Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
364/22.5T8AMT-R.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
VENDA DOS BENS DA MASSA INSOLVENTE
MODALIDADES
Nº do Documento: RP20240319364/22.5T8AMT-R.P1
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A inobservância pelo administrador da insolvência do que prescreve o n.º 2 do artigo 164.º do CIRE não consubstancia nulidade processual nem afeta a validade e eficácia da venda.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 364/22.5T8AMT-R.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 3

Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Rodrigues Pires
Anabela Dias da Silva



SUMÁRIO:
…………………………...
……………………….......
…………………………...

Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO:

Por requerimento de 30/05/2023, peticionou a credora Banco 1..., CRL, doravante Banco 1..., CRL que fosse anulada a venda da verba 1 pelo valor de €130.000,00, considerando que, enquanto credora hipotecária, não lhe foi dado conhecimento da venda nem notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 164.º, n.º2 do CIRE, sendo que tal bem nunca poderia ser vendido por montante inferior ao seu valor patrimonial o qual ascendia a €136.562,10.

Por requerimento de 21/06/2023, respondeu o Administrador de Insolvência que, a aludida credora hipotecária requerente teve prévio conhecimento de todas as condições de venda da v.1 (email de 16/11/2022 cujo doc. junta) e início do leilão eletrónico 15 dias antes, nada tendo oposto ou requerido nessa altura nem durante o tempo em que o bem esteve em venda (28/11 e 19/12/2022), tendo, inclusive, tido a oportunidade de exercer os seus direitos na qualidade de credora hipotecária, o que não fez, esclarecendo que a proposta foi aprovada pela comissão de credores e que da venda não resultou qualquer prejuízo para a aludida credora.

A comissão de credores nada disse.

Veio a ser proferido despacho, com o seguinte dispositivo:

“Aqui chegados, sem sentir necessidade de trazer acrescidas considerações, designadamente jurisprudenciais acerca da problemática discutida em torno do disposto no art. 164/2 do CIRE, em face do explanado, inexiste fundamento para declarar nulidade de venda, a qual não se afigura existir, pelo que vai o pedido assim formulado pela credora hipotecária indeferido.”

Inconformada, a credora Banco 1..., CRL veio interpor o presente recurso de Apelação, tendo apresentado as seguintes CONCLUSÕES:

“1º. Vem o presente recurso interposto do Douto Despacho com a ref. citius n.º referência Citius n.º 93477428, que indeferiu o pedido de nulidade da venda da verba nº1 – imóvel com hipoteca voluntária registada seu favor- formulado pela credora hipotecária, ora Recorrente.

2º. Confirmou aquele Despacho a qualidade de credora da Recorrente, o reconhecimento do crédito reclamado e da hipoteca voluntária registada a seu favor, bem como não ter sido ouvida antes da concretização da venda quanto à aludida proposta.

3º. Mas, não obstante, julgou não verificada a nulidade da venda arguida pela Recorrente.

4º. Mal, segundo o entendimento que perfilhamos do que prevê, expressamente, o artigo 164º, nº2 do CIRE : “o credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.”

5º. É dever do Administrador de Insolvência administrar a massa de modo a maximizar o seu valor, pois só assim poderá satisfazer o máximo dos interesses dos credores, do próprio insolvente e dos demais.

6º. Em claro arrepio da lei o Sr. Administrador de Insolvência optou por não ouvir a credora hipotecária, aqui Recorrente, sobre a modalidade da alienação, e não a informar do valor base fixado ou do preço da alienação projetada por entidade determinada, bem como da modalidade da venda, ao não a notificar, expressamente, nos termos e para os efeitos do art.º 164º nº 2 do CIRE.

7º. Com a preterição de tal imposição legal não foi permitido à Requerente que cuidasse da satisfação do seu crédito, pois não lhe foi dada a oportunidade de defender os seus direitos, da forma que melhor entendesse, incluindo lançar mão do disposto no nº3 do artigo 164º do CIRE, o que resultaria numa situação mais favorável do que a alienação efetuada, uma vez que poderia ter adquirido tal parte por um preço superior.

