal em referência. Claramente, como a lei, doutrina e jurisprudência nemine discrepante assinalam, estamos aqui perante situações em que "a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações"[2]. Para os casos, especialmente previstos no art.º 26º- existe ainda, no nosso ordenamento, a figura do traficante-consumidor, cuja aplicabilidade não tem adesão à fattisspecie aqui em causa.
Feito este bosquejo normativo, à vol d´oiseau, impõe-se analisar os factos que se mostram fixados, no sentido de se aferir da sua adequada subsunção jurídico-penal. Temos, assim que:
A actividade de tráfico do recorrente, incidiu sobre duas substâncias- heroína, opiáceo de indiscutido efeito nocivo para a saúde pública, integrante das chamadas «drogas duras» cujo o período de venda decorreu desde data não apurada do mês de Abril de 2014 até 16 de Outubro de 2020, dia em que o recorrente foi detido e plantas da espécie botânica - cannabis sativa L. em várias estados de desenvolvimento e crescimento diversos, com o peso líquido de 11 962,5g e outras que se encontravam colocadas no chão (em ambos os casos na residência do recorrente) em processo de secagem, com o peso líquido de 162,5g, perfazendo assim, a cannabis apreendida - integrando sumidades e frutos da planta, cf. relatório do LPC de 11 de Fevereiro de 2021, um total de 12, 125kg (peso líquido) da substância em apreço e que permitiriam a preparação de 9 091 doses.
Nos termos do provado, a venda desta substância desenvolveu-se desde data não apurada do mês de Abril de 2020 até a 16 de Outubro do mesmo ano, ou seja, durante cerca de seis meses.
Quanto à venda de heroína mostra-se provado in concreto que procedeu à venda «com uma periodicidade quase diária» no referido período (Abril de 2014-16 de Outubro de 2020) à testemunha BB, pelo preço de 10€ cada dose. Toda a actividade de tráfico desenvolvida, teve como centro a garagem da sua residência, sita na Rua ..., ..., ........, onde os consumidores procuravam o recorrente.
Mostra-se igualmente provado que o arguido não tinha ocupação laboral.
Mais se provou sob II «condições pessoais do arguido e a sua situação económica e das condutas anteriores factos», ao demais, que:
· Casou aos 26 anos, vindo a divorciar-se 14 anos mais tarde quando foi preso pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, tendo sido condenado, no âmbito do processo comum colectivo n º 625 /00…… numa pena de sete meses de prisão efectiva pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes;
· Retomou a actividade profissional em 2003, data em que foi restituído à liberdade, até 2013, data da insolvência da sociedade, encontrando-se desempregado desde então. Tem a sua ficha inactiva na Agência para a Qualificação e Emprego ...... (AQE) desde 06-12-2012, por motivo de não ter respondido a uma convocatória.
Da análise dos factos assentes é, a nosso ver, particularmente impressivo, o facto de a canábis apreendida -integrando sumidades e frutos da planta - perfazendo como supra se consignou, um total de 12,125kg (peso líquido) de cannabis sativa L. se encontrar, dividida quer em plantas em diversas fases de crescimento (o que implica novas plantações) quer na fase de secagem das folhas – sendo aqui o peso líquido destas de 162, 5g, o que bem evidencia que o recorrente, ainda que destinasse algum deste produto ao seu consumo, claramente dedicava-se a no recato da casa onde habitava, à sua produção, no essencial, para venda, a qual era feita na garagem da mesma, onde consumidores o procuravam, o que só pode ficar-se a dever a saberem, da sua qualidade de traficante.
Tudo ponderado, a nosso ver, não se verifica uma diminuição da ilicitude que se possa ter como encontrando-se no patamar que se possa reputar como "consideravelmente diminuída".
De notar, que o crime de tráfico p. e p. pelo art.º 21º, n º 1, do DL n º 15 / 93, de 22 de Janeiro, aqui com referência, como vimos acima de dizer às suas tabelas anexas I-C e I-A, como tipo legal base, com uma moldura penal abstracta de 4 a 12 anos de prisão, tem uma elasticidade punitiva, que, dentro das condutas que a este tipo legal, se haverão de subsumir, permitem ajustar a pena a diversas realidades no campo do tráfico de estupefacientes.
Vale isto por dizer que, se pelas razões supra expendidas se entende que os factos sub judicio se devem ter como perfectibilizando o aludido crime-base, também se deverá, agora em sede determinação da medida da pena, dentro da moldura penal abstracta, ponderar, maxime no referente à heroína que, ainda que num prazo muito dilatado, apenas um se recenseou um consumidor, mas também que se verifica uma longa desinserção laboral e que no respeitante à cannabis não só a apreensão efectuada se mostra já significativa, como demonstra inequivocamente, a existência de um «mercado» com expressão suficiente para o recorrente "investir" na sua produção.
Tudo visto, á luz dos critérios do art.º 71º do Código Penal, maxime às necessidades de prevenção geral de integração, ao dolo, ao grau da ilicitude, afigura-se-nos ser de julgar, parcialmente procedente o recurso do arguido fixando a pena em quatro anos e sete meses de prisão, necessariamente efectiva, atentas as insofismáveis necessidades de ordem preventiva geral.


