Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4165/11.8TBVLG.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRE PELAYO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PERÍODO DE CESSÃO
INSOLVENTE
OBRIGAÇÕES
Nº do Documento: RP202403194165/11.8TBVLG.P2
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Durante o período da cessão do rendimento disponível, o devedor fica obrigado a informar o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que lhe isso lhe seja requisitado e a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos, objeto da cessão.
II - O art.244º nº2 do CIRE, ao sujeitar a recusa da exoneração do passivo restante à verificação dos requisitos previstos no art.243º, n.1, alínea a), pressupõe, que o incumprimento dos deveres impostos ao devedor atinja um determinado nível de gravidade, ou seja, que possa ser qualificado como gravemente negligente ou doloso.
III - Cumulativamente, desse preceito extrai-se, ainda, a necessidade de se concluir pela verificação de um nexo de causalidade entre o incumprimento e a existência de prejuízo para os credores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 4165/11.8TBVLG.P2
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 1


Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Artur Dionísio Oliveira
Lina Castro Batista




SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação:


I - RELATÓRIO:
Na petição inicial, os insolventes AA e BB deduziram incidente de exoneração do passivo restante. Em suma, alegam que reúnem os requisitos para que tal lhes seja concedido.
Por despacho de 22-02-2012, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante referente aos insolventes AA e BB, nos seguintes termos:
“julga-se procedente o incidente e:
- admite-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante;
- determina-se que no período de cessão, nos cinco anos seguintes ao encerramento do processo, o rendimento disponível – referido no art. 239º, nº 3 - que os insolventes venham a auferir
- fixa-se o rendimento indisponível no correspondente a três salários mínimos nacionais;
- durante o período de cessão, os insolventes ficam adstritos aos deveres elencados nas várias alíneas do nº 4 do art. 239º;
- para desempenhar as funções de fiduciário designa-se o Administrador da Insolvência nomeado neste processo.”
Por despacho prolatado em 8 de maio de 2018 foi declarado encerrado o presente processo.
Por despacho de 10.5.2023, foi proferido despacho que alterou  o valor que fica salvaguardado para aqueles para a quantia correspondente a 3 salários mínimos nacionais vigente no Cantão em que residiram e trabalharam entre o período de 26-11-2021 a 11-04-2022, com efeitos, a alteração apenas poderá ter efeitos a partir da data do pedido de alteração, ou seja, 26-11-2021.
Aos 17-07-2023, os insolventes vieram requerer a prorrogação do período de exoneração do passivo restante, a fim de procederem ao pagamento da quantia em falta, o que foi deferido por despacho devidamente transitado em julgado.
Por despacho de 14.9.2023, foi decidido: “Nos presentes autos, o período de cessão que se encontrava em curso e que terminaria em 01-07-2022, por virtude da entrada em vigor da Lei 9/2022, de 11-01, terminou “ope legis” em 11-04-2022.
No entanto, em face da nova norma contida no artº 242º A, nº 1, do CIRE, veio abrir-se a possibilidade para a prorrogação do período de cessão por mais três anos, tendo por referência um período de cessão encurtado para três anos, o que equivale a concluir que a extensão dita que o período de cessão nunca poderá, globalmente, exceder os 6 (seis) anos.
Assim, transcorrido há muito os seis anos do incidente da exoneração do passivo restante, por falta de cobertura legal, indefere-se o requerido pelos devedores.
Em face das dificuldades invocadas, como uma última oportunidade de regularização do valor em falta à fidúcia por parte dos insolventes, concede-se o prazo de 30 [trinta] dias para o efeito, advertindo-os que, no caso de não o fazerem, tal servir de fundamento para a eventual recusa da exoneração, nos termos já requeridos, visto que já se encontra cumprido o artº 244º, nº 1, do CIRE.”
Os Insolventes responderam, alegando encontrarem-se impossibilitados de efetuar a entrega do valor ordenado pelo Tribunal.
Terminado o período de cessão, e cumprido o disposto no artº 244º, nº 1, do CIRE, pronunciaram-se o(a) Exm(a) Sr(a) Fiduciário(a) e a sociedade Banco 1..., S. A., no sentido de recusa da exoneração do passivo restante.
