Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6554/18.8T8FNC-B.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE
REQUISITOS
COMPETÊNCIA MATERIAL
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
JUÍZO CÍVEL
CRÉDITO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Para que um pedido reconvencional seja admissível é preciso que se verifiquem os “factores de conexão” entre o pedido reconvencional e o pedido do autor (cfr. n.º 2 do artigo 266.º do CPC) e a “compatibilidade processual” dos dois pedidos (cfr. n.º 3 do artigo 266.º do CPC).
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO

Recorrente: Jorge Sá, S.A.

Recorrida: Massa Insolvente de SLA – Construções Imobiliária, Lda.

1. Massa Insolvente de SLA – Construções Imobiliária, Lda., intentou, em 23.11.2018, acção declarativa, com processo comum, contra Jorge Sá, S.A., pedindo que seja proferida decisão no sentido de:

a) Ser a Ré condenada a pagar à Autora as rendas em atraso, correspondentes aos meses de Agosto de 2013 a Novembro de 2018, num total de €704.000,00 (setecentos e quatro mil euros), bem como todas as rendas que se vencerem, contadas deste esta data e até ao trânsito em julgado da douta sentença que vier a ser preferida e cumulativamente;

b) Ser a Ré condenada a pagar à Autora uma indemnização de 50% do valor das rendas em atraso, no montante de €352.000,00 (trezentos e cinquenta e dois mil euros”.

Alegou que deu de arrendamento à ré um espaço em determinado prédio de que é proprietária, para instalação de um estabelecimento comercial, mediante o pagamento de uma renda anual de € 132.000,00, a pagar em duodécimos de € 11.000,00, encontrando-se em falta o pagamento de todas rendas relativas aos meses de Agosto de 2013 até Novembro de 2018. Mais referiu que, embora tenha sido aprovado PER relativo à ré, as rendas em causa venceram-se em data ulterior, pelo que o crédito da A. não poderia ter sido ali reclamado, nem reconhecido.

2. A ré contestou, em 7.01.2019, alegando, desde logo, que requereu um PER, no âmbito do qual, em 27.05.2013, foi proferida sentença homologatória do plano de revitalização, que transitou em julgado em 12.06.2013, pelo que, nos termos do artigo 17º-E, n.º 1, do CIRE, não poderia ser instaurada contra si qualquer acção para cobrança de dívidas, pelo que se impõe a sua absolvição da instância. Por outro lado, alegou que, comportando o contrato de arrendamento celebrado uma opção de compra, foi acordado entre autora e ré, em Agosto de 2010, que a escritura de compra e venda seria celebrada durante o subsequente mês de Setembro, sendo que a sua concretização aguardava a resolução do problema de incidirem sobre a fracção uma penhora e dois arrestos, tendo ficado ainda acordado que a ré continuaria a pagar o valor das rendas, mas agora como prestações a título de sinal, por conta do preço estabelecido para a compra e venda, pagamento esse que se perdurou até Setembro de 2012, num total de € 671.000,00. Embora as partes mantivessem o interesse na celebração do contrato de compra e venda, este não se podia celebrar, porque se mantinha aquela penhora e arrestos. Foi então acordado entre autora e ré que, a partir de Setembro de 2012, era revogado o contrato de arrendamento, passando a vigorar um contrato-promessa de compra e venda e deixando de ser pagas quaisquer rendas e quaisquer prestações a título de sinal, tendo a R. direito de utilizar o espaço até à celebração da escritura pública de compra e venda, na qualidade de promitente-compradora, e devendo o preço ainda em falta, no valor de € 829.000,00, ser pago no momento da celebração dessa escritura. Concluiu que tal escritura acabou por não se realizar, porque a autora foi declarada insolvente, o que configura incumprimento definitivo do contrato-promessa por culpa da autora, continuando a ré na posse do imóvel, a título de direito de retenção, para defender as obras que ali realizou na perspectiva da compra, obras essas no valor de € 1.140.462,75.

Em reconvenção, pediu a condenação da autora na restituição de € 671.000,00 entregues pela ré como sinal e no pagamento de € 1.140.462,75 relativos às obras por esta realizadas. Juntou requerimento probatório, no qual, além do mais, requereu a realização de prova pericial, tendo por objecto o apuramento do valor das obras realizadas no imóvel.

3. A autora replicou, invocando a ineptidão da reconvenção, por não serem indicadas as razões de direito que fundamentam o pedido. Por outro lado, impugnou os factos invocados pela ré, relativos à revogação do contrato de arrendamento e à celebração de contrato-promessa de compra e venda, bem como referentes à extensão e valor das obras realizadas, defendendo a improcedência do pedido reconvencional. Pugnou, ainda, pela improcedência da excepção dilatória suscitada na contestação, relativa à homologação de PER.

