Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
720/07.9TBFLG-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
INDEFERIMENTO LIMINAR
ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: RP20240404720/07.9TBFLG-C.P1
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A decisão de indeferir liminarmente a petição inicial de embargos de terceiro com o fundamento de que os embargos são manifestamente improcedentes deve ser revogada quando a questão suscita controvérsia jurídica, existe um AUJ que decidiu a mesma questão noutro contexto factual, mas cuja fundamentação é inteiramente aplicável ao caso, e o juiz entende o contrário, mas nem sequer faz qualquer esforço para justificar a não adesão ao AUJ.
II - O dispositivo do AUJ n.º 2/2021 deve aplicar-se igualmente aos casos em que o arrendamento não é para habitação e em que a venda judicial foi realizada num processo de execução.
III - Os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não são dotados de eficácia obrigatória geral e não são vinculativos para quaisquer tribunais, mas devem, em regra, ser acatados por todos os tribunais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:720.07.9TBFLG.C.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:



I. Relatório:
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa instaurada pela Banco 1... S.A., posição hoje ocupada pela sociedade comercial com a curiosa denominação A... - Unipessoal, Lda., contribuinte fiscal e pessoa colectiva n.º ...22, com sede em ..., contra as executadas AA, contribuinte fiscal n.º ...24, BB, contribuinte fiscal n.º ...82, e CC, contribuinte fiscal n.º ...68, todas residentes em ..., ..., veio DD, contribuinte fiscal n.º ...76, com domicílio profissional em ..., ..., deduzir embargos de terceiro pedindo que se reconheça que é legítimo arrendatário do imóvel vendido no processo executivo «dando-se sem efeito a sua entrega do imóvel».
Para o efeito alegou que foi notificado pela Agente de Execução, nos termos do n.º 3 do artigo 861.º do Código de Processo Civil, para respeitar a propriedade do exequente sobre o prédio urbano descrito na CRP de Felgueiras sob o n.º ...36 da freguesia ... e inscrito na matriz predial respectiva sobre o artigo ...46, e para proceder à sua entrega voluntária, livre de pessoas e bens, no prazo de 10 dias. Todavia, em 14 de Julho de 2020 o embargante celebrou com as executadas contrato de arrendamento comercial do referido imóvel, pelo prazo de um ano, com início a 1 de Agosto de 2020, renovável automaticamente por iguais e sucessivos períodos. Esse contrato foi sucessivamente renovado e não caducou com a venda judicial do imóvel, pelo que se encontra em vigor.
Apresentada a petição inicial foi aberta conclusão e de imediato foi proferida decisão a «indeferir liminarmente os embargos por serem manifestamente improcedentes».
Do assim decidido, o embargante interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª – O despacho judicial de 28 de Setembro de 2023 indeferiu liminarmente os presentes embargos de terceiro por entender que o contrato de arrendamento para fins não habitacionais sub judice invocado pelo embargante caducou com a venda do imóvel arrendado por ter sido celebrado depois da constituição de hipoteca, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 824º do C.C..
2.ª – Assim, a questão em causa no presente recurso é apurar se se verifica a caducidade do contrato de arrendamento urbano celebrado após a constituição de hipoteca do imóvel, face ao disposto no citado n.º 2 do art. 824º do C.C..
3.ª – E se no passado mais distante a doutrina e a jurisprudência eram favoráveis à caducidade, tal entendimento reverteu-se nos últimos anos, sobretudo a partir da prolação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 2/2021 de 5 de Julho de 2021.
4.ª – Antes de mais, o n.º 2 do art. 824º do C.C. estatui que “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo” (com negrito nosso).
5.ª – Por sua vez, o citado AUJ n.º 2/2021, de 5 de Julho de 2021, definiu o seguinte segmento uniformizador: “A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109º, nº 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no nº 2 do artigo 824º do CCivil”.