Somos assim de parecer que o recurso deve ser julgado parcialmente procedente, fixando-se a pena em quatro (04) anos e sete (07) de prisão, necessariamente efectiva.».

6. Notificado do parecer – art.º 417º n.º 2 –, o Recorrente nada disse.

7. Colhidos os vistos, de acordo com o exame preliminar, foram os autos presentes a conferência.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II. Fundamentação.

A. Âmbito-objecto do recurso.
8. O objecto e o âmbito dos recursos são os fixados pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 412º n.º 1, in fine –, sem prejuízo do conhecimento das questões oficiosas[3].
Tribunal de revista, de sua natureza, o Supremo Tribunal de Justiça conhece apenas da matéria de direito – art.º 434 º.
Não obstante, deparando-se com vícios da decisão de facto enquadráveis no art.º 410º n.º 2 que inviabilizem a cabal e esgotante aplicação do direito, ou com nulidade não sanada – art.º 410º n.º 3 e 379º n.º 2 – pode, por sua iniciativa, sindicá-los.

Reexaminadas as conclusões da motivação, as questões a apreciar são as seguintes:
─ Qualificação jurídica dos factos: crime de tráfico de estupefacientes normal do art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 versus crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade do art.º 25º al.ª a) do mesmo diploma;
─ Medida concreta da pena.

Questões que, assim e em princípio, serão as únicas de que se ocupará este acto.

B. Apreciação.
9. Veja-se, então, do fundamento do recurso, começando por recensear a matéria de facto relevante.

a. Acórdão Recorrido – matéria de facto.
10. A condenação do Recorrente em 1ª instância assenta nos seguintes factos provados:
─ «I.
Da acusação pública
1. O arguido, desde pelo menos o ano de 2014, vendeu habitualmente heroína e, desde cerca do mês de abril do ano de 2020, vendeu habitualmente canábis, em ambos os casos a consumidores que o procuravam na garagem da sua casa sita na Rua ......, ..., o que perdurou até à sua detenção em 16.10.2020..
2. No dia 16 de outubro de 2020, pelas 17:00h., o arguido tinha em seu poder, na sua residência, e que lhe pertenciam: 12 ramos de uma planta, com altura que variava entre os 0,70m e o 1,50m de altura; e 11 plantas em fase de crescimento, com o comprimento que variava entre os 2 e os 3 metros de altura, plantas essas que se tratavam de canábis (folhas e sumidades), com o peso líquido de 11.962,500 gr. e de 162,500 gr., globalmente suficiente para 9091 (nove mil e noventa e uma) doses.
3. A canábis destinava-se, pelo menos em parte, a ser vendida a consumidores.
4. No período compreendido entre o ano de 2014 e abril de 2020, com uma periodicidade quase diária, o arguido vendeu heroína, pelo preço de € 10,00, na garagem de sua casa, a BB, sendo que este comprava mais quantidade quando também tinha mais dinheiro.
5. Para a concretização dos negócios, BB, quando chegava, batia ao portão da garagem, o arguido surgia á janela e, depois de ver quem era, dali atirava a chave, usada pelo primeiro para abrir a porta, após o que entrava; seguidamente, o arguido entregava-lhe estupefaciente e BB pagava o preço.
6. Em data não concretamente apurada, na sua garagem, o arguido entregou canábis a CC, tendo esta dado em troca uma nota de € 5,00.
7. Entre pelo menos os meses de maio e outubro de 2020, o arguido vendeu canábis a DD, com a periodicidade de duas a três vezes por mês, por € 5,00, o qual, para o efeito, se deslocava à referida garagem.
8. Durante cerca de sete meses do ano de 2020, EE frequentou a garagem do arguido, o qual lhe oferecia liamba que, aquele, ali fumava.
9. O arguido conhece perfeitamente características estupefacientes do produto que lhe foi apreendido, sabendo que não se encontra autorizado a deter ou transacionar, por qualquer forma, tal substância.
10. O arguido agiu sempre no intuito de obter rendimentos com a venda de heroína e canábis.
11. O arguido da forma descrita agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo bem que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