8º. Aliás, as exigências previstas em tal preceito legal visam permitir ao credor garantido atuar de forma a defender o valor do bem (e, assim, promover a satisfação do seu crédito), o que inclui procurar ativamente interessados na aquisição do bem por valores que considere adequados ou apresentar uma proposta de adjudicação do bem ao próprio credor garantido.

9º. E com a preterição das formalidades previstas no nº 2 do artigo 129º do CIRE, não cumpriu, também, o Sr. Administrador de Insolvência o seu dever de administrar a massa de modo a maximizar o seu valor, para que assim pudesse satisfazer o máximo dos interesses dos credores, do próprio insolvente e dos demais.

10º. Tanto o Sr. Administrador de Insolvência, como o Despacho ora posto em crise sustentam que tais exigências foram cumpridas através de uma comunicação efetuada no dia 16 de Novembro de 2022, através de email conjunto para todos os credores, de cujo teor apenas consta “Para conhecimento anexo requerimento junto aos autos.”, requerimento em anexo esse denominado “Informação sobre o estado da venda/liquidação” – Doc. 1 ora junto

11º. Com tal interpretação subverte-se o espírito que presidiu à redação do art.164º, nº2 do CIRE, e reduz-se tal preceito a nada, como se não estivesse previsto no CIRE para ser cumprido em conformidade com o que dele se espera, interpretação essa que é inconstitucional por violadora dos artigos 20º nºs 1, 4 e 5, conjugado com o artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.

12.º Como referem David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa ( in A proteção dos credores garantidos e do regime do artigo 164º, n.º 2 do CIRE em Revista de Direito, Almedina, 2018, página 23 ) “a alienação de um bem com garantia real sem respeitar as formalidades previstas no n.º 2 do artigo 164º do CIRE implica violar de forma direta e imediatos direitos subjetivos individuais (ou garantias processuais individuais) do credor garantido, que são manifestações/corolários do seu direito real de garantia”.

13º. A Recorrente, enquanto credora hipotecária não pode estar mais protegida em sede de acção executiva, seja esta cível ou fiscal, do que em processo de insolvência! Não se pode descurar, que a intervenção da credora hipotecária no processo de insolvência, aliás como em qualquer outro processo executivo, de natureza civil ou fiscal, destina-se a permitir que aquela possa valer aquela a sua causa de preferência no processo e obter a extinção dessa garantia através da venda.

14º. Nesse sentido veja-se o Acórdão do Tribunal de Coimbra datado de 13-11-2019, disponível in www.dgsi.pt: “I - o fim visado pelo n.º 2 do artigo 164.º do CIRE em combinação com o n.º 3 do mesmo preceito é o dar ao credor o poder de influenciar a venda dos bens que garantem o seu crédito e, dessa forma, obter a melhor satisfação do seu direito; II – A inobservância, pelo administrador da insolvência, do que lhe é prescrito pelo n.º 2 do artigo 164.º produz a nulidade da venda, por aplicação subsidiária do n.º 1 do artigo 195.º do CPC.: III – A nulidade da venda não está dependente da demonstração, pelo credor, em termos razoáveis de que, na hipótese de ter sido informado pelo administrador nos termos prescritos pelo n.º 2 do artigo 164.º, exerceria efetivamente as faculdades que o n.º 3 do mesmo preceito lhe reconhece e que desse exercício resultaria para ele uma situação mais favorável do que a interviria na ausência de cumprimento de tais deveres.”

15º. Veja-se, também, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães : “Assiste ao credor garantido a possibilidade de invocar, perante o juiz do processo, a nulidade processual (art. 195º, n.º 1, do C. P. Civil, ex vi do art. 17º, do CIRE) da venda efetuada pelo administrador da insolvência do bem garantido, por preterição das formalidades contidas no n.º 2 do art. 164º, do CIRE, por ser esta a interpretação que melhor salvaguarda o princípio constitucional da “tutela jurisdicional efetiva” para o direito infringido (art. 20º, n.ºs 1, 4 e 5, da CRP).”

16º. E, ainda, o Acórdão do Tribunal Constitucional, em que se decidiu: “Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma contida nos artigos 163.º e 164.º, nºs 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.”