A Ilustre Mandatária dos insolventes veio expor que estes não conseguem liquidar o valor em falta, uma vez que é muito superior ao montante disponível como excedente após liquidação das despesas.
Veio a ser proferido despacho, com o seguinte dispositivo: “atento o comportamento culposo dos Requerentes AA e BB, visto o disposto no artº 239º, nº 4, alínea c), 243º, nº 1, alínea a), e 244º, nº 2, todos do CIRE impõe-se RECUSAR a exoneração do passivo restante, declarando encerrado o correspondente incidente.
Custas a cargo dos devedores.”
Inconformados os Insolventes AA e BB, vieram interpor o presente recurso tendo apresentado as seguintes conclusões:
“1. Através de douto despacho recorrido vem o Tribunal decidir que “atento o comportamento culposo dos Requerentes AA e BB, visto o disposto no artigo 239º, nº. 4, alínea c), 243º, nº. 1, alínea c) e 244º, nº.
2, todos do CIRE impõe-se recusar a exoneração do passivo restante, declarando encerrado o correspondente incidente”
2. Neste caso a não concessão da exoneração do passivo restante foi declarada com fundamento na violação pelos Insolventes da obrigação que sobre os mesmos impendia e contida no art.° 239°, n.° 4, al. c), do CIRE, presumindo que essa infração foi praticada com culpa grave, dada a inexistência de qualquer justificação para a sua conduta.
3. É certo que os insolventes têm a obrigação, entre outras - art.° 239°, n.° 4, do CIRE -, de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos rendimentos objeto de cessão - al. c).
4. Todavia, entendemos que a verificação da violação dessa condição, só por si não conduz ao preenchimento do requisito constante do n.° 1, a), do art.° 243° do CIRE, pois é exigido que os devedores tenham atuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência!
5. Nesse sentido, entre outros, vejamos o que se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra n.°3112/13.7TJCBR.C1, de 07.04.2016: A verificação da violação da condição prevista no art.° 239°, n° 4, al. c), do CIRE - entrega ao fiduciário a parte dos rendimentos objeto de cessão - só por si não conduz ao preenchimento do requisito constante do n° 1, a), do art.° 243° do CIRE, pois é exigido que o devedor tenha atuado com dolo ou negligência grave e por esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
6. Os Recorrentes não atuaram com grave negligência, na falta verificada de entrega de qualquer quantia do seu rendimento ao fiduciário, no período de cessão!
7. A negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objetivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente).
8. Por sua vez, a negligência pode assumir diferentes graus em função da ilicitude ou da culpa: (i) será levíssima quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excecionalmente diligente teria observado; (ii) será leve quando o parâmetro atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente; (iii) será grave quando a omissão corresponde àquela em que só uma pessoa excecionalmente descuidada e incauta teria também incorrido.
9. Também se vem entendendo que a negligência grosseira corresponde à culpa grave, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente - porque gratuita e de todo infundada - se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum - cfr. Acórdão do STJ de 25.03.2009, Relator Pinto Hespanhol.
10. Assim, o facto de os recorrentes no referido quadro de dificuldades económicas, decidiram emigrar, para procurarem forma de se auto-sustentarem.
11. No entanto, a ida dos mesmos para o estrangeiro acarretou uma série de dificuldade: a adaptação difícil do filho e o momento de covid vivenciado, precisamente no período de “alegado incumprimento”.
12. Não se tendo, sequer, os Insolventes “lembrado” das obrigações de correntes da exoneração do passivo restante.
13. E tanto se tratou de uma questão sem dolo, culpa ou malícia que, quando notificados para entregarem os comprovativos de rendimento, procederam à entrega de tudo o que era necessário e que respeitava à sua estada na Suíça.
14. O não terem entregue ao fiduciário as quantias a que estavam obrigados, mensalmente, não se configura como uma atitude excecionalmente descuidada e incauta, porquanto os recorrente atuaram até e ainda dentro das suas responsabilidades de pater família!
15. Tratou-se a emigração como único escape, de modo a poderem cumprir um dos requisitos da própria exoneração: o de desempenharem atividade remunerada.