II.
Mais se provou, das condições pessoais do arguido e a sua situação económica e das condutas anteriores aos factos

O arguido é filho único. Nasceu no seio de um agregado familiar de média condição socioeconómica. A infância decorreu na presença dos pais, ambos .......de profissão, sendo que a mãe, atualmente reformada, era proprietária de uma ….. e o pai, falecido há cerca de 4 anos, proprietário de um …... O processo de crescimento e desenvolvimento decorreu num contexto de equilíbrio e estruturação familiar, tendo beneficiado de adequado suporte afetivo. Mantém-se a residir no núcleo familiar de origem, com a progenitora, de 82 anos de idade, com a qual tem uma boa relação. A satisfação das necessidades básicas do agregado é assegurada através da reforma recebida pela progenitora, no valor mensal de € 518,00, e da renda do espaço comercial ……, no valor mensal de € 250,00, tendo, como despesas fixas, o valor de cerca de € 190,00. Integrou o sistema de ensino em idade própria. O agregado familiar emigrou para os ... quando tinha 9 anos de idade, em busca de melhores condições de vida, onde permaneceram por cinco anos. De regresso a ......., veio a abandonar o sistema de ensino aos 16 anos de idade, por questões relacionadas com fraca autoestima por ter idade mais avançada, mostrando-se habilitado com o 4º ano de escolaridade. Nessa altura iniciou atividade laboral como ....... no ….. do seu progenitor, acabando por enveredar por esta atividade comercial. Mais tarde, veio a assumir a gestão do estabelecimento. Casou aos 26 anos de idade, vindo a divorciar-se 14 anos mais tarde quando foi preso pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, tendo sido condenado, no âmbito do processo comum coletivo nº 625/00...., numa pena de sete de prisão efetiva pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes. Desta relação, nasceram dois filhos, atualmente com 26 e 28 anos de idade, com os quais mantém contacto e um bom relacionamento. Retomou a atividade profissional em 2003, data em que foi restituído à liberdade, até 2013, data da insolvência da sociedade, encontrando-se desempregado desde então. Tem a sua ficha inativa na Agência para a Qualificação e Emprego ...... (AQE) desde 06.12.2012, por motivo de não ter respondido a uma convocatória. Ocupa o quotidiano na realização de trabalhos manuais. No que concerne à problemática aditiva, o arguido iniciou o consumo de produtos estupefacientes com 16 anos de idade, o que manteve até cerca dos 40 anos, quando foi preso. Mantém o consumo de canábis. Embora reconheça gravidade aos factos em abstrato, o arguido apresenta um discurso autocentrado, de autovitimização e de reduzida consciência crítica. É imaturo, impulsivo, sugestionável e pouco ponderado. Presentemente nada consta no seu certificado do registo criminal.

11. Já como não provados, ficaram arrolados os seguintes:
─ a) o arguido também vendeu canábis entre 2014 e o início do ano de 2020;
b) as vendas de substâncias estupefacientes também ocorriam fora da residência do arguido;
c) BB chegou a adquirir ao arguido um grama de heroína pelo preço de € 50,00;
d) BB viu na residência do arguido muitos outros consumidores, de vários lugares, de entre os quais da freguesia ..., concelho .., a comprarem droga;
e) por vezes, BB também comprava ao arguido droga sintética pelo preço de € 10,00 euros a dose;
f) sem prejuízo da prova dos factos referidos no ponto 5., no ano de 2019, por mais três vezes, o arguido vendeu canábis a CC, por quantias que variavam entre € 5,00 e € 10,00, a qual, para o efeito, se deslocava à referida garagem;
g) sem prejuízo da prova dos factos referidos no ponto 6., a periodicidade dos negócios era de duas vezes por semana e o preço variava entre € 5,00 e € 10,00;
h) por vezes, DD também fumava parte da canábis que adquiria nessa garagem.