6.ª – Ora, a concepção dominante actualmente é a de que o contrato de arrendamento, na sua estrutura, é um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, conforme é expressamente qualificado no art. 1682º-A, estando o seu enquadramento legal perfeitamente definido no art. 1022º do C.C., não se tratando de um direito real de gozo, sendo que neste específico domínio estamos adstritos ao princípio da tipicidade (art. 1306º do C.C.), o qual afasta qualquer possibilidade de analogia (Francisco M. Pereira Coelho, Pires de Lima/Antunes Varela, Inocêncio Galvão Teles, Pedro Romano Martinez, Manuel Januário Gomes, Pinto Loureiro, Manuel Henrique Mesquita, Adriano Vaz Serra, João de Matos, Rodrigues Basto, António Menezes Cordeiro, Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado e Luís Menezes Leitão, citado AUJ n.º 2/2021, citados Acs. do S.T.J. de 15-02-2022, 3-11-2021 e 27-03- 2007 e citado Ac. da R.L. de 16-09-2008).
7.ª – O citado n.º 2 do art. 824º do C.C. é uma norma “…clara, precisa e concisa, no que concerne aos direitos que caducam em sede de venda executiva, pois estes são apenas os reais e não também os obrigacionais, caso do arrendamento” (citado AUJ n.º 2/2021).
8.ª – E “Do ponto de vista da interpretação sistemática, não se pode afirmar que a não inclusão expressa do arrendamento no art. 824º, nº 2 do CC constitua uma lacuna legal, pois o art. 1057º deste Código soluciona a questão, ao determinar que a transmissão do direito com base no qual o arrendamento foi celebrado tem como consequência a sucessão na posição do locador, sem estabelecer qualquer restrição quanto ao modo, voluntário ou forçado, de transmissão do direito” (citado Ac. do S.T.J. de 3-11- 2021).
9.ª – Com efeito, “Não faz sentido falar em lacuna a preencher pelo recurso à analogia, nem em interpretação extensiva do art. 824.º, n.º 2, do Código Civil, num contexto em que é o próprio legislador que manifestou vontade de expressamente proteger o direito do arrendatário, prevendo um regime específico consagrado no artigo 1057º do Código civil de 1966, e que se manteve incólume até hoje, apesar das sucessivas alterações ao regime do arrendamento urbano no sentido de flexibilizar o contrato de arrendamento” (citado Ac. do S.T.J. de 15-02-2022).
10.ª – Por outro lado, nas causas de caducidade do contrato de arrendamento enunciadas no art. 1051º do C.C. não consta a venda, quer em acção executiva, quer em liquidação em processo insolvencial.
11.ª – Ora, o contrato de arrendamento sub judice é um contrato de arrendamento urbano para fim não habitacional com prazo certo de um ano, com início em 1 de Agosto de 2020, renovável por iguais e sucessivos períodos, pelo que o adquirente do prédio se pode opor à renovação do contrato que se irá operar em 1 de Agosto de 2025, pondo desse modo fim ao contrato em 31 de Julho de 2025 (arts. 1110º, n.os 1 e 4, e 1098º do Código Civil).
12.ª – Os argumentos em que se baseou a decisão do AUJ são igualmente válidos para a venda em processo executivo, caso dos presentes autos, não se descortinando qualquer razão lógica ou de justiça material para distinguir os dois contextos processuais em que a questão se coloca (citados Acs. do S.T.J. de 15-02-2022 e de 3-11-2021).
13.ª – De facto, como defende Jorge Pinto furtado, o entendimento sobre este ponto concreto é igualmente válido para a venda em processo executivo comum e, por conseguinte, deverá considerar-se uniformizador também para a venda em processo executivo.
14.ª – E por maioria de razão também se aplica aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, pois “…o arrendamento, segundo expressa disposição do art. 1057, não cessa com essa venda, porque o exequente “sucede nos direitos e obrigações do locador”, só podendo, por isso, desfazer-se dele apenas algo depois, logo que venha a ocorrer o termo do prazo certo ou se preencha o prazo de denúncia do arrendamento urbano de duração indeterminada” (Jorge Pinto Furtado, obra citada, pág. 215), sendo que no caso sub judice o termo do prazo é 31 de Julho de 2025.
15.ª – Por tudo isto, e conforme bem defende o citado Ac. do S.T.J. de 3-11- 2021, “Não existem, portanto, argumentos de natureza literal ou sistemática que permitam incluir o arrendamento no âmbito do art. 824º, n.º 2”.
16.ª – Aliás, a jurisprudência encontra-se actualmente uniformizada no sentido de que a venda, em processo executivo, de imóvel arrendado, quando o contrato de arrendamento tenha sido celebrado depois da constituição de hipoteca sobre esse imóvel, não faz caducar o arrendamento, como decorre do art. 1057º do Código Civil, não sendo aplicável o n.º 2 do art. 824º deste mesmo Código Civil (citados AUJ n.º 2/2021, Ac. do S.T.J. de 3-11-2021, Fernando Amâncio Ferreira e Luís Menezes Leitão).