16. O que só conseguiram indo para fora!
17.E nessa medida, conseguiram que (sobre)viver com os seus rendimentos, pagando renda de casa (perto de € 2.000,00), luz, água, gás, telefone, tv, telemóvel e internet (por inerência) e alimentação, vestuário, calçado e despesas médicas e medicamentosas de ambos!
18.. Não se verificando a existência de grave negligência na atuação dos insolventes!
19. Pelo exposto, nas concretas circunstâncias que se desenham nos autos, os recorrentes na sua atuação de não entrega ao fiduciário dessas quantias não evidencia grave negligência, o que, necessariamente, tem como consequência a procedência do presente recurso e a revogação do despacho que determinou a cessação antecipadamente do procedimento de exoneração do passivo restante, devendo o mesmo ser substituído por outro de decida pela exoneração do passivo restante.
20. Aliás omite, parecendo de forma propositada, o despacho recorrido que os insolventes tentaram, por várias vezes efetuar as entregas de todos os valores que dispunham (depois de liquidadas as despesas!)
21. Fê-lo assim através dos requerimentos sob as referências 34067315, 35309575, 46157863, 46845179.
22. Sem nunca tendo tido apreciação a tais pedidos.
23. Sendo que relativamente aos mesmos nunca os credores se opuseram, ou a Senhora Fiduciária.
24. Não concretiza o despacho recorrido onde assenta a culpa grave dos insolventes na não realização das entregas.
25. Apenas mencionado que não o fizeram, apesar de notificados para o efeito, esquecendo-se, no entanto, de referir as várias tentativas de entregas de outros valores ao processo, nomeadamente o que resultava do valor sobrante, depois de pagas as despesas básicas mensais e da entrega de tudo o que sobrasse!.
26. Contudo, nunca, até ao momento do fim deste incidente, a Senhora Fiduciária reportou aos autos qualquer incumprimento doloso ou por negligência, sequer, por parte dos Insolventes!
27. Por último, refira-se que apesar de a Senhora Fiduciária afirmar que os Insolventes não cumpriram com o disposto no art.239.° n.° 4 do CIRE, a verdade é que ela própria, enquanto fiduciária, nunca requereu a cessão antecipada pelo não cumprimento das obrigações!
28 Como de resto, nenhum outro Credor o fez!
29. Aliás, apenas na recta final do processo se pronunciou o Banco 1... pela não concessão da exoneração do passivo restante, considerando estarem absolutamente verificados os fundamentos que a lei exige para o efeito, concluindo que efetivamente, encontra-se indiciada a violação da norma do artigo 239.°, n.° 4, al c) do CIRE, uma vez que os Insolventes não cederam cedeu os valores objeto de cessão.
30. Decorre da lei que o devedor não poderá esconder ou dissimular os rendimentos que aufira, seja a que título for, além de ter que informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e bens, quando isso lhe seja solicitado.
31. Já se demonstrou que nunca, em momento algum, o Senhor Fiduciário interpelou o Insolvente no sentido de qualquer esclarecimento sobre o que quer que fosse!
32. Ao contrário, os recorrentes sempre fizeram chegar ao processo os documentos em causa.
33. Como já se disse, os Insolventes não violaram qualquer dos seus deveres: nunca ocultaram ou sonegaram do Senhor Fiduciário quaisquer rendimentos!
34. Neste caso, estamos perante Insolventes que se encontravam ambos em situação de desemprego de longa duração e tentaram alavancar a sua vida, tendo para isso de emigrar!
35. Como já se disse ao longo do processo e se demonstrou através de prova documental as despesas mensais dos Insolventes haviam mais do que triplicado, pois o custo de vida na Suíça é muito superior ao nacional..
36. Com o devido respeito, é inconcebível e atenta violentamente contra os direitos constitucionalmente consagrados douta decisão de não concessão da exoneração definitiva do passivo restante!
37. Do dito despacho que deferiu liminarmente a exoneração de passivo restante resulta que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário infra nomeado, no montante que exceda o valor equivalente uma três retribuições mínima garantida.
38. Assim, douta Sentença recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 239.°,n.° 4, al. a), e 244.°, n.° 1 e n.° 2, todos do CIRE, ao não conceder a exoneração de passivo restante ao Insolventes.