4. Tendo sido dispensada a realização de audiência prévia foi, em 3.07.2023, proferido despacho saneador, que, naquilo que para aqui releva, encerra as seguintes decisões:

“Pelo exposto, por inadmissível, atenta a não verificação dos requisitos de ordem substantiva descritos nas alíneas do n.º 2 do artigo 266º do Código de Processo Civil, não se admite o pedido reconvencional deduzido pela ré/reconvinte, no que se reporta à quantia de 1.140.462,75 euros.

(….)

Admite-se o pedido reconvencional deduzido pela ré/reconvinte, no que concerne ao montante de 671.000 euros, atenta a competência do tribunal (artigo 93º, do Código de Processo Civil), a identidade subjetiva das partes (artigo 266º, n.º 1, do Código de Processo Civil), a identidade da forma de processo (artigo 266º, n.º 3, do Código de Processo Civil) e dado que os pedidos dos réus emergem dos factos jurídicos que servem de fundamento à ação e à defesa (artigo 266º, n.º 2, alínea a), do mesmo diploma legal).

(…)

Quanto à prova pericial, considerando a decisão de não admissão de parte do pedido reconvencional e o fim e objeto indicado para a diligência, mostra-se a mesma desnecessária e inútil, pelo que se indefere a realização da mesma1.

5. Apelou a ré / reconvinte das decisões que lhe eram desfavoráveis, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa proferido Acórdão em que pode ler-se a final, no que para aqui releva:

“Pelo exposto, ainda que por fundamento diverso, deve manter-se a decisão recorrida, que rejeitou a reconvenção na parte em que vinha pedida a condenação da A. no pagamento do valor de obras efectuadas pela R. no prédio dos autos (o que, como vimos, equivale a absolvição da instância reconvencional).

Improcede, pois, o recurso interposto daquela decisão.

(…)

Quanto ao recurso do despacho que rejeitou a prova pericial requerida pela R., tendo por objecto determinar o valor das obras por si alegadamente realizadas no imóvel:

(…)

Deste modo, não relevando para a decisão os factos que a R. pretendia provar mediante a perícia que requereu, o recurso está votado ao insucesso, devendo manter-se a decisão que indeferiu a produção de tal prova.

DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedentes as apelações, confirmando-se as decisões recorridas que rejeitaram a reconvenção (na parte em que era pedida a condenação da A. no pagamento de € 1.140.462,75) e a prova pericial requerida pela R. (ainda que, quanto à primeira dessas decisões, por fundamento diverso)”.

6. Ainda inconformado, vem a ré / reconvinte interpor recurso de revista, “nos termos do nº 1, do art.º 671º, e das alíneas a) e b), do art.º 674º [ ] do CPCivil”.

Termina as suas alegações assim:

1. O Acórdão recorrido confirmou a sentença da 1ª Instância no sentido da inadmissibilidade da reconvenção deduzida pela R., recorrente, quanto ao pedido de indemnização/compensação por benfeitorias introduzidas na fracção em causa nos autos.

2. Todavia, fê-lo com fundamento diverso, pois, enquanto a 1ª Instância entendia que não tinham sido alegadas benfeitorias e, em consequência, não havia lugar a indemnização a tal título, o Acórdão recorrido, por seu lado, considerou a apelação improcedente por estar em causa matéria que devia ser objecto de reclamação de crédito no âmbito do processo de insolvência da SLA – Construções Imobiliária, Lda.

3. O Acórdão recorrido refere ainda que a sentença da 1ª Instância não terá admitido a reconvenção pela circunstância de, na presente acção, a A., recorrida, não reclamar a entrega da fracção em causa.

4. Naturalmente que o Acórdão recorrido, com tal entendimento, ignora que o pedido reconvencional em questão teria sempre abrigo, tanto na alínea a) como na alínea c) do nº 2., do art.º 266º do CPCivil.

5. O Acórdão recorrido entende que a compensação pretendida por via do pedido reconvencional, não seria também de admitir, pela circunstância de tal não resultar saldo a favor da R., reconvinte.

6. Aquele entendimento viola, conforme Jurisprudência unânime, o disposto nas alíneas a e c) do nº 2., do art.º 266º do CPCivil.

7. O Acórdão recorrido reconhece que o facto da questão da alegada competência para reconhecer o pedido reconvencional caber aos Juízos do Comércio, no âmbito do processo de insolvência, teria solução, (se estivesse em causa uma acção da iniciativa da R.), por via da sua apensação ao processo de insolvência.

8. Ora, estando em causa, na acção, uma alegada reclamação de crédito da Massa Insolvente e uma reconvenção com fundamento em crédito da R., emergente da mesma relação jurídica em questão, não se vê que haja obstáculo à apensação de todo o processo aos autos de Insolvência e à apreciação e decisão do mesmo integralmente pelos Juízos do Comércio.

9. Essa é a solução que concilia a simplificação, a economia e a segurança processuais, que a reconvenção visa alcançar, como é largamente reconhecido pela Jurisprudência e pela Doutrina.