17.ª – Por conseguinte, deve o despacho recorrido ser revogado e os presentes embargos de terceiro serem admitidos.
18.ª – O despacho recorrido violou o disposto nos arts. 1057º, 824º, n.º 2, 1022º, 1306º, 1682º-A e 1051º, todos do Código Civil, nem seguiu o AUJ n.º 2/2021.
Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o despacho recorrido ser revogado, sendo os presentes embargos de terceiro admitidos, assim se fazendo Justiça.
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se estavam reunidas as condições para o indeferimento liminar dos embargos de terceiro que colocam a questão de saber se um contrato de arrendamento para fins comerciais celebrado depois da constituição e inscrição no registo predial de hipoteca sobre o imóvel objecto daquele contrato caduca com a venda judicial do imóvel na execução para pagamento de quantia certa instaurada pelo credor para satisfação do crédito hipotecário.

III. Matéria de facto:
Para a decisão a proferir importam os seguintes factos que os autos revelam (por a decisão recorrida ter indeferido liminarmente os embargos estes factos não estão ainda provados, sendo aqui referidos apenas para estruturação da decisão):
A. Em 10-04-1997, a exequente concedeu à executada AA e marido EE um empréstimo no montante de Esc. 70.000.000$00 (€349.158,53), tendo estes levantado Esc. 66.500.000$00 (€331.700,60), para investimento na construção de um empreendimento imobiliário.
B. Para garantia do capital mutuado, dos juros devidos e das despesas a executada e o marido constituíram hipoteca sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o número ...36 - ..., inscrito na matriz sob o artigo ...4.
C. Neste prédio veio a ser implantada uma construção composta por edifício com cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andar, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...28.
D. Em 30-03-1997 a hipoteca foi inscrita no registo predial.
E. Em 15-03-2007 o credor hipotecário instaurou execução para pagamento de quantia certa para obter o pagamento do valor em dívida relativo ao empréstimo antes mencionado.
F. Foi junto pelo embargante documento particular intitulado «contrato de arrendamento comercial» outorgado por ele e pelas executadas, o qual ostenta a data de 14-07-2020, e no qual é afirmado que estas dão de arrendamento àquele «a fracção autónoma ... do prédio descrito «na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º ...28», para a «instalação e exploração de um estabelecimento de bebidas da modalidade de café, snack-bar, pastelaria e similares», pelo «prazo certo de um ano, com início a 1 de Agosto de 2020», renovável «automaticamente, por iguais e sucessivos períodos» se não houver oposição à renovação, mediante o pagamento da «renda mensal de €390.00».
G. Em 29-09-2020 foi inscrita no registo predial a penhora do imóvel realizada na aludida execução.
H. Em 07-03-2023 procedeu-se à venda judicial do imóvel por leilão e pelo preço de €637.598.00.
I. Em 13-06-2023, foi emitido pela agente de execução e remetido à adquirente o título de transmissão do imóvel vendido.
J. Em 20-06-2023 essa transmissão da propriedade do imóvel foi inscrita no registo predial.


IV. Matéria de Direito:
O incidente de oposição mediante embargos de terceiro encontra-se regulado nos artigos 342.º e seguintes do Código de Processo Civil.
O artigo 345.º, relativo à fase introdutória dos embargos, estabelece que sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante.
O preceito não indica que outras razões podem ser motivo para o indeferimento liminar da petição inicial dos embargos. Por isso, dado que a citação dos requeridos nos embargos de terceiro depende de despacho judicial a petição é submetida a despacho liminar do juiz [cf. artigo 226.º, n.º 4, al. a)], o seu indeferimento liminar pode ter algum dos fundamentos estabelecidos no artigo 590.º, n.º 1, que rege o processo comum.
Este preceito, ao regular a gestão inicial do processo pelo juiz, estabelece que nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.
Assim, quando após a apresentação da petição inicial é aberta conclusão ao juiz para despacho liminar este pode, por simples despacho, indeferir liminarmente a petição inicial caso o pedido se mostre manifestamente improcedente, ou seja, for patente e cristalino que, tal como vem deduzido, o pedido deverá, em qualquer situação, ser julgado improcedente por apresentar deficiências jurídicas tais que dispensam inclusivamente o convite ao aperfeiçoamento.