12. Apoiada a convicção probatória do Tribunal Colectivo, no fundamental, em prova por testemunhas, por documentos, por apreensões e por perícia, as declarações do Recorrente em pouco concorreram para o esclarecimento dos factos, que se limitou a reconhecer a posse e propriedade das plantas de cannabis que foram apreendidas por ocasião da busca na casa da sua residência e a partilha com amigos daquela substância.

b. Acórdão Recorrido – matéria de direito: qualificação dos factos e escolha e medida da pena.
13. A questão da subsunção típica dos factos apurados no tipo-base do art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 ou no tipo privilegiado do art.º 25º al.ª a) que o Recorrente suscita no recurso foi expressamente abordada no Acórdão Recorrido, indo a sua opção, como já dito, para o tráfico de estupefacientes normal após as seguintes reflexões:
─ «O art. 21º nº 1 da LD define o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes, no qual se punem diversas atividades ilícitas, cada uma delas dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objetivo ilícito. A Lei basta-se com a aptidão que cada uma das condutas que descreve revela para constituir um perigo para determinados bens e valores (como a vida, a integridade física ou a saúde pública), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer um dos atos alternativos se revele, independentemente das consequências que possa determinar (lesão efetiva de um dos concretos bens jurídicos tutelados pela norma), fazendo recuar, pois, a proteção para um momento anterior, isto é, o momento em que o perigo se manifesta.

Ora, no caso dos autos, em face da factualidade provada, dúvidas não existem de que a conduta do arguido, dolosa que foi [com dolo direto – art. 14º nº 1 do Código Penal (CP)], mostra-se contemplada pelo sobredito preceito, na medida em que que se dedicou à atividade de venda de heroína e de canábis (substâncias inscritas nas tabelas, respetivamente, I-A e I-C anexas à LD), a primeira substância durante cerca de seis anos e a segunda substância durante cerca de sete meses, sendo que guardava e detinha uma quantidade suficiente para mais de nove mil doses, sempre com conhecimento e vontade de o fazer (e a droga apreendida destinar-se-ia, de igual modo, à venda a terceiros, sem prejuízo de parte poder via a ser consumida pelo próprio arguido), inexistindo qualquer causa de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem faltando qualquer condição de punibilidade.

Não obstante estarmos perante vendas diretas a consumidores, sem recurso a intermediários e/ ou meios sofisticados, consideramos que a atividade não pende para o tráfico de menor gravidade a que alude o art. 25º al. a) da LD. Na verdade, o grosso da traficância reporta-se a heroína, durante cerca de seis anos, uma das drogas “duras” com efeitos mais perniciosos e destrutivos para a saúde, substância esta que o arguido, reconhecidamente, não consumia, num período em que se manteve sempre desempregado, permitindo-nos concluir que fazia da traficância o seu modo de vida; por outro lado, tinha consigo uma quantidade elevadíssima de canábis que daria para mais de nove mil doses (que, por conseguinte, não é compatível com uma venda limitada e num período de tempo razoavelmente curto). Neste quadro, e tendo presente a “imagem global do facto”, consideramos que, no caso dos autos, o crime praticado pelo arguido é, efetivamente, o de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º nº 1 da LD, assim se impondo a condenação do mesmo em conformidade.».
 
14. Já quanto à escolha e determinação da medida concreta da pena, discreteou o Acórdão Recorrido como segue:
─ «[…].
O crime em apreço é punido com pena de quatro a dez anos prisão (cit. art. 21º nº 1 da LD).

Os fins das penas são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do autor do crime na sociedade (art. 40º nº 1 do CP). Por seu turno, na determinação concreta da medida da pena deve atender-se à culpa do agente e às exigências de prevenção, conforme disposto no art. 71º nº 1 do CP, aplicável ex vi do art. 47º nº 1 do mesmo diploma. Assim, é dentro da moldura da prevenção geral que, desde logo, deve a pena ser fixada, sendo orientada pelo limite máximo fornecido pelo grau de culpa do agente – referencial que o julgador nunca pode ultrapassar – e pelo limite mínimo correspondente à tutela ótima das expectativas comunitárias na validade dos preceitos normativos violados. Em segunda linha, o quantum concreto da pena deve ser ponderado pelas necessidades de prevenção especial, isto é, deve ser alcançado, por um lado, atendendo às exigências da ressocialização e reintegração do agente e, por outro lado, visando que o mesmo se abstenha da prática de novos ilícitos.

A enormidade do flagelo da droga, que grassa todo o território mundial, determina serem elevadíssimas as necessidades de prevenção geral, quer atento o número e a proliferação de ilícitos criminais desta natureza, quer por força do contributo negativo para a prática de delitos de outra natureza, com veementes efeitos e repercussões familiares (a droga destrói famílias), profissionais (a droga amputa o sucesso escolar e profissional e amarra-se ao desemprego) e sociais (a droga exige esforços e custos elevadíssimos destinados ao seu combate), gerando grande insegurança no seio da comunidade, mormente neste contexto insular com fortíssima incidência do fenómeno, e um sentimento de combate com determinação a este tipo de fenómenos mediante a boa administração da Justiça.