10. Sucede que foi formulado, nestes autos, outro pedido reconvencional relativo à quantia de 641.000,00€, emergente da mesma relação contratual em causa, pedido este que foi admitido, com trânsito em julgado, por decisão proferida no saneador, pelo Tribunal da 1ª Instância.

11. Desta sorte, o Acórdão recorrido, além de preterir o disposto na Constituição, no seu art.º 20º, ou seja, o acesso ao Direito e à Justiça e o Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva, ofende caso julgado com manifesta violação do disposto no nº 2., do art.º 675º do CPCivil.

12. Como refere o Prof. Antunes Varela, é perfeitamente admissível, numa acção cível, o R. a quem o A. demande o pagamento de qualquer crédito, no Tribunal Comum, poder, nessa sede, deduzir reconvenção, reclamando, por exemplo, crédito laboral que detenha sobre o demandante.

13. Aquele Ilustre Mestre vai ao ponto de considerar que mesmo em caso de desistência do pedido por parte do autor, na referida acção cível, ainda assim subsiste o pedido, deduzido em reconvenção pelo R., por eventual crédito laboral, não sendo assim obrigado a recorrer aos Tribunais de Trabalho.

14. No presente caso, nada impede, pois, que a acção prossiga seus termos, admitindo-se a reconvenção e conhecendo-se ambos os pedidos (o da A. e o da R.), nesta acção.

15. Em alternativa, menos adequada, seria o da apensação do presente processo aos autos de Insolvência, conhecendo-se nos Juízos de Comércio onde pende aquele processo, os pedidos em causa nesta acção.

16. Todavia, a circunstância do caso julgado já constituído nos autos, pela admissão de um dos pedidos reconvencionais deduzidos pela R., recorrente, apontariam para a solução referida na conclusão 14ª.

17. Na sequência da procedência do presente recurso, como se espera, terão de ser salvaguardadas as necessárias diligências de prova, inerentemente requeridas, como seja a avaliação pericial das benfeitorias, que estão na base do pedido formulado em reconvenção pela R., recorrente”.

7. A autora veio contra-alegar nos seguintes termos conclusivos:

1. Decorre do nº 3, do art. 671.º do CPC que: “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”

2. O Recurso sub judice não deverá ser admissível, porquanto o Tribunal a quo analisou e pronunciou-se sobre as nulidades invocadas pela Recorrente, pelo que a fundamentação não é essencialmente diferente, como alega a Recorrente.

3. Não obstante o fundamento utilizado pelo tribunal a quo ter sido diverso do utilizado pelo Tribunal de 1ª instância, é inegável que o Tribunal a quo analisou e ponderou acerca das nulidades invocadas pela Recorrente, pugnado pela sua inexistência, entre o mais o facto da Recorrida não reclamar a entrega da fração em causa.

4. Compulsados as alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, não parece encontrar-se preenchida as alíneas a) e b) do nº 1 do art. 674.º do CPC,

5. Analisadas as alegações de Recurso da Recorrente, resulta não ter sido posto em causa a decisão proferida pelo Tribunal a quo, resultando apenas um novo recurso encapotado da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância, invocando novos argumentos que não foram suscitados nas suas anteriores alegações de recurso e, como tal, não foram, nem poderiam ter sido, apreciados pelo Tribunal a quo, nem podem agora ser apreciadas pelo Tribunal ad quem.

6. O recurso de Revista não serve para voltar a recorrer da decisão proferida em 1ª Instância.

7. A decisão de indeferimento do pedido de realização de perícia (prova pericial), é irrecorrível, pois esta decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância, foi confirmada pelo Tribunal a quo, nos mesmos termos e com os mesmos fundamentos, pelo que, tem aplicação plena o nº 3 do art. 671.º do CPC., pelo que, quanto a esta matéria, o Recurso apresentado pela Recorrente não deve ser admitido nem apreciado.

8. A decisão de indeferimento da exceção deduzida pela R., reconvinte, com fundamento no nº 1., do art.º 17º-E do CIRE é irrecorrível, nem pode ser apreciada pelo Tribunal ad quem, pois foi apreciada no despacho com a ref. Citius 20871568, datado de 14/12/2023, que concluiu que relativamente a esta matéria “não é admissível a interposição de recurso de apelação autónomo relativamente ao despacho recorrido em causa, por não se encontrar preenchida a hipótese de qualquer dos nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil”. Este despacho de não admissão do recurso não foi alvo de reclamação por parte da Recorrente.

9. Quanto à decisão de indeferimento do pedido reconvencional, andou bem o Tribunal de 1ª Instância, assim como Tribunal da Relação (Tribunal a quo) ao corretamente interpretarem a alínea b), do nº 2 do art. 266.º do CPC, pois, por um lado, a Recorrente deduziu pedido reconvencional, fundamentando-o em obras que realizou na fração em causa e, por outro lado, a Recorrida não pediu, nem pede, a entrega do imóvel sub judice.

10. A Recorrente pede, a título reconvencional, o valor das obras feitas num imóvel, cuja entrega não é pedida na ação, pelo que não tem aplicação o vertido na alínea b) do nº 2 do art. 266º do CPC.