No caso o embargante pretende que o tribunal não lhe imponha que entregue o imóvel vendido na execução judicial ao comprador e apresenta como fundamento jurídico dessa pretensão a posição de arrendatário do imóvel para o exercício de actividade comercial. Desse modo coloca a questão de saber se o contrato de arrendamento para fins comerciais celebrado depois da constituição e inscrição no registo predial de hipoteca sobre o imóvel objecto daquele contrato caduca com a venda judicial do imóvel na execução para pagamento de quantia certa instaurada pelo credor para satisfação do crédito hipotecário.
É (deve ser) conhecido que esta questão suscitou e suscita grande polémica jurídica, sendo igualmente defendidas as duas soluções possíveis (caduca; não caduca) e que sobre ela (com as nuances que se apontarão) foi já proferido um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2021) que fixou precisamente o entendimento oposto do seguido na decisão recorrida.
Esse Acórdão uniformizou a jurisprudência (isto é, fixou o entendimento jurídico que em regra os tribunais deverão seguir) no sentido de que a venda em processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, conjugado com o artigo 1057.º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.
Nessas circunstâncias, entender, como fez o Mmo. Juiz a quo, sem sequer se tecer qualquer consideração sobre o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça neste Acórdão, que a pretensão do embargante é manifestamente improcedente, é, com todo o devido respeito, não só fazer uma leitura errada das normas processuais como também decidir de forma ... manifestamente improcedente!
Tanto bastava para de imediato julgar o recurso procedente e revogar a precipitada decisão recorrida, ordenando o prosseguimento do incidente com vista ao apuramento dos factos aos quais haverá depois de aplicar o direito, designadamente, caso se demonstre a celebração do contrato de arrendamento e a respectiva data, mas apenas nessa hipótese que permanece controvertida, discutindo se o contrato caducou ou não.
Não obstante, dir-se-á ainda o seguinte.
A situação alegada pelo embargante difere da situação enunciada no segmento uniformizador do AUJ n.º 2/2021 em dois aspectos: no AUJ estava em causa um contrato de arrendamento para habitação, aqui está em causa um arrendamento para fins comerciais; no AUJ estava em causa uma venda em processo de insolvência (liquidação universal), aqui uma venda numa acção executiva comum instaurada pelo credor hipotecário.
Nenhum dos aspectos possui especificidades que permitam o afastamento da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
A norma legal do regime do contrato de arrendamento invocado para justificar a solução é aplicável independentemente da finalidade do contrato de arrendamento já que está compreendida nas normas gerais do contrato de locação: o artigo 1057º do Código Civil. Por conseguinte, é absolutamente irrelevante para o efeito o fim do arrendamento, sendo certo que o Supremo Tribunal de Justiça não filiou a sua decisão em normas cujo objecto seja o direito à habitação ou se prendam com o regime específico de extinção do contrato de arrendamento para habitação.
A venda coerciva no processo de insolvência não possui especificidades em relação ao regime da venda em processo executivo comum das quais resulte que a transmissão do bem por efeito da venda é feita em condições distintas e mais amplas das que ocorrem na venda na execução singular.
Existem diferenças no procedimento da venda motivadas essencialmente pela natureza e finalidade da liquidação em processo de insolvência e pelo interesse comum da optimização dos resultados da venda aí realizada e da necessidade de haver celeridade na venda, mas em qualquer caso é aplicável a essa venda o regime do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil nos termos do qual os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerem, bem como os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente desse registo.
Aliás, se a questão se coloca na venda em processo de insolvência, coloca-se por maioria de razão na venda em processo de execução singular.
O artigo 109.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, apenas ressalva que «a alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância», donde resulta que os efeitos da venda são remetidos para o regime geral do contrato de arrendamento, designadamente para o artigo 1057.º do Código Civil que é onde se prevê que «o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo».
Por isso, se é a lei civil que prevê que o contrato de arrendamento anteriormente celebrado se transmite para o novo proprietário, se é a lei civil que impõe que essa transmissão não prejudica os direitos e obrigações decorrentes do contrato de arrendamento que impendem sobre o direito transmitido, não se vislumbra como recusar no âmbito da venda realizada numa acção executiva comum o efeito que o AUJ reconheceu no âmbito da venda em processo de insolvência.