39. A Sentença recorrida deveria ter interpretado e aplicado corretamente tais preceitos, concedendo a exoneração definitiva do passivo restante aos insolventes, ou subsidiariamente, concedendo-lhe novo período para entrega do rendimento disponível.
40. O que aliás os Insolventes requereram e o Tribunal indeferiu, mesmo sem a oposição dos credores.
Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve o presente recurso ser julgado provado por procedente, revogando-se, em conformidade o douto despacho recorrido, concedendo a exoneração de passivo restante aos insolventes. Tudo como única forma de se fazer inteira e sã JUSTIÇA.”
Os Insolventes beneficiam de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Não houve resposta.
Admitido o recurso, cumpre apreciar e decidir.


II - OBJETO DO RECURSO:
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
A questão decidenda é a de saber se estão preenchidos os pressupostos legais que permitem conceder aos apelantes a exoneração do passivo restante.


III - FUNDAMENTAÇÃO:
O Tribunal considerou assente a seguinte factualidade relevante para o presente incidente:
- Os insolventes não entregaram à fidúcia o valor de €98.211,71 euros.


IV - APLICAÇÃO DO DIREITO.
A exoneração do passivo restante é uma medida especial de proteção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste.
Tal como decorre do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2003, de 18 de Março, é uma solução que se inspirou no modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente.
O devedor mantém-se por um período de cessão, equivalente a três  anos, adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não tenham sido integralmente satisfeitos e obriga-se, durante esse período, no essencial, a ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário, que afetará os montantes recebi Em termos processuais, não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial a determinar que, no referido período de cinco anos de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade designada por fiduciário (cf. art.º 239.º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas aprovado pela Lei 39/2003 de 22.8, a seguir designado CIRE.
Decorre do disposto no art. 239.º, n.º 3, al. b), i., do CIRE que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com exclusão, além do mais, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, em três vezes o salário mínimo nacional.
A medida especial de proteção do devedor pessoa singular a que os apelantes foram sujeitos, traduz-se assim, esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos (ou até seis, se houver prorrogação do período de cessão) posteriores ao encerramento deste.
Em termos processuais, não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial a determinar que, no período de três anos de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade designada por fiduciário (Cf. art.º 239.º, n.º 2, do CIRE).
Este despacho, não consubstancia uma decisão definitiva, garantido apenas a passagem do processo para a fase subsequente, o período de cessão.
Na perspetiva de Catarina Serra[2] “não pode deixar de se associar o despacho inicial e a subsequente abertura do procedimento da cessão à concessão da liberdade condicional por bom comportamento-uma espécie de período experimental em que, se tudo correr bem, terá lugar a libertação definitiva do sujeito.”
Ora, se assim não suceder, o juiz deve recusar a exoneração, antes de terminado o período de cessão, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se ainda estiver em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos da insolvência (art. 243.º, n.º 1, al. a) do CIRE)
Neste período, o Insolvente encontra-se sujeito a um conjunto de deveres, nos termos elencados no art.º 239.º do CIRE.
Durante o período da cessão, segundo as alíneas a) e c) do n.º 4 do art. 239.º do CIRE, o devedor fica obrigado nomeadamente a informar o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que lhe isso lhe seja requisitado e a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.
Caberá depois ao tribunal, findo o prazo da cessão, proferir decisão final da exoneração, concedendo-lhe ou não a exoneração do passivo restante, sendo que esta concessão importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam ã data em que é concedida (cfr. artigos 244º e 245º do CIRE).
Por sua vez a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos porque o poderia ter sido antecipadamente (art. 244º nº 2 do CIRE).
De acordo com o disposto no artº 244º, nº 1, do CIRE - na redação dada pela Lei nº 9/2022, de 11-01- , “[N]ão tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º -A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor”.