11. A causa de pedir da Recorrida, é o (alegado) incumprimento de um contrato de arrendamento comercial, peticionando o pagamento de rendas vencidas e não pagas. Por outro lado, a Recorrente, não reconhecendo a existência daquele contrato de arrendamento, deduz pedido reconvencional a pedir a condenação da Recorrida no pagamento do valor (€1.140.462,75) a título de (alegadas) benfeitorias introduzidas na fração em causa.

12. Pelos motivos atrás aduzidos, o pedido reconvencional nunca poderia ter sido aceite.

13. Não há qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional, pois no presente caso é notório que não é admissível a reconvenção, como apresentada pela Recorrente, ao longo dos presentes autos.

14. A Reconvenção não foi aceite porque não era legalmente admissível, não resultando daí qualquer “capitis deminutio”.

15. O Acórdão Recorrido não ignora que o pedido Reconvencional sempre teria abrigo tanto na alínea a) como c) do nº 2 do art. 266.º do CPC, porque não foi chamado a pronunciar-se sobre esta questão. Esta questão não foi, em momento algum, suscitada nas alegações/conclusões do recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pela Recorrente, pelo que não tinha o Tribunal a quo não tinha o dever de se pronunciar sobre esta questão.

16. Conforme resulta dos arts. 635.º, nº 4 e 639.º, nº 1 do CPC, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recorrente.

17. De igual modo não deve esta questão ser alvo de apreciação no presente recurso, pois abrir tal porta é facultar à Recorrente a possibilidade de interpor novo recurso encapotado da decisão proferida em 1ª instância.

18. Não se alcança a conclusão 5. e 6., pois o aí vertido não resulta de nenhuma página do Acórdão Recorrido.

19. Não se alcança a conclusão 7, pois o aí vertido não resulta de nenhuma página do Acórdão Recorrido.

20. Não se aceita a conclusão 8., por falta de fundamento. Na verdade, nunca a Recorrente, até ao presente momento, suscitou a intenção de querer a apensação do processo, nem o pode fazer agora.

21. Aliás, se no nº 9 das suas conclusões a Recorrente afirma que essa é a solução que concilia a simplificação, a economia e a segurança processuais, que a reconvenção visa alcançar, por outro, no seu nº 15., afirma que esta apensação é a solução menos adequada. Não se percebe, mas não pode valer tudo nas alegações de recurso.

22. Não foi violado qualquer direito constitucionalmente conferido à Recorrente e muito menos foi violado o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto nos nºs 1 e 5 da Constituição da Républica Portuguesa.

23. A Recorrente sabia como, onde e quando apresentar a reclamação de créditos pelo que tinha ao seu alcance a tutela jurisdicional efetiva de que, efetivamente, lançou mão para tentar ver reconhecidos os seus créditos, o que não logrou alcançar.

24. A Recorrente verte nas suas alegações questões que não foram suscitadas aquando do recurso apresentado da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, o que motiva que tal matéria não tenha sido apreciada pelo Tribunal a quo, nem possa ser apreciada pelo Tribunal ad quem.

25. Não há violação do art. 625.º, nº 2 do CPC., pois em causa estão questões distintas, para além de que esta questão não foi suscitada perante o Tribunal a quo, pelo que não foi por este apreciada e não pode ser agora perante o Tribunal ad quem.

26. A Recorrente não põe em causa a decisão proferida pelo Tribunal a quo, nomeadamente a falta de competência material para apreciação da reconvenção.

27. Andou bem o Tribunal a quo ao não admitir o pedido reconvencional, por considerar que o Tribunal de 1ª instância não tem competência material para a sua apreciação”.

8. O recurso subiu, por fim, a este Supremo Tribunal por determinação do Exmo. Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa.

*

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

1.ª) o pedido reconvencional deve ser rejeitado, na parte em que a ré / reconvinte pede a condenação da autora no pagamento de € 1.140.462,75 relativos às obras por esta realizadas; e

2.ª) no caso de resposta negativa à 1.ª questão, se o requerimento no qual a ré / reconvinte requer a realização de prova pericial, tendo por objecto o apuramento do valor das obras realizadas no imóvel, deve ser indeferido.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido (além dos factos constantes do respectivo Relatório e referidos no Relatório do presente Acórdão):

A) A sociedade SLA – Construções Imobiliária, S.A., foi declarada insolvente por sentença, transitada em julgado em 10/9/2013, proferida em 2/8/2013, no âmbito do processo nº1772/09.2..., do extinto 2º Juízo do Tribunal Judicial de ..., tendo nessa decisão sido fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos – documento junto aos autos principais em 4/7/2019, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

B) A aqui R. reclamou, naquele processo de insolvência, em 20/9/2013, um crédito no valor de € 671.000,00, o qual veio a ser impugnado, tendo, em 24/11/2022, sido proferida ali sentença [rectificada em 1/2/2023] que, tendo graduado os créditos reconhecidos, julgou procedente a impugnação do crédito reclamado pela ora R. e excluiu aquele crédito da lista de credores e créditos reconhecidos – documento junto ao processo principal em 20/4/2023, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

O DIREITO

Breve observação sobre a admissibilidade do presente recurso

A ré / reconvinte / recorrente alega que o presente recurso deve ser admitido porque, não obstante o Acórdão recorrido ter confirmado a decisão do Tribunal de 1.ª instância, fê-lo com fundamentação essencialmente diferente.