Diga-se que esta tem leitura é a que tem vindo a ser feita pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça e pelos Tribunais da Relação, nos Acórdãos publicados in www.dgsi.pt.
No caso do Supremo Tribunal de Justiça, escreveu-se no Acórdão de 03-11-2021, proc. n.º 311/12.2TBRDD-B.E1.S2, Pinto de Almeida, que a tese acolhida no AUJ «tem aqui inteiro cabimento e aplicação, apesar de existirem elementos que, aparentemente, diferenciam o caso destes autos», que « à alienação em insolvência é igualmente aplicável o regime da venda executiva», que o «disposto no art.º 109º, nº 3, [do CIRE] não aponta directamente para uma resolução jurídica diversa ... já que o nó górdio da problemática discutida em ambos se centrou na (in)aplicabilidade do preceituado no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil aos contratos de arrendamento celebrados em data posterior à constituição da hipoteca sobre os respectivos imóveis que tenham sido objecto de venda», que a circunstância de se tratar de um «contrato de arrendamento rural, ... não interfere, por si só, na nossa questão: o arrendamento rural é uma locação de prédio rústico (art.º 2º, nº 1, do RAR), constituindo, pois, na sua estrutura, um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, como decorre do disposto no art.º 1022º do CC.».
No Acórdão da mesma data mas no proc. 1069/15.9T8AMT-P.P1.S1, Olinda Garcia, afirmou-se que «embora a factualidade subjacente ao ... AUJ não seja integralmente equiparável à factualidade ... dos presentes autos (... naquele estava em causa um arrendamento para habitação e neste ... um arrendamento para fim não habitacional, concretamente para fim industrial), o modo como o art. 824º. nº 2 do CC foi interpretado nesse caso é plenamente aplicável ao caso concreto. (...) em ambos os casos está em equação a questão central de saber se um contrato de arrendamento, celebrado depois de o imóvel ter sido hipotecado (mas antes de ter sido penhorado ou apreendido para a massa insolvente), deve caducar com a venda judicial, por aplicação do art. 824º, nº 2 do CC, considerando-se incluído na categoria dos “direitos reais” ou dos ónus a que essa norma se refere.».
Ainda na mesma data, a Sr. Conselheira Olinda Garcia que relatou o Acórdão citado por último lavrou outro Acórdão, no proc. 2418/16.8T8FNC.L1.S1, afirmando o mesmo agora numa situação de um arrendamento para habitação em que a venda teve lugar numa acção executiva singular e não num processo de insolvência.
A mesma situação foi decidida da mesma forma depois no Acórdão de 15-02-2022, proc. n.º 718/11.2TBALQ-B.L1.S1, Maria Clara Sottomayor, no qual se pode ler que «a norma do artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil tem um sentido claro e preciso, no que concerne aos direitos que caducam em sede de venda executiva, ... quer a questão se coloque num processo de insolvência, quer num processo executivo comum. Nem se descortina qualquer razão lógica ou de justiça material para distinguir os dois contextos processuais em que a questão se coloca. Por outro lado, nas causas de caducidade do contrato de arrendamento enunciadas no artigo 1051.º do mesmo diploma, não consta a venda, quer em acção executiva, quer em liquidação em processo insolvencial
Nas Relações, destacam-se o Acórdão desta Relação do Porto de 30-01-2024, proc. n.º 249/14.9T8MAI-B.P1, Ramos Lopes, em que o arrendamento era para habitação e a venda teve lugar em processo executivo, e no qual se afirma que «a interpretação do art. 824º, nº 2 do CC ... é plenamente aplicável e válida também para a venda na execução singular», e o ainda mais recente Acórdão da Relação de Lisboa de 07-03-2024, proc. n.º 14828/20.1T8SNT.L1-8, Teresa Sandiães, onde num caso similar ao do Acórdão da Relação do Porto, se escreveu que «embora a situação tratada no AUJ seja a da caducidade de um arrendamento habitacional por efeito de venda em processo de insolvência, a respectiva fundamentação é aplicável a qualquer tipo de arrendamento e à venda judicial, seja insolvencial ou executiva – ainda que tenha sido reforçado pela existência da norma especial do art.º 119º do CIRE –, pois o cerne da sua fundamentação prende-se com a interpretação do art.º 824º, nº 2 do CC
Não são conhecidos arestos que defendam o contrário ou que se atrevam a opor aos argumentos analisados pelo Supremo Tribunal de Justiça e com base nos quais foi proferido o AUJ n.º 2/2021, novos e distintos argumentos que justifiquem a reponderação da decisão e possam conduzir à revisão do seu dispositivo.