17º. Por fim veja-se também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 15/02/2018, disponíveis in www.dgsi.pt : “ (…) As irregularidades cometidas pelo administrador de insolvência consistentes na falta de identificação a um credor garantido da entidade que ofereceu a melhor proposta e no incumprimento do prazo estabelecido para apresentação de eventual proposta mais favorável para a massa, configuram nulidade processual, com influência na decisão da causa, nos termos dos arts. 195.º e 197.º, n.º 1, do CPC. Aceitar a interpretação – que não se aceita – segundo a qual a celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, conduzem à exclusão do papel imparcial e soberano do juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo seria o mesmo que desistir do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata atuação do julgador.”

18º. Temos, pois, como certo, que a credora com garantia real deve ser ouvida sobre a modalidade da venda e informada do valor base dos bens para venda e que não tendo havido tal prévia audição e notificação omite-se uma formalidade legal com relevância para a decisão da causa, pelo que se comete nulidade a determinar a anulação do ato de venda, nos termos e para efeitos dos artigos 195º nº1, 197º e 199º, ambos do CPC (ex vi art.º. 17º do CIRE).

19º. Para além da jurisprudência e doutrina que já se deixou exposta veja-se, ainda, pela sua pertinência, David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa ( “Revista de Direito da Insolvência – N.º 2 (2018), artigo “A proteção dos credores garantidos e o regime do artigo 164º n.º 2 do CIRE”, página 9 e seguintes): “Com efeito, a exigência de comunicação do valor base ou do preço da alienação projetada serve o propósito de permitir ao credor garantido atuar de forma a defender o valor do bem (e, assim, promover a satisfação do seu crédito). Para esse efeito, o credor garantido pode procurar ativamente interessados na aquisição do bem por valores que considere adequados ou apresentar uma proposta de adjudicação do bem ao próprio credor garantido. Ora, a falta de comunicação ao credor garantido impediu-o, em abstrato, de atuar de forma a defender o valor do bem. Logo, a nosso ver, a nulidade deve ser julgada procedente quando o credor garantido logre demonstrar, em termos plausíveis, que, se tivesse sido informado, teria atuado de forma a defender o valor do bem. Isto porque, neste cenário, a irregularidade cometida, impediu, no caso concreto, o credor garantido de defender o valor do bem, como teria feito.(…)”, referindo, ainda, o mesmo artigo que: “Mais importante que o de ouvir o credor com garantia real quanto à modalidade de alienação do bem sobre que incide o seu direito é, no entanto, o dever de o informar previamente sobre o valor base fixado ou, se for o caso, do preço da venda projetada a entidade determinada, (…)”

20º. E perfilhando, também, da mesma interpretação veja-se António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa : “Fora dos casos regulados na lei assim o determinar ou quando o vício possa influir no exame ou decisão da causa, ou seja, quando se repercutam na instrução, discussão ou julgamento (…). Este sistema remete o juiz para uma análise casuística, suscetível de só invalidar o ato que não possa, de todo, ser aproveitado, sendo certo que a nulidade de um ato acarreta a invalidação dos atos da sequência processual que daquele dependam absolutamente”.

21º. Acresce o diferente tratamento muito mais informativo, esclarecedor e completo dado à venda posterior das restantes verbas – diferença que que não se compreende e que não foi justificada - quer quanto ao teor dos e-mails, quer dos anexos juntos e respetiva denominação, conforme se pode aferir pelas notificações via e-mail recebidas pela Recorrente em 17.10.2023 e 23.11.2023 - Doc. nº2 e Doc.3

22. Dúvidas não podem subsistir, pois que a alienação da verba nº1 com garantia real a favor da Recorrente, sem respeitar as formalidades previstas no nº 2 do artigo 164º do CIRE, consubstancia uma nulidade, que influenciou a decisão da venda, o produto da liquidação, enfim, a decisão da causa, nos termos dos artigos pelo que se comete nulidade a determinar a anulação do ato de venda (artigos 195º e 197º e 199º, ambos do CPC (ex vi art.º. 17º do CIRE), nulidade que urge declarar verificada.