Contra isto se insurge a autora / reconvinda / recorrida – mas sem razão.

Como se viu atrás, são duas as questões suscitadas na presente revista.

O Tribunal respondeu à primeira afirmativamente, com o fundamento de que a reconvenção não cumpria, na parte respeitante à condenação da autora no pagamento das obras, os requisitos da reconvenção previstos no artigo 266.º do CPC.

Também o Tribunal da Relação respondeu afirmativamente àquela pergunta mas com fundamentação manifestamente não coincidente, como, aliás, se reconhece no Acórdão recorrido. A razão encontrada para a rejeição da reconvenção parece localizar-se “a montante” e prender-se com a (in)competência do tribunal para apreciar o pedido reconvencional. Precisamente, segundo o Tribunal da Relação, não é admissível o pedido reconvencional deduzido contra a insolvente porque o pedido foi deduzido em acção tramitada no juízo central cível e este não dispõe de competência material para a sua apreciação.

Vista esta divergência quanto à fundamentação, o caso não se qualifica como o caso previsto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, ou seja, em que há dupla conforme e o recurso não pode ser admitido por via normal.

A segunda questão respeita ao indeferimento do requerimento probatório.

Por mais que se reconheça haver aqui identidade das decisões e das fundamentações das decisões das instâncias (indeferimento do requerimento por inutilidade), o recurso deve ser ainda admitido quanto a esta questão.

É que, aparecendo embora autonomizadas para o efeito da sua enunciação, entre as duas questões existe uma forte relação de prejudicialidade. A razão de ser da decisão sobre a questão do requerimento probatório reside na própria decisão sobre a questão da reconvenção para pagamento das obras (é porque esta é rejeitada que aquela prova é inútil). Assim, há que manter a segunda questão em aberto para o caso de ser alterada a decisão sobre a primeira questão.

*

Da admissibilidade da reconvenção

O artigo 266.º do CPC é do seguinte teor:

“(…)

2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;

b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;

c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;

d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

3 - Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações”.

Considerando que, na parte em causa da reconvenção, não se verificava nenhuma das situações previstas nesta norma, o Tribunal de 1.ª instância rejeitou parcialmente, a reconvenção.

Outra foi, como se sabe, o caminho do Tribunal a quo.

Pode ler-se no Acórdão recorrido, na parte relevante:

No mais, temos que, previamente à verificação dos pressupostos da admissibilidade da reconvenção nos termos do art. 266º nº2 do Código de Processo Civil, cumpre aferir se o tribunal onde a acção corre (Juízo Central Cível) é competente, em razão da matéria, para dela conhecer. Trata-se de questão que, embora não tenha sido objecto da decisão proferida em primeira instância, é de conhecimento oficioso, uma vez que nos encontramos em sede de despacho saneador – cfr. art. 97º nº1 e 2 do Código de Processo Civil.

Conforme resulta da matéria assente, a sociedade SLA (cuja massa insolvente é aqui A.) foi declarada insolvente em 2/8/2013, sendo certo que em 24/11/2022 foi, no respectivo processo, proferida sentença que graduou os créditos, o que significa que, em tal data, o processo de insolvência ainda se encontrava pendente.

Ora, a reconvenção ora em causa foi apresentada em 7/1/2019, ou seja, na pendência do processo de insolvência da A..

Assim, constata-se que o crédito (relativo a obras alegadamente realizadas no imóvel locado) em cujo pagamento a R. pretendia que a A. fosse aqui condenada [quer seja considerado que a R. é credora da insolvência, quer se considere que se trata de crédito sobre a massa insolvente] apenas poderia ser feito valer segundo os meios previstos no CIRE e, consequentemente, no próprio processo de insolvência (no caso de reclamação de créditos) ou por apenso ao mesmo – cfr. arts. 89º nº2, 90º, 128º e ss. e 146º a 148º do CIRE.

Como se refere no Ac. RP de 4/5/20222, cujos ensinamentos são aplicáveis ao caso dos autos:

«Para alguém ser considerado credor da insolvência, tem que reclamar o seu respectivo crédito e ser reconhecido, nesse processo3, como tal (…).

Assim, para poder reclamar esse crédito, teria que o fazer nos meios próprios da insolvência e não através de uma acção autónoma como a presente, rectius, através de reconvenção.

(…).

Se estivesse em causa uma dívida da massa insolvente (…), nos termos do artigo 89.º, n.º 2, do C. I. R. E., as acções (…) relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência (…).