Sabe-se que ao contrário do que sucedia com os Assentos nos termos do artigo 2.º do Código Civil revogado, os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não são dotados de eficácia obrigatória geral, e também não são vinculativos para quaisquer tribunais. Todavia, sendo isso assim, é igualmente indubitável que estes Acórdãos não são simples Acórdãos, nem a sua solução serve apenas para os casos onde foram proferidos, sob pena de a figura em causa ser, afinal, inteiramente injustificada ou inútil.
Existem com efeito, muitas normas legais que atribuem aos Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência valor jurisprudencial muito para além do caso concreto onde foram proferidos. São manifestação disso os artigos 629.º, n.º 2, alíneas c) e d), 659.º, 671.º, n.º 2, alínea b), 672.º, n.º 1, alínea c), 679.º, 688, n.º 3, todos do Código de Processo Civil, dos quais resulta que o dispositivo daqueles Acórdão possui um valor reforçado ao ponto de a sua violação consentir por si só a interposição de recurso e, ao invés, o seu respeito justificar por si só a rejeição de recurso.
Segundo António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Actualizada, 2022, página 541 e seguintes, «mesmo sem valor vinculativo, a jurisprudência uniformizadora deve ser acatada pelos tribunais inferiores e até pelo próprio STJ em recursos posteriores, enquanto se mantiverem os pressupostos que a ela conduziram em determinado contexto histórico. A este propósito, mais do que ocorre com a jurisprudência constante do Supremo, (...) a jurisprudência uniformizada deve merecer da parte de todos os juízes uma atenção especial. Abdicando de alguns excessos individualistas que ainda marcam, por vezes, a vida judiciária, o respeito pela qualidade e pelo valor intrínseco da jurisprudência uniformizada do STJ conduzirá a que só razões muito ponderosas poderão justificar desvios de interpretação das normas jurídicas em causa (v.g. violação de determinados princípios que firam a consciência jurídica ou manifesta desactualização da jurisprudência face à evolução sociedade). Ademais, a discordância deve ser antecedida de fundamentação convincente, baseada em critérios rigorosos, em alguma diferença relevante entre as situações de facto, em contributos da doutrina, em novos argumento trazidos pelas partes e numa profunda e serena reflexão interior. Ou seja, a divergência não se justifica por si mesma, antes deve ser encarada como um objectivo cujo alcance exige um percurso que, sem hiatos, tenha como ponto de partida a letra da lei e percorra todas as etapas intermédias. Em suma, para contrariar a doutrina uniformizada pelo Supremo devem valer fortes razões ou outras especiais circunstâncias que porventura ainda não tenham sido suficientemente ponderadas».
O mesmo autor acrescenta a página 543, que «na regulamentação do instituto do julgamento ampliado da revista o legislador não deixou de prever mecanismos de controlo susceptíveis de quebrar certos impulsos geradores de discordâncias injustificadas e de atenuar eventuais perigos do individualismo exacerbado. Para além de se desmotivar a eventual alegação de desconhecimento da jurisprudência uniformizadora, (...) o legislador colocou a jusante da decisão mecanismos capazes de levar a uma mais conveniente reflexão do julgador quando se confronte com jurisprudência uniformizadora. (...) O juiz, quando decide, não pode deixar de ponderar os efeitos substantivos e processuais, entre os quais se insere a previsibilidade quanto aos resultados em caso de interposição de recurso, o que, sem pôr em causa a liberdade de decisão, permite compatibilizá-la com o da eficácia do sistema jurisdicional. Por isso, ao meditar sobre o sentido da decisão e da argumentação, não pode deixar de se interrogar acerca do êxito da tese defendida em caso de impugnação, como elemento a ponderar quando se trata de escolher, entre dois caminhos possíveis, aquele que, com mais celeridade e segurança, permita atingir o objectivo fundamental de todo o processo: a justa composição do litígio
Ousamos acrescentar que a liberdade de decisão que o nosso sistema confere ao juiz não é atribuída para que o julgador possa decidir como muito bem entender, em total liberdade, segundo o seu arbítrio. Essa liberdade é atribuída para assegurar que o juiz pode apreciar o caso sem amarras e decidir segundo a sua consciência; mas, em qualquer caso, aplicando a lei e respeitando o sistema jurídico no qual é chamado a exercer a justiça em nome dos cidadãos. E desse sistema jurídico faz parte o papel orientador do Supremo Tribunal de Justiça, a ideia de que a este cabe a última palavra e de que, em determinadas circunstâncias, essa palavra é proferida em resultado de uma discussão alargada a mais juízes, é proferida para sintetizar e concluir uma divergência, tem valor reforçado, visa produzir efeitos para fora e para além do próprio processo.
