Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6271/23.7T8VNG.P1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CONCORRÊNCIA
JUÍZO CÍVEL
PREÇO
PUBLICIDADE ENGANOSA
INDEMNIZAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
AÇÃO POPULAR
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Residindo a causa de pedir dos pedidos indemnizatórios formulados na presente ação popular, na prática pela Ré de um preço de venda de um produto superior àquele que estava anunciado ao público, a qual não se enquadra em nenhuma das previstas infrações ao direito da concorrência, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão é incompetente, em razão da matéria, para julgar esta ação.
Decisão Texto Integral:

*


I - Relatório

A Autora propôs a presente ação declarativa, com processo comum, nos Juízos Centrais Cíveis de Vila Nova de Gaia, formulando os seguintes pedidos:

A. A Ré teve o comportamento descrito no §3 supra;

B. violou qualquer uma das seguintes normas

1. artigo 35 (1, c), do decreto lei 28/84;

2. artigos 6, 10, 11 (1), 12, do decreto lei 330/90;

3. artigo 311 (1, a, e), do decreto lei 110/2018;

4. artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto lei 57/2008;

5. artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96;

6. do artigo 11, da lei 19/2012;

7. artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/CE;

8. artigo 3, da diretiva 2006/114/CE;

9. artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/CE;

10. artigo 102.º do TFUE;

C. especulou nos preços das embalagens de Tostas de trigo, da marca A Minha Padaria, 750 g na sua sucursal, localizada em EN 222 KM 5.9, 4430-755, Vila Nova de Gaia, distrito do Porto;

D. publicitou enganosamente o preço das embalagens de Tostas de trigo, da marca A Minha Padaria, 750 g, na sua sucursal localizada em EN 222 KM 5.9, 4430-755, Vila Nova de Gaia, distrito do Porto;

E. teve o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e que o mesmo é ilícito e

1. doloso; ou, pelo menos,

2. grosseiramente negligente;

F. agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, com os autores populares

G. com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;

H. causou e causa danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços, sendo a ré condenada a reconhece-lo e em consequência, de qualquer um dos pedidos supra, deve a ré ser condenada a:

I. a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço, seja a titulo doloso ou negligente, em montante global:

1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento,

3 contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

J. subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em 0,08 euros por cada embalagem de Tostas de trigo, da marca A Minha Padaria, 750 g , respetivamente vendida na sua sucursal, com estabelecimento localizado em EN 222 KM 5.9, 4430-755, Vila Nova de Gaia, distrito do Porto, desde 27.06.2023, às 08h00, até, pelo menos, 04.07.2023, às 21h00;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

K. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, mas nunca inferior a 0,08 euros por autor popular;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

L. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares, in casu, todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global

1. nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 0,08 euros por autor popular, in casu, agregados familiares privativos;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

M. ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente tiver ou venha ainda a ter com o processo e com eventual incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela autora interveniente(23);

N. porque o artigo 22 (2), da lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popula vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes.

O. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no § 3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pelo sobrepreço cobrado, tal como sustentando em § 4 (m) supra.

em qualquer caso, deve:

P. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danos que tal comportamento lhes causou;

Q. decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;

R. decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 16, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;

S. seja publicada a decisão transitadas em julgado, a expensas da ré e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 19 (2), da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito;

T. declare que a autora interveniente tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança das quantias que a ré venha a ser condenada, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença;

U. declare, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que a ré deve proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo tribunal para proceder à administração da mesma tal como requerido em infra em § 16, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene a ré ness pagamento;

V. declare uma remuneração, com uma taxa anual de 5 % sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) nos termos do requerido infra em § 16, a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar

W. declare que a autora interveniente tem direito a uma quantia a liquidar em execução de sentença, a título de procuradoria, relativamente a todos os custos que teve com a presente ação, incluindo honorários com todos os serviços prestados, tanto de advogados, como de técnicos especialistas, como com a obtenção e produção de documentação e custos de financiamento e respetivo imposto de valor acrescentado nos termos dos artigos 21 e 22 (5), da lei 83/95, sendo tais valores pagos exclusivamente daquilo que resultarem dos montantes prescritos nos termos do artigo 22 (4) e (5), da lei 83/95.

Como causa de pedir alegaram que a Ré, no estabelecimento por si detido sito na EN 222 KM 5.9, 4430-755 Vila Nova de Gaia, por intermédio de um letreiro fixado junto das embalagens de tostas de trigo, da marca “A Minha Padaria”, 750 g, preçava-as em 2,16 euros por embalagem, mas no momento do seu pagamento, tanto nas caixas eletrónicas de self-checkout, como nas caixas de pagamento assistidas por trabalhadores da Ré, cobrava 2,24 euros por embalagem.

Foi proferido despacho liminar, absolvendo a Ré da instância, com fundamento na incompetência do tribunal cível, em razão da matéria, por se ter concluído que a causa de pedir se subsume integralmente na previsão legal dos nºs 3 e 4 do artigo 112º da LOSJ, uma vez que a mesma assenta exclusivamente na indemnização por danos causados por infrações ao direito da concorrência.