Dentro das hipóteses cogitáveis previstas pela norma incriminadora, consideramos que o grau de ilicitude é reduzido, tendo especialmente em conta o volume de negócio da heroína e a natureza do produto estupefaciente de canábis (folhas e sumidades), sem descurar quantidade apreendida, em si mesma fortemente potenciadora de um espargimento e, com isto, uma alastrada danosidade social no concreto contexto da exígua população insular, aliada aos frequentes e intensos consumos de estupefacientes nesta ilha por parte de um elevado número de cidadãos, sobretudo jovens (tal como sucedeu, no caso dos autos, quanto às testemunhas BB, CC e DD) que, não raras as vezes, consomem em simultâneo com pretensos “tratamentos” à toxicodependência (conforme espelham variadíssimos processos crime que correm termos neste Tribunal).
O grau de culpa é o normal neste tipo de criminalidade, sem descurar o dolo revelado na forma mais gravosa de dolo direto, e também intenso, mas sem deixar de corresponder ao usual modo de cometimento do crime. Por seu turno, a conduta do arguido não cessou espontaneamente, por sua vontade, mas apenas com a intervenção policial no âmbito dos autos.

O reconhecimento de parte dos factos por banda do arguido, contextualizado numa versão que, em audiência, não mereceu o acolhimento do Tribunal nos moldes supra explanados em sede de fundamentação de facto, não assumiu especial relevo probatório, pois, para além da solidez da prova pré constituída, não foi de molde a evitar a produção dos depoimentos de quatro das cinco testemunhas arroladas na acusação. Ademais, não denotámos qualquer arrependimento (sem prejuízo de o arguido assim o ter verbalizado – mas não demonstrado – com referência às sementes que jogou lá no quintal…), mas antes uma total ausência de juízo crítico, de capacidade de descentração e de consciência da gravidade dos factos, alinhada num discurso irreverente, escoicinhado, autocentrado e vitimizado.

A integração familiar do arguido, assim como a ausência de antecedentes criminais [pese embora a condenação anterior pela prática, outrossim, deste tipo de crime, numa pena de prisão efetiva, não possa ser considerada como antecedente criminal stricto sensu (as inscrições averbadas e constantes do certificado do registo criminal a fls. 93- 96v. foram, entretanto, definitivamente canceladas – art. 11º nº 1 da Lei nº 37/2015, de 5 de maio), não deixa de revelar uma propensão para o permanente envolvimento no mundo das drogas], não assumem particular relevo neste domínio face aos específicos contornos da prática do ilícito criminal, até porque tal integração é contemporânea aos factos e não constituiu âncora suficiente para o demover do caminho que escolheu.
Assim sendo, e sopesando todas as referidas circunstâncias, afigura-se-nos necessário, justo, adequado e proporcional a aplicação de uma pena de cinco anos e quatro meses de prisão.».

c. Crítica dos fundamentos do recurso.
15. Quer, então, o Recorrente que se reconduza a previsão e punição da sua conduta do tipo do tráfico de estupefacientes do art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 por que foi condenado para o tipo do tráfico de estupefacientes de menor gravidade do art.os 25º al.ª a) do Decreto-Lei n.º 15/93, fixando-se a medida da pena em não mais do que 3 anos e 5 meses de prisão; assim não entendendo, quer que se reduza a pena dos 5 anos e 4 meses decretados para não mais do que 4 anos e 10 meses.
E sustenta tais pretensões na circunstância de – diz – o perfil da sua actuação colher da sensível diminuição da ilicitude que justifica o tipo privilegiado e de, de qualquer modo, a pena aplicada, ignorando a sua confissão parcial, a sua (boa) inserção familiar e a ausência de antecedentes criminais registados, «excede[r] as necessidades de prevenção especiais e gerais, prejudicando qualquer possibilidade de reinserção social» dele.

16. Veja-se se pode ser atendido, começando pela qualificação jurídico-criminal dos factos apurados.

(a). Qualificação jurídico-penal dos factos: o crime de tráfico de estupefacientes, normal e privilegiado.
17. Dispõe o art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 que comete o crime do tipo fundamental de tráfico «quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações estupefacientes e psicotrópicas compreendidas nas tabelas I a III», sendo punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.
Mostrando-se, porém, «a ilicitude do facto […] consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações», então – art.º 25º a) do mesmo diploma –, «a pena é de […] prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III […]».