Daí que se nos afigure que nenhum juiz, ao decidir uma questão sobre a qual existe ou cuja decisão suscita jurisprudência uniformizada, pode ignorar pura e simplesmente esta jurisprudência e deixar de a abordar ou considerar na sua decisão; no mínimo, terá de fazer um esforço, imposto pelos deveres legais e deontológicos da sua função, de interagir com aquela jurisprudência e fazer o esforço de justificar cabalmente porque não a acompanha.
Como bem se diz no Acórdão da Relação do Porto citado, «considerando não se verificar circunstancialismo que permita ponderar a adesão a entendimento diverso (não se constata existir argumentação jurídica que não haja sido ponderada e valorizada no acórdão uniformizador, não se observa que o universo de juízes conselheiros tenha sofrido, desde a data da prolação do AUJ nº 2/2021, ampla renovação que leve a prever uma mudança de posição, não se verificou qualquer relevante modificação do regime normativo interpretado e valorizado nem se vislumbra que a decisão uniformizadora se tenha estribado em específicas condições que, entretanto, tenham sofrido sensíveis alterações, nem pode considerar-se que a adesão à solução encontrada em tal jurisprudência uniformizada implique contrariedade insolúvel da consciência ético-jurídica do julgador [..]), deve a jurisprudência uniformizadora fixada no AUJ nº 2/2021 ser acatada».
No AUJ n.º 2/2021, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu e uniformizou o entendimento de que a disposição do artigo 1057.º do Código Civil que prevê que o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, mais do que prever a transmissão para o novo proprietário do contrato de arrendamento anteriormente celebrado, impõe que se mantenham todos os direitos e obrigações que impendem sobre o direito transmitido.
Essa previsão específica afasta a aplicação do artigo 824.º, n.º 2, por este não fazer referência à caducidade de direitos obrigacionais e, em particular, do arrendamento, e porque entre as causas de caducidade do contrato de arrendamento enunciadas no artigo 1051.º do mesmo diploma, não consta a venda judicial.
Acresce que nos termos do artigo 695.º a circunstância de o imóvel estar hipotecado, não impede o proprietário de o arrendar, nem de o transmitir a terceiro com lucro, uma vez que presentemente a subsistência do direito do arrendatário depende da subsistência de um contrato, que o senhorio pode extinguir por sua vontade unilateral, por via de oposição à renovação, denúncia e/ou resolução.
Por fim, entendeu-se que os direitos de garantia e os direitos reais, nada têm a ver com os direitos obrigacionais, onde se inclui o arrendamento, não se podendo, sem mais, concluir que aqueles podem abarcar este, sendo certo que «os conceitos devem sustentar-se numa interpretação normativa e não o inverso».
Por tudo isso, não se pode concluir, como conclui a decisão recorrida, que o eventual direito ao arrendamento do embargante caducou com a venda do imóvel no processo principal.
O recurso é assim procedente.


V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida de indeferimento liminar da petição inicial de embargos de terceiros, ordenando que esta seja admitida, prosseguindo os embargos os seus termos.

Custas do recurso pelo recorrente, atento o critério do proveito uma vez que a decisão é oficiosa, não foi motivada pelos recorridos e estes não responderam ao recurso, limitadas, no entanto, à taxa de justiça já paga, por não haver lugar ao pagamento de custas de parte dada a ausência de iniciativa processual da parte contrária.
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Porto, 4 de Abril de 2024.

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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 811)
1.º Adjunto: Ana Luísa Loureiro
2.º Adjunto: António Carneiro da Silva



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