Nos termos do artº 243º, nº 1, alínea a) do CIRE, ainda antes de terminado o período da cessão, deve o Juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artº 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Por seu turno, estabelece o artº 239º, nº 4, do CIRE, que, durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
Na sentença sob recurso, o tribunal a quo entendeu que constitui violação dolosa dos deveres fixados ao devedor a omissão de entrega de rendimentos qualificados como disponíveis para a fidúcia, depois de repetidamente interpelado para os entregar, e dos quais, por isso, ficaram, privados os credores. Que esta conduta consubstancia um incumprimento doloso da obrigação que lhe foi fixada no despacho de admissão liminar do incidente, por ser um ato voluntário e reiterado de não satisfação dos deveres impostos. E é não menos óbvio que isso resulta em violação dos interesses dos credores, por os privar do capital que haveriam de receber para satisfazer, ainda que só parcialmente, os créditos que haviam concedido à devedora e que lhes foram reconhecidos na insolvência.
Assim, em face do exposto e atento o comportamento culposo dos Requerentes AA e BB, visto o disposto no artº 239º, nº 4, alínea c), 243º, nº 1, alínea a), e 244º, nº 2, todos do CIRE o tribunal decidiu recusar a exoneração do passivo restante, declarando encerrado o correspondente incidente.
Atentas as conclusões de recurso, a discordância dos apelantes reside no facto de entenderem que não houve culpa ou negligência da sua parte na omissão de entrega do valor que era devido à fidúcia.
Nesta matéria, tem sido entendido que no âmbito do Incidente da Exoneração do passivo Restante, é exigida a demonstração de uma situação grave suscetível de conduzir, de forma segura, a um juízo de censura, a título de dolo ou de grave negligência, e à conclusão de que a atuação do devedor em causa prejudicou os interesses dos credores.
Como afirma o Supremo Tribunal de Justiça a este respeito, [3]no acórdão de 11.2.2020 (P 2155/11.0TBGMR.G2.S1, Relator Maria Olinda Garcia, https://jurisprudencia.csm.org.pt: “Todavia, não é um qualquer incumprimento dos deveres do insolvente, durante aquele período, que justifica a negação da exoneração do passivo restante. O art.244º, n.2 do CIRE, ao sujeitar a recusa da exoneração do passivo restante à verificação dos requisitos previstos no art.243º, n.1, alínea a), pressupõe que tal incumprimento atinja um determinado nível de gravidade, ou seja, que possa ser qualificado como gravemente negligente ou doloso. Por outro lado, e cumulativamente, desse preceito extrai-se, ainda, a necessidade de se concluir pela verificação de um nexo de causalidade entre o incumprimento e a existência de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”
Tem sido entendido que no âmbito do Incidente da Exoneração do passivo Restante, é exigida a demonstração de uma situação grave suscetível de conduzir, de forma segura, a um juízo de censura, a título de dolo ou de grave negligência, e à conclusão de que a atuação do devedor em causa prejudicou os interesses dos credores.
Impõe-se assim saber, em face da matéria de facto apurada, se os apelantes não cumpriram os deveres que lhe estavam adstritos, que foram impostos de forma a permitir-lhe a sua reintegração na vida económica, tendo como objetivo dar-lhe uma nova oportunidade para que possa começar de novo, isto é se não está em condições de poder beneficiar da oportunidade que lhe foi dada de obter o “perdão das dívidas” e se tal conduta pode ser qualificada como como gravemente negligente ou doloso e ainda se se pode concluir pela verificação de um nexo de causalidade entre o incumprimento e a existência de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Aqueles vieram alegar que, no quadro das dificuldades económicas que vivenciaram, decidiram emigrar, para procurarem forma de se auto-sustentarem. No entanto, a ida dos mesmos para o estrangeiro acarretou uma série de dificuldade: a adaptação difícil do filho e o momento de covid vivenciado, precisamente no período de “alegado incumprimento”, não se tendo, sequer, os Insolventes “lembrado” das obrigações de correntes da exoneração do passivo restante.
O não terem entregue ao fiduciário as quantias a que estavam obrigados, mensalmente, não se configura como uma atitude excecionalmente descuidada e incauta, porquanto os recorrente atuaram até e ainda dentro das suas responsabilidades.
A emigração foi o único escape, de modo a poderem cumprir um dos requisitos da própria exoneração: o de desempenharem atividade remunerada. E nessa medida, conseguiram que (sobre)viver com os seus rendimentos.