23.º O Despacho recorrido, violou, assim, ou fez errada interpretação dos artigos 55º, 58º, 158º e 164º nº 2 e nº3 do CIRE; artigo 195º n.º 1 e 196º do Código Processo Civil, ex vi art.º 17º daquele diploma; artigo 13º, 20º nºs 1, 4 e 5 conjugado com o artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.

Pelo que deve o despacho ora posto em crise ser revogado e proferido acórdão que declare verificada a nulidade da venda da verba nº 1, arguida pela Recorrente perante o Tribunal a Quo, anulando em consequência todos os termos subsequentes que daquela dependam absolutamente e ordenando o cumprimento pelo AI do disposto no n.º 2, do art. 164º, do CIRE.”

Não foi apresentada resposta ao recurso.

Este foi admitido como Apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo - art. 14.ºnº 5 do CIRE.

Colhidos os Vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - OBJETO DO RECURSO:

A questão a dirimir, delimitada pelas conclusões do recurso é a de saber se a venda deve ser anulada, por violação do art. 164º nº 2 do CIRE, a requerimento do credor hipotecário.

III - FUNDAMENTAÇÃO:

No despacho recorrido foi julgada assente a seguinte factualidade:

1) Foi apreendida Verba n.º 1 respeitante a Prédio Urbano - Fração Autónoma 'A' –C.R.P. n.º ...92... e matriz urbana sob o artigo n.º ...47..., da Freguesia ..., Concelho do Porto, com o Valor Patrimonial de €136.562,10.

2) Encontra-se registada hipoteca a favor da Banco 1..., CRL, cujo inerente crédito foi reconhecido nos autos.

3) Seguindo os autos para liquidação, foi anunciada a venda em leilão pelo valor base de €136.562,10.

4) O que foi dado a conhecer pelo AI aos credores, incluindo a requerente a 16/11/2022.

5) A Banco 1..., CRL não manifestou intenção de exercer qualquer direito na qualidade de credora hipotecária.

6) O AI obteve proposta de venda pelo valor de €130.000,00, a qual foi dada a conhecer e aprovada pela comissão de credores.

7) O bem foi vendido aos 26/01/2023, pelo preço proposto.

8) O credor hipotecário Banco 1..., CRL não foi ouvido antes da concretização da venda quanto à aludida proposta.

IV - APLICAÇÃO DO DIREITO:

Dispõe o artigo 164º, nº2 do CIRE : “o credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.”

Defende a recorrente que o Administrador de Insolvência, inobservou esta norma legal. E, com a preterição de tal imposição legal, não lhe foi permitido que cuidasse da satisfação do seu crédito, pois não lhe foi dada a oportunidade de defender os seus direitos, da forma que melhor entendesse, incluindo lançar mão do disposto no nº3 do artigo 164º do CIRE, o que resultaria numa situação mais favorável do que a alienação efetuada, uma vez que poderia ter adquirido tal parte por um preço superior.

Com a preterição das formalidades previstas no nº 2 do artigo 129º do CIRE, não cumpriu, também, o Sr. Administrador de Insolvência o seu dever de administrar a massa de modo a maximizar o seu valor, para que assim pudesse satisfazer o máximo dos interesses dos credores, do próprio insolvente e dos demais.

Conclui assim que, a credora com garantia real deve ser ouvida sobre a modalidade da venda e informada do valor base dos bens para venda e que não tendo havido tal prévia audição e notificação omite-se uma formalidade legal com relevância para a decisão da causa, pelo que se comete nulidade a determinar a anulação do ato de venda, nos termos e para efeitos dos artigos 195º nº1, 197º e 199º, ambos do CPC (ex vi art.º. 17º do CIRE).

Vejamos.

O Administrador de Insolvência, a seguir AI, é um órgão da insolvência que atua em conjugação com o tribunal, que exerce a sua fiscalização (artigo 58 do CIRE) e com a Comissão de Credores (artigo 55 do CIRE), tendo autonomia relativamente a certos atos e é responsável civilmente pelos danos causados ao devedor e aos credores (artigo 59 do CIRE) e está sujeito à sua destituição pelo juiz, com justa causa (artigo 56 do CIRE).