A previsão legal do art.º 21º do Decreto-Lei n.º 15/93[4] contém a descrição típica do crime de tráfico de estupefacientes, de maneira compreensiva e de largo espectro, contendo o tipo base ou matricial.
Trata-se de um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm o denominador comum da aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação.

O ilícito tem sido catalogado na categoria de crime exaurido, crime de empreendimento ou crime excutido, é dizer, na dos ilícitos penais que fica perfeitos com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo.
É um crime de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal, reconduzidos à saúde pública. E de perigo abstracto, porque não pressupõe nem o dano nem o perigo para um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas o risco de dano que a acção representa para as espécies de bens jurídicos protegidos.
E consuma-se com a simples criação desse perigo ou risco para o bem jurídico protegido, que é a saúde pública na dupla vertente física e moral.

18. De seu lado, o crime de tráfico de menor gravidade contempla situações em que o tráfico de estupefacientes, tal como se encontra definido no tipo base, se processa de forma a ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude, ou seja, em que se mostra diminuída a quantidade do ilícito.
A título exemplificativo, indicam-se no art.º 25º do Decreto-Lei n.º 15/93 como índices, critérios, exemplos padrão ou factores relevantes de graduação da ilicitude, circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, mormente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações objecto do tráfico. Circunstâncias que devem ser analisadas numa relação de interdependência, já que há que ter uma visão ou perspectiva global, uma mais ampla e correcta percepção das acções desenvolvidas – a actividade disseminadora de produtos estupefacientes – pelo agente, de modo a concluir-se se a conduta provada fica, ou não, aquém da gravidade do ilícito justificativa da integração no tipo essencial do art.º 21º n.º 1.
O artigo 25º encerra, assim, um específico tipo legal de crime, uma variante dependente privilegiada do tipo de crime do artigo 21º.
A sua aplicação tem como pressuposto específico a existência de uma considerável diminuição do ilícito; pressupõe um juízo positivo sobre a ilicitude do facto, que verifique uma substancial diminuição desta, um menor desvalor da acção, uma atenuação do conteúdo de injusto, uma menor dimensão e expressão do ilícito.
Respeitando, assim, os pressupostos da disposição, todos eles, ao juízo sobre a ilicitude do facto no sentido positivo, constatando, face à específica forma e grau de realização do facto que o caso se situará forçosamente aquém da necessidade de pena expressa pelo limite mínimo do tipo base, uma substancial diminuição desta.
E sendo os índices ou exemplos padrão enumerados no preceito atinentes, uns, à própria acção típica (meios utilizados, modalidade, circunstâncias da acção), outros, ao objecto da acção típica (qualidade ou quantidade do estupefaciente), respeitam todos ao desvalor da conduta, à execução do facto, fazendo parte do tipo de ilícito, não entrando em acção qualquer consideração relativa ao desvalor da atitude interna do agente, à personalidade deste, a juízo sobre a culpa.
Constituindo, no fim de contas, o artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93 uma "válvula de segurança do sistema'', destinado a evitar que se parifiquem os casos de tráfico menor aos de tráfico importante e significativo, evitando-se que situações de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que se utilize indevidamente uma atenuação especial.

19. Em síntese, portanto, o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade do art.º 25º do Decreto-Lei n.º 15/93 é um tipo legal específico, constituindo uma variante dependente do tipo fundamental do art.º 21º do qual se aparta em razão da substancial diminuição da ilicitude do facto por comparação à suposta por este, (positivamente) aferida em função da imagem global do episódio e com atenção à modulação da acção típica e, ou, do seu objecto, ou seja, sempre referenciada ao desvalor da conduta ou da execução do facto – à ilicitude do tipo, é o mesmo –, que não a considerações relativas ao desvalor da atitude interna do agente, à personalidade deste, a juízos sobre a culpa.
 
20. Isto dito, e em reaproximação ao caso, diz-se já que, tal como os Senhores Juízes de ..., também este tribunal, entende que o quantum de ilicitude do facto se contém na margem de variação suposta pelo tipo matricial do art.º 21º n.º 1 do CP.
E as razões são, precisamente, as por eles sublinhadas, aliás, secundadas pelos Senhores Procuradores, na instância e neste Supremo Tribunal:
─ Uma das substâncias mercadejadas – heroína – é das mais perniciosas do ponto de vista da saúde pública.
─ A actividade de tráfico prolongou-se por mais 6 anos, de heroína entre 2014 e Abril de 2020, de cannabis desde esta altura até Outubro seguinte.
─ De distribuição directa ao consumidor, não deixou de envolver, no seu conjunto, quantidades de algum significado, como claramente o indiciam o facto de, por ocasião da busca que, em Outubro, acabou por pôr termo à traficância do Recorrente, lhe terem sido apreendidos mais de 12 kg de cannabis, suficientes para a feitura de 9091 doses médias individuais.
─ Não se revestindo de grande sofisticação, a actividade do Recorrente, não deixou de, quanto à cannabis, envolver duas modalidades de acção típica, o seu cultivo/preparação e a sua venda.