Desta decisão foi interposto recurso de apelação para o Tribunal da Relação que, por acórdão, julgou procedente o recurso e, em consequência, revogou a decisão recorrida, julgando-se o Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 2 -, competente, em razão da matéria, para a tramitação e julgamento dos autos.

Desta decisão interpôs a Ré recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

1. Nas palavras dos Autores, “é o preço anunciado pela ré (…) e o que efetivamente depois foi cobrado aos consumidores que resultou, para estes, num prejuízo provocado pelo sobrepreço aplicado de forma ilícita que é a causa deste processo”. (cfr. artigo 2º da petição inicial)

2. Alega o autor que “tal comportamento (a título doloso ou, mesmo, negligente) é uma restrição sensível, e não negligenciável, da concorrência e dos direitos dos consumidores.”

3. Como resulta do ponto 109º da petição inicial, os Autores enquadram as alegadas condutas ilícitas mencionadas no artigo 11º (1) da Lei da Concorrência (Lei nº 19/2012), correspondendo o mesmo ao abuso de posição dominante.

4. Ademais, os Autores no artigo 35º da petição inicial afirmam que têm direito à reparação integral dos danos sofridos nos termos da Lei do private enforcement da Concorrência (Lei nº 23/2018), destinada a satisfazer os direitos dos consumidores, tendo por base infrações ao Direito da Concorrência.

5. Deste modo, conclui-se que a ação assenta numa causa de pedir fundada em violações ao Direito da Concorrência.

6. Atento ao disposto no artigo 112º, nº 3 da LOSJ, compete ao Tribunal da Concorrência, julgar “ações de indeminização cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infrações ao direito da concorrência, ações destinadas ao exercício do direito de regresso entre coinfratores, bem como aos pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais ações, nos termos previstos da Lei nº 23/2018, de 5 de junho.”

7. Nos termos do Artigo 1.º da Lei nº 23/2018, o seu âmbito de aplicação abrange todas as infrações do Direito da Concorrência, sendo que estas, nos termos nº 2, correspondem a uma violação dos artigos 9º, 11º e 12º da Lei da Concorrência.

8. Face ao exposto, tendo a ação sido proposta pelos Autores com o intuito de satisfazer os direitos dos consumidores, baseando-se em infrações ao direito da Concorrência, deve o Tribunal da Concorrência ser julgado materialmente competente para julgar a presente ação, nos termos do artigo 113º, nº3 da LOSJ.

Os Autores responderam, sustentando a manutenção do decidido pelo acórdão recorrido.

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II – O objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre verificar qual o tribunal competente, em razão da matéria, para julgar a presente ação.

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III – O direito aplicável

A presente ação foi proposta nos Juízos Centrais Cíveis de Vila Nova de Gaia.

Na 1.ª instância considerou-se que o tribunal competente em razão da matéria para a julgar era o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.

O Tribunal da Relação entendeu que a competência para julgar esta ação era dos juízos cíveis, atenta a competência residual dos mesmos.

A competência em razão da matéria deve ser determinada em função da pretensão deduzida pelo autor, a qual, para este efeito, é sobretudo definida pela natureza da causa de pedir alegada.

Da leitura da petição inicial constata-se que os Autores alegam como causa de pedir o comportamento da Ré ao publicitar um determinado preço de umas embalagens de tostas de trigo e vendê-las a um preço superior ao publicitado (excesso de 0,08 €), sendo este o facto jurídico de onde emergem os pedidos indemnizatórios deduzidos pelo Autor (os demais “pedidos” formulados pelo Autor, como bem refere o acórdão recorrido, são mera etapas cumulativas ou alternativas que fundamentam os reais pedidos de natureza exclusivamente indemnizatória).

A competência do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão está prevista, no que aqui importa, nos n.º 3 e 4, do artigo 112.º, da L. O. S. J., os quais dispõem:

(...)

3 - Compete ao tribunal julgar ações de indemnização cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infrações ao direito da concorrência, ações destinadas ao exercício do direito de regresso entre coinfratores, bem como pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais ações, nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de junho.

4 - Compete ainda ao tribunal julgar todas as demais ações civis cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infrações ao direito da concorrência previstas nos artigos 9.º, 11.º e 12.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, em normas correspondentes de outros Estados-Membros e/ou nos artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia bem como pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais ações, nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de junho.

Quer a sentença proferida na 1.ª instância quer a Recorrente fundamentam a sua posição coincidente na circunstância dos Autores, na petição inicial, se referirem à violação de regras do direito da concorrência.