Assim, qualquer pedido efectuado por um credor da massa insolvente tem de ser deduzido por apenso ao processo de insolvência.

Se estiver em causa uma acção que foi proposta autonomamente, pode a questão solucionar-se com a sua apensação; mas estando em causa um pedido reconvencional deduzido em acção autónoma e em que a competência para a sua apreciação não cabe ao tribunal onde corre a acção, a solução encontra-se na não admissão da reconvenção.

É inquestionável que o tribunal recorrido não é competente para a apreciação da reconvenção se estiver em causa um crédito sobre a massa insolvente – artigo 128.º, n.º 1, a) e n.º 3, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26/08) -.

Esse juízo de apreciação de competência absoluta decorre do que foi alegado pelo Autor, no caso, reconvinte, por estar em causa um pressuposto processual – Acs. da R. G. de 01/07/2021, processo n.º 108020/19.9YIPRT.G1, relatora Maria João Matos e doutrina e jurisprudência aí citada, R. P. de 18/11/2021, processo n.º 1475/09.8TBPRD-N.P1 …).

E, assim sendo, nos termos dos artigos 65.º, 93.º, n.º 1, parte final, ambos do C. P. C, a reconvenção não pode ser admitida pois, no caso de falta de competência material para a sua apreciação, o reconvindo é absolvido da instância; no caso, uma vez que não é clara a natureza do crédito, não deve reconvenção ser admitida, alcançando-se o mesmo o efeito – não prosseguimento da reconvenção, sem se apreciar o seu mérito».

Pelo exposto, ainda que por fundamento diverso, deve manter-se a decisão recorrida, que rejeitou a reconvenção na parte em que vinha pedida a condenação da A. no pagamento do valor de obras efectuadas pela R. no prédio dos autos (o que, como vimos, equivale a absolvição da instância reconvencional)4.

Improcede, pois, o recurso interposto daquela decisão”.

Em síntese, e como já se viu, o Tribunal recorrido conclui que o pedido reconvencional deduzido contra a insolvente não é admissível porque foi deduzido em acção tramitada no juízo central cível e este não dispõe de competência material para a sua apreciação.

Analisem-se os argumentos em que se apoia esta conclusão.

Começa por dizer-se que, uma vez que a autora / reconvinda foi declarada insolvente, o direito de crédito invocado pela ré / reconvinte deveria ter sido reclamado no processo de insolvência.

Não há dúvidas de que a reconvenção é apresentada (em 7.01.2019) na pendência de processo de insolvência da devedora e consideravelmente depois da declaração de insolvência desta (em 2.08.2013).

E também é do conhecimento geral que o processo de insolvência tem uma tendência concentradora ou aglutinadora das iniciativas dos credores dirigidas a realizar os seus direitos de crédito contra o insolvente. É o que se chama “vocação universal” ou “força atractiva” do processo de insolvência (“vis attractiva concursus”).

O artigo 90.º do CIRE ilustra bem esta ideia ao dispor que “os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”.

Quer isto dizer que, essencialmente, os credores só são pagos se os créditos forem reconhecidos no processo de insolvência e que por isso não vale a pena tentar meios alternativos para obter pagamento.

Apesar desta vis attractiva concursus, a verdade é que a lei não constitui os credores da insolvência num dever de reclamação do crédito no processo de insolvência.

Bem-entendido, o credor da insolvência tem todo o interesse em reclamar o seu crédito no processo de insolvência, pois só assim tem a garantia de que o seu crédito será considerado no apenso de verificação de créditos [ainda que não necessariamente reconhecido, como comprova o facto provado B), respeitante ao crédito de € 671.000,00, igualmente invocado na reconvenção, que foi reclamado no processo de insolvência e não foi reconhecido].

Mas isso significa apenas que o credor tem um ónus, não o dever, de reclamar.

Deve esclarecer-se, antes de mais, que este ónus recai exclusivamente sobre os credores da insolvência (cfr. artigos 47.º, n.º 2, e 128.º, n.ºs 1 e 3, do CIRE) e não também sobre os credores da massa insolvente (cfr. artigo 51.º, n.º 2, do CIRE). Distintamente dos primeiros, estes segundos são pagos, por iniciativa do administrador da insolvência, à medida do vencimento dos seus créditos (cfr. artigos 172.º, n.º 3, do CIRE), não tendo ónus algum.

Quando o credor da insolvência não exerce o seu ónus de reclamação do crédito no processo de insolvência, abstém-se de dar o passo que, em princípio, seria necessário para o reconhecimento do seu crédito, o que, por sua vez, também em princípio, o impossibilitará de obter, adiante, o pagamento que lhe corresponde5.

Veja-se, em confirmação, que se dispõe no artigo 128.º, n.º 3, do CIRE, à luz do qual deve ser lido o artigo 90.º do CIRE, referido e reproduzido atrás:

A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento6.