O que, tudo – e diz-se para rematar neste ponto –, afasta a ideia de que a conduta do Recorrente na sua concreta conformação, denota grau de ofensividade dos bens e interesses protegidos aquém do limiar do que justifica o tipo, normal, do art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, a ponto de se dizer que, quando o legislador o congeminou, na sua modulação típica e na dimensão da sua sanção, não teve em vista situações com esse recorte.

21. Motivos por que se entende que a subsunção adequada dos factos é no art.º 21º n.º 1 que vem da 1ª instância, nessa medida e nessa parte, improcedendo o recurso.

(b). Medida concreta da pena prisão.
22. Mas diz ainda o Recorrente que, mesmo decaindo na questão da qualificação jurídica – e na inerente, redução da medida da prisão para não mais do que 3 anos e 5 meses –, a pena de 5 anos e 4 meses prisão decretada é manifestamente excessiva, prejudicando as finalidades de reinserção social, por não ter tido na devida conta factores tão importantes como a confissão parcial dos factos, a sua inserção familiar e a inexistência de antecedentes criminais registados.
Veja-se:
 
23. Nos termos do art.º 40º do CP, a aplicação de penas visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – n.º 1 –, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa – n.º 2.
Determinada, assim, pela necessidade de proteger os bens jurídicos e já não pela ideia de retribuição da culpa e do facto, toda a pena visa exclusivamente finalidades de prevenção, geral e especial.
E dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva, ponderam-se as exigências de prevenção especial, vistas como a necessidade de socialização do agente, é dizer, de preparação dele para, no futuro, não cometer outros crimes, mesmo se, apenas, no sentido de que respeite os valores jurídicos tutelados pela lei penal e já não no de obter a sua regeneração.
Concorrendo a tutela dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade no objectivo comum de evitar a lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos consubstanciado na prática de crimes, a função de cada uma delas é, porém, modulada por exigências próprias.
E confere a lei primazia à primeira, que as «finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos» e só depois «e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade»[5].

Na ideia da, denominada, teoria da moldura da prevenção geral de integração que o Código Penal acolhe desde a reforma de 1995, a medida da tutela dos bens jurídicos é referenciada, dentro dos limites da moldura abstracta do tipo do ilícito, a um ponto óptimo que realiza, aos olhos da comunidade, a reafirmação plenamente satisfatória da validade da norma jurídica violada pela prática do crime, e a um ponto mínimo, que representa, aos mesmos olhos, o quantum de sanção abaixo do qual não é «suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar», o mesmo é dizer, a sua função de protecção, e de reafirmação, daquele bem jurídico[6].
E é entre esses dois limites, mínimo e máximo que, tanto quanto possível, devem satisfazer-se as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização que, assim e em último termo, indicam a medida da pena.
Medida esta limitada, se necessário, pela medida da culpa, que sobre pressuposto da pena – não há pena sem culpa –, se constitui como limite inultrapassável de todas e quaisquer exigências preventivas em nome do princípio da dignidade pessoa humana (art.º 1º da CRP).
E medida que «deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos» [7]. E só assim se respeitando os princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade – art.º 18º da CRP – que, enquanto restrição grave de direitos, liberdades e garantias, a pena não pode deixar de observar.

Afirmando o n.º 1 do art.º 71º do CP, em consonância com aquele art.º 40º, que a medida da pena é determinada em função da culpa e das exigências de prevenção, acrescenta-lhe o n.º 2 que se atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime – isto é, que não tenham sido valoradas para efeitos do apuramento, prévio, da responsabilidade criminal que a tanto se opõe princípio da proibição da dupla valoração[8] –, deponham a favor ou contra o arguido.
Circunstâncias que, no âmbito daquela moldura da prevenção, com o limite da culpa, hão-de levar-se em conta na fixação concreta da pena, tudo, a final, saindo reflectido nesta.
E circunstâncias de que aquele n.º 2 adianta mera exemplificação, nela incluindo factores relativos à execução do facto – e tanto respeitantes ao tipo de ilícito (o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução e a gravidade das suas consequências, e bem assim o grau de violação dos deveres impostos ao agente), como ao tipo de tipo de culpa (a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados pelo agente no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram) –; factores relativos à personalidade do agente – as suas condições pessoais e situação económica, a sua sensibilidade à pena e a susceptibilidade de ser por ela influenciado –; e, ainda, factores relativos à conduta do agente, anterior e, ou, posterior ao facto.