As violações ao direito da concorrência estão previstas nos artigos 9.º, 11.º e 12.º da Lei n.º 19/12, de 08/05 e reconduzem-se a:

Artigo 9.º:

1 - São proibidos os acordos entre empresas, as práticas concertadas entre empresas e as decisões de associações de empresas que tenham por objeto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional, nomeadamente os que consistam em:

a) Fixar, de forma direta ou indireta, os preços de compra ou de venda ou quaisquer outras condições de transação;

b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos;

c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;

d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes, colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência;

e) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos;

f) Estabelecer, no âmbito do fornecimento de bens ou serviços de alojamento em empreendimentos turísticos ou estabelecimentos de alojamento local, que o outro contraente ou qualquer outra entidade não podem oferecer, em plataforma eletrónica ou em estabelecimento em espaço físico, preços ou outras condições de venda do mesmo bem ou serviço que sejam mais vantajosas do que as praticadas por intermediário que atue através de plataforma eletrónica.

(...)

Artigo 11.º - Abuso de posição dominante

1 - Éproibida a exploração abusiva, por uma ou mais empresas, de uma posição dominante no mercado nacional ou numa parte substancial deste.

2 - Pode ser considerado abusivo, nomeadamente:

a) Impor, de forma direta ou indireta, preços de compra ou de venda ou outras condições de transação não equitativas;

b) Limitar a produção, a distribuição ou o desenvolvimento técnico em prejuízo dos consumidores;

c) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes, colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência;

d) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não tenham ligação com o objeto desses contratos;

e) Recusar o acesso a uma rede ou a outras infraestruturas essenciais por si controladas, contra remuneração adequada, a qualquer outra empresa, desde que, sem esse acesso, esta não consiga, por razões de facto ou legais, operar como concorrente da empresa em posição dominante no mercado a montante ou a jusante, a menos que esta última demonstre que, por motivos operacionais ou outros, tal acesso é impossível em condições de razoabilidade

Artigo 12.º - Abuso de dependência económica

1 - É proibida, na medida em que seja suscetível de afetar o funcionamento do mercado ou a estrutura da concorrência, a exploração abusiva, por uma ou mais empresas, do estado de dependência económica em que se encontre relativamente a elas qualquer empresa fornecedora ou cliente, por não dispor de alternativa equivalente.

2 - Podem ser considerados como abuso, entre outros, os seguintes casos:

a) A adoção de qualquer dos comportamentos previstos nas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo anterior;

b) A rutura injustificada, total ou parcial, de uma relação comercial estabelecida, tendo em consideração as relações comerciais anteriores, os usos reconhecidos no ramo da atividade económica e as condições contratuais estabelecidas.

(...)

A causa de pedir invocada – a prática de um preço superior ao anunciado – não se enquadra em nenhuma das previstas infrações ao direito da concorrência, pelo que não se vê razão pela qual esta causa deva ser julgada pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.

Argumentam os Recorrentes que o Autor na petição inicial alegou que o comportamento da Ré consubstanciava um restrição inadmissível à concorrência, enquadrando-o nas condutas ilícitas mencionadas no artigo 11º (1) da Lei da Concorrência, correspondendo o mesmo ao abuso de posição dominante e afirmando que têm direito à reparação integral dos danos sofridos nos termos da Lei do private enforcement da Concorrência (Lei nº 23/2018), destinada a satisfazer os direitos dos consumidores, tendo por base infrações ao Direito da Concorrência.

Ora, não só a qualificação jurídica pelos Autores da infração que justifica os seus pedidos indemnizatórios não tem a virtualidade de determinar, só por si, a norma jurídica violada, uma vez que o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), o que também vale para a determinação da natureza da causa de pedir, quando esta releva na aferição da competência do tribunal 1, como também, da leitura da petição inicial se constata que, para além da alegação da violação do direito da concorrência, o Autor baseou os seus pedidos indemnizatórios na violação de qualquer uma das seguintes normas:

- artigo 35 (1, c), do decreto lei 28/84;

- artigos 6, 10, 11 (1), 12, do decreto lei 330/90;

- artigo 311 (1, a, e), do decreto lei 110/2018;

- artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto lei 57/2008;

- artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96;

- artigo 11, da lei 19/2012;

- artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/CE;

- artigo 3, da diretiva 2006/114/CE;

- artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/CE;

- artigo 102.º do TFUE;

Ora, o artigo 112.º, nº 3, da L.O.S.J., invocado pela Recorrente para justificar a competência do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, para julgar a presente ação, dispõe que compete ao tribunal julgar ações de indemnização cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente (sublinhado nosso) em infrações ao direito da concorrência, pelo que nunca a mera referência à violação do direito da concorrência, no meio da indicação de muitas outras normas violadas, teria o condão de encaminhar esta ação para aquele tribunal especializado.

Assim, atenta a competência residual dos tribunais cíveis (artigo 117.º, n.º 1, b), da L.O.S.J.), o tribunal competente, em razão da matéria, foi aquele onde foi proposta a ação.

Por estas razões, deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.


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Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela Ré, confirmando-se o acórdão recorrido.


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Custas do recurso pela Ré.

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Notifique.

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Lisboa, 18 de abril de 2024

João Cura Mariano (relator)

Maria da Graça Trigo

Emídio Francisco Santos

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1. MARIANA FRANÇA GOUVEIA, A Causa de Pedir na Ação Declarativa, Almedina, 2004, p.184.