Postas as coisas de outro modo e mais incisivamente: nada impede que o credor se abstenha de reclamar o seu crédito no processo de insolvência (não existe um dever de reclamar o crédito), mas a verdade é que, durante o processo de insolvência, nenhuma declaração judicial que aquele credor tenha obtido pelas vias comuns pode ser dada à execução nem fora do processo de insolvência (como se verá, não podem ser propostas acções executivas e as acções executivas pendentes suspendem-se) nem dentro do processo de insolvência (aquela declaração judicial não tem força executiva / não vale como título executivo no âmbito do processo de insolvência7).

Perscrutando as normas constantes do capítulo respeitante aos efeitos processuais, encontram-se, com interesse para o caso (por exclusão), as seguintes disposições:

i) no artigo 85.º do CIRE, sobre acções pendentes, determina-se a apensação mas a apensação das acções (declarativas) pendentes e em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente (n.º 1) ou nas quais se tenha efectuado algum acto de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente (n.º 2);

ii) no artigo 86.º do CIRE, sobre apensação, determina-se a apensação mas a apensação de processos de insolvência (n.ºs 1 e 2);

iii) no artigo 88.º do CIRE, sobre acções executivas, determina-se a suspensão, a impossibilidade de instauração e, em última análise, a extinção mas a apensação, a impossibilidade de instauração e a extinção das acções executivas intentadas pelos credores da insolvência (n.ºs 1 e 3); e

iv) no artigo 89.º do CIRE, sobre acções relativas a dívidas da massa, determina-se a impossibilidade de instauração mas a impossibilidade (provisória) de instauração de acções executivas para pagamento das dívidas da massa insolvente (n.º 1) e a apensação mas a apensação das acções (declarativas e executivas) relativas às dívidas da massa insolvente.

Conclui-se deste modo que não existe no CIRE nenhuma disposição de alcance geral sobre os efeitos da declaração de insolvência nas acções declarativas, como seria relevante para o caso dos autos, nenhuma disposição que determine, designadamente, a apensação generalizada e automática das acções declarativas.

O CIRE só determina a impossibilidade de instauração das acções executivas (cfr. artigos 88.º, n.º 1, e 89.º, n.º 1, do CIRE) e a apensação de certas acções declarativas (cfr. artigo 85.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE), dos processos de insolvência (cfr. artigo 86.º, n.º s 1 e 2, do CIRE) e das acções (declarativas e executivas) relativas aos créditos da insolvência (cfr. artigo 89.º, n.º 2, do CIRE).

Não sendo a reconvenção uma acção executiva, nada impedia a ré / reconvinte de apresentar a reconvenção.

Não sendo a reconvenção susceptível de recondução à categoria de acções declarativas cuja apensação está prevista no artigo 85.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE, nem qualificável como um processo de insolvência, resta a hipótese de ser equiparada a uma acção declarativa relativa a um crédito sobre a massa insolvente e, consequentemente, abrangida pela norma do artigo 89.º, n.º 2, do CIRE.

Não se sabe com certeza que classe de crédito está em causa. A verdade é que, compulsando os dados contidos nos autos e considerando a noção do 47.º, n.º 1, do CIRE, segundo a qual são créditos sobre a insolvência aqueles cujo fundamento é anterior à declaração de insolvência, é equacionável que o crédito dos autos seja um crédito sobre a insolvência. Recorde-se que a causa do crédito invocada pela reconvinte é a realização de obras na fracção e que esta, alegadamente, terá tido lugar no ano de 2007 (cfr. artigo 75.º da contestação), portanto, muito antes da declaração de insolvência.

Mas ainda que fosse um crédito sobre a massa insolvente, aquilo que do artigo 89.º, n.º 2, do CIRE decorre é, simplesmente, que as acções relativas a estes créditos correm por apenso. Quer dizer: a norma não justifica a solução drástica da rejeição da reconvenção, por incompetência do tribunal (por este não ser o juízo do comércio ou – dir-se-ia, mais precisamente – o juízo do comércio que tramita, em concreto, este processo de insolvência).

Nem se contraponha, a favor da incompetência, o argumento do disposto no artigo 128.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, da LOSJ, do qual apenas resulta, para o que aqui releva, que compete aos juízos de comércio preparar e julgar os processos de insolvência, os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.

Como decorre do quadro dos efeitos processuais acima descrito, há acções que, não estando aí reguladas, podem ser propostas e correr fora do tribunal de insolvência, sendo o exemplo paradigmático o das acções de impugnação pauliana (cfr. artigo 127.º, n.º 2, do CIRE), e outras que podem ou devem ser apensadas ao processo de insolvência.

Diga-se, por fim, que não se desconhece o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014, de 8 de Maio de 2013, que fixou jurisprudência no sentido de que “[t]ransitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”. O que se passa, desde logo, é que este AUJ não é aplicável ao caso em apreço.