Concluem que, nas concretas circunstâncias os recorrentes na sua atuação de não entrega ao fiduciário dessas quantias não evidencia grave negligência, o que, necessariamente, tem como consequência a procedência do presente recurso e a revogação do despacho que determinou a cessação antecipadamente do procedimento de exoneração do passivo restante, devendo o mesmo ser substituído por outro de decida pela exoneração do passivo restante.
A nosso ver não pode ter acolhimento a pretensão dos Recorrentes.
Com efeito, tendo presente que o despacho inicial que admitiu liminarmente o incidente de exoneração do passivo é de 22-02-2012, que na altura fixou um período de cessão de cinco anos (período em vigor na altura, por força do disposto no art. 235º do CIRE na redação anterior à que lhe foi dada pela Lei nº 9/2022), que veio a ser objeto de prorrogação a requerimento dos insolventes (beneficiando já das alterações da identificada lei que veio permitir a prorrogação do período de cessão no art. 242º-A do CIRE), usufruindo assim do período máximo admissível de seis anos, o certo é que os insolventes não procederam ao pagamento ao fiduciário do montante devido.
É certo que na decisão final de exoneração deve ser considerada a culpa dos insolventes, já que o art. 243º nº 1 al a) , aplicável por força do art. 244º do CIRE, impõe que o devedor tenha atuado “dolosamente ou grave negligencia”, na violação das obrigações impostas pelo art. 239º do CIRE.
Ora, são os próprios devedores, que neste recurso confessam que “se esqueceram” das suas obrigações. (ver conclusão 12).
Tal comportamento não pode deixar de ser, a nosso ver, enquadrado no âmbito duma negligência grave.
Com efeito, as dificuldades económicas aliadas a “um esquecimento” da sua responsabilidade para com os credores, não pode valer como justificação e revela mesmo uma grave negligência no não cumprimento da obrigação de entrega ao fiduciário dos valores devidos.
Subscrevemos assim a afirmação feita na sentença: “De resto, a censurabilidade da conduta da devedora é ainda adensada pelo protelamento que a mesma, por sua iniciativa, conferiu ao cumprimento do seu dever de entrega do rendimento recebido e que excedia o montante que a decisão liminar lhe salvaguardou, protelamento esse que culminou com o incumprimento dos termos da obrigação que ela própria redefinira: pagar tudo até ao termo do período de cessão.
Se dúvidas houvesse sobre o grau de censurabilidade, v.g., da culpa da devedora, essa conclusão do procedimento logo as faria dissipar. E que essa conduta é dolosa é igualmente inquestionável: a devedora sabia que devia pagar, foi-lhe determinado que pagasse, foi-lhe tolerado que pagasse nos termos que ela própria definiu e não o fez, o que tem implícita a conclusão de que sabia e queria esse resultado, bem como que, por essa via, privava os seus credores do acesso a esse valor, para a satisfação dos seus créditos.”
E exigindo-se como se exige que tal violação tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência, não se pode afirmar que a omissão d etal conduta não tenha afetado o património dos credores, pois estes dessa forma, nem parcialmente conseguiram obter o pagamento.
Só cumprida a obrigação de cedência do rendimento disponível durante o período da cessão e observados outros deveres se justifica que seja concedido ao devedor pessoa singular o benefício da exoneração, com a consequente liberação definitiva quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento (cf. artigos 244.º, n.º 2 e 243.º, n.º. 1, alínea a) do CIRE).
A cessão temporária do rendimento disponível é, assim, uma condição da exoneração do passivo restante.
Causaram os devedores consequentemente prejuízo aos seus credores, pelo valor do rendimento auferido que deveria ter sido objeto de cessão e não foi.
Resta assim confirmar a decisão recorrida.



V - DECISÃO:
Pelo exposto em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso e em confirmar a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes, sem prejuízo do benefício do Apoio judiciário.






Porto, 19 de março de 2024
Alexandra Pelayo
Artur Dionísio Oliveira
Lina Baptista
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[1] Doravante designado apenas por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] Lições de Direito da Insolvência, pág. 568.
[3] Ver entre outros, o acórdão de acórdão de 11.2.2020 (P 2155/11.0TBGMR.G2.S1, Relator Maria Olinda Garcia, disponível in  https://jurisprudencia.csm.org.pt).