Os seus atos, apesar de serem fiscalizados pelo juiz, não se traduzem em atos judiciais, como se praticados pelo tribunal, no desenrolar do processo de insolvência. Na verdade, este órgão da insolvência é a expressão da desjudicialização do processo de insolvência, pelo que a violação dos deveres, que lhe são inerentes, não fundamenta irregularidade processual, que implique nulidade secundária prevista no artigo 195 do CPC. Pode fundamentar responsabilidade civil extracontratual e, ou, destituição com justa causa.

A alienação de bens é uma das funções principais deste órgão, em que o AI é livre em escolher a modalidade da venda, como decorre do disposto no artigo 164 n.º 1 do CIRE. Está obrigado a ouvir o credor garantido sobre a modalidade da alienação, e a informá-lo do valor base fixado ou preço da alienação projetada para entidade determinada (artigo 164 n.º 2 do CIRE). E este tem um prazo de uma semana, após a informação prestada pelo AI, ou posteriormente, mas em tempo útil, para apresentar uma proposta por preço superior, para aquisição do bem, por si ou por terceiro. Só no caso de o AI não lhe adjudicar o bem pelo preço superior proposto aquele fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior (artigo 164 n.º 3 do CIRE).

Quanto às normas aplicáveis à anulação de venda, nos termos do art. 839º, nº1, c) do Código de Processo Civil, a venda forçada fica sem efeito, em processo executivo, se for anulado o ato da venda, nos termos do art. 195º, ou seja, são aplicáveis as regras gerais sobre a nulidade dos atos omissivos ou comissivos prescritos na lei.

Não se ignora que a insolvência é um processo de liquidação universal, que se rege por regras próprias, sendo, subsidiariamente, aplicável o Código de Processo Civil, como prevê o art. 17º do CIRE; estando em causa, no processo de insolvência, interesses dos credores (que podem ser muitos) – a execução é universal e concursal – do devedor insolvente e outros, não parece que a não apreciação imediata no processo de direitos alegadamente violados, exprima tutela efetiva.

Só excecionalmente – ut. parte final do art. 163º do CIRE – a violação do disposto nos arts. 161º, nº1, e 162º (que contemplam atos de “especial relevo”) conduzirá à ineficácia dos atos ilícitos praticados.

Pretende o credor hipotecário, ora Apelante ver anulada a venda com fundamento em não terem sido respeitadas as formalidades previstas no nº 2 do artigo 164º do CIRE, o que consubstancia uma nulidade, que influenciou a decisão da venda, o produto da liquidação.

O despacho recorrido dá nota das seguintes posições doutrinárias e jurisprudenciais quanto a esta questão, expressas de forma sintética no Acórdão da Relação de Guimarães de 13/06/2019:[1]

“i) - Como posição maioritária, a que sustenta que a ilicitude decorrente daquelas omissões, em si, não afeta a validade ou eficácia da venda efetuada, apenas constituindo (ou podendo constituir) causa de destituição e de responsabilidade civil do administrador da insolvência perante o credor garantido que não foi ouvido sobre a modalidade da venda e/ou que não foi informado sobre o valor base fixado ou o preço da alienação projetada.[2]

ii) - Outra corrente jurisprudencial, no pressuposto da primeira, recusa a aplicação da norma contida nos “arts. 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE”, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, ao não assegurar uma tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido.

iii) Uma outra posição minoritária tem defendido que a inobservância do n.º 2 do art. 164º do CIRE pode consubstanciar uma nulidade processual suscetível de acarretar a anulação da venda.”

Acolhemos a primeira posição expendida, a qual teve recentemente acolhimento no Acórdão do STJ de 3 de maio de 2023[3], o qual tem o seguinte sumário:

I - O artigo 164º, nº 2, do CIRE impõe as seguintes e individualizadas obrigações ao administrador da insolvência face ao credor hipotecário: ouvi-lo sobre a modalidade da alienação; informá-lo do valor base fixado ou do preço de alienação projetada a determinada entidade, não incluindo, portanto, outras suplementares ou adicionais.