24. Presentes estas considerações e recordados os momentos essenciais da conduta do Recorrente assentes no provado, tem-se então que, como já ficou assente nesta peça, cabe ela na compreensão objectiva a subjectiva do crime de tráfico de estupefacientes previsto nas disposições conjugadas do art.os 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 e Tabela I-B anexas e aí abstractamente punido com pena 4 a 12 anos de prisão.

Havendo, assim, de ser concretamente aplicada pena de prisão, que outra não comina a lei – art.º 70º do CP, a contrario –, e a encontrar naquela margem de variação de 4 a 12 anos de prisão, ponderar-se-á em primeiro lugar que a ilicitude dos factos, nos parâmetros supostos pelo tipo, se posiciona a um pouco aquém da mediania, como tudo melhor resulta do que se explanou 20. supra e que aqui se recorda.
O que, podendo moderar as exigências de prevenção geral positiva, ainda assim o fazem muito limitadamente, que nem o grau de violação dos bens jurídicos protegidos foi, in casu, de tão pouco significado que prescinda de efectiva e decidida, reafirmação da sua validade e vigência através da pena, nem, em geral, esses mesmo valores, pelo seu carácter estruturante do edifício social, podem abdicar dessa mesma reafirmação.

Depois, atentar-se-á em que o grau da culpa ultrapassa, sem margem para dúvidas, os níveis intermédios: o arguido actuou com dolo directo e intenso em que persistiu pelo período já bem considerável de mais de 6 anos; moveu-se pela intenção, sempre censurável, da obtenção de ganhos que bem sabiam ilícitos; e só cessou a prática criminosa em razão de intervenção policial.

Por fim, não deixará de se concluir que as exigências da prevenção de socialização são de algum significado: não obstante estar familiarmente inserido e contar com o apoio dos parentes mais próximos, não tem hábitos de trabalho regular desde 2013, mantém o consumo da cannabis e apresenta um discurso de autovitimização e de reduzida consciência crítica relativamente ao actos praticados.
O que, tudo, pode representar menor permeabilidade à influência da pena.
 
25. Ora, numa moldura abstracta de 4 a 12 anos de prisão e num quadro de, relativa, moderação das exigências de prevenção geral, mas de mais elevadas necessidades de ressocialização e de grau de culpa já acentuado, não se afigura minimamente desajustada a medida da pena de 5 anos e 4 meses de prisão que vem decretada no Acórdão Recorrido.

Pena essa que, adequada, assim, às necessidades de prevenção e à dimensão da culpa do Recorrente, aqui se mantém, também nesta parte – e, afinal, em tudo – improcedendo o recurso.

III. decisão.
26. Termos em que acordam os juízes desta 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, mantendo-se, em tudo, o douto Acórdão Recorrido.

Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC's.

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Digitado e revisto pelo relator (art.º 94º n.º 2 do CPP).

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Supremo Tribunal de Justiça, em 11.11.2021.



Eduardo Almeida Loureiro (Relator)

António Gama

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[1] Diploma a que pertencerão todos os preceitos que se vierem a citar sem menção de origem
[2] [Nota 1 no original] Cf. artigo 25º-tráfico de menor gravidade- do DL. n º 13 /95 de 22 de Janeiro
[3] Cfr. Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19.10.1995, in D.R. I-A , de 28.12.1995.
[4] Segue-se nos passos mais próximos da exposição muito de perto o Ac STJ de 5.6.2013, Proc. n.º 7/11.2GAADV.E1.S1, sumariado em www.stj.pt..
[5] Figueiredo Dias, "Consequência Jurídicas do Crime", 1993, p. 227.
[6] Figueiredo Dias, ibidem, p. 229.
[7] Figueiredo Dias, ibidem, p. 231.
[8] Neste sentido, Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código Penal", 2º ed., p. 267.
[9] Segue-se nos passos mais próximos da exposição muito de perto o AcSTJ de 5.6.2013, Proc. n.º 7/11.2GAADV.E1.S1, sumariado em www.stj.pt..