Mesmo que se equipare, para os presentes efeitos, a reconvenção, como contra-acção, a uma acção (o que será consensual e corresponde à posição implicitamente assumida no que se disse atrás) e se abstraia das restantes diferenças relativamente ao caso decidido naquele AUJ (em que a acção respeitava ao reconhecimento de créditos de natureza laboral), deve ter-se presente que a reconvenção aqui em causa não estava em curso na data da declaração de insolvência; não lhe é, por isso, aplicável uma solução que foi concebida expressis verbis para as acções pendentes. Acresce que não seria fácil justificar a aplicação daquela solução (extinção da instância) no presente caso, uma vez que o que se discute é ainda, numa fase preliminar, a admissibilidade da reconvenção.

Com o devido respeito, não é possível dar razão a ré / reconvinte / recorrente quando alega que o Tribunal recorrido ofendeu o caso julgado. Tal como seriam autonomizáveis os pedidos se se tratasse de uma acção, também na (nesta) reconvenção são autonomizáveis os (dois) pedidos, assentes em causas de pedir distintas: o pedido de condenação da autora no pagamento de relativo ao sinal e o pedido de condenação da autora no pagamento de relativo às obras.

Mas a alegação da ré / reconvinte / recorrente não deixa de ter algum interesse pois põe a descoberto uma circunstância que, não sendo decisiva para solução do caso, confirma que ela é a mais coerente com a situação já criada, ao mostrar o desacerto a que conduziria solução propugnada no Acórdão recorrido. É que, como lembra a recorrente, já foi decidido, com trânsito em julgado, que o tribunal comum é competente para apreciar do mérito da reconvenção quanto ao primeiro pedido.

Mas o que fica visto até aqui não é suficiente para se dar por assente que a reconvenção é admissível quanto ao crédito em causa. Falta ainda aferir se no caso dos autos se verificam os “factores de conexão” entre o pedido reconvencional e o pedido do autor (cfr. n.º 2 do artigo 266.º do CPC) e a “compatibilidade processual” dos dois pedidos (cfr. n.º 3 do artigo 266.º do CPC).

Como explicam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “[a] reconvenção, consistindo num pedido deduzido em sentido inverso ao formulado pelo autor, constitui uma contra-ação que se cruza com a proposta pelo autor (…). Não sendo razoável admiti-la independentemente de qualquer conexão com a ação inicial, o n.º 2 [do artigo 266.º do CPC] estabelece os fatores de conexão entre o objeto da ação e o da reconvenção que tornam esta admissível8.

Regresse-se, pois, à norma do artigo 266.º do CPC:

“(…)

2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;

b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;

c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;

d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

3 - Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações”.

Analisando o pedido reconvencional em causa, logo se conclui que não se verifica nem a hipótese da al. a) (a causa de pedir do pedido reconvencional não é, total ou parcialmente, a mesma do pedido do autor nem os factos em que se funda o pedido reconvencional são, total ou parcialmente, os mesmos factos em que a ré funda uma excepção peremptória ou através dos quais indirectamente impugna os alegados na petição inicial), nem a hipótese da al. b) (o pedido reconvencional não respeita a direito a benfeitorias feitas com a coisa cuja entrega é pedida, como sobejamente explicado no despacho saneador), nem a hipótese da al. c) (o pedido reconvencional não tem como fundamento a compensação de créditos) e nem a hipótese da al. d) (o pedido reconvencional não tende ao mesmo efeito jurídico a que tende o pedido do autor).

Assim sendo, e sem necessidade de avaliar da compatibilidade processual do pedido do réu com o pedido do autor, conclui-se que a reconvenção é, na parte em apreço, inadmissível.


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Por sua vez, esta conclusão implica que fique prejudicada a apreciação da 2.ª questão.

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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela recorrente.

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Lisboa, 18 de Abril de 2024

Catarina Serra (relatora)

Maria da Graça Trigo

Emídio Santos

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1. Sublinhados nossos.

2. Proc. 2163/18, disponível em http://www.dgsi.pt,

3. Que é da competência dos Juízos de Comércio – art. 128º nº1 a) e nº3 da LOSJ.

4. Ficando prejudicada a questão de saber se se encontrava preenchida alguma das alíneas do art. 266º nº2 do Código de Processo Civil.

5. A reserva (“em princípio”) deve-se ao facto de, apesar da falta de reclamação, ser possível que o administrador da insolvência tome conhecimento do crédito por alguma via e tome a iniciativa, como deve (cfr. art. 129.º, n.º 1, do CIRE), de o incluir na lista de créditos reconhecidos, o que tornará provável o seu reconhecimento na sentença de verificação de créditos e, consequentemente, o seu pagamento no processo de insolvência.

6. Sublinhados nossos.

7. O título executivo dos credores da insolvência é especial e consubstancia-se na sentença de declaração de insolvência complementada com a sentença de verificação e graduação de créditos. Na verdade, qualquer título executivo comum de que o credor disponha não é suficiente mas tão-pouco é necessário para que o seu crédito seja atendido no processo de insolvência.

8. Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, Coimbra, Almedina, 2018, p. 531.