II - Não existe disposição legal (mormente no âmbito do CIRE) que imponha ao administrador da insolvência a obrigação processual de avisar o credor hipotecário, quanto à concreta data do leilão (fixado dentro de uma baliza temporal alargada); ao teor das propostas que vão sendo concorrencialmente oferecidas; ao ato final de aceitação da proposta mais elevada ou mesmo da escritura pública subsequente e com ela conforme, quando os atos de licitação sejam registados em ambiente público e passível do conhecimento pelo credor hipotecário.

III - A circunstância do leilão haver acontecido com a inerente publicidade, durante o anunciado período de quase um mês, significa que os interessados – incluindo o credor hipotecário – poderiam ter acompanhado o desenrolar dos trabalhos e interagir em conformidade com os seus propósitos, não se vislumbrando o fundamento legal para concluir que o administrador da insolvência estaria nessas circunstâncias vinculado a ir informando, passo a passo, ponto por ponto, a pessoa do credor hipotecário em relação ao processamento do leilão (o que o mesmo poderia razoavelmente saber agindo pelos seus próprios meios).

IV – Havendo o leilão sido suficientemente publicitado; tendo sido recebidas diversas propostas de aquisição dos bens a alienar; sendo a maior (e que foi aceite) superior a 85% do valor base da venda; não tendo o credor hipotecário, no momento processual destinado ao efeito (uma semana depois da notificação que lhe foi realizada pelo administrador da insolvência, nos termos do artigo 164º, nº 3, do CIRE), proposto a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por valor superior, nem atentado (como lhe competia), no momento útil em que poderia ainda exercer essa mesma faculdade, não se verificou na atuação do administrador da insolvência qualquer irregularidade processual anulável nos termos gerais do artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil.”

Na situação em apreço, através de e-mail de 16/11/2022, o Administrador de Insolvência. Através da “Informação sobre o estado da venda/liquidação”, informou os credores, onde se incluiu a credora hipotecária ora Recorrente, das condições de venda através de leilão eletrónico da verba nº 1  e da data do início e termo daquele leilão.

A recorrente, não obstante, alega que a mera omissão dos atos previstos no n.º 2 do artigo 164.º do CIRE influi necessariamente na alienação dos bens, uma vez que impede que o credor proponha a aquisição do bem por preço superior. Acontece que, sem razão.

Considerando a informação que foi prestada ao credor hipotecário ora recorrente no e-mail de 16.11.2022, ocorrendo ademais o leilão com a inerente publicidade, isto significa que, tal como foi apreciado no acórdão acabado de citar, os interessados, onde se inclui o credor hipotecário, poderiam ter acompanhado o desenrolar dos trabalhos e interagir em conformidade com os seus propósitos.

Acresce que, o nº2 do citado art. 164º do CIRE, não obriga o  Administrador de Insolvência a adotar a modalidade de venda por ela proposta nem a aceitar a proposta da recorrente,  pelo que não se vislumbra desde logo que o mesmo tenha cometido algumas das nulidades ou irregularidades previstas no art. 201º, nº 2 do C. P. Civil e suscetíveis de acarretar a nulidade da venda efetuada ou de afetar a sua validade e eficácia.

Desta forma, não ocorre a apontada nulidade, devendo consequentemente ser julgado improcedente o presente recurso.

V - DECISÃO

Pelo exposto e em conclusão acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Apelante.


Porto, 19.3.2024.
Alexandra Pelayo
Rodrigues Pires
Anabela Dias da Silva
________________
[1] Relator Alcides Rodrigues, acórdão disponível in www.dgsi.pt.
[2] Citam-se a título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 28/07/2008, no processo n.º 1566/08; o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 16 de Setembro de 2014, no processo n.º 1040/12.2TBLSD-G, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 31-03-2016, no processo n.º 8579/09.5TBBRG-E, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-01-2017, no processo n.º 571/12.9T2AVR-H, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[3] Acórdão proferido no P nº 7028/20.2T8VNG-C.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.